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quinta-feira, 7 de março de 2024

Eleição na Venezuela expõe democracia de conveniência de Lula - Malu Gaspar (O Globo)

Grato a Augusto de Franco pela transcrição:

Eleição na Venezuela expõe democracia de conveniência de Lula

Malu Gaspar, O Globo (07/03/2024)

Imagine o que seria o cenário político do Brasil hoje se a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Supremo Tribunal Federal (STF), controlados por Jair Bolsonaro, tivessem com uma canetada cassado os direitos políticos de Lula e de Simone Tebet por 15 anos e impedido os dois de disputar as eleições de 2022. Ou que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tivesse trocado a data da votação para 31 de março só para render homenagem à ditadura militar.

Daria para acreditar que uma eleição nessas condições teria um  resultado justo? A pergunta é obviamente retórica e um tanto absurda, já  que tal situação seria impensável no Brasil — onde, apesar da onda  golpista dos últimos anos, ainda temos uma democracia.

Não é o caso da Venezuela, onde a Controladoria-Geral e o Supremo, dominados por Nicolás Maduro,  retiraram da disputa deste ano seus dois principais opositores — e  ainda mudaram a data do pleito, que tradicionalmente ocorre em dezembro,  para 28 de julho, aniversário do falecido presidente Hugo Chávez.

Para Lula, porém, levantar qualquer dúvida sobre a lisura das eleições venezuelanas é prejulgamento.

— Não podemos jogar dúvida antes das eleições acontecerem, que aí  começa discurso de prever antecipadamente que vai ter problema — afirmou  o presidente brasileiro a jornalistas ontem no Palácio do Planalto. —  Temos que garantir a presunção de inocência, até que haja as eleições  para que a gente possa julgar se foi democrática ou decente.

O brasileiro ainda disse que Maduro lhe garantiu que vai “convocar  todos os olheiros internacionais do mundo que quiserem acompanhar as  eleições”.

Lula não é bobo nem mal informado, conhece Maduro de outros carnavais e  tem à disposição um corpo diplomático plenamente capaz de informá-lo de  que a Venezuela mantém cerca de 300 presos políticos e protagoniza a  maior crise humanitária do planeta, com quase 8 milhões de exilados.

A perseguição a opositores, com desaparecimentos e torturas, é uma das  razões por que o governo venezuelano é alvo de uma investigação no  Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade.

Na semana passada, Maduro ainda expulsou do país integrantes do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos porque, entre outras razões, protestaram  contra a prisão da ativista Rocío San Miguel, conhecida por denunciar  crimes militares.

Presa há um mês pela polícia de Maduro sob as acusações de “traição à  pátria”, “terrorismo” e “conspiração”, ela ficou semanas incomunicável,  com paradeiro desconhecido. Foi preciso a intermediação da embaixada da Espanha (ela é cidadã espanhola) para que fosse garantido seu direito a receber visitas da família e de um advogado.

Não há sinal, portanto, de que Maduro esteja realmente disposto a  receber olheiros para fiscalizar as eleições — a menos, talvez, que  venham da Nicarágua, da Rússia ou de Cuba.

Por essas e outras razões, não faz nenhum sentido comparar o cenário  político do Brasil ao da Venezuela. Lula, porém, arriscou. Aos  jornalistas, ele disse esperar que a oposição venezuelana não tenha o  mesmo comportamento da brasileira:

— Se o candidato da oposição tiver o mesmo comportamento da oposição daqui, nada vale.

E cutucou:

— Eu fui impedido de concorrer às eleições de 2018. Em vez de ficar  chorando, indiquei um outro candidato que disputou as eleições.

Pois a questão é justamente essa. A diferença entre Lula e a  oposicionista María Corina Machado, que aparecia na liderança das  pesquisas, mas foi sumariamente excluída de eleições na Venezuela pelos  próximos 15 anos, é que Lula não foi impedido de disputar por uma  ditadura, mas por decisão judicial. E, se o Brasil não fosse uma  democracia, nem o PT poderia ter indicado outro candidato para  substituí-lo, nem ele poderia voltar a disputar eleições em 2022 — e  ganhar.

Não chega a ser novo ver Lula fingir que não vê os crimes cometidos por  ditaduras amigas enquanto denuncia os perpetrados por inimigos  geopolíticos.

Mas continua sendo intrigante ver o tom e a ênfase com que defende  Nicolás Maduro. Parece que, quanto mais se acumulam evidências de  monstruosidades cometidas pelo venezuelano, mais o brasileiro se empenha  em absolvê-lo.

Tal postura fica ainda mais esdrúxula considerando que acabamos de  passar por um trauma que poderia ter nos lançado de novo sob uma  ditadura em que o petista certamente não seria o presidente — e que  apoiar Maduro só piora sua imagem diante dos eleitores que de fato  prezam a democracia como valor.

A única explicação possível é que Lula acredita mesmo no que diz e que,  para ele, democracia é um conceito relativo. Só é sagrada se for para  favorecê-lo. Senão, não faz mesmo diferença.