Creio ter detectado, ultimamente, um aumento anormal no número de idiotices sendo propagadas por canais como este. Por isto, lembrei-me de um trabalho que elaborei muitos anos atrás, quando eu tinha detectado o mesmo fenômeno, mas basicamente restrito a grupos religiosos determinados, como os criacionistas, por exemplo.
Acho que a situação só fez se agravar desde então, o que me levou a localizar e a republicar um trabalho que permaneceu relativamente obscuro desde então.
Sugiro que relevem a ênfase religiosa, e projetem o fenômeno para a área política, atualmente, pois ele é capaz de atingir mesmo as maiores potências do planeta...
Paulo Roberto de Almeida
Estaria
a imbecilidade humana aumentando? (uma pergunta que espero não constrangedora...)
Miami-São Paulo (em voo), 23 abril 2007, 5 p.
Considerações sobre o aumento da
idiotice no mundo, com base no fundamentalismo religioso e nas explicações
simplistas sobre a vida e o mundo.
Publicado sob o título de “Está aumentando
o número de idiotas no mundo?”, revista Espaço
Acadêmico (ano 6, n. 72, maio de 2007; ISSN: 1519-6186).
Relação de Originais n. 1746; Relação de Publicados n. 766.
Estaria
a imbecilidade humana aumentando?
(uma pergunta que espero não
constrangedora...)
Paulo
Roberto de Almeida
Em vôo Miami-São Paulo, 23 abril 2007.
Com o perdão daqueles
mais sensíveis à crueza da questão-título, respondo diretamente à pergunta. E a
resposta é, ao mesmo tempo: sim e não! Explico um pouco melhor aqui abaixo.
Sim, infelizmente
pode-se constatar empiricamente – mas isto poderia ser confirmado por alguma
investigação “científica” – que está aumentando, para cifras nunca antes
registradas nos meios de comunicação, o número de imbecis, idiotas ou simples
energúmenos, cujas opiniões, elocubrações ou meras manifestações de
“pensamento” conseguem ser captadas por esses meios de comunicação, encontrando
assim um eco mais amplo nos veículos impressos e audiovisuais.
Por outro lado,
nunca foi tão volumosa a produção científica ou a simples escolarização de
massas antes excluídas do acesso à educação (de qualquer nível e qualidade).
Com isso, a cultura científica se dissemina em meios antes entregues às mais
variadas influências “culturais”, desde o curandeirismo shamânico até o
fundamentalismo religioso pretendidamente “cientista”. Assim, a humanidade
“progride”, ainda que isto possa ser descrito como sendo uma “fatalidade
natural” do acúmulo do conhecimento científico e que esse saber esteja em muito
poucas mãos (e cérebros).
Com esses dois
processos se desenvolvendo simultaneamente, a resposta à pergunta central é,
portanto, dupla e contraditória: nunca foi tão grande o número de pessoas
partilhando de um mesmo conjunto de explicações simplistas – e basicamente
erradas, quando não idiotas – sobre as complexidades do mundo e da vida, ao
mesmo tempo em que aumenta gradativamente o número daquelas capazes de galgar
as escarpas ásperas da ciência e de adotar explicações racionais, a fortiori racionalistas, para esses
mesmos problemas. Um coisa não exclui a outra, portanto.
Como sabem todos
aqueles que lidam com sistemas educativos, quando se amplia o acesso às
instituições formais de ensino a uma clientela a mais extensa possível, parte
da qual era antes excluída desses meios, é inevitável a queda de qualidade da
educação formal, uma vez que se está lidando com os mais despreparados e
carentes de toda e qualquer informação. Pessoas que antes eram “educadas” nas
superstições e crendices “normais” dos meios populares, na baixa cultura dos
estratos inferiores da sociedade, passam, de um momento a outro, a dispor de
maior acesso aos canais da sociabilidade e aos meios de comunicação de massa,
como revistas, jornais e internet. Alguns até conseguem sucesso nos meios
profissionais e se tornam pessoas de renda elevada, detendo capacidade de
influir na tomada de decisão de empresas e de governos, e de influenciar,
portanto, uma maior número de indivíduos à sua volta. Se essas pessoas
conseguiram adquirar, através da escola e dos livros, uma cultura superior,
logicamente estruturada e cientificamente embasada, tanto melhor: elas poderão
disseminar uma cultura superior àquela que tinham em seus meios de origem e
contribuir assim para a elevação espiritual da humanidade. Se, ao contrário,
elas passaram impunes pela educação formal e conservaram – até aumentaram, por
hipótese pessimista – as mesmas superstições de origem, os mesmos preconceitos
primários, as mesmas explicações ingênuas que compõem o lote comum da
humanidade desde tempos imemoriais, então só podemos prever o pior: o aumento
das opiniões não-fundamentadas, e das respostas equivocadas às questões mais
complexas da vida e da sociedade. Pode-se até prever a consolidação da
ignorância num verdadeiro “sindicato dos energúmenos”, cujos filiados crescem a
olhos vistos.
Isto se aplica, por
exemplo aos obcecados pela astrologia e pelas explicações “mágicas” sobre o
“sucesso” na vida (no amor, nas finanças, na longevidade) e, sobretudo, em
relação ao crescimento do fundamentalismo religioso e de variantes do
criacionismo, que só posso explicar como representando a imbecilização
congenital de pessoas até medianamente bem dotadas de acesso à educação formal
e a meios decentes de vida. De fato, estou cada vez mais surpreendido com o
crescimento dessas interpretações literais sobre a origem do universo, da vida
na Terra e da criação do homens e dos demais seres vivos, “explicações” que
afetam basicamente a história e a biologia (com todas as suas variantes na
geologia, na antropologia ou na arqueologia).
Sem querer ofender
ninguém em particular – mas possivelmente ofendendo, mas não me desculpando por
isso –, só posso atribuir ao triunfo da ignorância o fato de que mais e mais
pessoas resolvem aderir a essas versões ingênuas, simplistas e profundamente
equivocadas sobre a origem da vida e seu desenvolvimento na face da Terra.
Essas mesmas pessoas, obviamente, recusam a teoria da evolução e suas
conseqüências práticas, sendo portanto totalmente ineptas para qualquer tipo de
carreira científica, pelo menos nas áreas de biologia, de geologia e de outras
ciências naturais (para não falar da torturada e tortuosa história da
humanidade).
Sem pretender
chamar ninguém em particular de idiota – mas possivelmente chamando, e não me
desculpando por isso –, surpreende-me, sim, que tantas pessoas resolvam aderir
a uma visão do mundo terrivelmente comprometedora de suas chances futuras de
progresso numa cultura superior e em carreiras científicas que poderiam
contribuir para o seu próprio bem-estar individual e para uma qualidade de vida
melhor para toda a humanidade (eventualmente para si próprias, se elas por
acaso se encontrassem em uma situação de emergência que requeresse o mínimo de
conhecimento especializado, geralmente de tipo científico).
É evidente que, em
todas as épocas históricas e em todas as sociedades, a cultura científica
sempre foi algo extremamente restrito e profundamente elitista, tocando em
poucos membros da comunidade. Com a ampliação e a extensão das instituições
escolares, essa cultura se estende progressivamente a um maior número de
pessoas, mas seu estabelecimento e desenvolvimento dependem, em última
instância, do próprio esforço individual e do empenho pessoal na absorção e
compreensão de complexos problemas técnicos que passam então a se disseminar em
escala ampliada. Essa cultura científica sempre estará em competição com a
cultura ingênua, com as explicações simplistas e desrrazoadas ou até com a
ignorância mais completa – que, aliás, não se peja de aparecer –, travestida em
“conhecimento popular”, ou em senso comum.
A razão disso é
simples: independentemente do seu meio social de nascimento, do nível de renda
e do background familiar, as pessoas
nascem igualmente dotadas, ou seja, com algumas habilidades inatas e uma mesma
ignorância cultural fundamental. A cultura e a educação serão nelas
“instaladas” à medida de sua exposição a fontes superiores de cultura e de
educação, ou então elas conservarão as mesmas “ferramentas” de saber dos seus
meios de origem ou daqueles meios a que foram expostos no curso da vida. É
muito duro adquirir uma cultura científica e uma explicação “superior” sobre a
vida, uma vez que isto requer estudo constante, leituras aplicadas, raciocínio
não-elementar e alguma “transpiração” na busca de instrumentos explicativos de
realidades complexas, em todo caso não-óbvias.
Em outros termos,
conformando-se às tendências inatas à preguiça e à acomodação, na ausência de
perigos ou de estímulos externos à criatividade e à inovação, a maior parte da
humanidade adapta-se ao puro senso comum e às explicações elementares, que são
obviamente rudimentares, quando não preconceituosas ou francamente equivocadas.
Apenas uma pequena parte da humanidade é levada – ou é obrigada – a responder a
desafios externos ou à sua própria curiosidade intelectual (que também é inata,
mas requer algo mais do que simples ações reativas a estímulos ambientais).
Resulta disso a divisão tradicional entre a cultura científica e a cultura
popular, já examinada na obra de epistemologistas e de historiadores da
ciência, não cabendo aqui qualquer relativismo cultural ou manifestação de
“correção política” quanto às virtudes pretensamente igualitárias ou dotadas de
alguma “genialidade natural” da segunda em relação à primeira.
Este me parece ser
o “molde sociológico” através do qual seria possível analisar a “emergência” e
a “disseminação” de explicações equivocadas, francamente deletérias e (por que
não dizer?) totalmente idiotas sobre o mundo real, que resultam dessas crenças
“criacionistas” ou anti-evolucionistas que, a exemplo dos EUA, também tendem a
se propagar no Brasil a um ritmo impressionante. Para onde quer que se olhe, a
constatação parece ser a mesma: mais e mais pessoas, incapazes de se alçar a
uma cultura superior – que chamamos de científica –, se deleitam, quando não se
comprazem com explicações religiosas simplistas ou com meras superstições. O
que é pior: dotadas de acesso aos meios de comunicação – hoje em dia, qualquer
um tem acesso à internet, e muito cachorro de madame possui webpage –, essas
pessoas passam a expor sem maiores restrições sua profunda ignorância, seus
preconceitos tradicionais, seus equívocos de senso comum transmitidos desde o
berço a um número incontável – e propriamente incontrolável – de outras
pessoas.
Como a exploração
da credulidade alheia tornou-se, igualmente, uma prática comum em nossos tempos
mercantilistas, sobretudo em algumas vertentes da “indústria religiosa” – que
baseia sua ação na “teologia da prosperidade”, antes de mais nada, a
prosperidade individual dos próprios “ministros” da nova religião –, é evidente
que a imbecilidade humana, como explicitado no título deste ensaio, tenha
tendência a aumentar. Torna-se inevitável o triunfo de alguns imbecis – nem por
isso menos aptos a extrair renda de pessoas ignorantes e ingênuas – que não
sofrem nenhum constrangimento em estender o mais possível sua ignorância
enciclopédica em todas as longitudes e latitudes abertas ao seu pouco engenho e
baixa arte. Trata-se de um aumento relativo e também absoluto, ou seja: mais e
mais pessoas, dotadas de “cultura ingênua”, são mobilizadas pelos espertalhões
de plantão, nem todos imbecis ou idiotas; longe disso, pois alguns fazem disso
uma profissão altamente lucrativa.
Por outro lado, é
normal que grande parte da humanidade, agora provista de meios de subsistência
relativamente satisfatórios, sobreviva e prospere fisicamente (obviamente
graças aos progressos da ciência, que alguns tão alegremente ignoram). Agora
são indivíduos arrancados de um estado de letargia intelctual para uma situação
de exercício ativo de banalidades de senso comum, quando não de imbecilidades coletivas
facilmente disseminadas pelo acesso irrestrito aos meios modernos de
comunicação. É o triunfo das nulidades, como queria um sábio brasileiro, é a
vitória da ignorância de modo amplo, uma vez que os meios técnicos não
distinguem entre a boa e a má “cultura”, entre a verdade e a falsidade, entre a
racionalidade e o ilogismo mais absoluto.
Na outra ponta,
nunca foi tão grande o conhecimento acumulado pela espécie humana sobre sua
própria existência e o meio que a cerca. Como a ciência e o conhecimento são
cumulativos e, em princípio, não “extinguíveis” – salvo catástrofes humanas e
naturais muito amplas –, a única previsão possível nesse terreno é a expansão e
aperfeiçoamento do saber científico, em benefício do conjunto da humanidade,
mesmo os mais imbecis. Ou seja, mesmo aqueles fundamentalmente estúpidos a
ponto de recusar uma explicação científica para a origem de seus males
eventuais, podem ter suas vidas salvas pelos progressos da medicina e assim,
num exercício de “darwinismo involuntário”, continuar a disseminar impunemente
a sua ignorância e seus preconceitos à sua volta ou a uma geração de idiotas
mais à frente. Um exemplo: aqueles que recusam a transfusão de sangue podem ser
salvos por injunção legal ou pela mudança temporária de religião – alguns não
são idiotas a esse ponto –, a tempo de permitir a operação médica e
sobrevivência. (Alguns darwinistas radicais talvez não estejam de acordo com
essa sobrevivência dos ineptos, mas a perspectiva humanitária comanda que
façamos todo o possível para salvar nossos semelhantes.)
Em resumo: a
ciência e a racionalidade progridem a olhos vistos, e elas tornam a vida de
todos melhor e mais longa. Elas sempre serão restritas a um número
relativamente pequeno de seres humanos, em todo caso até que a educação de qualidade
e o espírito de pesquisa se tornem mais amplamente disponíveis nas sociedades.
A ignorância e o preconceito recuam no conjunto, mas eles continuarão a ser
muito comuns, na medida em que também constituem características tradicionais –
eu não diria inatas por respeito ao gênero humano – das sociedades.
Concluindo: a
imbecilidade humana tem, sim, aumentado, pela força dos números, mas ela
comanda cada vez menos os destinos da raça humana, graças aos progressos da
ciência. Ou estarei errado?