Alimentos e globalização no Império Britânico
Jornal “Folha de São Paulo”, Caderno Mercado, 02/02/2019
Marcos Sawaya Jank (*)
Busca por comida criou império militar, comercial e gerador de migrações
O Brexit, processo que levou o Reino Unido a sair da União Europeia, transformou-se numa decisão caótica e autodestrutiva para os ingleses. O Reino Unido se isola sem saber para onde vai. Movimentos anti-integração e anti-imigração ganham força nos EUA e na Europa. Medidas protecionistas tendem a reduzir ou a “administrar” o comércio internacional, os órgãos e acordos multilaterais estão sendo repensados, surgem guerras comerciais, tecnológicas e, agora, perseguições pontuais a empresas estrangeiras. Em suma, o mundo parece querer frear o processo de globalização.
Mas a história é feita de ciclos que vão e vem, de forma pendular. Curiosamente a mesma nação que hoje não sabe o que fazer com o Brexit, conseguiu, há 200 anos, tomar medidas radicais que formataram o mundo moderno, produzindo o primeiro movimento de globalização em escala mundial.
Esse é o tema de “The Hungry Empire: How Britain’s Quest for Food Shaped the Modern World” (O Império esfomeado: como a busca dos britânicos por alimentos formatou o mundo moderno), escrito pela professora Lizzie Collingham em 2017.
A obra defende a tese de que a força motriz do poderoso Império Britânico no século 19 foi a busca por comida, que se traduziu em um império militar, comercial e gerador de grandes migrações.
Na Revolução Industrial, a Grã-Bretanha tornou-se uma fervorosa defensora do livre-comércio, apoiada nas teses de Adam Smith e David Ricardo. De um lado, a abertura da importação de cereais e o cercamento das propriedades privadas (enclosures) forçou os camponeses a deixar o campo para trabalhar nas manufaturas. Do outro, os territórios britânicos se expandiram na África, na Índia e na Oceania, e a sua influência militar e econômica chegou à China e à América do Sul.
As estradas de ferro e os navios a vapor aumentaram exponencialmente o fluxo de pessoas e mercadorias. Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Índia e Argentina são exemplos de países que passaram a exportar elevados volumes de cereais e/ou carnes para a Grã-Bretanha, criando o primeiro grande movimento de interdependência agroalimentar entre os cinco continentes, especializando países e remodelando os hábitos alimentares.
O livro defende que a migração maciça tinha essencialmente a ver com “colocar comida na mesa”. Por volta de 1850, cerca de um quarto da população da Irlanda (2 milhões de pessoas) morreu ou migrou por causa da contaminação da batata por um fungo. Não é diferente do que ocorre hoje com migrantes de países destroçados por guerras e fome, só que agora em direção ao Velho Mundo.
A Grã-Bretanha montou um império marítimo que a permitiu exportar não só a população agrícola mas todo o setor agrícola, que foi produzir em outros partes do império e além dele. À época, mais que deter a posse de territórios, o termo “império” tinha a ver com domínio dos mares e do comércio.
O Brasil foi um dos primeiros países que se beneficiaram desse movimento de globalização do Reino Unido. O “decreto de abertura dos portos às nações amigas”, assinado por d. João 6º, em 1808, libertou-nos de Portugal como comprador único de nossos produtos.
Infelizmente o protecionismo renasceu com força no período entreguerras do século 20. Na década de 1920 o Reino Unido restringiu seu comércio às nações do Commonwealth britânico, destruindo riqueza em países como a Argentina, que se tornara uma das 12 nações mais ricas do planeta exportando trigo e carne.
As bases da expansão do império britânico no século 19 e a freada brusca nos anos 1920 deveriam nos servir de lição um século depois, quando uma nova onda protecionista se faz presente no próprio Reino Unido e em outras geografias do planeta.
(*) Marcos Sawaya Jank é especialista em questões globais do agronegócio. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.