Pouco antes de morrer em agosto, em um acidente aéreo em circunstâncias suspeitas, o líder do Grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin disse em suas redes sociais que estava na África “para tornar o continente mais livre. Era no continente, principalmente na região do Sahel, onde seus mercenários mantinham grande parte de sua operação.
E é também nessa parte da África subsaariana onde estão alguns dos países mais voláteis politicamente do Sul Global. Países como Mali, Niger, Burkina Faso e Chade passaram recentemente por golpes de Estado, campanhas de desinformação e tráfico de armas, em ações patrocinadas pela Rússia de Vladimir Putin. Para aumentar a sua influência na região, o Kremlin atua em duas frentes. Uma é oficial, com a doação de até 50 mil toneladas de grãos e o o acordo de cooperação militar com 40 países anunciados por Putin durante a Cúpula Rússia-África.
A outra, avança sem ser anunciada, com campanhas de desinformação e forte presença dos mercenários do grupo Wagner Um monitoramento recente da ONG Freedom House, que acompanha os direitos políticos e liberdades civis no mundo há cinco décadas, mostra um recuo do volume de países considerados “livres” no continente africano.
Gana, Namíbia, Botsuana, Lesoto e África do Sul são cada vez mais exceções que regras, num continente marcado pela pobreza e a instabilidade política, onde sete Países enfrentaram golpes de Estado no últimos dois anos. E a Rússia tem atuado pra isso. O Centro de Estudos Estratégicos da África mostrou que há uma relação direta entre essa última, a ação desestabilizadora russa, e a perda de pontos na escala de países livres.
Gana, que não tem registro de interferência, aparece com 80 pontos na escala que vai de zero a 100 — melhor avaliado que o Brasil (72). Enquanto os países onde a estratégia de Moscou é mais presente tem uma média de 19 pontos, o mesmo que a ditadura da Nicarágua. Em contrapartida, aponta o estudo, autocracias sem instituições sólidas e sem controles internos são mais permissivas à influência russa. O continente sofre com golpes de Estado em série, manobras de governantes que não querem deixar o poder para estender mandatos e eleições sob suspeita.
Uma instabilidade crescente, depois da ascensão democrática que parecia ter encerrado a tendência de militarização observada entre as décadas de 1970 e 1980. Essas democracias fragilizadas, se encontram no meio de uma disputa por influência entre polos cada vez mais antagônicos. O professor de relações internacionais do IBMEC Christopher Mendonça alerta que uma das formas de rivalizar com os Estados Unidos e com o Ocidente de modo geral é justamente apresentar para os Países onde disputam influência os valores russos: “a democracia não está entre esses valores. A Rússia está muito mais voltada para o nacionalismo”.
Os interesses de Vladimir Putin Moscou tem um objetivo claro: substituir as potências ocidentais e aumentar a influência no continente que é o número dois no mundo em área e população. São 30 milhões de quilômetros quadrados divididos entre 54 países onde vivem 1,2 bilhão de habitantes. E esse interesse não é de hoje, explica Angelo Segrillo, historiador especializado em história russa.
A antiga União Soviética já disputava com a China e as potências Ocidentais a influência sobre os Países africanos que conquistavam independência. A Rússia até herdou essa relação com o fim da URSS, mas enfraqueceu os laços com o continente no final da década de 1990, enquanto enfrentava um problema dentro de casa, a crise econômica, que levou o país a dar um calota na dívida externa.
Na era Vladimir Putin, já com as contas acertadas, Moscou passou a buscar essas antigas relações. O movimento se acentuou a partir de 2014, quando a Rússia foi alvo das primeiras sanções por anexar a Crimeia e ganhou força no ano passado, a partir da invasão da Ucrânia, que azedou de vez a relação com o Ocidente. “Com o aprofundamento das sanções, a Rússia tenta aumentar os seus laços e influência tanto na Ásia quanto na África, almejando criar um verdadeiro bloco antiocidental”, aponta Segrillo.
Além de contornar os embargos econômicos, a Rússia de Vladimir Putin busca reduzir o seu isolamento, como foi observado no aniversário de um ano da guerra, quando a Assembleia-Geral da ONU aprovou uma resolução contra a invasão da Ucrânia. O texto foi facilmente aprovado com 141 votos a favor, mas dois países africanos votaram contra junto com a própria Rússia e seus aliados mais próximos, como Belarus. Dos 32 países que se abstiveram, metade fica na África. Sob sanções internacionais, é crucial para Rússia desenvolver esses fluxos alternativos de receita. Ao mesmo tempo, desenvolver parcerias com esses regimes possibilita um tipo de proteção contra condenação internacional pela invasão na Ucrânia. É uma forma de jogar a geopolítica”, nota o pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da África Daniel Eizenga ao Estadão.
Embora o apoio ou posição de neutralidade entre os países africanos nem de longe tenha sido suficiente para barrar a resolução, os números mostram como o continente está dividido em relação à guerra, contrariando o Ocidente, que adota uma posição firme contra o Kremlin e esperam o mesmo de outros Países. A consequência, conclui Cristopher Mendonça é que “se aproximar desses Países melhora as condições da Rússia na ONU”, especialmente em votações da Assembleia-Geral. “A Rússia não é um país que questiona a ONU porque é um membro efetivo [do Conselho de Segurança], estava na criação desses sistema.
E a África tem um número de votos que é superior ao de outras regiões”, justifica. Em contrapartida, Moscou tem usado o poder de veto como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU parar barrar resoluções contra os governos que apoia na África. Assim, tem livrado autocratas de sanções financeiras e da condenação internacional. Ressentimento com colonialismo abre espaço pra Rússia Enquanto Moscou busca espaço no continente, a relação com Paris se mostra cada dia mais desgastada a exemplo do que acontece no Mali.
Seis décadas depois da conquista da independência da França, a nova Constituição, aprovada sob o governo militar, demoveu o francês da lista de idiomas oficiais do País. Um gesto considerado simbólico já que a própria carta magna foi escrita em francês, mas que evidencia o ressentimento com o passado colonizador e com as intervenções mais recentes, às vezes, desastrosas. No ano passado, antes de rebaixar o idioma, o Mali celebrou com uma multidão nas ruas a expulsão do embaixador e assistiu a retirada de tropas da França.
Um dia recebidos como heróis contra o extremismo islâmico, os soldados deixaram o países acusados de neocolonialismo dez anos depois, no momento em que os grupos jihadistas ganham força. Logo depois, a vizinha Burkina Faso, também ex-colônia e também sob um regime militar, que mandou os soldados franceses embora. Mais recentemente, foi a vez do Níger, onde os militares tomaram o poder em julho. Quando apoiadores da junta militar foram às ruas manifestar apoio ao golpe, alguns queimaram a bandeira francesa enquanto outros exibiram a russa.
Uma imagem que simboliza como Moscou avança para ocupar esse vácuo de influência deixado por Paris. Depois do golpe, o Níger também expulsou o embaixador da França e, em meio à tensão crescente, Emmanuel Macron já anunciou a retirada das tropas no País, que era tido como último ponto de apoio do Ocidente nas ações contra o terrorismo no Sahel. O problema é que os Países ocidentais também deram sustentação para autocratas e apoio militar para suas forças de segurança, fechando os olhos para violações de direitos humanos sob a justificativa de combate as grupos insurgentes, afirma diretora do programa africano da Freedom House Tiseke Kasambala ao Estadão. “Infelizmente, as intervenções ocidentais, incluindo aquelas promovidas por potências coloniais, como a França, nem sempre foram positivas levando a um ressentimento generalizado na população”, afirma.
Democracia, um sistema em crise Com exceção do Sudão, as ex-colônias francesas correspondem a seis dos sete países africanos que sofreram com golpes de Estado nos últimos dois anos. Além dos já citados, Mali, Burkina Faso e Níger, a lista inclui ainda Chade, Guiné e, mais recentemente o Gabão. Este último, mostra como o cenário é complexo já que mesmo antes do golpe, não é como se o País experienciasse uma democracia plena com alternância de poder. Ali Bongo, o presidente deposto há cerca de um mês pelo golpe, havia acabado de ganhar um terceiro mandato de sete anos.
O antecessor, o seu pai Omar Bongo, comandou o Gabão por mais de 40 anos até morrer em 2009. A perpetuação dos Bongo no poder repetia uma tendência verificada também em outros Países africanos. Em Ruanda, Paul Kagame, é presidente desde os anos 2000 e, graças às reformas políticas aprovadas durante o governo, pode seguir no poder pelo menos até 2034. Quando confirmou, este mês, que será candidato novamente, ele se antecipou às possíveis críticas. “O que é democracia? O Ocidente ditar o que os outros devem fazer? Mas se eles violam os próprios princípios, como ouvimos a eles?”, questionou Kagame.
E completou: “Procurar transferir a democracia para os outros já é uma violação da democracia em si. As pessoas deveriam ser independentes e ter o direito de ser organizar da forma que quiserem”. A Freedom House aponta ainda outras estratégias que limitam a democracia no continente, como leis de segurança digital que violam privacidade e liberdade de expressão ou políticas abrangentes, que deveriam combater o terrorismo, mas restringem o direito de livre associação. Exemplos disso, aponta a ONG, são an Uganda e o Zimbábue, onde opositores acabam de ser detidos, depois que o presidente Gift Siziba foi reeleito em uma disputa contestada, marcada por denúncias de irregularidades.
Apesar dos diferentes indícios de corrosão, a democracia é a forma de governo preferida por 66% da população em 36 países do continente, mostrou o Afrobarômetro, organização não governamental que há 20 anos conduz pesquisas na África. A grande maioria (cerca de 80%) rejeita governos de um homem só ou de partido único. Na mesma linha, quase 70% se dizem contra governos militares. Entretanto, só 38% expressaram satisfação com a forma como a democracia tem funcionado dentro dos seus Países. “Infelizmente, as aspirações políticas não se alinham com a realidade e os cidadãos descobriram que a oferta de democracia é extremamente deficiente”, conclui Tiseke Kasambala.
Ela lembra que, nos Países onde o processo democrático foi interrompido, instituições frágeis falharam em atender as demandas sociais e oferecer serviços básicos. Ao mesmo tempo, a falta de pluralidade na política, favorece pequenas elites e aprofunda a desigualdade no continente onde mais de 540 milhões de pessoas vivem na pobreza, segundo dados da ONU. À media em que as pessoas exigem mudanças, seja nos rumos da política ou da economia, a resposta dos governantes tem sido endurecer as regras e não atender as demandas sociais. “Os governos violaram liberdades, dificultaram o trabalho da sociedade civil com leis repressivas, respostas violentas a protestos pacíficos e prisões de defensores dos direitos humanos, ativistas e jornalistas”, aponta Kasambala.
O grupo Wagner e o futuro indefinido Foi nesse cenário complexo, de instituições enfraquecidas, e busca por aliados sem relação com os antigos colonizadores, que a Rússia se apresentou como um parceiro atrativo e aumentou a presença do grupo Wagner na África. A relação de Moscou com os mercenários, no entanto, ficou estremecida pelo motim que ameaçou Vladimir Putin na Rússia. Depois da rebelião, o Kremlin afastou os paramilitares da Ucrânia, mas manteve as operações no continente africano.
Foi lá, inclusive, que o chefe Ievgeni Prigozhin apareceu em vídeo pela primeira e última vez desde que liderou o avanço em direção à Moscou. Dias depois da aparição, o avião em que Prigozhin e o seu braço de direito viajavam caiu perto da capital russa. A morte do antigo aliado de Putin, chamado de “traidor” por organizar o motim, abriu um vácuo de poder dentro da organização e aumentou ainda mais a incerteza que paira sobre o futuro do grupo Wagner. Depois da morte de Prigozhin, Moscou indicou que deve manter os mercenários, mas sob seu controle. O sinal veio na semana passada, quando o militar reformado que atuava como um dos líderes do grupo Wagner, Andrei Troshev, recebeu a missão de recrutar combatentes para guerra na Ucrânia. Conhecido pelo apelido de “Sedoi” (grisalho, em russo), o comandante já havia sido apontado como o favorito de Vladimir Putin para comandar os mercenários e vai seguir ordens do Ministério da Defesa.
A nomeação pareceu refletir o plano do Kremlin para colocar o grupo Wagner de volta à linha de combate ucraniana. Enquanto o mundo observa que papel os mercenários devem ter a partir de agora na guerra, o historiador Angelo Segrillo destaca que uma das saídas para o dilema que o grupo Wagner impôs ao Kremlin poderia ser justamente reforçar ação da milícia, já domada, longe do País. “Normalmente, o grupo teria sido desfeito depois do motim, mas sua presença na África é profunda e foi muito importante para a Rússia ao realizar — informalmente ou clandestinamente — as tarefas que Moscou não poderia executar oficialmente”, lembra o pesquisador.
A volta de um personagem notório do exército russo pode ser um indicativo dessa estratégia, depois do susto que o grupo Wagner deu em Vladimir Putin. O general Sergei Surovikin, afastado por supostos vínculos com o motim, reapareceu na Argélia, importante comprador de armas russas, depois de semanas sem ser visto em público. “Surovikin é um general duro e que foi muito importante em vários cenários bélicos, principalmente na Síria, e também na própria Ucrânia, onde organizou as linhas de resistência nas províncias incorporadas por Moscou”, contextualizou Segrillo afirmando que o afastamento da Rússia e possível transferência do general poderia confirmar a possibilidade do grupo Wagner ter a energia mais focada em cenários distantes de Moscou, em especial, a África.
Seja qual for a estratégia, analistas concordam que o interesse da Rússia não vem de hoje e não vai acabar, independente de qual for destino do grupo Wagner.