O trabalho abaixo, feito de forma circunstancial num voo de três horas entre João Pessoa e Brasília, seis meses atrás, voltando de um curso que dei na UFPB, tinha ficado pouco ou quase nada conhecido, tanto em função do imediato engajamento em novas atividades, de volta ao meu trabalho habitual na capital federal, quanto pelo fato de que eu o enviei a poucos interlocutores mais conhecidos, dentro (creio que nenhum) ou fora do Itamaraty. Ele permaneceu, assim, praticamente desconhecido. O fato de divulgá-lo agora, se prende não a um momento preciso de nosso itinerário político – já que estamos às vésperas da inauguração de um novo governo (talvez de um novo regime), mas porque reparei que, na lista de trabalhos recentemente divulgada na plataforma que normalmente utilizo com essa finalidade, Academia.edu (link: https://www.academia.edu/38041795/Trabalhos_Originais_do_ano_de_2018), não aparece um registro de divulgação.
Eu estava refletindo sobre uma frase do embaixador Rubens Ricupero, numa palestra que ele fez aos diplomatas do Instituto Rio Branco (encontra-se sob a rubrica "Percursos Diplomáticos", no site do IPRI, a primeira delas), sobre o papel da academia diplomática e do IPRI que eu dirijo atualmente, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, um dos dois órgãos – junto com o CHDD, o Centro de História e Documentação Diplomática, com sede no Rio de Janeiro, atualmente dirigido pelo embaixador Gelson Fonseca – como centros produtores de conhecimento.
Não sei se chegamos a tanto, mas algo produzimos, os diplomatas em seu conjunto, isoladamente ou em nossa interação com acadêmicos e outros pesquisadores "civis", sob a forma de trabalhos de pesquisa no próprio IRBr e no IPRI, na "arqueologia" do que diplomatas do passado produziram, a cargo do CHDD, e com base nos diversos veículos feitos para tal efeito: os cursos de Aperfeiçoamento e de Altos Estudos (mas praticamente sem orientação específica, a não ser pareceres ocasionais de diplomatas e depois bancas de julgamento das teses de CAE) e outros trabalhos elaborados em caráter voluntários, e publicados sob a forma de livros editados pela Funag, ou artigos que são divulgados nos Cadernos de Política Exterior, a cargo do IPRI, justamente.
Em todo caso, aceito essa designação dada pelo embaixador Ricupero, e me permito divulgar esta reflexão sobre o que pode fazer o Itamaraty, numa fase que eu entendo deva ser dedicado primordialmente às reformas econômicas já em curso.
Paulo Roberto de Almeida
São Paulo, 28 de dezembro de 2018
O poder do Itamaraty: o conhecimento como
base
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: comentários sobre as reformas
no Brasil; finalidade: papel do
Itamaraty]
Introdução
O Itamaraty não tem
muito poder, ou quase nenhum. Poucos políticos miram o seu comando, uma vez que
ele não dá votos, talvez apenas um pouco de prestígio para quem não deseja
maiores cargos na trajetória política. Ele tampouco possui, longe disso, alguma
força própria no sentido estrito, poder de polícia, de defesa ou de ataque,
nada. Ele não tem, obviamente, nenhum poder econômico ou financeiro: dispondo
de menos de 0,5% do orçamento geral do executivo, ele não pode sequer pensar em
lançar grandes projetos por sua própria iniciativa, pois sem prévia aprovação
das autoridades econômicas, necessitando ainda do empenho pessoal do
presidente, nada pode fazer, uma vez que a burocracia do setor podaria qualquer
aumento de despesa. Em outros termos, trata-se de um ministério fraco,
desprovido de meios, de recursos, dispondo, apenas e tão somente, de algum
controle sobre as informações que processa, a partir de suas antenas, que são os
postos no exterior, aliás, considerados em número excessivo por essas mesmas
autoridades.
O único poder de que
dispõe o Itamaraty, mas que pode ser a sua força moral, é a arma do conhecimento,
ainda que não se tenha certeza de que ele faça bom uso desse recurso
valiosíssimo. A presente nota, de caráter subjetivo, pretende discutir o poder
do conhecimento no plano mais amplo das políticas públicas em geral, com
referência ao papel subsidiário do Itamaraty no processo de reformas de que
carece o Brasil.
O que faz o Itamaraty?
A linguagem, o discurso,
as negociações em torno de acordos, o entendimento recíproco no plano
bilateral, a participação plena no contexto multilateral, constituem as
principais ferramentas de trabalho do Itamaraty, ao longo de toda a sua
história e no futuro previsível. Mas todos esses instrumentos representam
apenas meios, e não seriam de grande ajuda no plano substantivo, se eles não
estivessem apoiados, se não fossem embasados num conhecimento profundo do que é
o Brasil e do que é o mundo, e de como evoluem e se relacionam essas duas
entidades políticas desiguais, sobre como fazê-las interagir ao melhor dos
modos possíveis, de maneira a lograr com que o Itamaraty possa contribuir de
modo decisivo para que se alcance a grande obsessão nacional desde largo tempo:
o desenvolvimento. Este representa bem mais do que o simples crescimento
econômico: sociedade próspera, democracia estável e inclusiva, economia
dinâmica, tecnologia avançada, sociedade relativamente igualitária, ou pouco
desigual, respeitadora dos direitos humanos, uma nação integrada nos seus
vários componentes étnicos, culturais, religiosos, respeitadora das diferenças
e dos direitos das minorias e, sobretudo e principalmente, um Estado de
Direito.
Alcançar o status de
país desenvolvido tem sido o objetivo maior da sociedade brasileira desde
sempre, como parece natural. Mas é forçoso reconhecer que nossas elites – todas
elas, inclusive a corporação dos diplomatas – têm fracassado nessa meta
nacional. Digo isto com certo constrangimento, pois parece que também pertenço
a essas elites que fracassaram no atingimento do grande objetivo nacional,
embora eu talvez possa me atribuir certa isenção de culpa. Nunca me julguei
pertencer a qualquer tipo de elite, exceto, talvez, à elite do conhecimento,
justamente. Sendo originário de uma família extremamente modesta, eu ascendi a
essa elite social de renda e prestígio exclusivamente pela via do trabalho e da
educação, isto é, por meio do conhecimento.
Se existe algum sentido
mais elevado no trabalho amplamente burocrático de que nos ocupamos na maior
parte do tempo ele deveria estar, precisamente, na produção de conhecimento
especializado e instrumental, não apenas na busca, processamento e organização
de conhecimento produzido não por diplomatas, mas por outras categorias de
trabalhadores não manuais, os “trabalhadores intelectuais”. Pois bem, como se
produz conhecimento original? Como fazer aportes inéditos, novos insumos ao
trabalho diplomático, trazidos afanosamente para processamento na Secretaria de
Estado ou comunicado a postos no exterior, que não seja a mera transmissão de conhecimento
produzido alhures, nos meios de comunicação, nos informes e relatórios de
organismos internacionais, nas consultas e expedientes de outros governos, nas
comunicações de interlocutores, do país e do exterior?
AC e DC na diplomacia
A produção de
conhecimento, da mesma forma como a de qualquer outro insumo ou mercadoria,
requer agregação de valor pela via da mobilização de fatores produtivos. No
caso dos diplomatas, trata-se de produzir conhecimento especializado e adaptado
aos requerimentos do serviço exterior da nação. A finalidade última é, obviamente,
a de subsidiar a política externa definida pelo governo: no caso dos regimes
presidencialistas, aquela definida pelo presidente, auxiliado por seu ministro
das relações exteriores; no caso dos regimes parlamentaristas, o presidente do
Conselho, ou o primeiro ministro, e o seu auxiliar setorial.
A diplomacia
profissional, ao subsidiar esses executivos na política externa, não só deve
trazer-lhes as informações mais acuradas sobre as relações exteriores do país,
sobre a política internacional e a economia mundial, como também produzir guias
de ação para os itens mais relevantes da agenda de política externa desse país.
Isso significa, muitas vezes, libertar-se das amarras do passado e inovar, num
sentido que por vezes não é bem percebido pelos próprios diplomatas,
acostumados que eles estão, como sempre foram, a seguir as ordens vinda de
cima, que cumprem disciplinadamente, mesmo quando o senso comum pode revelar o
contrário do que lhes é ordenado.
Tomemos, por exemplo, o
caso da política externa brasileira que nos foi servida diligentemente nos
últimos quinze anos, e talvez até um pouco mais, essa diplomacia que já foi
classificada de “ativa e altiva”, mas que, salvo na superfície – como o término
do apoio a ditaduras execráveis, na região e fora dela –, não mudou
significativamente, talvez alguma coisa na forma e quase nada no conteúdo. Ora,
o que faz o Itamaraty, o que faz a diplomacia brasileira, que não produz
conhecimento novo sobre a política externa, para servir a um novo governo,
animado por outros princípios? O que fazem todos os diplomatas profissionais
que continuam disciplinadamente obedecendo aos mesmos padrões de política
externa, sem questionar nada do que aconteceu na cronologia política desse
período? Eu o divido, como na historiografia cristã, em duas eras bem
definidas, uma AC e outra DC: Antes dos Companheiros e Depois dos Companheiros.
O que fazem os diplomatas que não elaboram novos conceitos para a política
externa brasileira, para subsidiar o presidente e o seu ministro da área?
Os novos conceitos da diplomacia: seria ela meramente
acessória?
Por novos conceitos eu
quero me referir, não a uma versão diferente da diplomacia “ativa e altiva”, de
tão triste memória (em minha opinião), mas a uma diplomacia da inserção global
do Brasil, como aparentemente estamos tentando fazer, com o ingresso pleno no
Clube de Paris e a demanda de adesão à OCDE. Considero essas duas iniciativas
não como um fim em si mesmo, mas como mero meio para implementar uma política
externa de abertura realista, um regionalismo sensato – não aqueles arreganhos
de liderança regional de que se jactava o Guia Genial dos Povos –, a
continuidade da prática de um multilateralismo ponderado, focado em objetivos
pragmáticos, não estrepitoso ou voluntarista, visando definir e estabelecer
parcerias estratégicas no estrito limite dos interesses nacionais, não
determinadas a priori por uma postura ideológica canhestra e anacrônica,
caracterizada por um anti-imperialismo infantil e um anti-hegemonismo de
fancaria. O que se visa é uma política externa podendo servir ao Brasil numa
fase de transição para um outro tipo de política geral de governo, que será a
do país nos próximos anos.
Por que digo isto?
Porque vejo o Brasil como um país notoriamente fracassado em atingir o seu
objetivo básico de desenvolvimento integrado, ou seja, com igualdade social.
Vejo um país frustrado com os retrocessos que lhe foram impostos por uma
política econômica esquizofrênica, não apenas inepta, no sentido operacional do
termo, mas especialmente corrupta até a raiz dos cabelos, se é possível dizer. Tratou-se
de uma administração econômica que nos levou à Grande Destruição a que eu já me
referi em outros trabalhos. Não tenho nenhuma dúvida de que o Brasil é um país
derrotado por suas próprias elites, irresponsáveis, patrimonialistas,
prebendalistas, incompetentes e singularmente corruptas, fenômenos tradicionais
desde sempre, mas que se agravaram a partir do momento em que uma organização
criminosa tomou de assalto o Brasil.
Estabelecer novos
conceitos para uma nova política externa significa, antes de mais nada,
reconhecer essa realidade, a de um país fracassado, deteriorado em suas
instituições, fragmentado e dividido pela ação criminosa e irresponsável
daqueles que insistem em dividi-lo ainda mais, com suas propostas deletérias,
equivocadas, enfim, anacrônicas do ponto de vista de um país que pretende se
inserir na moderna economia global. Significa também reconhecer que a política
externa é meramente acessória, secundária, não determinante na solução dos
principais problemas que afligem o Brasil atualmente. Mas, o que é determinante
no Brasil atual?
Para mim, trata-se de
considerar a questão social como uma questão nacional, a prioridade das
prioridades, a única que deveria mobilizar nossas energias de mandarins da
República, de altos burocratas, de membros de uma elite privilegiada, que não
quer ver-se dessa maneira. E qual é a tarefa básica nessa missão de fazer da
questão social a mais alta prioridade da nação?
Parece-me, sem sombra de
dúvida, que é o ajuste fiscal. Sem tergiversações, eu diria que esse ajuste deve
sim ser feito com austeridade, a mais completa e corajosa austeridade. Não
aquela que atingiria os mais pobres, mas a que precisa, desta vez, atingir os
mais ricos. Os mais ricos somos nós, não necessariamente os diplomatas, mas os
membros da magistratura, os da mais alta cúpula do Estado, os políticos em
geral, os mandarins dos três poderes, nos três níveis da federação e os seus
associados de carreira ou de circunstância. O ajuste fiscal deve figurar como
tarefa básica no contexto da austeridade geral, e esta atingir primeiro o
Estado, antes que a sociedade produtiva, os empresários e os trabalhadores, que
são os que criam riqueza, renda, empregos. O Brasil precisa empreender um
processo vigoroso, continuado, persistente, de reformas estruturais profundas,
em todos os setores de sua vida pública, a começar pela Constituição, esse
monstro metafísico notoriamente esquizofrênico em seus capítulos econômicos e
sociais.
Essas reformas não devem
incidir apenas e tão somente sobre aspectos deletérios, iníquos e irracionais
de nossa presente organização institucional, como o sistema previdenciário e o assistencialista,
a legislação laboral, as políticas setoriais protecionistas e subvencionistas
(como na indústria e na agricultura). Elas devem se concentrar, sobretudo e
principalmente, no peso do Estado na vida pública, na enorme e opressora carga
fiscal, que atinge todos os brasileiros, especialmente os do setor produtivo, e
inclusive os mandarins do Estado, que vivem dos recursos extraídos dos
verdadeiros criadores de riqueza. Deve-se desde já revisar e eliminar do jargão
corrente um conceito totalmente errado, o tal de “custo Brasil”, que só redunda
em atribuir genericamente a culpa de nossas mazelas a todo o país, de maneira
vaga. Não existe “custo Brasil”. O que existe é o custo do Estado brasileiro,
que pesa como uma canga sobre os ombros dos brasileiros produtivos.
Caberia também
empreender uma revolução educacional, que não é apenas uma reforma dos sistemas
educativos, nos seus vários níveis, do pré-primário ao pós-doc, esse turismo de
luxo para os detentores de sinecuras acadêmicas. A reforma da educação, na
verdade, exigiria uma verdadeira revolução mental, mudança para a qual a
maioria dos brasileiros não está provavelmente preparada para aceitar e
empreender. O analfabetismo funcional atinge, ao que parece, os mais altos
níveis da educação formal: os brasileiros, já se constatou, exibem uma enorme
dificuldade para aceitar a simples lei da oferta e da procura, a coisa mais
elementar que existe em economia, equivalente à lei da gravidade para a física.
A produção de conhecimento para uma nova política
externa
A reforma da política
externa não estaria imune a esse processo de revisão geral das políticas
públicas, a começar pela revisão dos conceitos nos quais ela se tem apoiado nas
últimas décadas. Isso passa, obviamente, por uma reforma dos métodos de
trabalho do Itamaraty, mas não se resume a esse aspecto operacional. Essa
reforma da política externa passa também por uma revolução mental, que nos
liberte de certas suposições do passado recente e nos coloque num outro patamar
de formulação e de execução da diplomacia profissional. Se as palavras máximas
da nova política externa de inserção plena do Brasil na economia global são
abertura econômica e liberalização comercial, então a diplomacia profissional
precisa se preparar para suas novas tarefas.
Já indiquei, em trabalho
recente sobre as relações econômicas internacionais do Brasil (em capítulo no
livro de Jaime Pinsky, Brasil: o futuro
que queremos, São Paulo: Contexto, 2018), os principais elementos que me parecem dignos de
integrar uma nova agenda para as relações exteriores do país. Uma formulação
paralela dos objetivos estratégicos do Brasil, em linha com esses objetivos e
os princípios aqui traçados, encontra-se em curso de elaboração, em texto
independente.
Se existe algum poder
no, ou do, Itamaraty, esse poder está em sua capacidade, em nossa capacidade,
de adaptar a política externa às necessidades mais prementes do país. Os
diplomatas profissionais não devem ser mandarins desligados das carências mais
sentidas pelos concidadãos mais humildes. Ou melhor: eles são mandarins, mas
nem por isso devem se sentir, ou se julgar alheios aos problemas internos do
país. A força moral do Itamaraty consiste em usar todo o poder derivado do seu
conhecimento especializado para, como já disse alguém, transpor possibilidades
externas ao terreno das capacidades internas. Para isso, o mero conhecimento
das realidades externas talvez não seja suficiente; um profundo conhecimento do
que é o Brasil, de sua história e de sua presente fase de transição, de seus
problemas cruciais e dos remédios a eles associados, representa não apenas uma
agregação de valor à diplomacia profissional, mas a condição necessária para a
expressão de um poder próprio.
Paulo Roberto de Almeida
Em voo: Brasília, João Pessoa, Brasília, 28-29 de maio de 2018