Bicentenário da Independência: os fundadores do Estado
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Notas para palestra em seminário do IAB sobre o Bicentenário, 5/09/2022, 10:30hs. Transmissão via Canal YouTube/IABNacional: www.youtube.com/user/tviab
Falar sobre os fundadores do Estado brasileiro, 200 anos atrás, significa distinguir, de um lado, aqueles que colocaram os alicerces fundamentais da nova nação independente na América do Sul portuguesa, em 1822, e, de outro lado, aqueles que, a partir de 1824, com a Constituição outorgada – depois da iniciativa frustrada da Assembleia Constituinte –, passaram a construir todas as demais instituições do Estado, desde a formação da Assembleia Geral e do Senado, a criação da Suprema Corte, processo que se estendeu bem além do primeiro Reinado e das próprias Regências, tocando em muitas outras agências públicas, na segurança e defesa, na justiça (com os códigos de processo), na administração do orçamento e em diversos outros terrenos.
A construção do Estado propriamente dito é feita na sequência daquele momento inicial, quando se constituem gabinetes essencialmente brasileiros, voltados para as questões nacionais – não as de Portugal, como sob Pedro I – e se definem as linhas das políticas doméstica e externa, durante as Regências e ao início do segundo Reinado, depois do golpe da maioridade de 1840, uma iniciativa dos Liberais, depois recuperada pelos conservadores ou regressistas. O Regresso, ou Partido Saquarema, é o verdadeiro construtor do Estado brasileiro, com homens como Bernardo Pereira de Vasconcelos, Honório Hermeto Carneiro Leão, Rodrigues Torres, Paulino Soares de Souza e vários outros; foram eles que realmente colocaram de pé uma configuração política e de segurança pública, que deu cabo das revoltas provinciais das regências e da primeira fase do reinado de Pedro II, assim como souberam encontrar uma solução ao primeiro grande conflito externa, a disputa com a Grã-Bretanha em torno da questão do tráfico escravo. Esta é, no entanto, a segunda geração dos construtores do Estado, a que se desempenha no final do período regencial e nos anos 1840-50.
Minha intenção seria falar da primeira geração, aquela que levou o então Reino Unido, quase reduzida a uma nova condição de colônia pelas Cortes de Lisboa, à sua separação de Portugal, decretando a independência política e obtendo o reconhecimento internacional do Império do Brasil. Quanto a seus componentes, cabe mencionar, antes de todos os homens, a princesa Leopoldina, que verdadeiramente tomou a decisão de romper com Portugal, apoiada por estadistas da qualidade de José Bonifácio de Andrada e Silva. Antes mesmo dos estadistas de 1822, três intelectuais e formadores de opinião, já tinham pensado o Brasil como nação e como Estado. Eles são José da Silva Lisboa, Hipólito da Costa e José Bonifácio, que por acaso figuram em primeiro lugar na lista de duas dezenas de estadistas que integram meu livro, recentemente publicado, sobre os Construtores da Nação, os que formularam projetos para o Brasil, muito poucos implementados de fato.
José da Silva Lisboa, o Adam Smith brasileiro, é o mais velho dos três, o primeiro economista de fato – não esquecendo o bispo Azeredo Coutinho, fundador do seminário de Olinda – o intelectual baiano, súdito fiel dos Braganças, quem primeiro escreveu sobre a economia e a política econômica que o Brasil deveria ter, desde o Vice-Reino, com seu livro Princípios de Economia Política, de 1804. Com a chegada da corte ao Rio de Janeiro, ele passa a discutir a política comercial e industrial que o Brasil deveria seguir, como sede do grande império português; ele o faz com seus livros sobre o comércio franco do Brasil, de 1808, e um outro, sobre a franqueza da indústria, de 1810. Silva Lisboa só se tornou barão, depois visconde de Cairu no primeiro Reinado, quando foi contemplado pelo imperador com esses títulos de nobreza e com o cargo de senador do Império.
Mas, sua obra básica para a construção da nação foi escrita ainda antes da Revolução do Porto e da Independência: ela foi os Estudos sobre o Bem Comum, de 1819, onde estão reunidos os fundamentos sobre os quais deveria se apoiar uma sólida política econômica para o fortalecimento da nação brasileira, prevendo inclusive a rejeição do tráfico e a abolição da escravidão, assim como o aproveitamento das vantagens comparativas do imenso território e a formação do seu capital humano. Silva Lisboa, como economista e liberal político, foi não só o Adam Smith brasileiro, mas também o seu David Ricardo, o Frédéric Bastiat, o Jean-Baptiste Say, o James Mill e talvez até o John Stuart Mill, menos talvez pelos seus impactos efetivos sobre o novo Estado do que pelos seus escritos duradouros, ainda válidos.
Em segundo lugar eu colocaria Hipólito da Costa, quem, recém egresso de Coimbra, recebeu do ministro português Rodrigo de Souza Coutinho a missão de descrever o que havia de novo, e de útil para Portugal e para o Brasil, na jovem República americana, o que ele fez em sua estada de investigação econômica de 1798-1799. Dessa missão resultou o seu relato de viagem à Filadélfia, que só viemos a conhecer em 1955, graças a Alceu Amoroso Lima, que recuperou o manuscrito na Biblioteca de Évora e o fez publicar pela Academia de Letras. Hipólito retornou maçom dessa viagem e, como tal, foi detido pela polícia política do absolutismo português e entregue à Inquisição. Ele relatou, na Narrativa da Perseguição (que publicou em Londres em 1810), os interrogatórios a que foi submetido entre 1802 e 1805, quando se evade do cárcere e se refugia em Londres. Na capital britânica, com o apoio do príncipe de Gales, maçom igualmente, ao Correio Braziliense, que ele publica ininterruptamente de 1808, desde o momento da instalação da corte no Rio de Janeiro, até 1822, já tendo aderido ao princípio da separação dos dois reinos. Pela densidade substantiva do seu “armazém literário”, cobrindo praticamente todos os aspectos do mundo europeu e americano que poderiam interessar à construção de sua nação de origem, ele merece legitimamente que se o chame de primeiro estadista do Brasil.
Finalmente, temos José Bonifácio, que retorna ao Brasil em 1819, depois de três décadas de estudos por diversos países europeus (inclusive a França revolucionária do final do século XVIII) e de engajamento na resistência portuguesa contra a invasão napoleônica. Foi ele quem redigiu as instruções aos delegados de São Paulo às Cortes de Lisboa, já defendendo o formato de Estado que ele pretendia favorecer, a manutenção da união política entre Portugal e o Brasil, junto, aliás, com Silva Lisboa e o próprio Hipólito. Para os três, o Brasil deveria ser a sede de um importante império luso-brasileiro, junto com as demais colônias, que poderia figurar lado a lado com outros importantes impérios em formação.
Os principais projetos de Bonifácio para a construção da nação brasileira, assim como para Hipólito, eram a abolição imediata do tráfico escravo, a eliminação gradual do regime servil, pari passu à importação de agricultores europeus, para fazer do Brasil a grande economia que já figurava nas previsões de Silva Lisboa. Mas ele também tinha o projeto, algo utópico, de “civilizar os índios”, ademais da firme intenção de fundar universidades, mudar a capital para o interior e muito mais. Ainda antes da independência, no manifesto às nações amigas de agosto de 1822, ele se pronunciava pelo liberalismo comercial, mas também pelo respeito mútuo e plena reciprocidade no trato internacional e pela facilidade de ingresso no país de sábios, artistas e empresários.
O trio de fundadores da nação brasileira, Silva Lisboa, Hipólito e Bonifácio, tinham peculiaridades próprias nas ideias e propostas formuladas por cada um deles, como grandes intelectuais iluministas que eram, mas concordavam no essencial: preservar, acima de tudo, a unidade nacional, instituir um regime político liberal, abrir a economia, eliminar o tráfico e a escravidão, importar capital humano e ganhar o respeito da comunidade internacional. Conseguiram algumas coisas dos seus grandes objetivos, mas se estivessem conosco nos 200 anos da independência, saberiam indicar as grandes carências remanescentes: a desigualdade renitente, os desequilíbrios sociais e regionais persistentes, o edifício político ainda pendente da eliminação do patrimonialismo e dos privilégios inaceitáveis. Estiveram entre os primeiros construtores da nação, mas seus projetos para o Brasil ainda não foram completados.
Brasília, 4228: 4 setembro 2022, 3 p.