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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Charge em agência estatal da Venezuela faz túnel ligando Itamaraty aos EUA - Daniela Arcanjo (FSP)

Charge em agência estatal da Venezuela faz túnel ligando Itamaraty aos EUA


Folha.com | Últimas Notícias
04 de novembro de 2024
Daniela Arcanjo

Nova provocação se soma a diversos outros ataques de Caracas desde as eleições no país vizinho, em julho

São Paulo

A agência de notícias estatal da Venezuela publicou em suas redes sociais, neste domingo (4), uma charge na qual retrata o Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, conectado à embaixada dos Estados Unidos, em mais um ataque do regime ao Itamaraty.

Na imagem, publicada nas redes sociais da Agência Venezuela News, o Tio Sam, personagem-símbolo da nação norte-americana, cava um túnel entre os dois prédios, sugerindo uma ligação obscura entre Brasil e EUA uma manipulação do Itamaraty por Washington.

Charge publicada pela agência estatal de notícias da Venezuela mostra túnel entre Itamaraty e embaixada americana

A ditadura de Nicolás Maduro insiste nessa acusação desde que o Brasil vetou a entrada de Caracas no Brics durante a cúpula do grupo em Kazan, na Rússia, há quase duas semanas. Em 24 de outubro, um dia após a divulgação da lista de convidados a entrar no bloco, na qual a Venezuela não foi incluída, a alvo foi o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A charge retratava um senhor de feições parecidas com as do petista no cavalo de troia. A figura é usada para denunciar algum tipo de manipulação - no caso, Lula estaria disfarçado de aliado da Venezuela enquanto age de acordo com os interesses americanos, como os guerreiros gregos teriam feito ao se esconderam em um cavalo de madeira dado de presente aos troianos, de acordo com a mitologia.

Desde então, outras quatro charges atacando Lula foram publicadas.

Na primeira, ele sai de um armário vestindo um terno estampado com as cores da bandeira dos EUA. Na segunda, ele observa, com o chapéu do Tio Sam, Maduro e Vladimir Putin, presidente da Rússia, se cumprimentando - o ditador foi de última hora a Kazan para participar da cúpula, na tentativa de reverter o veto.

Na terceira, Lula é retratado como um cachorro saindo de uma caixa de transportes para pets deixada por uma pessoa que veste uma manga com as cores da bandeira dos EUA. Na charge, o presidente se encontra com outros dois líderes, também representados como cachorros - Javier Milei, da Argentina, e Gabriel Boric, do Chile. Em pontas opostas do espectro ideológico (o argentino é um ultraliberal e o chileno é de esquerda), ambos são críticos do regime de Maduro.

A associação de símbolos americanos a críticos é uma constante na propaganda da ditadura venezuelana. Das 34 últimas charges publicadas pela agência, por exemplo, em 12 aparecia alguma referência aos EUA.

Nas últimas semanas foram retratados como representantes de interesses americanos a líder opositora María Corina Machado e a conselheira do Carter Center para a América Latina, Jennie Lincoln - a organização afirma que, com base nas atas eleitorais divulgadas pela oposição nas últimas eleições, em julho, o adversário de Maduro, Edmundo González, venceu. Já o regime reivindica a vitória do ditador, embora sem apresentar os documentos.

A novidade dos últimos dias é que a artilharia se voltou contra o governo Lula, visto até o início do ano como um aliado do regime. O escândalo que se desenhou após as inúmeras denúncias de irregularidades durante as eleições em 2024 dificult a sustentação desse elo.

Na derrocada da relação, até mesmo o assessor especial de Lula para assuntos exteriores, Celso Amorim, virou um "mensageiro do imperialismo norte-americano". Notório entusiasta do que vem sendo chamado de Sul Global - expressão comumente usada para países em desenvolvimento - , o ex-chanceler brasileiro é um dos fundadores do Brics.

O Itamaraty tem escolhido não reagir aos ataques.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Protecionismo comercial e agricultura global - Marcos S. Jank

Alimentos e globalização no Império Britânico

Jornal “Folha de São Paulo”, Caderno Mercado, 02/02/2019

Marcos Sawaya Jank (*)

Busca por comida criou império militar, comercial e gerador de migrações

O Brexit, processo que levou o Reino Unido a sair da União Europeia, transformou-se numa decisão caótica e autodestrutiva para os ingleses. O Reino Unido se isola sem saber para onde vai. Movimentos anti-integração e anti-imigração ganham força nos EUA e na Europa. Medidas protecionistas tendem a reduzir ou a “administrar” o comércio internacional, os órgãos e acordos multilaterais estão sendo repensados, surgem guerras comerciais, tecnológicas e, agora, perseguições pontuais a empresas estrangeiras. Em suma, o mundo parece querer frear o processo de globalização.

Mas a história é feita de ciclos que vão e vem, de forma pendular. Curiosamente a mesma nação que hoje não sabe o que fazer com o Brexit, conseguiu, há 200 anos, tomar medidas radicais que formataram o mundo moderno, produzindo o primeiro movimento de globalização em escala mundial.

Esse é o tema de “The Hungry Empire: How Britain’s Quest for Food Shaped the Modern World” (O Império esfomeado: como a busca dos britânicos por alimentos formatou o mundo moderno), escrito pela professora Lizzie Collingham em 2017.

A obra defende a tese de que a força motriz do poderoso Império Britânico no século 19 foi a busca por comida, que se traduziu em um império militar, comercial e gerador de grandes migrações.

Na Revolução Industrial, a Grã-Bretanha tornou-se uma fervorosa defensora do livre-comércio, apoiada nas teses de Adam Smith e David Ricardo. De um lado, a abertura da importação de cereais e o cercamento das propriedades privadas (enclosures) forçou os camponeses a deixar o campo para trabalhar nas manufaturas. Do outro, os territórios britânicos se expandiram na África, na Índia e na Oceania, e a sua influência militar e econômica chegou à China e à América do Sul.

As estradas de ferro e os navios a vapor aumentaram exponencialmente o fluxo de pessoas e mercadorias. Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Índia e Argentina são exemplos de países que passaram a exportar elevados volumes de cereais e/ou carnes para a Grã-Bretanha, criando o primeiro grande movimento de interdependência agroalimentar entre os cinco continentes, especializando países e remodelando os hábitos alimentares.

O livro defende que a migração maciça tinha essencialmente a ver com “colocar comida na mesa”. Por volta de 1850, cerca de um quarto da população da Irlanda (2 milhões de pessoas) morreu ou migrou por causa da contaminação da batata por um fungo. Não é diferente do que ocorre hoje com migrantes de países destroçados por guerras e fome, só que agora em direção ao Velho Mundo.

A Grã-Bretanha montou um império marítimo que a permitiu exportar não só a população agrícola mas todo o setor agrícola, que foi produzir em outros partes do império e além dele. À época, mais que deter a posse de territórios, o termo “império” tinha a ver com domínio dos mares e do comércio.
                                                                                                        
O Brasil foi um dos primeiros países que se beneficiaram desse movimento de globalização do Reino Unido. O “decreto de abertura dos portos às nações amigas”, assinado por d. João 6º, em 1808, libertou-nos de Portugal como comprador único de nossos produtos.

Infelizmente o protecionismo renasceu com força no período entreguerras do século 20. Na década de 1920 o Reino Unido restringiu seu comércio às nações do Commonwealth britânico, destruindo riqueza em países como a Argentina, que se tornara uma das 12 nações mais ricas do planeta exportando trigo e carne.

As bases da expansão do império britânico no século 19 e a freada brusca nos anos 1920 deveriam nos servir de lição um século depois, quando uma nova onda protecionista se faz presente no próprio Reino Unido e em outras geografias do planeta.

(*) Marcos Sawaya Jank é especialista em questões globais do agronegócio. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.