As lições de Tia Dilma
Rolf Kuntz
O Estado de S.Paulo, 21 de novembro de 2012
A presidente Dilma Rousseff aproveitou a viagem à Espanha
para oferecer aos governantes europeus, mais uma vez, lições de
política econômica. Nenhuma autoridade local perguntou à visitante por
que a economia brasileira deve crescer tão pouco neste ano - talvez nem
2% -, depois do fiasco dos 2,7% em 2011. Enquanto ela completava suas
lições e propunha maior autonomia para o Banco Central Europeu, em
Brasília a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, divulgava mais um
constrangedor balanço do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Desde o início do governo até setembro, foram aplicados R$ 385,9 bilhões
em "obras de infraestrutura logística, social e urbana", segundo os
dados oficiais. Mas esse valor inclui R$ 154,9 bilhões de financiamentos
habitacionais e de subsídios ao programa Minha Casa Minha Vida. Esses
financiamentos correspondem a 40,1% do total contado como investimento.
Faltou a presidente explicar aos europeus se essa forma de contabilidade
é parte do pragmatismo por ela defendido durante a cúpula
ibero-americana. Ou dizer se é pragmático tentar impor sem conversa
prévia os contratos de renovação de concessões às companhias do setor
elétrico. A depreciação das ações da Eletrobrás, R$ 7,9 bilhões de 11 de
setembro a 19 de novembro, parece indicar uma resposta negativa.
Em seus comentários mais sensatos, a presidente defendeu uma
combinação de austeridade e crescimento como a fórmula mais eficiente
para o ajuste europeu. A arrumação fiscal, ponderou, será muito mais
difícil, penosa e pouco frutífera, se depender apenas do corte de gastos
e do aumento de impostos. Mas esse comentário foi mera repetição do
discurso apresentado muitas vezes por dirigentes do Fundo Monetário
Internacional (FMI), por economistas de várias nacionalidades e por
alguns governantes europeus. Sem acrescentar a mínima novidade em
relação a esse ponto, a presidente permitiu-se, no entanto, reescrever a
história econômica à sua maneira. Para reforçar sua argumentação, citou
a experiência latino-americana dos anos 80 e 90, quando os governos do
Brasil e de outros países foram, segundo o seu relato, orientados pelo
FMI a adotar políticas de ajuste sem espaço para crescimento.
Essa versão é popular, mas a história é um pouco mais complicada e
inclui detalhes mais instrutivos. Dezenas de países afundaram na crise
da dívida externa, nos anos 80. O drama começou quando o Federal
Reserve, o banco central americano, iniciou um drástico aumento de juros
em 1979. O desastre generalizou-se em 1982, mas vários países entraram
em apuros bem antes disso. A renegociação das dívidas foi vinculada a
duros programas de ajuste, jamais cumpridos integralmente por alguns
governos, incluído o brasileiro.
O programa inicial de ajuste adotado no Chile foi reformado e
substituído, com bons resultados, depois de algum tempo. O governo
coreano iniciou a arrumação em 1979. O país entrou em recessão em 1980 e
em seguida voltou a crescer velozmente, com déficit fiscal reduzido,
grande aumento de exportações e investimentos sempre superiores a 30% do
PIB. Chile e Coreia saíram da crise com as contas públicas em ordem,
inflação baixa e medidas fundamentais para competir e crescer.
Falta algo, portanto, na versão popular, repetida pela presidente
Dilma Rousseff, da história da crise e dos ajustes dos anos 80. Falta
explicar por que alguns países - Coreia e Chile são apenas dois dos
exemplos mais notáveis - emergiram da fase de provação muito mais fortes
do que antes. Outras economias da Ásia atingidas pela crise da dívida
também se tornaram mais eficientes a partir da segunda metade dos anos
80. A maior parte dos países latino-americanos ficou para trás porque os
governos foram incapazes, por muito tempo, de abandonar velhos vícios e
de favorecer a eficiência. Não se deve atribuir esse atraso a algum
excesso de austeridade, mas à insistência na prática de contemporizar em
vez de enfrentar os problemas.
Quando os governantes se dispuseram, afinal, a adotar reformas e
políticas sustentáveis, as contas públicas melhoraram, a inflação caiu,
as contas externas se tornaram superavitárias e as reservas cresceram.
Por essas mudanças, e nada mais, as ações de socorro do FMI à América
Latina foram bem menos frequentes nos primeiros anos deste século do que
nas três ou quatro décadas anteriores.
Nenhuma dessas conquistas é irreversível. Em alguns países, o grande
risco é a tentação do populismo. No Brasil, a tentação mais perigosa é a
dos controles autoritários. A intervenção nos preços dos combustíveis,
as pressões para corte de juros, o jogo perigoso de tolerância à
inflação e as trapalhadas na política do setor elétrico são elementos
desse quadro. O atraso nos projetos da Petrobrás é uma das
consequências. A presidente seria provavelmente menos propensa a dar
lições se pensasse um pouco mais sobre esses fatos.
* JORNALISTA