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quarta-feira, 19 de março de 2025

Reciprocidade: um conceito mutável nos anais da diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida

Reciprocidade: um conceito mutável nos anais da diplomacia brasileira

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre a insistência do governo Lula sobre a aplicação do conceito de reciprocidade na questão dos vistos para turistas de EUA, Canadá, Japão e Austrália.

 

 

        Durante décadas, desde os anos 1950 até praticamente os nossos dias, a diplomacia brasileira defendeu ardorosamente o princípio da NÃO-RECIPROCIDADE, por considerar, acertadamente, que as diferenças fundamentais entre países desenvolvidos e em desenvolvimento deixavam estes em desvantagens no comércio internacional. Lutou tanto contra a reciprocidade, que a não reciprocidade tornou-se um princípio quase equivalente às regras básicas do sistema multilateral de comércio (nação-mais-favorecida, tratamento nacional, não discriminação, reciprocidade justamente), consagrado como "tratamento especial e mais favorável para países em desenvolvimento".

        Leram bem? MAIS FAVORÁVEL! Isto significa que os países em desenvolvimento devem ser tratados em melhores condições, ou seja, obtendo concessões tarifárias e outras dos países desenvolvidos SEM obrigação de RECIPROCIDADE.

        Se isso se aplica no comércio internacional, a mais forte razão deve ser aplicado em serviços internacionais, com especial destaque para o turismo ou viagens de negócios, onde as assimetrias são ainda mais evidentes, ou seja, dificilmente podem ser aplicadas regras de reciprocidade, pois os países são muito diferentes entre si. 

        Em outros termos, reciprocidade é um conceito geral, que NÃO PODE ser aplicado AUTOMATICAMENTE, cabendo medir o potencial e as condições especiais de cada uma das partes envolvidas na relação de intercâmbio. 

        Aplicado ao turismo, implica em que países receptores devem ser amplamente favoráveis à ampliação dos fluxos de turistas e outros viajantes ocasionais. 

        Observando a situação real das viagens internacionais e dos fenômenos migratórios, cabe registrar a realidade de um enorme fluxo de pessoas de países em desenvolvimento desejosas de se instalar em países desenvolvidos, por segurança, oportunidades de trabalho, estudos para a família, para escapar de uma situação de penúria e de insegurança em seus países, etc.
        Reciprocidade abstrata e genérica não iode ser invocada em todos os casos, e justamente no domínio de vistos turísticos ou de negócios, os procedimentos aplicados pelos países são determinados pelas suas próprias regras consulares, e não precisam se pautar por regras de reciprocidade, como não o são do terreno do sistema de comércio multilateral.

        Da mesma forma, "tarifas recíprocas" tampouco são comuns, pois que cada país tem seu próprio nível de competitividade e maior ou menor dependência (ou interesse) de abastecimento externo, complementar ou substitutivo de algum fornecimento interno (que nem sempre existe, e não pode ser "recíproco", pois que países não são semelhantes, sequer similares).

        Concluindo: o Brasil NÃO precisaria ter regras recíprocas no terreno consular, como de fato nunca teve com o universo da comunidade internacional (tanto é assim que países do Mercosul sequer exigem vistos, passaportes ou outros requerimentos).

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4876, 19 março 2025, 2 p.