O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 21 de agosto de 2021

Memória de uma jornada a Kabul - poema de Sergio Couri (Islamabade, agosto de 2008; Brasília, junho de 2019)

 Memória de uma jornada a Kabul

Sergio Couri

 

Se vens a Islamabad

Rumo a Kabul, viajeiro,

Ouve aquele que lá foi,

E assim traça o teu roteiro:

 

Assesta o Noroeste 

Deste agreste Paquistão,

Com sua gente do campo

Na simples cultivação.

 

Verás Taxila, do Reino

Gandhara a sede. É cênico

Memorial alexandrino,

Que exalta o mundo helênico.

 

Em Peshawar visita

A Mesquita de Wazir Khan.

É qual arte certosina.

Da mais fina do Islã.

 

Ao ar livre ali traficam

Amas, e de precisão,

Fabricadas em oficina

De armeiro artesão.

 

Segue para o Poente

Das Províncias Irredentas,

Dos aguerridos Patãs,

Heróis de lutas sangrentas.

 

Torrentoso e cristalino,

Vindo do lado afegão,

O belo Rio Kabul

Correrá na contramão.

 

Cruza então o Passo Khyber,

Que não passaram os ingleses,

Contidos por afegãos

Em cada uma das vezes.

 

Só o cruzou Alexandre

Magno, grego genial, 

Após romper o nó górdio,

Em mais um feito imortal.

 

Apenas transposto o Passo,

Jallahlabad verás,

Onde as casas tem ameias

E os  homens armas a mais.

 

Esse povo tem sua têmpera

Contra invasores forjada.

Nem os russos lá ficaram,

Voltaram em debandada.

 

Vê em Kabul o museu

Dos Budas ditos  Gandhara,

É o buda helenizado,

Da arte jóia mais rara.

 

Vê a Tumba de Babur,

O Imperador Moghul

Herdeiro de Tamerlão

Que quis jazer em Kabul.

 

Senta ao jardim de Babur,

Onde repousa o Monarca.

Depois te refresca ao Qargha,

Faz um bom cruzeiro a barca.

 

De volta, galga o Swat,

Que o Himalaia dessegue

Com o degelo das neves,

Fluindo em raso talvegue.

 

Retorna a tua morada

Nas rotas convencionais.

Tem as benções do Profeta,

E com ele esteja a Paz.

 


Islamabade, agosto de 2008/ Brasília, junho de 2019.

 

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A Espada e a Pluma: um poema alegórico na era das trevas - Paulo Roberto de Almeida

A Espada e a Pluma: 

um poema alegórico na era das trevas


Paulo Roberto de Almeida

 

A espada é muito mais poderosa do que a pluma, 

infinitas vezes mais poderosa, e de forma mais contundente.

A espada pode cortar quantas plumas quiser, à vontade;

a pluma não consegue vencer uma só espada, ainda que multiplicada em mil.

 

A espada corta, fere, penetra, rasga, decepa e esquarteja

a pluma não tem qualquer poder contundente nas coisas da matéria.

A espada impõe respeito, intimida, aterroriza e submete;

uma pluma mal consegue provocar cócegas nas pessoas.

 

A espada tem o poder de comandar vontades, mesmo contra a vontade;

a pluma, no máximo, só consegue influenciar as mentes, nunca os músculos.

A espada desperta a adrenalina, faz o coração bater forte, o sangue subir à cabeça;

a pluma, se tanto, conquista alguma consciência mais aberta aos conhecimentos.

 

A espada sempre vence, pelo argumento da força,

a pluma nem consegue se impor pela força do argumento.

A espada sempre tem razão, mesmo quando nenhuma razão tem,

a pluma pode até tê-la de sobra, mas a razão do mais forte é sempre a melhor.

 

A espada dobra os seres, pela sua presença cortante, definitiva;

a pluma busca converter consciências, mesmo ausente ou distante.

A espada não pede licença a ninguém: ela se instala, sem pedir permissão;

a pluma sempre tem de negociar alguma licença para se exercer.

 

A espada compra mercenários, torna os homens seus escravos;

a pluma é libertária, e quer sempre livrar as pessoas da opressão.

A espada manipula súditos, envia espiões, aprisiona os cortesãos;

a pluma pretende, apenas e tão somente, formar livres cidadãos.

 

Todos os impérios foram construídos na base da espada, do ferro e do fogo;

nenhum império ruiu apenas pela força da pluma, mesmo coalizada a outras plumas.

A soberania começa onde existe o monopólio da força por algum dono de espadas;

a pluma é anarquista, não quer deuses ou senhores; só promete autonomia.

 

A espada é o último argumento de defesa, e a última instância da liberdade;

mas ela também serve para dominar, mesmo o cidadão sem qualquer pluma.

A pluma pode gritar, mas o tilintar da espada fala mais alto, bem mais alto;

aliás, a espada não precisa dizer nada: o simples desembainhar já é um discurso.

 

A espada invade casas, destrói culturas, mata animais e outros homens;

a pluma não consegue mover um grão de centeio, não traz água, nem abrigo.

A espada impõe a ordem, lá onde reinava a mais perfeita desordem;

a pluma contribui para a desordem, ao pretender desobedecer à espada.

 

A espada serve para resguardar viúvas e órfãos, os fracos e os indefesos,

mas também desperta ambições e cobiças desmedidas, sempre crescentes.

A pluma pode falar em prol dos de menor poder, dos desvalidos e dos ingênuos,

mas ela não impede a corrupção dos costumes e o roubo da riqueza alheia.

 

A espada alicia servidores, áulicos e até mesmo conselheiros emplumados,

mas ela não consegue dominar o que lhes vai nas mentes e sentimentos.

A pluma agita os corações, desperta vontades, cria novas aspirações, 

mas ela não dá aos que a seguem qualquer alavanca ou motor de arranque.

 

A espada sempre predomina, mesmo quando o fio se desgasta e a visão fica míope;

a pluma sozinha não faz nada: precisa de um tinteiro e de um papel, ou pergaminho.

A espada é o prolongamento natural de mãos fortes, másculas, decididas;

a pluma hesita ao simples tracejar das letras, e só funciona com mentes atiladas.

 

E no entanto, e no entanto...

a espada enferruja, fica cega, e pode quebrar, num simples embate mais feroz.

A pluma é móvel, flutua com o vento, mesmo nas mais fortes tempestades,

Ela é mais durável que a espada, pois as palavras voam, e as ideias se transmitem...

 

Uma espada fere gravemente, mas uma ideia mergulha mais fundo.

A espada geralmente está nas mãos de mercenários e de esbirros a soldo,

as ideias só podem sobreviver e se disseminar na mais completa liberdade.

Espadas agridem a esmo; ideias possuem lógica, sentido, direção e propósitos.

 

Por mais fortes que sejam os braços, as pernas, por mais couraças e capacetes,

por mais afiadas que sejam as espadas, elas só podem alcançar um de cada vez.

Ideias, ao contrário, atingem todos e cada um, num raio de 360 graus,

elas perfuram os elmos mais duros, atravessam cotas do aço mais temperado.

 

Espadas enferrujam, guerreiros morrem ou ficam estropiados, desaparecem...

Ideias, se são boas, permanecem, por séculos e até milhares de anos, sempre jovens.

As ideias, finalmente, são mais fortes que as espadas, elas vencem as espadas.

Espadas deixam apenas destruição e morte; as plumas semeiam conhecimento.

 

Espadas, no fundo, têm inveja das plumas, queriam ser livres como as plumas,

não viver em coldres cheirando a sangue e a mofo, asfixiadas em couro velho.

As plumas são ágeis, leves, flexíveis; mudam de acordo com as circunstâncias;

plumas expressam o que de melhor a humanidade produziu, em todos os tempos.

 

Espadas têm ódio das plumas, pois nunca poderão ser o que estas são:

instrumentos de beleza, de saber e de conhecimento, de paixão e de ciência.

Espadas são instrumentos profundamente complexados, e com razão: 

Elas estão do lado da morte e do sofrimento; as plumas são o eterno renascer...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 2415: 27/07/2012 


segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Pausa para um poema de mentira sobre a ... mentira - Affonso Romano de Sant'Anna

A implosão da mentira
Affonso Romano de Sant'Anna

Fragmento 1

Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

Fragmento 2

Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre. Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial?mente,
mente partidária?mente,
mente incivil?mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
—diária/mente.

Fragmento 3

Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partindo
do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percurso.

Fragmento 4

Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.

Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas flores
cuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente.

Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.

Fragmento 5

Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.

E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
pra dentro explode
implosiva.