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sábado, 7 de outubro de 2023

1822-2022: Bicentenário da Independência - O reconhecimento internacional da independência do Brasil - Paulo Roberto de Almeida (capítulo de livro)

O mais recente trabalho publicado, embora com data de 2022: 

1527. “O reconhecimento internacional da independência do Brasil”, in: 1822-2022: Bicentenário da Independência. Brasília: Secretaria Nacional de Economia Criativa e Diversidade Cultural da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, 2022, p. 602-620; ISBN: 978-65-00-82564-0; disponível na Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados (link: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/41362) e na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/107425385/4288_O_reconhecimento_internacional_da_independência_do_Brasil_2022_); divulgado no blog Diplomatizzando (30/09/2023; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/09/o-reconhecimento-internacional-da.html). Relação de Originais n. 4288.



O reconhecimento internacional da independência do Brasil

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Colaboração a obra digital sobre o bicentenário, coordenado por José Theodoro M. Menck.

“O reconhecimento internacional da independência do Brasil”, Brasília, 15 dezembro 2022, 13 p. Publicado in: 1822-2022: Bicentenário da Independência, 1822-2022. Brasília: Secretaria Nacional de Economia Criativa e Diversidade Cultural da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, 2022, p. 602-620; ISBN: 978-65-00-82564-0;disponível na Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados (link: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/41362). 

Relação de originais n. 4288; Relação de Publicados n. 1527. 

Postado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/107425385/4288_O_reconhecimento_internacional_da_independência_do_Brasil_2022_); divulgado no blog Diplomatizzando (30/09/2023; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/09/o-reconhecimento-internacional-da.html).

 

 

A afirmação autônoma do Brasil no cenário internacional teve início ainda antes da independência, mais exatamente em agosto de 1822, quando o príncipe regente D. Pedro autoriza a divulgação de um manifesto às nações amigos, redigido principalmente por seu conselheiro brasileiro em questões diplomáticas, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). O processo, na verdade, teve início quando do “Dia do Fico” (9 de janeiro de 1822), a declaração pela qual D. Pedro se recusa a acatar as ordens das Cortes ordenando-o voltar a Portugal. O príncipe regente nomeia um novo gabinete, com José Bonifácio assumindo a pasta dos Negócios Estrangeiros. A independência já estava praticamente encomendada, sobretudo a partir do “manifesto aos governos e às nações amigas”, de 6 de agosto desse ano, pelo qual D. Pedro os convida a “continuarem com o Reino do Brasil as mesmas relações de mútuo interesse e amizade”, que já mantinham com a Corte instalada no Rio de Janeiro desde 1808. 

Mesmo tendo a maior parte do corpo diplomático saído do Brasil depois da partida de D. João VI, a figura de D. Pedro avulta ao mundo nessa declaração, pois que nela ele afirmava que o Brasil estava pronto a trocar ministros e agentes diplomáticos e que os portos brasileiros estavam abertos a “todas as nações amigas e pacíficas”. D. Pedro aprova a ideia de José Bonifácio de enviar “encarregados de negócios do Brasil” para Londres – Felisberto Caldeira Brant Pontes (1772-1842), já para negociar a soberania do Reino –, assim como para outras capitais: Paris, Viena e Estados Alemães, ademais de Buenos Aires. Já tendo o governo português reconhecido, ainda em 1821, no Rio de Janeiro, a independência da Argentina e do Chile, Buenos Aires, no final de 1822, declara reconhecer o escudo de armas e a bandeira do Império brasileiro (não mais do que isso), mesmo se, em agosto do ano seguinte, o governo argentino convida o Império a desistir da posse da Província Cisplatina.

Nesse manifesto aos governos e nações amigas, de agosto de 1822, que constitui o principal documento que ele preparou como responsável pelos negócios estrangeiros durante a gestão de D. Pedro como príncipe regente do reino do Brasil, ainda unido ao de Portugal, José Bonifácio deixou bastante claro sobre quais seriam as principais diretrizes que deveriam guiar a ação externa da quase nação independente. Em vista da viagem de D. Pedro a São Paulo, o manifesto foi enviado por circular ao corpo diplomático e consular em 14 de agosto de 1822, sob a regência de D. Leopoldina. Dois dias antes, em 12 de agosto, numa clara ruptura para com a diplomacia portuguesa, então dominada pelas tentativas de nova colonização do Brasil, tinham sido designados representantes brasileiros para a Inglaterra, França, Estados alemães e para os Estados Unidos. Mas quais eram os principais pontos do manifesto que inaugurou a presença independente do Brasil no mundo? 

1. manutenção das relações políticas e comerciais, sem dar prioridade a qualquer nação;

2. continuidade das relações estabelecidas desde a vinda da família real;

3. adoção plena do liberalismo comercial;

4. respeito mútuo ou reciprocidade no trato internacional;

5. abertura do país à imigração;

6. facilidade de entrada para a vinda de sábios, artistas e empresários;

7. abertura do país para investimentos estrangeiros. 

 

Depois do 7 de setembro de 1822, mas sobretudo depois de sua coroação, ao estilo do Antigo Regime, em 1º de dezembro, D. Pedro se converte, efetivamente em construtor do Estado brasileiro, mas a unidade da nação estava longe de ser assegurada, a começar pelo desafio português em diversas províncias, em especial na Bahia. Ele teve de atuar não apenas na dimensão política e diplomática – em constante contato com seu pai, em Lisboa, e atento às manobras da Santa Aliança, representada pela pátria da imperatriz Leopoldina, a Áustria, e por Metternich especialmente, mas também pela França dos Bourbons de novo no trono, personificada no vaidoso Chateaubriand, o espírito liberal da Revolução que se havia convertido num reacionário extremado sob a Restauração –, mas também na dimensão militar, na qual revelou seus dotes de comandante no enfrentamento de tropas portuguesas, em especial na Bahia.

A missão de Caldeira Brant em Londres foi muito facilitada por Hipólito da Costa, que pode ser considerado, a mais de um título, o primeiro estadista do Brasil, a despeito de ter vivido parcos anos, em sua infância e na adolescência, em sua pátria. Estabelecido na Inglaterra desde 1805 – depois de ter sido preso pela polícia política portuguesa e entregue, por maçonaria, à Inquisição, que o interrogou durante três anos de cárcere –, Hipólito deu início ao primeiro jornal brasileiro independente, o Correio Braziliense, que editou sozinho em Londres desde a transmigração da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, até que fosse confirmada a independência e a separação do, até então, Reino Unido, em setembro de 1822. Nomeado cônsul do Brasil em Londres, por José Bonifácio, Hipólito poderia ter sido um grande diplomata junto à Corte de St. James, e um possível ministro de qualquer gabinete imperial brasileiro, tivesse ele sobrevivido além de seus 49 anos, em setembro de 1823.

Ele e seu amigo José Bonifácio eram duas almas gêmeas em muitos dos projetos para a construção de uma nação próspera e desenvolvida, como possível sede de um grande império luso-brasileiro unificado. A mais importante delas era, evidentemente, o fim do tráfico e da escravidão, no que ambos foram vencidos pelos proprietários de terras e pelos traficantes de escravos que logo apoiaram o Príncipe Regente Pedro na resistência às disposições das Cortes de Lisboa no sentido de fazer o Brasil retornar ao antigo status de reino tutelado pela metrópole. Com José Bonifácio, Hipólito permaneceu um súdito fiel do reino português e um apoiador de um grande império dual, com sede no Rio de Janeiro, até quando pode, ou seja, os primeiros meses de 1822. Mas, com as disposições francamente desfavoráveis ao Brasil tomadas pelas Cortes, Hipólito começou a se render à independência, o que só se deu definitivamente em julho desse ano.

Em dezembro de 1822, quando já considerava praticamente concluída a sua missão iniciada 14 anos antes, Hipólito volta ao tema do “Império do Brasil”, que tinha sido objeto de um longo comentário ao início do empreendimento, em 1808, quando, justamente, a sede do Império se deslocava ao Brasil: 

Cumpriram-se enfim os prognósticos, e alcançaram as Cortes de Portugal realizar a desmembração da antiga monarquia portuguesa, estimulando o Brasil, apesar dos desejos de união daqueles povos, a declarar a sua total independência e constituir-se em nação separada de Portugal; porque não era possível que sofressem por mais tempo ser tranquilos espectadores da guerra civil com que se intentava incendiar o Brasil, debaixo do aparente e enganoso nome de confraternidade e das palavras de iguais direitos, e com os fatos em oposição tendentes a reduzir o Brasil a colônia do Portugal. 

Clamava todo o Brasil que não queria perder a sua dignidade de Reino, posto que desejasse continuar sua união com Portugal; mas as Cortes, com a mais contraditória hipocrisia, pretendiam crer que o povo do Brasil não desejava conservar ao seu país a categoria de Reino e, ao mesmo tempo, que só tendia a fazer-se independente; e nesse sentido continuaram as provocações, e ordem de prisões, contra os cidadãos mais conspícuos do Brasil, não excetuando sequer de seus fulminantes decretos o mesmo Príncipe Regente, cujos serviços na causa da união mereciam os mais cordiais agradecimentos dos Portugueses. 

Chegou por fim o momento em que o povo Brasileiro, desesperado pelo comportamento das Cortes, que não prometia melhora nem oferecia sinais de arrependimento, conheceu que a sua prosperidade, a sua segurança, e até a sua existência como Nação, só lhe podia provir da completa separação de Portugal...

Temos, pois, o Brasil erigido em novo Império e o seu monarca com o título de imperador; e sem nos demorarmos sobre a fórmula escolhida para designar o monarca, passaremos a considerar os efeitos reais da independência do Império do Brasil, tanto no interior como no exterior. (Correio Braziliense, n. 175, vol. XXIX, dezembro de 1822, p. 593-8)

 

Nesse mesmo número final do Correio, Hipólito registra a necessidade de o Brasil constituir-se uma poderosa força naval para defender-se de ataques externos: 

Uma invasão ao Brasil, não dizemos já pelos Portugueses, mas ainda por qualquer nação poderosa, é perigo meramente imaginário: mas é não só possível, mas muito factível, que por mais possante que possa ser o Império do Brasil, se não tiver uma esquadra proporcional à sua extensão de costas e multiplicidade de portos, seja insultado em suas praias até por um bando de corsários, que deseje roubar-lhe suas riquezas; e muito mais é de recear, nesse caso, um ataque de parte de alguma nação, que possua forças marítimas. 

(...)

Fora inútil ao Brasil condecorar-se com o título de Império, e ver-se ao mesmo tempo sujeito a serem suas costas varridas por duas fragatas velhas de Portugal; e seria descuido injustificável declarar-se nação independente, e não cuidar em adquirir os meios de sustentar essa independência; e os meios não são outros senão a criação de poderosa força naval. Sem esta não haverá segurança, nem comércio livre, nem riquezas, nem caráter nacional, nem propriedade individual.

 

A tarefa de fazer o Brasil ser reconhecido como nação independente deve-se, de fato, ou pelo menos no início, a José Bonifácio, que foi o arquiteto que mais contribuiu para a emergência do próprio Estado brasileiro, seguindo escrupulosamente seus conceitos de unidade nacional e de defesa de uma ordem política estável, o que eventualmente o colocou em choque com outros independentistas partidários da república e de uma ordem política federalista, como os revolucionários pernambucanos de 1817 e os de 1824. Opôs-se aos ímpetos republicanos de muitos partidários da independência porque pressentiu que esse regime seria incapaz de preservar a unidade nacional. Desde quando foi nomeado à frente dos negócios do Reino e dos Estrangeiros, depois da partida de D. João VI, José Bonifácio enviou um representante político para Buenos Aires, a título de funções consulares, mas com instruções para propor a criação de uma confederação com as Províncias do Prata. 

José Bonifácio instruiu o seu representante a convencer os dirigentes de Buenos Aires sobre a utilidade de uma Confederação ou Tratado ofensivo e defensivo com o Brasil, para se oporem, com os outros governos da América espanhola, aos cerebrinos manejos da Política Europeia. Enquanto José Bonifacio esteve à frente da diplomacia brasileira, ele se ocupou de promover o que chamava de “Sistema Americano”, ou seja, uma política externa decididamente americana, mas que só retornaria novamente a partir das Regências, depois da abdicação do primeiro imperador. Premido pela reação dos autocratas portugueses contra o novo sistema de monarquia constitucional, o Imperador se ocupou bem mais dos assuntos portugueses do que dos assuntos domésticos ou os da diplomacia brasileira. 

Mas, as iniciativas que tinham sido tomadas por José Bonifácio para criar uma primeira possível aliança com os argentinos se chocavam, desde o início da presença da família real no Brasil, com a ocupação do que seria o futuro Uruguai, primeiro por tropas portuguesas, depois brasileiras. A guerra da Cisplatina foi um erro português, em seguida “brasileiro”, o que tisnou a imagem do novo Império do Brasil, uma designação que já denotava sombrias veleidades expansionistas, o que foi ainda aprofundado, anos depois, pelas contínuas intervenções nas constantes lutas entre blancos e colorados uruguaios, levando a um primeiro confronto com o ditador argentino Rosas, desembocando, mais adiante, na “maldita guerra” provocada pelo ditador paraguaio Solano Lopez contra um gigante pouco preparado para o conflito.

No caso dos Estados Unidos, José Bonifácio tomou a iniciativa de propor acordo de cooperação e defesa ainda no início de 1822, portanto, um ano e meio antes da conhecida declaração do Presidente Monroe ao Congresso norte-americano. Ele também foi o primeiro chanceler brasileiro – a rigor, o último do Reino Unido ao de Portugal, sob a regência do príncipe D. Pedro – preocupado com a defesa da soberania e a implementação de uma diplomacia eficiente como o melhor instrumento para a política externa da nação emergente. Com Bonifácio, e a despeito do problema da Cisplatina, as prioridades brasileiras passam a ser a aproximação cooperativa com Buenos Aires, a preservação da autonomia decisória do Estado brasileiro em relação às potências hegemônicas, a estruturação de forças armadas eficientes na defesa da soberania, a proteção à indústria nacional. Em sua busca pela construção da unidade territorial nacional, o ministro estabeleceu projeto para a Nação ainda hoje atual pela amplitude e profundidade das medidas sugeridas: integração nacional das comunidades indígena e africana, com a “civilização” dos índios e o fim da escravidão; reforma agrária; reforma do ensino; desenvolvimento econômico autônomo, com a diversificação das exportações brasileiras, a preservação ambiental e o uso racional dos recursos naturais. Ainda antes de proclamada a independência, ele providencia o envio de um representante do Brasil junto ao governo de Buenos Aires, com o qual as relações seriam as mais difíceis, durante os primeiros anos do novo Império.

Uma vez obtida a independência, sua postura era a de que o reconhecimento do Império seria obtido mais cedo ou mais tarde, não cabendo ao Brasil fazer concessões às monarquias europeias, como ressaltado pelo diplomata historiador João Alfredo dos Anjos: 

O Governo brasileiro sob Bonifácio não estava disposto a oferecer compensações ou aceitar compromissos que representassem prejuízo direto ou indireto para o Brasil, a exemplo do que ocorrera com os Tratados de 1810, firmados por Portugal com a Grã-Bretanha. O Chanceler contava utilizar o interesse econômico das nações europeias no mercado brasileiro, especialmente da Grã-Bretanha, da França e dos Estados Unidos, como instrumento de barganha na defesa dos interesses brasileiros e não como um dado da realidade com o qual ao Governo só restava conformar-se. Por isso, durante sua gestão, determinou a Felisberto Caldeira Brant, negociador brasileiro em Londres, que fizesse ver à Grã-Bretanha que o Brasil: (1) era um país independente e por isso assumiria seu lugar no cenário internacional, sem depender do “reconhecimento”, embora ele fosse importante; (2) que os portos brasileiros seriam fechados a todos os Estados que não reconhecessem a independência e soberania do Brasil unido do Prata ao Amazonas. Ademais, Bonifácio não autorizou Caldeira Brant a contrair empréstimo na praça londrina, empréstimo defendido insistentemente pelo representante brasileiro. Ao contrário, buscou saída interna, com emissão de letras do Tesouro no valor de 400:000$000, além da organização do fundo com Donativos para as Urgências do Estado. (in: José Bonifácio, primeiro Chanceler do Brasil. Brasília: Funag, 2013, p. 91) 

 

Pode-se dizer que José Bonifácio foi pioneiro no reconhecimento da importância de uma política externa americanista, quando até então as relações exteriores do Reino Unido ainda se guiavam pelos negócios europeus de Portugal, como ressalta ainda o mesmo historiador: 

A prioridade no estabelecimento de relações de coordenação política com Buenos Aires, que hoje pode parecer natural, não o era no Brasil do início do século XIX. Ao contrário, as Américas hispânica e portuguesa tinham histórico de conflitos e intrigas políticas, exemplificados na questão da Cisplatina e nos enredos do carlotismo, que pretendeu elevar Carlota Joaquina ao trono do Vice-Reino do Prata. Com Bonifácio, o Brasil saía do paradigma da competição entre Portugal e Espanha e dava o primeiro passo em direção a uma proposta de relação cooperativa com o Prata. (Idem, p. 100) 

 

Como Hipólito, e como tantos outros abolicionistas, José Bonifácio foi derrotado pela coalizão de mercadores de escravos e de grandes proprietários de terras. Bonifácio foi, aliás, abandonado pelo próprio Imperador, que se aproveitou do recrudescer das turbulências políticas na Assembleia Constituinte e das divisões políticas entre os maçons para decretar o encerramento do breve exercício de ordenamento constitucional, “cassar” os seus membros e exilar ou prender toda a família dos Andradas. Bonifácio foi mais uma vez para a Europa, e só retornou ao Brasil para ser preceptor, por breve tempo, do menino Pedro de Alcântara, mas já sem condições de influenciar a política no período regencial. Retirou-se à ilha de Paquetá, e ali dedicou-se novamente aos estudos e aos cuidados botânicos.

Durante seu exilio na França, não deixou de acompanhar os acontecimentos políticos do Brasil, em especial as relações exteriores da nova nação independente, formulando, desde Paris, com a Assembleia Geral funcionando, um alerta para o monitoramento da diplomacia, como ainda ressalta em outros trabalho o mesmo diplomata historiador: 

Se pertence ao imperador fazer, como fez, tratados com Portugal, Inglaterra e França, pertence às Câmaras tomar contas ao Ministério [dos Negócios Estrangeiros] destas transações diplomáticas; pesar a utilidade ou os danos que fazem ou não ao Brasil; saber as despesas que se fizeram nas embaixadas e missões extraordinárias. (João Alfredo dos Anjos, “Os 200 anos do retorno de José Bonifácio ao Brasil”, posfácio a José Theodoro Mascarenhas. Bonifácio de Andrada, patriarca da independência. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019, p. 219-246, cf. p. 232) 

 

Esse autor do estudo sobre o papel de José Bonifácio enquanto chanceler, durante um curto espaço de tempo, ressalta suas realizações à frente da pasta, que não havia ainda ganho total autonomia de ação em relação aos outros grandes temas da organização do novo Estado: 

Além de organizar e tornar autônoma a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e dotar o Brasil de seus primeiros representantes diplomáticos, Bonifácio estabeleceu em suas instruções e correspondência diplomática as diretrizes de uma política externa audaciosa e inovadora para o Brasil. (idem, p. 242)

 

Seu exílio, após os tormentosos episódios dos trabalhos da Constituinte e o fechamento desta sob as ordens do imperador, coincidiu com uma infeliz inversão da diplomacia brasileira, sobretudo no sentido da aceitação de acordos comerciais e de empréstimos lesivos aos interesses do Brasil, no contexto das negociações para o reconhecimento da independência do Império, postura que seria objeto de muitas críticas na Assembleia Geral. Tem início, então, o processo diplomático formal de obtenção do reconhecimento da independência do novo Estado, o que se dá através do envio de representantes oficiais aos principais países com os quais o Brasil português mantinha relações antes da separação e que eram estrategicamente relevantes para as relações internacionais do Brasil. 

Esses países eram, pela ordem de importância econômica, comercial e política então estabelecida por D. Pedro I e seus diversos chanceleres a partir de 1823, os seguintes: Grã̃-Bretanha, França, a Santa Sé, Espanha, Áustria, estados da Alemanha, Estados Unidos, Argentina e, sobretudo, Portugal. Por acaso essa é a ordem estabelecida por instrução do presidente Epitácio Pessoa ao Itamaraty – quando da celebração do primeiro centenário da autonomia nacional, em 1922 – no sentido de se reunir a documentação diplomática relativa ao reconhecimento da independência, o que foi feito mediante a elaboração do Arquivo Diplomático da Independência. Sua primeira publicação foi feita em seis volumes pela Tipografia Nacional, entre 1922 e 1925, tendo sido reproduzida fac-similarmente no ano do Sesquicentenário, em 1972, e novamente em 2018, por iniciativa do próprio Itamaraty, como obra inaugural da coleção do Bicentenário da Fundação Alexandre de Gusmão. 

Na verdade, os únicos reconhecimentos que interessavam ao Brasil, nessa fase, eram, segundo Pandiá Calógeras, os seguintes: Portugal, pela legitimação do novo Estado e a cessação da situação de beligerância; Grã-Bretanha, pelo seu poderio naval, pela capacidade diplomática e como fonte dos financiamentos absolutamente necessários; Áustria e França, cuja política favorável às independências latino-americanas enfraqueciam os intentos agressivos da Rússia e da própria Espanha; Roma, pelas exigências da religião do Estado, reconhecida constitucionalmente; e as nações platinas, “pela contiguidade e pelas perturbações de ordem fronteiriça; (...) As demais nações, neste assunto, não passavam de trocos miúdos” (J. Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império, vol. II: O Primeiro Reinado; edição fac-similar; Brasília: Câmara dos Deputados, 1989, p. 386).

De fato, a primeira missão, como já referido, foi feita sob iniciativa de José Bonifácio em direção da Grã-Bretanha, comissionando Caldeira Brant a obter o reconhecimento da “autonomia” do governo de D. Pedro como regente ainda antes da independência formal. Ela prolongou-se no tempo, pois o governo inglês precisava explorar, em seu interesse, todos os aspectos da tripla relação com Portugal e o Reino Unido do Brasil no tocante a um dos seus principais interesses nessa relação triangular: a extinção efetiva do tráfico negreiro, segundo compromissos já assumidos por Portugal no quadro do Congresso de Viena, em 1815, e posteriormente, em 1817, no plano bilateral. Nenhuma das promessas avançou no sentido desejado pelos dirigentes britânicos, e Caldeira Brant retornou ao Brasil em agosto de 1823, deixando a Hipólito da Costa o trabalho de continuar a zelar pelos interesses do país e de manter oficiosamente com o governo britânico entendimentos em torno dos interesses brasileiros nessa relação duplamente estratégica, tanto com respeito a Portugal, quanto na direção do Brasil. Mas Hipólito faleceu repentinamente pouco depois, tendo sido substituído por Gameiro, que tampouco logrou sucesso na empreitada de se obter um rápido reconhecimento. 

Os dois primeiros volumes da obra Arquivo Diplomático da Independência tratam extensivamente dessas negociações, segundo uma seleção de documentos feita pelo jurista Hildebrando Accioly. Uma exploração mais detalhada das delicadas triplas negociações foi feita pelo diplomata Caio de Freitas, que no seu livro George Canning e o Brasil(Brasiliana, 1958) relata a segunda gestão do chanceler britânico (1822-1827), quem designou o diplomata Charles Stuart para sua missão no Rio de Janeiro. Os pontos centrais da demanda inglesa consistiam na já esperada insistência quanto à extinção do tráfico negreiro, assim como na continuidade dos tratados desiguais de 1810, especialmente em seus aspectos comerciais, nos quais obteve sucesso parcial na primeira e praticamente total na segunda. O outro lado das negociações envolvia o interesse de Portugal em transferir para o Brasil uma pesada dívida financeira contraída junto a banqueiros ingleses ainda na fase dos reinos unidos e também pagamentos devidos a D. João VI por suas propriedades no Brasil. 

Tais assuntos se arrastaram penosamente nos dois anos seguintes, até que Stuart logrou obter dos dois Estados a assinatura do tratado de 1825 consagrando o reconhecimento formal, por Portugal, da independência do Brasil, assumindo este os ônus financeiros e diplomáticos tão criticados pela Assembleia Geral quando esta começou a funcionar. As negociações diretas entre representantes diplomáticos do Brasil e de Portugal foram objeto do sexto e último volume do Arquivo Diplomático da Independência, no qual o jovem diplomata Heitor Lira seguiu detalhadamente os passos da missão de Luiz Paulino e Rio Maior em Lisboa na difícil missão de destravar os inúmeros vínculos que diversos súditos da periclitante monarquia portuguesa ainda possuíam no Brasil. Curiosamente, Heitor Lyra era o único sobrevivente da equipe de 1922 que tinha elaborado a obra original do Arquivo Diplomático da Independência, tendo sido requisitado para introduzir sua reedição fac-similar em 1972, quando das comemorações do sesquicentenário.

No intervalo, o Brasil obteve sucesso praticamente total por meio da missão de José Silvestre Rebelo em Washington, em 1824, pelo menos na questão do reconhecimento formal da independência junto aos Estados Unidos e no da construção de navios para a marinha brasileira, mas menos na intenção inicial de José Bonifácio no sentido de se lograr uma espécie de pacto defensivo entre os dois países contra tentativas de recolonização europeia dos novos Estados independentes das Américas, por iniciativa da Santa Aliança. Tal medida foi feita unilateralmente pelo presidente Monroe, por meio de sua mensagem ao Congresso em 1823, pela qual a jovem república americana declarava sua oposição a qualquer tentativa estrangeira de imissão nos assuntos hemisféricos, decisão provavelmente acertada com a Grã-Bretanha, que também se opunha a tais intrusões de seus vizinhos continentais, mas motivada por interesses basicamente comerciais. 

James Monroe, que tinha sido Secretário de Estado sob John Quincy Adams e nessa condição despachado alguns enviados à América do Sul, deu um passo mais ousado em 1823, ao expressar, em mensagem ao Congresso, sua opinião – na verdade plenamente apoiado pela Grã-Bretanha – de que não convinham aos Estados Unidos novas intervenções de potências europeias no hemisfério ocidental. Estava assim aberto o caminho para o reconhecimento dos novos Estados saídos da dominação espanhola nas Américas, processo rapidamente obtido para o Brasil, em 1824, tão pronto consolidada a autoridade de D. Pedro sob o Império do Brasil e imediatamente após o pronto acolhimento por Washington do primeiro Encarregado de Negócios do Brasil, José Silvestre Rebello. Mas as relações com os Estados Unidos não tiveram o desenvolvimento esperado pelo Brasil muito em função do comportamento arrogante do seu representante no Rio de Janeiro, o antigo cônsul na era portuguesa, Condy Raguet, que continuou como um turbulento encarregado de negócios na fase independente.

As relações com as autoridades de Buenos Aires tampouco foram isentas de atritos, a despeito do seu reconhecimento implícito da independência brasileira, não formalizada pelo envio de um plenipotenciário ao Rio de Janeiro, justamente em função das pendências relativas à Cisplatina, antes ocupada por tropas portuguesas e depois brasileiras, e anexada formalmente ao Brasil pela Constituição de 1824. Em 1825, Buenos Aires fornece todo o apoio à incursão do uruguaio Lavalleja contra as tropas brasileiras e a relação se deteriora gravemente numa guerra aberta, que só seria resolvida por nova intermediação britânica, através do armistício de 1828, prevendo a independência da República Oriental do Uruguai. Mas se esta tinha a missão de ser “um algodão entre dois cristais” – Brasil e Argentina –, no dizer de Lord Ponsonby, o diplomata britânico envolvido na contenda, esse amortecedor foi constantemente instável, pelos anos e décadas seguintes, dado o constante envolvimento dos dois grandes vizinhos do Prata nos assuntos internos do pequeno país, dadas as contendas internas entre blancos e colorados, continuadas até a intromissão do paraguaio Solano Lopez, provocando a “maldita guerra” em função da qual se proclamou uma inédita “aliança tripartite” entre os três países na longa guerra travada contra aquele que foi denominado de “Napoleão do Prata”. 

As relações com a Áustria tampouco deveriam ser isentas de conflitos, dados os vínculos familiares estabelecidos entre os Habsburgos e os Braganças – formalizado no primeiro casamento de D. Pedro com Leopoldina –, mas o reconhecimento tardou dada a complexidade dos interesses da Santa Aliança, integrada inclusive pela França da Restauração, nos assuntos da península ibérica, marcada por uma nova guerra civil na Espanha, assim como pela tribulações causadas pela sucessão portuguesa de D. João VI, disputada por D. Pedro (que seria o sucessor legítimo, como D. Pedro IV) e pelo seu irmão D. Miguel, apoiado pelas forças reacionárias da Europa. O “eterno” chanceler austríaco Metternich (cuja gestão se estendeu desde o Congresso de Viena até as revoluções de 1848) chegou a manter correspondência com D. Pedro I, e os dois travaram uma legítima “guerra diplomática” – na expressão de um grande diplomata historiador, Sérgio Corrêa da Costa –, que finalmente se dissolveu no reconhecimento quase geral das monarquias europeias ao jovem Império sul-americano, depois do tratado formal entre Portugal e Brasil em 1825.

Um reconhecimento que tardou em demasia foi justamente o da Espanha, finalmente realizado apenas em 1834, depois da morte dos dois soberanos, Fernando VII da Espanha e D. Pedro de Portugal, depois do seu retorno ao país natal, em 1831, e de sua luta ganha contra o irmão para assegurar o trono português em favor de sua filha, D. Maria da Gloria. As primeiras tentativas para se lograr esse reconhecimento foram feitas pelo futuro Barão da Ponte Ribeiro, enviado como cônsul a Madri em 1825, mas que jamais recebeu o exequator da chancelaria espanhola. À diferença dos procedimentos formais observados nos casos das independências das demais colônias espanholas das Américas, ao cabo de uma década e meia de conflitos políticos e de tentativas diplomáticas ou militares de reconquista, a Espanha não tinha fortes razões para adotar qualquer iniciativa diplomática para o reconhecimento da independência do Brasil. No caso do Brasil, o principal fator obstrutor da obtenção de um rápido reconhecimento de sua independência pelo Reino da Espanha – a despeito de alianças matrimoniais entre as duas casas reinantes – foi a invasão portuguesa da Banda Oriental, posteriormente incorporada ao Império como “Província Cisplatina”, objeto de uma primeira guerra na região do Prata entre os dois grandes Estados em formação.

Segundo informou Duarte da Ponte Ribeiro em 3 de abril de 1827 ao ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, Antonio Luiz Pereira da Cunha (Visconde de Inhambupe), “concluo que este Governo quer ganhar tempo até ver o resultado da guerra com Buenos Aires (que julgam ofensa própria), e a face que tomam os negócios de Portugal [onde D. Pedro poderia assumir como rei, ou então, seu irmão, D. Miguel, de tendências absolutistas]. Mostram o bem que desejam ao Brasil e à S.M.I. [ou seja, D. Pedro], publicando revezes e fazendo continuamente circular notícias desagradáveis e indecorosas. A questão sobre o reconhecimento já foi agitada no Conselho e alguns membros (...) mostraram as vantagens que a Espanha podia tirar do Brasil; [outros] porém (...), apoiados na maior parte, se opuseram...” (Arquivo Diplomático da Independência, op. cit., vol. III, Representação Brasileira em Madrid, Correspondência expedida, p. 384). O enviado brasileiro chegou inclusive a temer pela sua segurança, ao ser considerado um espião a serviço de D. Pedro, segundo relatou no mês de agosto de 1827.

O reconhecimento formal se deu, portanto, doze anos após a independência do Brasil e nove anos depois do tratado de reconhecimento dessa independência por parte de Portugal. O fato de D. Pedro se alinhar aos liberais, e de poder ter sido um eventual pretendente ao reino da Espanha pode não ter sido indiferente ao longo processo de decisão adotado pela monarquia espanhola quanto às relações diplomáticas com o Brasil. Também subsistiam, no âmbito europeu, questões relativas às lutas políticas entre os liberais e os conservadores, tanto em Portugal quanto na Espanha, no contexto das quais a figura política de D. Pedro – imperador no Brasil e sucessor, como D. Pedro IV, de seu pai, falecido em Portugal em 1826 – poderia ter servido à causa liberal na Espanha, como hipotético sucessor de D. Fernando VII. A relevância conjuntural desses fatores explica que o reconhecimento formal da independência brasileira pelo Reino da Espanha somente seja obtido em 1834, após o desaparecimento físico de ambos os soberanos. 

De certa forma, essa história triangular tampouco pode ser separada, por um lado, da história das relações entre cada um dos Estados ibéricos e as grandes potências europeias da época, em primeiro lugar a Grã-Bretanha e a França, e, por outro lado, das relações entre elas e suas velhas colônias da América do Sul, que estavam conquistando sua independência no mesmo período, processo que enquadra e condiciona o estabelecimento de relações formais (isto é, diplomáticas) entre o Estado do Brasil independente e o Reino da Espanha.

Ainda que o estabelecimento de relações diplomáticas oficiais entre o Reino da Espanha e o Império do Brasil tenha ocorrido apenas doze anos depois da independência deste último, em 1834, com a troca subsequente de encarregados de negócios e de ministros residentes entre os governos dos dois Estados, o primeiro tratado formal estabelecido entre eles tardou quase três décadas mais, e foi representado pela Convenção Consular celebrada em 9 de fevereiro de 1863, para regular os direitos, privilégios e imunidades recíprocas dos cônsules, vice-cônsules e chanceleres, bem como as funções e obrigações a que eles ficavam respectivamente sujeitos nos dois países, segundo um modelo que o Brasil já tinha firmado com outros Estados.

O longo ciclo das independências latino-americanas e as formas diversas assumidas pelas diferentes elites nacionais no decorrer do processo – que se estendeu, praticamente, desde a última década do século XVIII, com a independência do Haiti, até a terceira década do século XIX, quando o Peru consolida sua independência, em 1824, mas que a rigor se estende até o final do século, com a luta delongada dos patriotas cubanos –, determinaram modalidades diferenciadas de reconhecimento formal dessas autonomias conquistadas e de estabelecimento de relações diplomáticas normais, com a conclusão de tratados de reconhecimento e, mais frequentemente, de relações comerciais, consulares e de cooperação em setores diversos. No caso do Brasil, o processo foi obviamente distinto, em função não apenas de sua soberania estar afeta ao outro reino ibérico, como também em razão das lutas políticas e conflitos bélicos que opuseram, em ocasiões diversas os dois reinos, tanto na Europa quanto na América do Sul, em especial na região do Prata. 

O estabelecimento de relações “normais” entre o novo Império do Brasil, herdeiro da casa dos Braganças, e os demais países, sobretudo as monarquias europeias, com as quais Portugal e Brasil tinham e mantiveram vínculos familiares e intensas trocas no início do século XIX, foram sendo normalizadas ao longo das Regências e, sobretudo, a partir do Segundo Império, mas sem mais tratados desiguais no plano comercial e sem as cláusulas iníquas impostas pela potência dominante da época. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4288: 15 dezembro 2022, 13 p.

Publicado in: 1822-2022: Bicentenário da Independência, 1822-2022. Brasília: Secretaria Nacional de Economia Criativa e Diversidade Cultural da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, 2022, p. 602-620; ISBN: 978-65-00-82564-0; disponível na Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados (link: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/41362). Relação de Publicados n. 1527.


Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, 1808, abertura

Primeiro número e apresentação do Correio Braziliense, o primeiro jornal brasileiro independente.

Um propósito, um dever, uma missão: a de informar, a de formar, a de esclarecer, a de elevar... 




Se tem algo abundante na América do Sul é a retórica; ações não é o caso, mas o palavreado é garantido!

 


Nota 434 – Implementação Do Ponto 7 Do Consenso De Brasília - Mapa Do Caminho Para A Integração Da América Do Sul

Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social

 

Nota nº 434

6 de outubro de 2023

 

Implementação do Ponto 7 do Consenso de Brasília - Mapa do Caminho para a Integração da América do Sul

 

1.    Dando seguimento à Reunião de Presidentes da América do Sul de 30 de maio de 2023, os países sul-americanos adotaram, em 5 de outubro de 2023, um Mapa do Caminho para a Integração da América do Sul, com o objetivo de retomar o diálogo regular para impulsionar a integração regional, promover a cooperação e projetar a voz da América do Sul no mundo. 

2.    Considerando os desafios enfrentados pela América do Sul, o Mapa do Caminho destaca a importância de priorizar iniciativas concretas, com impacto positivo nas condições de vida das populações e que não dupliquem esforços já em curso em outros mecanismos de cooperação.

3.    Levando em consideração o interesse em seguir fortalecendo o diálogo em áreas específicas, o Mapa do Caminho inclui um calendário preliminar de reuniões setoriais e indica espaços que poderiam ser aproveitados para seguir fortalecendo o diálogo sul-americano e o processo de implementação do Consenso de Brasília à margem de eventos regionais e extrarregionais.

4.    Observando o Ponto 7 do Consenso de Brasília, o Mapa do Caminho para a Integração da América do Sul baseia-se em uma extensa avaliação das experiências dos mecanismos de integração sul-americanos nos 17 temas identificados como foco de atenção inicial pelos Presidentes da região, a saber: Combate ao Crime Organizado Transnacional, Comércio e Investimento, Conectividade Digital, Cooperação Transfronteiriça, Defesa, Desenvolvimento Social, Educação e Cultura, Energia, Financiamento ao Desenvolvimento, Gênero, Gestão de Riscos de Desastres, Infraestrutura e Transporte, Integração Produtiva, Migração, Mudanças Climáticas, Saúde e Segurança Alimentar. Avança, também, iniciativas concretas de seguimento que poderão ser exploradas para aprofundar a cooperação e a integração na América do Sul.

5.    Para permitir o seguimento adequado das várias iniciativas, acordou-se que o diálogo regular incluirá, de agora em diante, encontros estratégicos anuais entre os Presidentes da América do Sul; reuniões de Ministros das Relações Exteriores pelo menos duas vezes por ano; encontros frequentes entre coordenadores nacionais; a criação de redes de contato setoriais para promover o intercâmbio e a cooperação em tópicos específicos de interesse comum; e diálogos com parceiros extrarregionais.

6 de outubro de 2023 

Mapa do Caminho para a Integração da América do Sul

 

[Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/implementacao-do-ponto-7-do-consenso-de-brasilia-mapa-do-caminho-para-a-integracao-da-america-do-sul]

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Relações Brasil- Asean: visita do chanceler brasileiro

 Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social

 

Nota nº 437

6 de outubro de 2023

 

Visita oficial do Ministro Mauro Vieira a países-membros da ASEAN – 9 a 13 de outubro de 2023
 

O Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Mauro Vieira, realizará, entre 9 e 13 de outubro, visita oficial à Indonésia, ao Camboja e às Filipinas. Os três países integram a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).

Em Jacarta, em 9 de outubro, o Ministro manterá reunião com a Ministra das Relações Exteriores da Indonésia, Retno Marsudi, para tratar de temas relativos à parceria estratégica entre Brasil e Indonésia, estabelecida em 2008.

Juntamente com a Ministra Marsudi e o Secretário-Geral da ASEAN, Dr. Kao Kim Hourn, o Ministro Mauro Vieira participará da 1ª Reunião Trilateral Brasil-ASEAN, quando será lançada a implementação da Parceria de Diálogo Setorial do Brasil com a ASEAN.

Ainda em Jacarta, o Ministro abrirá o seminário Ethanol Talks, evento organizado pelo setor privado, com o apoio do Itamaraty, destinado a aproximar Brasil, Indonésia e demais países da ASEAN em torno da pauta dos biocombustíveis como alternativa viável para a transição energética.

Em 11 de outubro, realizará visita ao Camboja, a primeira de um chanceler brasileiro àquele país. O Ministro será recebido pelo Primeiro-Ministro Hun Manet e manterá reunião de trabalho com o Vice-Primeiro Ministro e Ministro dos Assuntos Exteriores e Cooperação Internacional Sok Chenda Sophea. O Camboja abriu recentemente uma embaixada em Brasília, a primeira na América do Sul.

Em 13 de outubro, o ministro Mauro Vieira será recebido pelo Secretário de Negócios Estrangeiros das Filipinas, Enrique Manalo. Trata-se da primeira visita de um chanceler brasileiro às Filipinas, desde o estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países em 1946.

Em conjunto, os dez países-membros da ASEAN representam a quinta maior economia global. Segundo projeção do FMI, os países da ASEAN contribuirão com 10% do crescimento do PIB global em 2023, o que representa mais do que o dobro do seu peso na economia mundial. Com uma população de aproximadamente 670 milhões de habitantes, a ASEAN é hoje, em seu conjunto, o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Nos últimos 12 meses, o comércio do Brasil com os países da ASEAN foi de USD 33,7 bilhões.

[Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/visita-oficial-do-ministro-mauro-vieira-a-paises-membros-da-asean-2013-9-a-13-de-outubro-de-2023]


sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Como Putin usa mentiras e mercenários para destruir democracias - Estadão

 Como Putin usa mentiras e mercenários para destruir democracias 


Pouco antes de morrer em agosto, em um acidente aéreo em circunstâncias suspeitas, o líder do Grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin disse em suas redes sociais que estava na África “para tornar o continente mais livre. Era no continente, principalmente na região do Sahel, onde seus mercenários mantinham grande parte de sua operação. 

E é também nessa parte da África subsaariana onde estão alguns dos países mais voláteis politicamente do Sul Global. Países como Mali, Niger, Burkina Faso e Chade passaram recentemente por golpes de Estado, campanhas de desinformação e tráfico de armas, em ações patrocinadas pela Rússia de Vladimir Putin. Para aumentar a sua influência na região, o Kremlin atua em duas frentes. Uma é oficial, com a doação de até 50 mil toneladas de grãos e o o acordo de cooperação militar com 40 países anunciados por Putin durante a Cúpula Rússia-África. 

A outra, avança sem ser anunciada, com campanhas de desinformação e forte presença dos mercenários do grupo Wagner Um monitoramento recente da ONG Freedom House, que acompanha os direitos políticos e liberdades civis no mundo há cinco décadas, mostra um recuo do volume de países considerados “livres” no continente africano. 

Gana, Namíbia, Botsuana, Lesoto e África do Sul são cada vez mais exceções que regras, num continente marcado pela pobreza e a instabilidade política, onde sete Países enfrentaram golpes de Estado no últimos dois anos. E a Rússia tem atuado pra isso. O Centro de Estudos Estratégicos da África mostrou que há uma relação direta entre essa última, a ação desestabilizadora russa, e a perda de pontos na escala de países livres. 

Gana, que não tem registro de interferência, aparece com 80 pontos na escala que vai de zero a 100 — melhor avaliado que o Brasil (72). Enquanto os países onde a estratégia de Moscou é mais presente tem uma média de 19 pontos, o mesmo que a ditadura da Nicarágua. Em contrapartida, aponta o estudo, autocracias sem instituições sólidas e sem controles internos são mais permissivas à influência russa. O continente sofre com golpes de Estado em série, manobras de governantes que não querem deixar o poder para estender mandatos e eleições sob suspeita. 

Uma instabilidade crescente, depois da ascensão democrática que parecia ter encerrado a tendência de militarização observada entre as décadas de 1970 e 1980. Essas democracias fragilizadas, se encontram no meio de uma disputa por influência entre polos cada vez mais antagônicos. O professor de relações internacionais do IBMEC Christopher Mendonça alerta que uma das formas de rivalizar com os Estados Unidos e com o Ocidente de modo geral é justamente apresentar para os Países onde disputam influência os valores russos: “a democracia não está entre esses valores. A Rússia está muito mais voltada para o nacionalismo”. 

 Os interesses de Vladimir Putin Moscou tem um objetivo claro: substituir as potências ocidentais e aumentar a influência no continente que é o número dois no mundo em área e população. São 30 milhões de quilômetros quadrados divididos entre 54 países onde vivem 1,2 bilhão de habitantes. E esse interesse não é de hoje, explica Angelo Segrillo, historiador especializado em história russa.

 A antiga União Soviética já disputava com a China e as potências Ocidentais a influência sobre os Países africanos que conquistavam independência. A Rússia até herdou essa relação com o fim da URSS, mas enfraqueceu os laços com o continente no final da década de 1990, enquanto enfrentava um problema dentro de casa, a crise econômica, que levou o país a dar um calota na dívida externa.

 Na era Vladimir Putin, já com as contas acertadas, Moscou passou a buscar essas antigas relações. O movimento se acentuou a partir de 2014, quando a Rússia foi alvo das primeiras sanções por anexar a Crimeia e ganhou força no ano passado, a partir da invasão da Ucrânia, que azedou de vez a relação com o Ocidente. “Com o aprofundamento das sanções, a Rússia tenta aumentar os seus laços e influência tanto na Ásia quanto na África, almejando criar um verdadeiro bloco antiocidental”, aponta Segrillo. 

 Além de contornar os embargos econômicos, a Rússia de Vladimir Putin busca reduzir o seu isolamento, como foi observado no aniversário de um ano da guerra, quando a Assembleia-Geral da ONU aprovou uma resolução contra a invasão da Ucrânia. O texto foi facilmente aprovado com 141 votos a favor, mas dois países africanos votaram contra junto com a própria Rússia e seus aliados mais próximos, como Belarus. Dos 32 países que se abstiveram, metade fica na África. Sob sanções internacionais, é crucial para Rússia desenvolver esses fluxos alternativos de receita. Ao mesmo tempo, desenvolver parcerias com esses regimes possibilita um tipo de proteção contra condenação internacional pela invasão na Ucrânia. É uma forma de jogar a geopolítica”, nota o pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da África Daniel Eizenga ao Estadão. 

 Embora o apoio ou posição de neutralidade entre os países africanos nem de longe tenha sido suficiente para barrar a resolução, os números mostram como o continente está dividido em relação à guerra, contrariando o Ocidente, que adota uma posição firme contra o Kremlin e esperam o mesmo de outros Países. A consequência, conclui Cristopher Mendonça é que “se aproximar desses Países melhora as condições da Rússia na ONU”, especialmente em votações da Assembleia-Geral. “A Rússia não é um país que questiona a ONU porque é um membro efetivo [do Conselho de Segurança], estava na criação desses sistema. 

E a África tem um número de votos que é superior ao de outras regiões”, justifica. Em contrapartida, Moscou tem usado o poder de veto como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU parar barrar resoluções contra os governos que apoia na África. Assim, tem livrado autocratas de sanções financeiras e da condenação internacional. Ressentimento com colonialismo abre espaço pra Rússia Enquanto Moscou busca espaço no continente, a relação com Paris se mostra cada dia mais desgastada a exemplo do que acontece no Mali. 

Seis décadas depois da conquista da independência da França, a nova Constituição, aprovada sob o governo militar, demoveu o francês da lista de idiomas oficiais do País. Um gesto considerado simbólico já que a própria carta magna foi escrita em francês, mas que evidencia o ressentimento com o passado colonizador e com as intervenções mais recentes, às vezes, desastrosas. No ano passado, antes de rebaixar o idioma, o Mali celebrou com uma multidão nas ruas a expulsão do embaixador e assistiu a retirada de tropas da França. 

Um dia recebidos como heróis contra o extremismo islâmico, os soldados deixaram o países acusados de neocolonialismo dez anos depois, no momento em que os grupos jihadistas ganham força. Logo depois, a vizinha Burkina Faso, também ex-colônia e também sob um regime militar, que mandou os soldados franceses embora. Mais recentemente, foi a vez do Níger, onde os militares tomaram o poder em julho. Quando apoiadores da junta militar foram às ruas manifestar apoio ao golpe, alguns queimaram a bandeira francesa enquanto outros exibiram a russa. 

Uma imagem que simboliza como Moscou avança para ocupar esse vácuo de influência deixado por Paris. Depois do golpe, o Níger também expulsou o embaixador da França e, em meio à tensão crescente, Emmanuel Macron já anunciou a retirada das tropas no País, que era tido como último ponto de apoio do Ocidente nas ações contra o terrorismo no Sahel. O problema é que os Países ocidentais também deram sustentação para autocratas e apoio militar para suas forças de segurança, fechando os olhos para violações de direitos humanos sob a justificativa de combate as grupos insurgentes, afirma diretora do programa africano da Freedom House Tiseke Kasambala ao Estadão. “Infelizmente, as intervenções ocidentais, incluindo aquelas promovidas por potências coloniais, como a França, nem sempre foram positivas levando a um ressentimento generalizado na população”, afirma. 

 Democracia, um sistema em crise Com exceção do Sudão, as ex-colônias francesas correspondem a seis dos sete países africanos que sofreram com golpes de Estado nos últimos dois anos. Além dos já citados, Mali, Burkina Faso e Níger, a lista inclui ainda Chade, Guiné e, mais recentemente o Gabão. Este último, mostra como o cenário é complexo já que mesmo antes do golpe, não é como se o País experienciasse uma democracia plena com alternância de poder. Ali Bongo, o presidente deposto há cerca de um mês pelo golpe, havia acabado de ganhar um terceiro mandato de sete anos.

 O antecessor, o seu pai Omar Bongo, comandou o Gabão por mais de 40 anos até morrer em 2009. A perpetuação dos Bongo no poder repetia uma tendência verificada também em outros Países africanos. Em Ruanda, Paul Kagame, é presidente desde os anos 2000 e, graças às reformas políticas aprovadas durante o governo, pode seguir no poder pelo menos até 2034. Quando confirmou, este mês, que será candidato novamente, ele se antecipou às possíveis críticas. “O que é democracia? O Ocidente ditar o que os outros devem fazer? Mas se eles violam os próprios princípios, como ouvimos a eles?”, questionou Kagame. 

E completou: “Procurar transferir a democracia para os outros já é uma violação da democracia em si. As pessoas deveriam ser independentes e ter o direito de ser organizar da forma que quiserem”. A Freedom House aponta ainda outras estratégias que limitam a democracia no continente, como leis de segurança digital que violam privacidade e liberdade de expressão ou políticas abrangentes, que deveriam combater o terrorismo, mas restringem o direito de livre associação. Exemplos disso, aponta a ONG, são an Uganda e o Zimbábue, onde opositores acabam de ser detidos, depois que o presidente Gift Siziba foi reeleito em uma disputa contestada, marcada por denúncias de irregularidades. 

 Apesar dos diferentes indícios de corrosão, a democracia é a forma de governo preferida por 66% da população em 36 países do continente, mostrou o Afrobarômetro, organização não governamental que há 20 anos conduz pesquisas na África. A grande maioria (cerca de 80%) rejeita governos de um homem só ou de partido único. Na mesma linha, quase 70% se dizem contra governos militares. Entretanto, só 38% expressaram satisfação com a forma como a democracia tem funcionado dentro dos seus Países. “Infelizmente, as aspirações políticas não se alinham com a realidade e os cidadãos descobriram que a oferta de democracia é extremamente deficiente”, conclui Tiseke Kasambala. 

Ela lembra que, nos Países onde o processo democrático foi interrompido, instituições frágeis falharam em atender as demandas sociais e oferecer serviços básicos. Ao mesmo tempo, a falta de pluralidade na política, favorece pequenas elites e aprofunda a desigualdade no continente onde mais de 540 milhões de pessoas vivem na pobreza, segundo dados da ONU. À media em que as pessoas exigem mudanças, seja nos rumos da política ou da economia, a resposta dos governantes tem sido endurecer as regras e não atender as demandas sociais. “Os governos violaram liberdades, dificultaram o trabalho da sociedade civil com leis repressivas, respostas violentas a protestos pacíficos e prisões de defensores dos direitos humanos, ativistas e jornalistas”, aponta Kasambala. 

 O grupo Wagner e o futuro indefinido Foi nesse cenário complexo, de instituições enfraquecidas, e busca por aliados sem relação com os antigos colonizadores, que a Rússia se apresentou como um parceiro atrativo e aumentou a presença do grupo Wagner na África. A relação de Moscou com os mercenários, no entanto, ficou estremecida pelo motim que ameaçou Vladimir Putin na Rússia. Depois da rebelião, o Kremlin afastou os paramilitares da Ucrânia, mas manteve as operações no continente africano.

 Foi lá, inclusive, que o chefe Ievgeni Prigozhin apareceu em vídeo pela primeira e última vez desde que liderou o avanço em direção à Moscou. Dias depois da aparição, o avião em que Prigozhin e o seu braço de direito viajavam caiu perto da capital russa. A morte do antigo aliado de Putin, chamado de “traidor” por organizar o motim, abriu um vácuo de poder dentro da organização e aumentou ainda mais a incerteza que paira sobre o futuro do grupo Wagner. Depois da morte de Prigozhin, Moscou indicou que deve manter os mercenários, mas sob seu controle. O sinal veio na semana passada, quando o militar reformado que atuava como um dos líderes do grupo Wagner, Andrei Troshev, recebeu a missão de recrutar combatentes para guerra na Ucrânia. Conhecido pelo apelido de “Sedoi” (grisalho, em russo), o comandante já havia sido apontado como o favorito de Vladimir Putin para comandar os mercenários e vai seguir ordens do Ministério da Defesa. 

A nomeação pareceu refletir o plano do Kremlin para colocar o grupo Wagner de volta à linha de combate ucraniana. Enquanto o mundo observa que papel os mercenários devem ter a partir de agora na guerra, o historiador Angelo Segrillo destaca que uma das saídas para o dilema que o grupo Wagner impôs ao Kremlin poderia ser justamente reforçar ação da milícia, já domada, longe do País. “Normalmente, o grupo teria sido desfeito depois do motim, mas sua presença na África é profunda e foi muito importante para a Rússia ao realizar — informalmente ou clandestinamente — as tarefas que Moscou não poderia executar oficialmente”, lembra o pesquisador.  

A volta de um personagem notório do exército russo pode ser um indicativo dessa estratégia, depois do susto que o grupo Wagner deu em Vladimir Putin. O general Sergei Surovikin, afastado por supostos vínculos com o motim, reapareceu na Argélia, importante comprador de armas russas, depois de semanas sem ser visto em público. “Surovikin é um general duro e que foi muito importante em vários cenários bélicos, principalmente na Síria, e também na própria Ucrânia, onde organizou as linhas de resistência nas províncias incorporadas por Moscou”, contextualizou Segrillo afirmando que o afastamento da Rússia e possível transferência do general poderia confirmar a possibilidade do grupo Wagner ter a energia mais focada em cenários distantes de Moscou, em especial, a África. 

 Seja qual for a estratégia, analistas concordam que o interesse da Rússia não vem de hoje e não vai acabar, independente de qual for destino do grupo Wagner.  


Quatro líderes e um mundo virado ao revés Israel , EUA, Rússia e China - Thomas L. Friedman (NYT, Estadão)

 Quatro líderes e um mundo virado ao revés

Israel EUA, Rússia e China

Thomas L. Friedman
The New York Times É colunista e ganhador de três prêmios Pulitzer
O Estado de S. Paulo, 6/10/2023

Desde o dia em que aprendí que, em 1947, Walter Lippmann popularizou o termo Guerra Fria para definir o conflito que emergia entre EUA e União Soviética, achei que seria legal poder batizar um período histórico. Agora que o pós-Guerra Fria acabou, o pós-pós-Guerra em que entramos tem de ganhar um nome. Então, aqui vai: é a era do "Isso não estava nos planos".

Eu sei, não é uma expressão fácil de articular - e não espero que cole. Mas ela é certeira. Eu tropecei nela na minha viagem recente à Ucrânia. Estava conversando com uma mãe ucraniana que me contava que sua vida social tinha se reduzido a jantares ocasionais com amigos, festas de aniversário "e funerais".

Depois de digitar a citação na minha coluna, acrescentei meu próprio comentário: "Isso não estava nos planos". Antes do ano passado, jovens ucranianos vinham desfrutando de acesso facilitado à União Européia, entrando em startups de tecnologia, pensando sobre fazer faculdade e decidindo se passavam férias na Itália ou na Espanha. Então, como um meteoro, a invasão russa virou as vidas deles de ponta cabeça da noite para o dia.

Aquela ucraniana não está só. Muitos planos de muita gente - e de muitos países - saíram completamente dos trilhos. Entramos na era do pós-pós-Guerra Fria, que tem pouco a prometer em comparação à prosperidade, à previsibilidade e às novas possibilidades do período pós-Guerra Fria, que abrangeu os 30 anos desde a queda do Muro de Berlim.

Há muitas razões para isso, mas nenhuma é mais importante do que o trabalho de quatro líderes cruciais com uma coisa em comum: acreditam que sua liderança é indispensável e estão dispostos a adotar medidas extremas para se manter no poder o máximo que puderem.

PODER. Estou falando de Vladimir Putin, Xi Jinping, Donald Trump e Binyamin Netanyahu. Esses quatro - cada um à sua maneira - criaram perturbações dentro e fora de seus países com base em seu interesse particular, em vez dos interesses de seus povos, e dificultaram a capacidade de suas nações funcionarem normalmente no presente e se planejarem sabiamente para o futuro.

Veja Putin. Ele começou a carreira como um tipo de reformador que estabilizou a Rússia pós-Yeltsin e coordenou um boom econômico graças aos preços do petróleo em elevação. Mas a renda com o petróleo começou a cair e, conforme descreve o acadêmico russo Leon Aron em seu próximo livro, Ridingthe Tiger: Vladimir Putirís Rússia and the Uses ofWar, Putin deu uma grande virada no começo de seu terceiro mandato como presidente, em 2012, após os maiores protestos contra seu governo irromperem em 100 cidades russas e sua economia empacar.

A solução de Putin? "Mudar a fundação da legitimidade de seu regime do progresso econômico para o patriotismo militarizado", disse Aron, colocando a culpa de todas as dificuldades no Ocidente e na expansão da Otan. No processo, o presidente russo transformou seu país em um forte sitiado, que, em sua mentalidade e propaganda, somente Putin é capaz de defender. Ele ter invadido a Ucrânia para restaurar a mítica Mãe-Pátria russa foi inevitável.

Os acontecimentos na China também têm se desdobrado de maneira bastante inesperada. Depois de se abrir e afrouxar controles internos constantemente desde 1978, tornando-se mais previsível, estável e próspera que em qualquer outro momento da história moderna, a China experimentou uma virada de quase 180 graus sob o presidente Xi: ele suprimiu o limite de mandatos - respeitado por seus antecessores para evitar a ascensão de um novo Mao Tsé-tung - e fez-se presidente indefinidamente.

Xi, aparentemente, acreditou que o Partido Comunista estava perdendo o controle e, portanto, reafirmou seu poder em todos os níveis sociais e empresariais ao mesmo tempo, o que eliminou qualquer rival.

Isso tomou a China um país mais fechado do que em qualquer momento desde os dias de Mao e desencadeou comentários de que o mundo pode já ter visto o auge da China em relação a potencial econômico, o que equivalería a um terremoto na economia global.

Certamente não estava nos meus planos acabar escrevendo, depois de quase uma vida inteira acompanhando conflitos de Israel com inimigos externos, que a maior ameaça à democracia judaica hoje é um inimigo interno - um golpe no Judiciário liderado por Netanyahu que está fragmentando a sociedade e as Forças Armadas de Israel.

O ex-diretor-geral do ministério israelense da Defesa Dan Harel afirmou, em um comício pró-democracia em Tel-Aviv, na semana passada: "Eu nunca vi nossa segurança nacional num estado tão ruim" e houve "dano às unidades da reserva de formações essenciais das Forças Armadas, o que reduziu prontidão e capacidade operacional".

E este problema não é pequeno para os EUA. Ao longo dos últimos 50 anos, o Estado de Israel tem sido tanto um aliado crucial quanto, de fato, uma base avançada na região em que Washington projetou poder sem usar tropas americanas.

Israel destruiu tentativas incipientes de Iraque e Síria se tornarem potências nucleares e é o maior contrapeso atualmente à expansão do poder do Irã sobre toda a região. Mas, se tivermos mais três anos desse governo extremista de Netanyahu, com sua pretensão de anexar a Cisjordânia e governar os palestinos que habitam o território com um sistema à la apartheid, o Estado judaico poderá se tornar uma grande fonte de instabilidade, não de estabilidade.

E por quê? Em um recente perfil de Bibi no Times, Ruth Margalit citou Ze'ev Elkin, um ex-ministro do gabinete de Netanyahu, do Likud, descrevendo o primeiro-ministro da seguinte forma: "Ele começou com uma visão de mundo que dizia: 'Eu sou o melhor líder para Israel neste momento', que gradualmente se transformou numa visão de mundo que diz: 'A pior coisa que pode acontecer para Israel é eu parar de liderar o país, e portanto minha sobrevivência justifica qualquer coisa'."

PILAR. Nem é preciso dizer, depois de testemunhar o esforço de Trump para reverter a eleição de 2020 inspirando uma turba a invadir o Capitólio e ver esse mesmo homem se tomar o principal pré-candidato republicano à presidência em 2024, que a nossa próxima eleição será uma das mais importantes de todos os tempos - para que não seja a última. Isso não estava nos planos.

O denominador comum que une esses quatro líderes é que todos eles quebraram as regras do jogo em seus países por uma razão bastante familiar: permanecer no poder. Putin também iniciou uma guerra no exterior com o mesmo objetivo. E seus sistemas locais - a elite russa, o Partido Comunista Chinês, o eleitorado israelense e o Partido Republicano - não foram capazes de refreá-los.

Mas também existem diferenças importantes entre eles. Netanyahu e Trump enfrentam resistência em suas democracias, onde os eleitores ainda podem expulsar ou impedir ambos - e nenhum deles começou uma guerra.

Xi é um autocrata, mas tem uma agenda para melhorar a vida de seu povo e planeja dominar grandes indústrias do século 21, da biotecnologia à inteligência artificial. Mas seu governo, cada vez mais linha-dura, poderá ser exatamente o que impedirá a China de chegar lá, principalmente porque esse punho de ferro ocasiona fuga de cérebros.

Putin não passa de um chefão mafioso disfarçado de presidente. Ele será lembrado por transformar a Rússia da potência científica, que colocou o primeiro satélite em órbita, em 1957, em um país incapaz de fabricar um carro, um relógio ou uma torradeira que qualquer pessoa fora do país compraria. Putin teve de recorrer à Coréia do Norte para mendigar ajuda para seu Exército arrasado na Ucrânia.

Trump, em última instância, é o mais perigoso - e por uma simples razão: quando o mundo fica tão caótico assim e países tão importantes contrariam os planos, o restante depende dos EUA para assumir a liderança, conter os problemas e opor-se aos causadores de problemas. Mas Trump prefere ignorar problemas e louvar os criadores de problemas. É isso que torna a perspectiva de outra presidência sua tão assustadora, insensata e inconcebível.

Porque os EUA ainda são o pilar do mundo. Nem sempre fazem isso sabiamente, mas se parar completamente de fazê-lo, cuidado. Dado o que já está acontecendo nesses três outros importantes países, se os EUA vacilarem, nascerá um mundo no qual ninguém será capaz de fazer nenhum plano. Haverá um nome fácil para esse período: "Era da Desordem".

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Se os EUA vacilarem, nascerá um mundo incapaz de fazer planos. Será a 'Era da desordem'