Todo ano eu faço as minhas "previsões imprevidentes", a exemplo dos melhores videntes, astrólogos, adivinhadores, chutadores, voyeurs (ops) da atualidade, desses que andam pelos jornais, ou nos programas populares anunciando catástrofes (eventualmente benesses também), mortes de artistas e de políticos, alguma melhora aqui, outra piora acolá, para a satisfação de alguns, o desespero de outros, e o divertimento democrático de todos os que se deixam levar pelo besteirol anual.
À diferença, porém, das previsões "normais" -- quero dizer, essas que costumam dar certo -- as minhas são feitas justamente para não acertar, pois elas apostam na natural capacidade dos seres humanos de sempre desmentir aquilo que de melhor podemos esperar deles, ou seja, sensatez, equilíbrio, sentido da medida, desejo de fazer o bem, não mentir, não gastar demais o dinheiro dos outros, enfim, essas coisas que acontecem invariavelmente, a despeito do otimismo dos astrólogos, dos videntes, dos adivinhadores, etc.
As minhas previsões não: elas têm isso de certo que só funcionam se derem errado, ou seja, se eu não acertar uma só, no que eu terei sucesso total.
Fazem dez anos que eu persigo os desacertos, mas devo dizer que nisso sou ajudado enormemente pelo governo dos companheiros: eles sempre se esforçam para desmentir as nossas previsões mais prosaicas, as mais sensatas, as medidas mais adequadas para consertar este país no plano econômico, no campo político, e sobretudo no plano ético. Eles nunca falham os companheiros: sempre erram, e com isso me ajudam a acertar as minhas previsões ao contrário.
Como já se passaram dez anos de desacertos corretos, vou revisar as previsões de cada um dos dez anos passados, fazer o balanço de meus desacertos (espero sucesso total, triunfo pleno nos enganos) e, para persistir nesse hábito malsão, preparar novas para 2015, com a ajuda dos companheiros, obviamente. Conto com eles para me ajudar a não acertar nenhuma das novas previsões, ou seja, para errar completamente, no que eu terei sucesso pleno nas minhas novas previsões imprevidentes.
Antes de começar, porém, um novo exercício, vou postar aqui a primeira da série, que ainda não tinha todo o arcabouço epistemológico e a profundidade conceitual das "previsões imprevidentes", que começaram um pouco mais adiante, como vocês terão a oportunidade de conhecer, se ainda não o fizeram.
Esta que vai abaixo não passa de uma mera astrologia diplomática, isto é, uma mal concebida trapaça internacionalista, que não deveria dar certo em qualquer hipótese. E não é que eu acertei todas? Os mesmos problemas se eternizam no plano internacional, o que prova que se o mundo gira, os problemas sempre ficam onde estão, se é que eles não ficam piores.
Esta astrologia foi feita no início de 2004, e deveria valer para os doze meses seguintes apenas.
Mas, como vocês que trabalham nas relações internacionais já perceberam, certas coisas se eternizam e se mantêm intocáveis. Por isso acho que o meu exercício de astrologia serve igualmente para agora e para os dez anos seguintes.
A conferir.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 22 de dezembro de 2014
Astrologia
diplomática
Especulações sobre a política internacional em 2004 (e
além)
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília:
11 de janeiro de 2004
Todo final ou todo começo de
ano é a mesma história: os jornais e revistas trazem aquelas previsões dos
astrólogos para o começo do próximo ano, e tome promessa de catástrofes,
mortes, assassinatos, traições, acidentes terríveis e outras pragas anunciadas
previamente. O problema, atualmente, é que esses “astrólogos de carteirinha” já
não se contentam mais com o menu habitual dos ricos e famosos, dos artistas de
Hollywood (ou de novela) e um ou outro político. Não: eles já deixaram a seara
das catástrofes naturais, dos acidentes de avião e das mortes das vedetes, para
enveredar pelos arcanos da alta política e da política econômica oficial. Eles
se profissionalizaram e se especializaram, como convém a toda economia moderna
funcionando a plena carga da divisão social do trabalho (Durkheim que me perdoe,
mas os astrólogos contribuem para reduzir o grau de “anomia” social).
Deve ter gente que coleciona as previsões mais picantes para
conferir até o final do ano, mas confesso que eu sempre perco os recortes no
meio do caminho. Quando a pilha geológica dos meus materiais “para ler depois”
deixa o pré-cambriano de janeiro para o jurássico de maio a memória enfraquece;
quando chega então no pleistoceno de novembro, já não há jeito de encontrar
mais nada: tudo está soterrado e será descartado na próxima mudança.
Por isso, desta vez resolvi fazer diferente: vou criar minhas
próprias previsões, num terreno que é o meu, obviamente, pois que eu não tenho
permissão do sindicato dos astrólogos para invadir sua reserva de mercado e
fazer previsões estapafúrdias sobre os temas que lhes são caros. Vou ficar na
minha própria selva, que é muito mais complicada do que o mundo de Hollywood e
dos cenários de novelas, e vou fazer mais: vou deixar minha lista postada na
minha página (www.pralmeida.org) o ano inteiro, mas sem qualquer garantia
de satisfação ou seu dinheiro de volta. Fica valendo apenas como exercício de
imaginação criadora, num mundo que se repete a cada ano.
Aqui está, portanto, minha astrologia diplomática para o ano
de 2004 (e além), com a ressalva de que eu não consultei as entranhas de nenhum
animal, não tracei mapas astrais de nenhum líder da política mundial, não segui
o curso zodiacal de países ou organizações. Tudo é resultado da mais pura e
anárquica especulação, sem compromisso de cumprimento. Como se trata da
primeira tentativa, a margem de erro supera 60%, mas prometo melhorar o grau de
acerto antes do Brasil ingressar no Conselho de Segurança, o que deve me dar
uns vinte anos de aperfeiçoamento. Sem mais delongas, eis minha lista:
ONU:
Enfrentará uma nova crise financeira em 2004 e não terá
recursos para mais de duas missões e meia de paz e é só. Convocará uma
conferência de chefes de Estado para discutir o problema da fome e das
epidemias que atingem os países mais pobres: todos prometerão ajudar e o mundo
continuará igual ao que sempre foi. Haverá discussões (intermináveis) sobre a
reforma da Carta e a ampliação do Conselho de Segurança, sem conclusões firmes,
porém. Aprovará um sem número de resoluções para resolver os mais variados
problemas da humanidade: metade delas terá os Estados Unidos como único opositor
(por vezes acompanhados de Israel e do Reino Unido). O Brasil abrirá o debate
anual na Assembleia Geral, com um discurso no qual defenderá o
multilateralismo.
Império:
Aprofundará o seu comportamento imperial, mas com algumas
sutilezas, em um ano eleitoral. Continuará a não ligar para o mundo, mas fará
de conta que está realmente interessado na paz e na cooperação internacionais.
Continuará caçando terroristas durante o ano e alternando os alarmes amarelo e
laranja. Vai legalizar imigrantes ilegais, mas um número ainda maior de
candidatos passará a demandar fronteiras muito mais vigiadas. Algumas centenas
de brasileiros serão deportados, gentilmente, e outros milhares continuarão
tentando entrar, de forma pouco gentil. O presidente republicano será reeleito,
ou então tomará seu lugar um candidato democrata. O Congresso confirmará que
deseja a Alca mas que não pretende fazer nenhum esforço para abrir suas
fronteiras agrícolas ou desmantelar os protecionismos setoriais. Aumentará a
exportação de enlatados de Hollywood e a importação de cérebros do resto do
mundo.
Europa:
Continuará tendo problemas de formação de maiorias para
decidir a introdução do décimo-quinto tratado de reforço de uma união cada vez
mais estreita entre seus povos, desta vez em número de 45 (contando as
minorias), o que deve dar algo como 82 traduções cruzadas na Comissão,
inclusive do grego para o finlandês e do sueco para o esloveno. Suas famílias
continuarão não fazendo filhos, e por isso recorrerão aos imigrantes para
manter a oferta de mão-de-obra barata. Continuarão enchendo a paciência do
resto do mundo para que este reconheça exclusividade de apelações de origem (em
queijos, bebidas e outras especialidades) que eles mesmos exportaram para o
resto do mundo, com os seus emigrantes, cem anos atrás. Continuarão a manter
vacas com contas em banco, porcos com talão de cheques e agricultores com
cartões de crédito da própria Comissão, esperando que agricultores do Terceiro
Mundo se contentem com algumas migalhas que vão jogar pela janela. Ainda assim,
será um ótimo lugar para se fazer turismo cultural e gastronômico.
África:
Terá cessado duas guerras, mas começado outras três, com
combatentes cada vez mais jovens (alguns empunharão a AK-47 com uma mão e a
mamadeira com a outra). A entrada de recursos públicos para combater a Aids
será compensada pela exportação de capitais privatizados para aumentar contas
nos bancos off shore. Continuará
fornecendo candidatos à imigração nos países europeus. Trapaceiros nigerianos
continuarão enviando milhões de mensagens eletrônicas para confirmar que o tio
ex-presidente ou o ministro da construção desejam lhe transferir 25% do seu
patrimônio desde que você consinta em lhes passar o número de sua conta em
banco: será a contribuição africana para resolver em parte o problema da má
distribuição de renda no mundo.
Brasil:
Apesar da reforma ministerial, a imprensa continuará
especulando sobre a entrada de novos ministros na equipe de assessores do
presidente. Também se discutirá muito o crescimento da economia, o aumento da
oferta de empregos, a reforma trabalhista, a política e a crise das
universidades, a redução dos impostos e o aumento das prestações sociais, bem
como dos investimentos do governo em obras de infraestrutura. Haverá
troca-troca partidário logo depois das eleições municipais e nova mudança de
regras para as eleições de 2006. A próxima novela do horário nobre se espelhará
na vida política do País, o que fará, pela primeira vez na história, decrescer
o nível de audiência desse tipo de programa. Os discursos ainda serão
superiores ao número de medidas-provisórias, com previsão de equilíbrio em
2005. Continuará em seu esforço para ingressar no Conselho de Segurança e para
liderar a América do Sul, com progressos sensíveis nas duas frentes.
Mercosul:
A união aduaneira se reforçará, mas antes haverá um curto
estágio de cinco anos por um espaço de preferências tarifárias e mais três numa
zona de livre comércio. Sua expansão recomendará reuniões de cúpula de dois
dias, para dar tempo a todos os discursos, mas a Secretária Administrativa
comprará um avião próprio para seguir todas as reuniões de todos os subgrupos
técnicos do mercado comum (em preparação). O grupo de educação começará a
redação de um manual de portunhol e a própria Secretária Administrativa de um Mercosur for beginners ou de um Idiot’s Guide to Mercosur.
Antiglobalizadores:
Continuarão com suas ruidosas reuniões, mas cada vez mais
globalizadas e mais capitalizadas. Com isso conseguirão prolongar a vida útil
do Fórum de Davos, que já vinha cansando empresários e acadêmicos. Também
estimularão o turismo alternativo, as edições alternativas e os discursos
alternativos, criando uma pujante economia de iniciativas antiglobalização que
conseguirá, finalmente, salvar o capitalismo de sua atual fase de estagnação
econômica e de baixo crescimento. Serão lançados derivativos financeiros do
Fórum Social Mundial, para os que desejam aplicações alternativas, com dinheiro
não contaminado pelo desejo de lucro e pelo vício da exploração do homem pelo homem.
Serão os únicos fluxos financeiros a recolher a Tobin Tax, num esquema
administrado pela ONU, que vai reverter em benefício de organizações
alternativas do Terceiro Mundo, isto é, para eles mesmos.
Comércio internacional:
Continuará sendo uma guerra por outros meios, ou continuará
tendo mais a ver com a política do que com a economia. As vantagens
comparativas ricardianas terão uma nova interpretação, patrocinada pela
Comissão Europeia e pelo Congresso americano, que tentarão modificar
simultaneamente todos os livros textos de economia. Seus autores se refugiarão
numa ilha deserta, reproduzindo a simulação do Robinson Crusoé que figura
nesses livros textos, como exemplo de economia fechada e sem trocas. A despeito
disso, as trocas se farão cada vez mais entre multinacionais, que serão em sua
maioria ocidentais intercambiando produtos chineses. Indianos também vão
começar a exportar uma parte de sua mão-de-obra para a Rússia, que padece de
demografia declinante. Haverá dumping de ministros socialdemocratas, numa
primeira antecipação da aplicação da cláusula social em escala universal.
Meio Ambiente:
Cada vez mais protegido, por discursos, de dirigentes
políticos, e na prática, por barcos e aviões armados de radares e mísseis das
organizações não-governamentais mais agressivas. Povos indígenas, por sua vez,
contarão com dirigíveis não-poluentes para supervisionar suas explorações
minerais e agrícolas (sustentáveis). Técnicas de clonagem ressuscitarão
espécies desaparecidas, mas as ONGs ecológicas alertarão para os desequilíbrios
para o meio ambiente do século 21, não acostumado com predadores do passado.
Desaparecerá a agricultura tradicional e os supermercados serão divididos em
seções de transgênicos e de orgânicos, com filas separadas nos caixas para
evitar contaminação recíproca.
Direitos Humanos:
Serão inclusivos, com os aspectos psicológicos contemplados em
nova convenção da ONU. Animais clonados também serão incluídos na categoria. O
direito à democracia derrubará o último ditador asiático, mas uma ilha do
Caribe continuará resistindo aos ditames do Império. Todos os habitantes do
planeta terão direito a uma renda mínima, cujo programa será universalizado
graças aos esforços de um senador brasileiro, e a ONU supervisionará sua
aplicação até o ano de 2075, quando se espera que o último pobre poderá
adquirir uma bicicleta chinesa movida a hidrogênio.
Astrólogos diplomáticos:
Serão uma categoria reconhecida e cada vez mais disseminada,
antes mesmo da formalização da profissão de “internacionalista”. Terão seu
próprio sindicato e sua colônia de férias e farão congressos anuais para trocar
previsões sobre os países em que vivem. O mundo será muito mais divertido e
feliz com eles, pois eles poderão abolir completamente as guerras e as
epidemias de suas previsões, aproveitando para abater o preço dos manufaturados
e para elevar os das commodities. Ou
não?
A conferir no começo de 2005.
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília:
1177, 11 de janeiro de 2004