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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

A Carta ao Povo Brasileiro (de 2002), revista em 2004, e relida agora - Paulo Roberto de Almeida

Dois anos depois de emitida espertamente pelo PT, apenas para ganhar as eleições, em junho de 2002, eu perpetrei, em junho de 2004, uma análise daquele documento, apontando os pontos corretos, sinalizando as ambiguidades, e alertando para os equívocos e inconsistências. Faço apenas observações pontuais, sempre sinalizadas entre colchetes.
Doze anos depois deste exercício, volto a colocar este meu texto de 2004 como demonstrativo de que eu também dei um voto de confiança ao partido totalitário, apenas para ser enganado, como todo o povo brasileiro, menos de dois anos depois, quando o chefe da quadrilha foi substituído por Madame Pasadena, e começou o ciclo de políticas econômicas alopradas que nos levou ao Grande Desastre atual.
Desde o início eu alertei para a trajetória equivocada que estava sendo seguida (e posso provar por dezenas de textos que publiquei desde 2006, aliás disponíveis em meu site), mas parece que só se começou a ter consciência disso numa fase mais recente, e de modo mais claro com o início da Operação Lava Jato, quando foi finalmente revelada a natureza mafiosa do partido no poder, e toda a extensão (ainda não medida completamente) do verdadeiro assalto ao Brasil feito pelos companheiros da organização criminosa.
Esta análise de 2004 de um documento de 2002 é uma espécie de volta ao passado, mas que permite identificar todas as inconsistências de políticas econômicas que já estavam embutidas no itinerário de acertos e desacertos do partido no poder, bonzinho em aparência, criminoso na realidade.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de abril de 2016.


Dois anos de “Carta ao Povo Brasileiro”
De volta a um documento de ruptura

Paulo Roberto de Almeida
1294, Brasília, 27 jun. 2004, 16 p.
Análise do discurso argumentativo desse documento de campanha do candidato Lula (06/2002), com base em sua lógica intrínseca, sem tentativa de balanço em relação ao conteúdo efetivo.
Publicado no Espaço Acadêmico (n. 38, jul. 2004; http://www.espacoacademico.com.br/038/38pra.htm). Relação de Publicados n. 474.


1. Introdução a um documento paradigmático

O dia 22 do mês de junho de 2004 marcou, com Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, ocupando a presidência da República desde 1º de janeiro de 2003, os primeiros dois anos da “Carta ao Povo Brasileiro”, um documento singular na história recente do Brasil. Com efeito, nela, um líder político brasileiro, candidato a presidente, propõe um pacto com o povo, assumindo solenemente uma série de compromissos que, um mês depois, em 23 de julho de 2002, seriam confirmados no documento “Compromisso com a soberania, o emprego e a segurança do povo brasileiro” (todos os documentos da campanha do PT de 2002 encontram-se disponíveis no link: http://www.lula.org.br/obrasil/documentos.asp). [Já não é mais o caso atualmente, mas devo ter esses documentos em meus arquivos; PRA: 4/04/2016]
Muitos analistas políticos, entre eles o que assina estas linhas, já destacaram tratar-se a “Carta” de um texto relevante do mais importante partido político brasileiro da atualidade. Creio, pessoalmente, que ela sinalizou uma nítida inversão da curva eleitoral naquela campanha, que se revelaria finalmente vitoriosa, depois das três tentativas anteriores. A partir deste momento, e antes mesmo de ocorrido o primeiro turno das eleições, consignei a marcha para a vitória numa série de ensaios (enfeixados sob o título comum de “Consequências econômicas da vitória”), que depois seriam reunidos no livro A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (ver sumário em: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html).
A “Carta” constituiu um instrumento “fundador”, sendo paradigmática de uma transição efetivamente realizada, mas curiosamente não explicitada nos anais e crônicas do partido. De fato, a “Carta” deve ser identificada como um documento de ruptura, e talvez duplamente, tanto no sentido de proposta para um novo caminho político, mas também ruptura com “tudo aquilo que estava ali”, isto é, com as velhas crenças do PT.
Recorde-se (para fins de “arquivologia política”) que a “Carta” foi apresentada pelo candidato como reproduzindo o resultado de uma conferência nacional sobre o programa do PT (então em finalização) e que deveria servir de base para a elaboração da plataforma eleitoral da campanha presidencial de 2002. O teor da “Carta” – ou melhor, os pressupostos adotados para sustentar os compromissos nela firmados – não foi ainda incorporado às “tábuas da lei”, isto é, ao programa ou aos textos básicos do partido, enquanto “assembleia de militantes” – já que muitos deles continuam sendo guiados pelas resoluções do último encontro nacional do partido, realizado em Olinda, em dezembro de 2001 –, nem foi ela descartada como instrumento provisório, como tendo servido apenas aos propósitos de campanha presidencial de 2002. Seu estatuto é, portanto, algo incerto no conjunto de documentos de referência do partido. Pode-se no entanto considerar que esse documento continua a representar uma das mais dramáticas reviravoltas da história de um quarto de século do mais importante partido (no presente momento político) brasileiro.
Pretendo deixar de lado, neste momento, o exame da liturgia de concepção, elaboração e anunciação da “Carta”, para concentrar-me unicamente na exegese formal do seu conteúdo, tal como se pode deduzir unicamente da letra e do espírito daquele texto, no momento em que foi elaborado (aproveitando-me, aliás, para isso, de argumentos já efetuados no próprio momento em que ele foi liberado). Não pretendo, assim, utilizar-me dos benefícios do chamado hindsight, isto é, o esclarecimento retificador que nos traz a visão retrospectiva, pois isto seria falsear o princípio mesmo da análise do discurso.
Este exercício analítico – que é complementado por análise paralela da “carta-compromisso” – não enfoca, portanto, a eventual assunção das principais teses da “Carta” pelo conjunto do partido, enquanto movimento social, nem sua eventual incorporação doutrinal e programática pelos principais dirigentes do partido, enquanto governo constituído. A junção da teoria com a prática, na história recente do PT, pode ser deixada para ocasião futura, na medida em que o objetivo neste momento é o de, simplesmente, proceder a uma análise do discurso enquanto construção conceitual, isto é, como estrutura argumentativa que sustenta uma determinada concepção do mundo, aquilo que filósofos uspianos gostam de referir-se como sendo uma Weltanschauung.
Procederei do modo habitual, isto é, via compilação linear dos 36 parágrafos do documento em questão, seguindo-se então meus comentários pertinentes ao objeto de cada um dos parágrafos. Para controle dos extratos e fiabilidade da transcrição, remeto ao texto original do documento, que pode ser encontrado neste link do site de campanha do PT: http://www.lula.org.br/obrasil/carta_povo_brasil.asp. [Não mais existente, mas a transcrição feita por mim pode ser considerada absolutamente fiel ao original; PRA: 4/04/2016] Os intertítulos que encabeçam cada parágrafo foram atribuídos pelo autor destas linhas e não figuram, obviamente, no documento original. Esclareço, por fim, que o presente exercício exegético representa uma simples modalidade de “história das ideias” – neste caso, limitada a cada um dos pontos retidos para análise –, sem pretensão alguma de operar um julgamento político entre a adequação dos conceitos emitidos há pouco mais de dois anos e a realidade da prática governativa no presente.


2. Uma análise do discurso: a economia da política como imaginação

A grande mudança:
1) O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político.
Comentário PRA: Excelente início de documento. Traduz, numa linguagem direta, o que o partido pretendia demarcar como seu “terreno de batalha”: a mudança política, a retomada do processo de desenvolvimento, a justiça social, enfim, a ruptura de ciclo. Nota dez para o redator principal do documento.

A grande decepção:
2) Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas.
Comentário PRA: Aqui tem início o estilo habitual de se fazer política: uma recusa peremptória de uma situação existente (o “atual modelo”), que não é definido nem nunca formalizado em seus componentes. Basta a condenação sem apelo. Pode-se recusar o procedimento do ponto de vista analítico, mas cabe reconhecer sua eficácia política.

A legenda negra:
3) Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras.
Comentário PRA: As tinturas são voluntariamente pessimistas, do contrário não seria possível transmitir a imagem de fracasso. O problema de qualquer conjunturalismo político é que as situações podem facilmente inverter-se, e a criatura voltar-se contra seu criador. Mas estes são os riscos de todo discurso eleitoral.

Esgotamento do modelo:
4) O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral.
Comentário PRA: A insistência em catalogar um “modelo” não formalizado ou definido em seus próprios termos representa um recurso habitual da análise acadêmica e do discurso político. Não importa se, depois, não se chegará, tampouco, à definição e estabelecimento de um modelo alternativo, esgotando-se o discurso na demanda reiterada por um “novo modelo” (que será, supostamente, estabelecido em “ampla consulta”). Os propósitos não são os de esclarecer qual “esse caminho” que não vem dando certo, nem de apresentar, de modo claro, o caminho alternativo, mas simplesmente de recusar o estado existente. Nisso, a estratégia política é relativamente eficiente.

Projeto nacional alternativo:
5) O mais importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo não está conduzindo ao desânimo, ao negativismo, nem ao protesto destrutivo. Ao contrário: apesar de todo o sofrimento injusto e desnecessário que é obrigada a suportar, a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país, mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo.
Comentário PRA: Os candidatos sempre precisam dramatizar a situação existente para dizer que só eles são capazes de resgatar isso ou aquilo. O fato é que o modelo alternativo é apresentado apenas pelo que ele supostamente será capaz de fazer, não pelo modo ou em função dos meios empregados para produzir os resultados esperados. Esse tipo de voluntarismo e de comportamento evasivo é clássico em política.

Uma preferência nacional:
6) A sociedade está convencida de que o Brasil continua vulnerável e de que a verdadeira estabilidade precisa ser construída por meio de corajosas e cuidadosas mudanças que os responsáveis pelo atual modelo não querem absolutamente fazer. A nítida preferência popular pelos candidatos de oposição que tem esse conteúdo de superação do impasse histórico nacional em que caímos, de correção dos rumos do país.
Comentário PRA: Aqui se introduz pela primeira vez o “fiat” absoluto de todo e qualquer maniqueísmo político: o adversário não quer fazer aquilo que se considera como necessário e indispensável ao bem estar dos cidadãos. A “vontade política” é erigida em princípio de ação governativa, o que constitui obviamente um triunfo da imaginação do candidato sobre o sóbrio realismo do administrador sem pretensões eleitorais.

Adesão popular e adesismo político:
7) A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país.
Comentário PRA: Não se pode, obviamente, confundir real adesão às teses e propostas defendidas em campanha com mero oportunismo político dos tradicionais (e hipócritas) amigos do poder, mas não se pode pedir critérios muito rígidos a quem só está pedindo votos. Nesse tipo de situação é inevitável a mistura entre amigos da causa e os amigos da sua própria causa.

Exportar mais, mercado interno e reformas estruturais:
8) O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. Quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma tributária, que desonere a produção. Da reforma agrária que assegure a paz no campo. Da redução de nossas carências energéticas e de nosso déficit habitacional. Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista e de programas prioritários contra a fome e a insegurança pública.
Comentário PRA: Este grande parágrafo volta a insistir na mudança, o que é de boa tática, mas opera também a junção de julgamentos políticos tradicionais (recusa do continuísmo, por exemplo) com prescrições de tipo econômico ou social (as reformas estruturais anunciadas). Ele anuncia, pela primeira vez, a introdução de “programas prioritários contra a fome e a insegurança pública”, o que supõe a existência de propostas bem fundamentadas.
Ele representou, em todo caso, um notável progresso em relação às antigas posições – economicamente insustentáveis – de interrupção da exportação de alimentos (ou de produtos agrícolas em geral) até que todos os brasileiros pudessem comer, quando o problema da fome não tem obviamente relação direta com a exportação de produtos do agronegócio. O correto teria sido caracterizar a questão da fome como um problema distributivo ou de renda, não de produção ou de comércio, mas os economistas do partido podem não ter tido condições de se opor a uma poderosa simbologia política.
Em todo caso, a prescrição de se exportar mais é um poderoso avanço em relação aos preconceitos habituais contra os mercados externos. Não se compreende bem, por outro lado, como a criação de um “amplo mercado interno de consumo de massas” pode contribuir para reduzir a vulnerabilidade externa, que é determinada por fatores ligados ao balanço de pagamentos, não pela dimensão do mercado interno. Todas as situações são aqui possíveis, amplo mercado interno com grande vulnerabilidade externa e vice-versa, mas a diminuição dessa vulnerabilidade depende, obviamente da produtividade e da competitividade da economia nacional, que são dadas pelas condições internas de seu funcionamento (o que supostamente se compatibiliza com um mercado interno de “boa” qualidade). Nas economias modernas, praticamente não existem mais diferenças entre mercado interno e mercado externo, pois ambos fazem parte de um mesmo sistema, hoje globalizado (ainda que o fenômeno produza urticárias em certos meios).
É muito bem-vinda a disposição de se operar uma “reforma tributária que desonere a produção”, algo absolutamente indispensável no Brasil atual. A promessa de uma “reforma agrária que assegure a paz no campo” pode, de outro modo, prestar-se a interpretações variadas, pois não há necessariamente uma relação causal entre a justiça social (que depende do correto cumprimento da lei) e a estrutura da propriedade no campo. Uma economia e uma sociedade “pacificadas” são dadas pelo pleno emprego (ou quase), em condições de relativo bem estar, não necessariamente através da posse universal de propriedades agrícolas (pode-se ter, alternativamente, trabalhadores rurais com direitos amplamente garantidos). O distributivismo fundiário em condições de baixa produtividade pode produzir “paz social” com níveis mínimos de bem estar, o que não é necessariamente uma situação ideal.
Insuficiências energéticas e habitacionais só podem ser corrigidas com amplos investimentos, o que nas condições do Brasil passam mais pelo setor privado do que pelo estatal. Resta saber quais seriam as soluções concretas propostas nesses capítulos. Da mesma forma, as reformas previdenciária e trabalhista são indispensáveis para a retomada de um processo de crescimento sustentável, mas são igualmente as mais susceptíveis de gerar resistências e oposição dos grupos de interesse constituídos em torno da situação atual.

Sem milagres da noite para o dia:
9) O PT e seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo, reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia para o outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país.
Comentário PRA: Um alerta muito sensato e que aliás já prenunciava o abandono da política de “ruptura” imediata.

Devagar com o andor que o santo é de barro:
10) Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade.
Comentário PRA: Mais uma nota de medido realismo mudancista. O problema, entretanto, das “amplas negociações nacionais” é que elas correm o risco de produzir uma virtual paralisia no processo decisório, na medida em que os interesses dos diferentes grupos sociais são sempre conflitantes (sem falar de preconceitos ideológicos, arraigados em certos meios). Em algum momento, o “decisor de última instância” tem de adotar uma solução a um determinado problema, o que necessariamente irá descontentar eventuais perdedores. Salvo nas ditaduras, os governos não adotam decisões unilaterais, pois o processo legislativo filtra o “pensamento único”. O crescimento com estabilidade não é assegurado apenas por meio de um novo “contrato social”, que figura aí como expediente retórico, mas depende de condições objetivas que não são dadas apenas na esfera política.

Respeito às obrigações e compromissos externos:
11) Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação.
Comentário PRA: Figura aqui o mais importante compromisso político (e também econômico) do PT. Ainda que reconhecendo a existência de uma instabilidade financeira, ele se compromete a respeitar os contratos e as obrigações externas do país. Trata-se da mais importante evolução programática – supondo-se que seja consagrada na prática – em relação às campanhas anteriores, quando estava implícito (ou explícito: nas eleições de 1989, por exemplo) o desejo ou intenção de se aplicar, junto com outros países em desenvolvimento, um calote na dívida externa. O clamor popular figura aqui como mero expediente eleitoral, pois o importante é o compromisso de respeito aos contratos.

Duvidas na capacidade do Brasil de honrar seus compromissos:
12) À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores.
Comentário PRA: O governo de FHC de fato acumulou uma enorme dívida interna, mas isto se deveu à situação de virtual desequilíbrio das contas públicas, como resultado de uma década inteira de planos heterodoxos de estabilização tentativa da economia. A origem dos desequilíbrios não é desconhecida: nossa capacidade de viver acima dos meios e de gastar mais do que se arrecada (daí a necessidade de se produzir superávit primário, o que por outro lado não descarta o requerimento de continuar a tomar dinheiro no mercado para rolar a dívida, pagando caro pelos juros).
O governo de FHC até que tentou corrigir o desequilíbrio histórico das contas públicas, empreendendo a reforma previdenciária, por exemplo, no que recebeu acirrada oposição do PT (que atuou em defesa de seus clientes habituais, as corporações de funcionários públicos), além de retirar dos armários burocráticos diversos “esqueletos”, assumindo os ônus reais das dívidas estaduais e municipais (com uma renegociação muito favorável para essas esferas da federação).
O problema do endividamento público tem de ser cuidadosamente administrado, pois seus contornos ultrapassam a vontade de um governo, já que se trata de um problema do Estado brasileiro. Em parte, o mau desempenho da economia tem a ver com essa enorme dívida pública (que é essencialmente interna), já que ela retira poupança do setor privado e diminui a taxa de investimento.

Jogando a responsabilidade da instabilidade no governo anterior:
13) Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos dias não nascem das eleições.
Comentário PRA: O discurso aqui é totalmente inconsistente. Não se pode deixar de reconhecer as dificuldades objetivas da economia brasileira, que são de fato de responsabilidade, mas não exclusiva, do governo FHC, mas a situação de turbulência eleitoral também nasce, quer se queira ou não, do temor natural de que uma mudança no comando econômico do país, em favor de quem até agora prometia “mudar tudo”, possa representar quebra de contratos e calote nas dívidas interna e externa. Trata-se, portanto, de uma responsabilidade compartilhada, nascida das eleições.
Na verdade, a crise de confiança era muito mais em relação a um eventual governo do PT do que em relação à administração econômica em curso naquele momento, mas isso seria difícil reconhecer durante a campanha, o que pode ser considerado como normal no jogo político. Em algum momento do itinerário, porém, as possibilidades de se atribuir a terceiros a responsabilidade por atos e fatos correntes se esgotam.

Existe um modelo alternativo?:
14) Nascem, sim, da graves vulnerabilidades estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo totalitário, como o único caminho possível para o Brasil Na verdade, há diversos países estáveis e competitivos no mundo que adotaram outras alternativas.
Comentário PRA: Pode-se concordar com o diagnóstico quanto à vulnerabilidade estrutural da economia brasileira, mas isso não exime a necessidade de se apresentar, concretamente, os caminhos alternativos supostamente existentes à disposição dos países. O “caminho totalitário” apresentado pelo governo de FHC era o da responsabilidade fiscal e o do controle da inflação, elementos de política econômica que não podem servir de terreno para a demagogia barata.
Por outro lado, caberia mencionar claramente quais são os “diversos países estáveis e competitivos no mundo” e quais são, concretamente, essas “outras alternativas” que eles adotaram. Podemos, hipoteticamente, pensar em dois grupos de países: de um lado, a Índia, a China, a Rússia, sempre presentes no discurso do PT como exemplos de modelos alternativos com os quais caberia fazer “alianças estratégicas” (supostamente contra alguém ou alguma situação inaceitável no mundo); de outro, países de democracia avançada e com grau razoável de bem estar para suas populações, como os EUA, o Reino Unido, a França e a Alemanha, todos exemplos de economias altamente competitivas e estáveis, mas que supostamente não figuram no terreno das alianças estratégicas.
Seria preciso saber quais desses países oferecem exemplos de políticas econômicas alternativas que poderiam, supostamente, tornar o Brasil melhor do que ele é hoje. O primeiro grupo não é composto de países fundamentalmente estáveis, ainda que alguns deles exibam fortes taxas de crescimento (resta saber se sustentáveis). Quanto ao segundo grupo de países, o mínimo que se pode dizer de suas políticas é que elas são neoliberais, mas apenas os mais neoliberais (como EUA e o Reino Unido) são capazes de apresentar, simultaneamente, baixas taxas de desemprego. Quais são as alternativas, afinal de contas?
Posto de modo claro: existe, de um lado, um conjunto de “receitas” de política econômica, que são explícitas, transparentes e estão sempre sendo repetidas, a cada reunião do G-7, e que muitos jornalistas simplificam como sendo o “consenso de Washington” (que não traduz a complexidade do “modelo”, para adotarmos essa inútil terminologia). Existe, de outro, um conjunto nebuloso de “exemplos” (?) de crescimento, mas que não corresponde a nenhum modelo específico de desenvolvimento econômico ou social, e sim a peculiaridades desses outros grandes países relativamente periféricos (ainda que relevantes do ponto de vista da política e da economia mundiais).
Seria preciso que ficasse claro, no discurso, que modelos de economias estáveis o Brasil estaria aspirando seguir. O mais provável é que ele pretendesse adotar um sensato realismo econômico, que vem sendo expresso naquelas regras do G-7. Mas isso não seria neoliberalismo? Trata-se de um cruel dilema psicológico…

Enfim, um pouco de realismo:
15) Não importa a quem a crise beneficia ou prejudica eleitoralmente, pois ela prejudica o Brasil. O que importa é que ela precisa ser evitada, pois causará sofrimento irreparável para a maioria da população. Para evitá-la, é preciso compreender que a margem de manobra da política econômica no curto prazo é pequena.
Comentário PRA: Não se poderia pedir melhor definição dos limites impostos à vontade política dos governantes.

De volta ao terreno nebuloso das indefinições:
16) O Banco Central acumulou um conjunto de equívocos que trouxeram perdas às aplicações financeiras de inúmeras famílias. Investidores não especulativos, que precisam de horizontes claros, ficaram intranquilos. E os especuladores saíram à luz do dia, para pescar em águas turvas.
Comentário PRA: O que se ganhou em realismo, no parágrafo anterior, foi perdido em inconsistências lógicas, no atual: não se sabe bem quais são os equívocos acumulados pelo BC, nem quais são os investidores que perderam e os que ganharam. O que é certo é que existe uma categoria de aplicadores que sempre ganha com juros altos, ainda que se arriscando a perder dinheiro num calote eventual, ou numa situação de real inadimplência.
Os “pescadores de águas turvas” constituem um dos mais famosos lugares comuns do vocabulário político, mas ainda não se descobriu quem são eles: para cada tipo de água turva parece haver um pescador diferente. Pode-se, por exemplo, dizer que nas situações de instabilidade econômica, os partidos de oposição sempre agem como “pescadores de águas turvas”: isso é normal no jogo político.

Quem é o guardião da tranquilidade política?:
17) Que segurança o governo tem oferecido à sociedade brasileira? Tentou aproveitar-se da crise para ganhar alguns votos e, mais uma vez, desqualificar as oposições, num momento em que é necessário tranquilidade e compromisso com o Brasil.
Comentário PRA: A frase seria totalmente dispensável, se não fosse a necessidade de desqualificar o adversário, mesmo acusando-o de tentar desqualificar quem precisa ser desqualificado, que é sempre o outro, obviamente.

Populismo cambial:
18) Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse. Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas.
Comentário PRA: Todos os economistas de bom senso, de oposição, de situação ou mesmo de direita, sabiam que o real estava sobrevalorizado na primeira fase do Plano de estabilização. Duvidoso, porém, que se tratasse de “populismo cambial” ou que o real tenha sido “artificialmente valorizado”. Tratou-se de um expediente temporário para combater a alta de preços num momento crucial do processo, e que depois não pôde ser corrigido em função das crises financeiras em curso. O valor da moeda, na verdade, começou a ser ajustado desde 1995, mas a um ritmo talvez insuficiente para compensar a defasagem de competitividade. De toda forma, a valorização se explica pelo diferencial de juros. Mas, nenhum governo sensato poderia admitir publicamente que o câmbio estava defasado e que seria preciso ajustá-lo à realidade econômica: a especulação e o descontrole teriam sido inevitáveis. Se o PT fosse governo naquela ocasião, não teria agido de outro modo.
Sem a relativa valorização cambial, o imposto inflacionário teria continuado a penalizar por mais tempo os mais pobres, os que sempre sofrem com a continuidade da alta de preços. Foi ela, justamente, que permitiu a relativa redistribuição de renda que ocorreu no começo do Plano Real. Qualquer outra situação teria significado um ritmo menor de desaceleração inflacionária e menores ganhos para os mais pobres.

O que uma coisa tem a ver com a outra?:
19) Estamos de novo atravessando um cenário semelhante. Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal. O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo.
Comentário PRA: Não se compreende por que a chamada âncora fiscal teria de ser inerentemente vulnerável. Nenhum programa de estabilização se sustenta sem um sério ajuste fiscal, isto é, das contas públicas, que sempre estão no coração de todo descontrole inflacionário. Na verdade, o que passou a ser utilizado no lugar da antiga âncora cambial (que foi sempre muito relativa) é o chamado sistema de “inflation targetting”, ou de metas de inflação, hoje em vigor num crescente número de países.
De resto, não se compreende bem por que a situação das finanças públicas não se resolve sem “melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo”. O que uma coisa tem a ver com a outra? Ambas medidas podem, no máximo, introduzir tranquilidade nas contas externas do país, mas nunca afetar substancialmente a situação das contas públicas, que dependem, por outro lado, de algum tipo de equilíbrio fiscal. O discurso político aparece aqui como totalmente inconsistente e incoerente do ponto de vista econômico.

Outras inconsistências:
20) Aqui ganha toda a sua dimensão de uma política dirigida a valorizar o agronegócio e a agricultura familiar. A reforma tributária, a política alfandegária, os investimentos em infraestrutura e as fontes de financiamento públicas devem ser canalizadas com absoluta prioridade para gerar divisas.
Comentário PRA: A valorização do agronegócio já tinha começado muito tempo antes de ser incluída no discurso de campanha. A agricultura familiar pode ser inserida na equação, desde que vinculada a uma cadeia produtiva, como ocorre, por exemplo, no caso dos estados do sul e do sudeste. No resto do Brasil, a agricultura familiar está mais ligada aos mercados locais, quando não faz parte de um sistema de mera subsistência. Não se compreende, em todo caso, o que isso tem a ver com a solidez das contas públicas e a sustentabilidade do modelo econômico, que era o que se estava discutindo no parágrafo anterior. Isso pode dar a impressão de que o documento constitui, na verdade, uma assemblagem de frases desconexas, sem relação umas com as outras.
Esta impressão é confirmada pela frase seguinte, quando se junta quatro elementos totalmente díspares (reforma tributária, política alfandegária, investimentos em infraestrutura e fontes públicas de financiamento) num mesmo objetivo comum, que seria o de gerar divisas. Do ponto de vista dos manuais de economia, isso não faz nenhum sentido, aliás nem do ponto de vista dos procedimentos, pois não se entende como fazer para “canalizar” políticas setoriais que atendem objetivos diversos.

Promoção comercial e luta contra o protecionismo:
21) Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento.
Comentário PRA: O Itamaraty vem conduzindo, desde muitos anos, esse mesmo tipo de política recomendada na “Carta”. Talvez se devesse propor algo de novo, mas não está muito claro o quê, exatamente.

Abertura para conversas sobre a crise:
22) Estamos conscientes da gravidade da crise econômica. Para resolvê-la, o PT está disposto a dialogar com todos os segmentos da sociedade e com o próprio governo, de modo a evitar que a crise se agrave e traga mais aflição ao povo brasileiro.
Comentário PRA: É bem vinda essa consciência, mas o tom geral da frase é muito condescendente, como se o partido estivesse convidando o resto da sociedade a discutir com ele sobre a gravidade da situação e quem sabe até se dispõe a dar alguns conselhos ao governo sobre como lidar com a crise. Em outras circunstâncias isso se chamaria arrogância, mas num documento eleitoral pode ser tolerado.

Taxa de juros depende da “despoupança” estatal:
23) Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico.
Comentário PRA: Mais uma inconsistência de natureza econômica: a taxa de juros depende basicamente das necessidades de financiamento do setor público, que por sua vez se abastece prioritariamente no mercado interno. Não se compreende assim a relação de causa a efeito traçada na frase, a menos que se queira dizer que um bom saldo exportador permitirá reduzir os juros internos já que não se necessitaria mais “atrair” capitais externos. Mas, num regime de flutuação cambial o saldo comercial tende a refletir o equilíbrio econômico mais geral do país, ao passo que a taxa de juros continua a depender das necessidades de financiamento do setor público.
Não há milagre neste terreno. Para reduzir os juros internos (o que talvez afetasse, indiretamente, a chamada “vulnerabilidade externa”), se deveria começar propondo um superávit primário de 5 ou 6% do PIB, o que significa que o governo não precisaria mais ficar tomando dinheiro no mercado. Os juros poderiam baixar em consequência. Para que o Estado recupere a sua capacidade de financiamento do investimento público seria preciso um enorme esforço de reordenamento dos gastos públicos, já que a capacidade de “extração fiscal” parece ter chegado perto de seus limites estruturais. De toda forma, nas condições concretas do país, o crescimento econômico parece depender bem mais do investimento privado do que do público (de toda forma pouco disponível nos volumes adequados). [Comentário PRA em 4/04/2016: Essa tentativa de superávit nominal foi ensaiada em 2005, quando caiu o “grão-vizir” do governo petista, o Richelieu do Planalto, o chefe da quadrilha, como definido no julgamento do Mensalão; naquela conjuntura, a substituta considerou “elementar” a proposta feita pelos três membros do Conselho Monetário Nacional – ministros da Fazenda e do Planejamento, e o presidente do BC – de zerar o déficit, o que obstou totalmente sua implementação; desde essa época, o governo petista começou a gastar além da conta e o Grande Desastre começou a ser implantado.]

Tentando compreender:
24) Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável.
Comentário PRA: Não está nada claro qual é esse caminho e as propostas são contraditórias entre si: se o Estado recuperar sua capacidade de investimento os contratos passam a ser honrados? E se eles não forem honrados, o que acontece? E o que isso tem a ver com a liberdade de política econômica?: também depende da capacidade de investimento do Estado? Um pouco de clareza de expressão e sobretudo sequência no raciocínio econômico ajudariam bastante no caso desses papéis que tem de ser lidos por outras pessoas.

Origem do pacto perverso: a recuperação dos salários em situação de inflação:
25) Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores.
Comentário PRA: O papel principal dos sindicatos não é propriamente o de ajudar a controlar a inflação, e sim o de minorar os seus efeitos do ponto de vista do poder de compra dos salários dos trabalhadores afiliados. De certa forma, eles participam, junto com os sindicatos de patrões, de um “pacto perverso”, ainda que involuntário, no qual ambos fingem brigar contra a inflação, mas de fato repassam alegremente seus custos para todos os demais membros da sociedade. Uns e outros mantêm a aparência de negociar, acerbamente, os níveis salariais, quando na verdade os parceiros são cúmplices no jogo do “empurrar a crise para o vizinho”, ou seja: garantido um patamar satisfatório de salário para os trabalhadores daquele sindicato combativo, os custos, numa economia inflacionária, serão imediatamente repassados para o conjunto de consumidores, que não têm como se defender.

Ainda o pacto perverso: as negociações setoriais:
26) Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos.
Comentário PRA: Os propósitos, refletidos neste parágrafo, são os melhores possíveis, mas subsiste uma vaga impressão de que esse compromisso de luta contra a inflação pode ser feito mediante negociações setoriais (ou câmaras), nas quais os parceiros “combinam” níveis aceitáveis de preços contra garantia de emprego e salários. Isso pode funcionar para os setores já incluídos da sociedade – como os sindicatos de metalúrgicos –, mas nunca funcionou para os imensos contingentes do setor informal da economia, que se aproximam da maioria da força-de-trabalho.

Salada mista:
27) A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública.
Comentário PRA: O crescimento é, sem dúvida alguma, um grande auxiliar de políticas redistributivas, diretas e indiretas, mas ele pode conviver com os mais diversos tipos de situação nos planos monetário, fiscal, cambial ou orçamentário. A rigor, não existem muitos nexos estruturais entre os quatro elementos citados no parágrafo: também se poderia ter, hipoteticamente, uma combinação de inflação alta, com juro baixo, rigidez cambial e um patamar razoável de dívida pública, já que tudo depende de um conjunto de variáveis independentes. Na verdade, a frase, do ponto de vista econômico, pode dizer tudo e o seu oposto.


Defendendo a burguesia nacional?:
28) O atual governo estabeleceu um equilíbrio fiscal precário no país, criando dificuldades para a retomada do crescimento. Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.
Comentário PRA: O equilíbrio fiscal, precário ou não, é aquele compatível com o estado das contas públicas, que diga-se de passagem continua a produzir déficits nominais (isto é, o superávit não é suficiente para cobrir os juros da dívida pública). A crítica à sobrevalorização cambial, três anos depois da adoção de um regime de flutuação, parece anacrônica, em seus próprios termos.
A adoção de uma política industrial, qualquer que seja ela, não significa que se estará trabalhando para aumentar a competitividade geral da economia, pois ela também pode representar um fator de atraso nos índices de produtividade, na medida em que tende a “proteger” os industriais da competição externa. No passado distante essa política significou subsidio farto e barato aos industriais, taxas de juros camaradas, isenções fiscais, tarifas altas, enfim, a tradicional reserva de mercado.

Tocando no ponto nevrálgico:
30) Exemplo maior foi o fracasso na construção e aprovação de uma reforma tributária que banisse o caráter regressivo e cumulativo dos impostos, fardo insuportável para o setor produtivo e para a exportação brasileira.
Comentário PRA: Trata-se da questão mais importante do ponto de vista do funcionamento do nosso sistema econômico. Se este problema for equacionado, os responsáveis merecem entrar para os livros de história, com todas as glórias a que terão direito. Não há problema mais relevante para a vida nacional. Pena que tenha merecido tão pouca elaboração.

Crescer para os credores ou para a população?:
31) A questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores.
Comentário PRA: Muito louvável a intenção, mas uma coisa não costuma vir sem a outra. Combinar equilíbrio fiscal e crescimento é uma das tarefas mais ingratas da política econômica, já que para crescer são necessários investimentos, e para que o Estado participe desse processo ele precisaria ter folga fiscal, o que não parece ser o caso do Brasil. Ao contrário: o país está há anos atolado no desequilíbrio fiscal e no baixo crescimento. Quem tiver a receita para superar essa cruel contradição precisaria dizer, sem mais tardar.
Quanto aos credores, seria preciso ficar claro: ou se pretende honrar contratos (isto é, prestar contas aos credores), ou se adota uma solução de risco, como a de preferir o crescimento ao pagamento das dívidas. Ambas as situações são conflitantes, pelo menos no plano imediato. Em todo caso, seria interessante que num documento programático como este, toda ambiguidade fosse eliminada.

Uma opção pela sensatez econômica:
32) Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.
Comentário PRA: Eis uma forma de diminuir a ambiguidade: seria preciso que ela fosse seguida de demonstrações práticas nesse sentido.

Mas mesmo o bom senso tem limites:
33) Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados.
Comentário PRA: O equilíbrio fiscal duradouro é importante mesmo numa situação de baixo crescimento, e talvez sobretudo com crescimento insuficiente, em que pese o keynesianismo instintivo da maior parte da classe política. Essa constatação já tinha sido feita pelos próprios eleitores desde meados dos anos 90, ao premiar duas vezes seguidas as políticas que tendiam a colocar o primado da estabilidade sobre o do crescimento.  Não se pode, portanto, admitir a tese de que um “pouco de inflação” pode ser aceitável desde que contribua para o crescimento econômico. Da mesma forma, não se deveria contestar a constitucionalidade da Lei de Responsabilidade Fiscal no Supremo Tribunal Federal.
A bem da verdade, os mais necessitados foram os mais beneficiados com o fim do ciclo de inflação alta, mas eles não têm consciência de todos os mecanismos complexos que foi preciso mobilizar para superar essa fase: são os que menos poupam atualmente, por exemplo, sob a alegação de que o fim da correção monetária fez com que a poupança “rendesse pouco”. Cabe ao governo garantir que a situação anterior não volte mais.

Novas inconsistências?:
34) O desenvolvimento de nosso imenso mercado pode revitalizar e impulsionar o conjunto da economia, ampliando de forma decisiva o espaço da pequena e da microempresa, oferecendo ainda bases sólidas par ampliar as exportações. Para esse fim, é fundamentar a criação de uma Secretaria Extraordinária de Comércio Exterior, diretamente vinculada à Presidência da República.
Comentário PRA: O desenvolvimento do mercado interno e a promoção da pequenas empresas têm muito pouco a ver com a criação de uma Secretaria de Comércio Exterior vinculada à Presidência da República. Por certo que um grande mercado interno oferece uma base segura para a expansão externa, mas isso depende de políticas no campo microeconômico, com menor destaque para a promoção comercial externa.

De volta ao terreno das promessas:
35) Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle. Mas, acima de tudo, vamos fazer um Compromisso pela Produção, pelo emprego e por justiça social.
Comentário PRA: Os discursos “produtivistas” costumam ter ampla aceitação, pois não há quem se oponha ao crescimento sustentado, com inclusão e justiça social. O importante é que cada parceiro social, cada agente econômico, interno ou externo, encontre o pedaço de frase que o satisfaça. Wall Street, por exemplo, reterá apenas que as contas públicas serão mantidas sob controle. A Fiesp fica encantada com esses pactos pela produção, assim como as centrais sindicais gostam de ouvir frases que contenham os conceitos de emprego e de justiça social. Tem sido assim desde o início da era Vargas, e não se pode querer que esses velhos hábitos políticos venham a morrer quando menos se espera.

A união pelo crescimento e pela mudança:
36) O que nos move é a certeza de que o Brasil é bem maior que todas as crises. O país não suporta mais conviver com a ideia de uma terceira década perdidas. O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis.
Comentário PRA: Quando todos forem chamados para discutir um programa de mudanças, haverá discussões intermináveis e pouco ou nenhum consenso em torno de quais mudanças são necessárias para atingir todas aquelas promessas de crescimento com estabilidade e justiça social. Por isso, é função dos partidos políticos propor eles mesmos as mudanças que consideram necessárias para o bem do país e de seus cidadãos. Abster-se de fazer isso significa pedir um cheque em branco ao eleitorado. [Comentário PRA em 4/04/2016: parece que o Brasil se prepara agora para mais uma década perdida, resultado de todas as políticas erradas feitas pelos governos do PT desde 2006.]

Final:
37) Luiz Inácio Lula da Silva
Sem comentários.


3. Consequências econômicas de uma transição não assumida

A mensagem mais visível da “Carta ao Povo Brasileiro” é a de que ela propõe que aceitemos uma grande mudança. Essa mudança é, antes de mais nada, a do próprio Partido dos Trabalhadores, que resolveu trabalhar com conceitos bem mais tranquilos, e de fato menos assustadores, do que aqueles que compareciam regularmente em seus manifestos anteriores: ruptura, calote, distribuição compulsória de terras, redução dos lucros abusivos dos industriais, limitações dos ganhos dos banqueiros, luta contra o capital financeiro internacional, enfim, a recusa de tudo o que estava ali (no sistema). Agora, somos convidados a aceitar que os contratos serão respeitados, que a estabilidade será garantida e que todas as mudanças serão feitas num marco democrático, o que parece bem razoável.
Em síntese, o sistema econômico já é aceito enquanto tal, ainda que ele possa ser mudado para beneficiar a grande maioria. O realismo econômico parece bem mais visível, ainda que subsistam vários equívocos e inconsistências lógicas, que terão de ser corrigidos mediante uma revisão adequada do texto e uma consulta mais detalhada aos manuais de economia.
O que talvez se devesse esperar seria que uma nova “Carta ao Povo Brasileiro” reafirmasse agora as bases do crescimento responsável, confirmando princípios e práticas da política econômica. O discurso político precisa ter uma certa consistência, sob risco de perda de credibilidade. Por isso, a adoção de um novo manual de economia política, que afastasse de vez novas promessas de ruptura, representaria um grande avanço no terreno da administração responsável da coisa pública no Brasil.
De fato, uma das consequências mais indesejadas do não reconhecimento da mudança interna ao partido é essa situação de baixo crescimento, de investimentos retraídos, de desconfiança dos agentes econômicos de que alguma coisa ainda pode ocorrer na gestão da política econômica. Se a transição já foi feita, não há porque delongar o seu reconhecimento explícito pelos próprios agentes da transição. A luta de ideias ainda pode estar em curso, mas as que saíram vencedoras já são plenamente identificáveis. Evitar chamá-las pelo nome apenas prolonga o nascimento do novo discurso. [Comentário PRA em 4/04/2016: A luta de ideias se processou no PT, e a vitória foi dada em favor das ideias inconsistentes, das opções econômicas irresponsáveis, pois que equivocadas quanto aos objetivos de crescimento com estabilidade, e em favor de práticas delitivas no terreno político, que aliás ainda continuam nesta fase agônica da era lulopetista, que é a derrocada de todas as suas promessas, e a instalação de uma situação de quase caos no plano político e, mais ainda, no terreno econômico. O Brasil foi literalmente afundado pelo PT.]

Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
Brasília, 1294: 27 de junho de 2004
[Com complementos pontuais em 4/04/2016]

Uma nova Carta ao Povo Brasileiro (?), das oposições? - Mansueto Almeida

Primeiro, a introdução, depois a Carta:

Carta ao Povo Brasileiro – 2

Recentemente, assistindo ao programa da Globo News do Alexandre Garcia, com o ex-Ministro Moreira Franco e com o Senador Humberto Costa, um deles fez referência ao documento de 2002, a Carta ao Povo Brasileiro, na qual o candidato Luiz Inácio Lula da Silva usou para acalmar os mercados e brasileiros sobre a política econômica de um governo do PT.

A carta fazia uma critica contundente à política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso e sinalizava aos mercados que, se eleito, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva manteria a responsabilidade fiscal e combate à inflação. E de fato, até 2008, o governo do presidente Lula cumpriu com essa promessa.

Mas a partir de 2008/2009, muito do que estava nessa carta ao povo brasileiro, foi esquecido, em especial, o compromisso com o equilíbrio fiscal. O governo começou uma expansão vigorosa da divida pública para emprestar via bancos públicos para empresas e setores a juros camaradas as custas dos contribuintes, em um momento seguinte, a saúde financeira da estatais foi comprometida com o controle artificial do preço da energia e combustíveis, o governo começou a intervir excessivamente na economia,comprometendo o crescimento da produtividade, e o governo passou a fazer uso de truques contábeis para fechar suas contas.

O resultado da politica econômica de 2009 a 2014 foi um verdadeiro desastre que até demorou para aparecer, mas que era previsível por qualquer economista com formação razoável. O que não dava para prever era o tamanho do problema que surpreendeu até o mais pessimista dos economistas.

A minha supresa hoje foi que, ao ler a carta ao povo brasileiro, ela poderia, com poucas mudanças, se transformar em uma carta ao povo brasileiro – 2 só que deste vez assinada pelas oposições. Resolvi editar a carta como se ela  fosse escrita pelos partidos de oposição. Vejam aqui como ficou a carta de 2002 editada para a sua versão de 2016. Isso é claro um mero exercício. Mas é interessante ver como o mundo da voltas. 

Em 2002, o PT se comunicava com a sociedade que desejava mudanças por meio da carta ao povo brasileiro. Hoje, a mesma carta, com poucas alterações, serviria como uma luva para qualquer partido de oposição.

A União Europeia CONTRA a Europa - Louis Rouanet (Mises)

The European Union Is Anti-European

by Louis Rouanet

What is Europe? It seems that no rigorous answer can be provided. Europe is not exactly a continent. It is not a political entity. It is not a united people. The best definition, in fact, may be that Europe is the outcome of a long historical process that engendered unique institutions and a unique vision of what men ought to be. The idea that men ought to be free from violent government interference. Europe has no founding fathers. Its birth was not orchestrated but completely spontaneous. Its development was not imposed by armies and governments but was the voluntary product of clerics, merchants, serfs, and intellectuals who were seeking to interact freely with each other. Europeans were united by their freedoms and divided by their governments. In other words, Europe was built against States and their arbitrary restrictions, not by them.

After the fall of the Roman Empire a period of political anarchy followed where cities, aristocrats, kings, and the church all competed with each other. Therefore, as Dr. Ralph Raico noted in his article “The European Miracle,”

Although geographical factors played a role, the key to western development is to be found in the fact that, while Europe constituted a single civilization — Latin Christendom — it was at the same time radically decentralized. In contrast to other cultures — especially China, India, and the Islamic world — Europe comprised a system of divided and, hence, competing powers and jurisdictions.

In other words, over the centuries, a long evolution of the institutions gave birth to personal liberty. Although the European aristocracies and states were restricting freedom, they were forced to grant more autonomy to their subjects, for, if they did not, people were opting out by migrating or using black markets. As Leonard Liggio puts it, after 1000 A.D.:

While bound by the chains of the Peace and Truce of God from looting the people, the uncountable manors and baronies meant uncounted competing jurisdictions in close proximity. ... This polycentric system created a check on politicians; the artisan or merchant could move down the road to another jurisdiction if taxes or regulation were imposed.

Europe was where the road to freedom began. It was in Europe that the values of individualism, liberalism, and autonomy rose from history and gave humanity a sense of progress that no civilization had ever experienced to such an extent before. Unfortunately, the values and institutions that made Europe great vanished under the pressure of political centralization, nationalism, statism, socialism, and fascism in the nineteenth and twentieth centuries. Today, however, a new danger looms over Europe — the European Union.

The European Institutions Against the Free Market

Contrary to what is often said, the European Union has nothing to do with peace, freedom, free trade, free capital and migration movement, cooperation, or stability. All this can very well be provided in a decentralized system. The European Union is nothing more than a cartel of governments that tries to gain power by harmonizing the fiscal and regulatory legislation in every member State. Article 99 of the Treaty of Rome (1957) clearly states that indirect taxation “can be harmonized in the interest of the Common Market” by the European Commission. As for Article 101 of the same Treaty, it explicitly restrains regulatory competition “where the Commission finds that a disparity existing between the legislative or administrative provisions of the Member States distorts the conditions of competition in the Common Market.”

Since the very beginning, with the creation of the European Coal and Steel Community (ECSC) in 1951, the European institutions were more planning agencies than anything else. Indeed, the coal and steel industries at the time were mostly nationalized and the goal of the ECSC was to coordinate governments’ activities in these two sectors, not to liberalize activity. The fact that the ECSC was not about free trade but about government planning was known by everybody at the time. It was Robert Schuman, the French minister of foreign affairs, who proposed in his declaration of 9 May 1950, that the Franco-German coal and steel production be placed under a common High Authority within the framework of an organization in which other European countries could participate. Also, the ECSC created for the first time European anti-trust legislation, which as Austrians know, is nothing less than government planning in the name of an erroneous vision of what competition is. Even the Treaty of Rome (1957), the basis of the EU as we know it, despite enacting the free movement of goods, capital, and persons, remains a highly statist treaty. Indeed, it is often forgotten that among other things, the Treaty of Rome created a “European Investment Bank,” a “European Social Fund,” the highly protectionist “common agricultural policy,” the “common transport policy,” and reinforced European anti-trust legislation. Therefore, if in the short and medium run, the Treaty of Rome, by breaking the neck of protectionism, was a boon for the European economy, it created institutions that could easily expand their regulatory power in the future, and that is exactly what they did.

Many free marketers support the European Union on the ground that even if their regulations are bad, they are still far better than those produced by our very prolific national governments. Such a line of argument, often used in more socialist countries such as France, is sheer nonsense. It is the equivalent of saying: “I don’t mind being robbed twice because the second thief will be much nicer to me.” The question is not how to make “better” regulations but how to expand free trade.

Europeanism: True and False

In 1946, F.A. Hayek wrote a pathbreaking article named “Individualism: True and False” where he distinguished two different individualist intellectual traditions. One, as Hayek calls it, is “true individualism,” based on evolutionism, the idea that institutions and individuals’ behaviors are not planned consciously but are rather the result of a spontaneous process. True individualism follows the tradition of the Scottish Enlightenment. False individualism, on the contrary, is based on extreme rationalism and solipsism. False individualism is based on the idea that society, freedom, and markets, can be planned and should be planned. This false individualism is the heir of the 1789 and — even more clearly — of the 1793 French Revolutionaries.

These two sorts of individualism are today at the root of two different sorts of Europeanism. True Europeanism admits that most of what made Europe was not planned but rather spontaneous. The implications are that we ought to have as much decentralization as possible for Europe to continue to strive and to safeguard human liberties. On the other hand, false Europeanism thinks that Europe can only truly become Europe if planning by common political institutions exists. False Europeanists believe that the only alternative is between Nation States and the European Union. Their defense of a centralized European political entity is based on the erroneous idea that political centralization is positively linked to the process of civilization because society, law, markets, prosperity, and the “European spirit” ought to be designed by rulers. Europe during the Middle Ages, those thinkers say, lacked trade integration because it lacked political unification. It follows that we must be grateful today for the existence of the European Union. In their narrative, economic progress took place only when “Europe” slowly began to develop new trading alliances that combined some aspects of military protection with something akin to a free-trade area. But this version of history is very far from the truth. In the Middle Ages for instance, the lex mercatoria, the law of merchants, was purely private. Furthermore, the protective tariffs were mostly ignored anyway by Europeans. Smuggling was so widespread that England in the late Middle Ages should be in fact considered as a nation of smugglers rather than a nation of merchants. As Murray Rothbard noted in Conceived in Liberty:

Too many historians have fallen under the spell of the interpretation of the late nineteenth-century German economic historians (for example, Schmoller, Bucher, Ehrenberg): that the development of a strong centralized nation-state was requisite to the development of capitalism in the early modern period. Not only is this thesis refuted by the flourishing of commercial capitalism in the Middle Ages in the local and non-centralized cities of northern Italy, the Hanseatic League, and the fairs of Champagne. … It is also refuted by the outstanding growth of the capitalist economy in free, localized Antwerp and Holland in the sixteenth and seventeenth centuries. Thus the Dutch came to outstrip the rest of Europe while retaining medieval local autonomy and eschewing state-building, mercantilism, government participation in enterprise — and aggressive war.

Thus, the idea that a centralized authority, in our case the European Union, is necessary for free trade is pure fantasy, It is false Europeanism. Its constructivist approach has prevailed in European institutions since the beginning. For example, one of the goals advanced by the Treaty of Rome was to “create markets” through a unified European Anti-trust legislation. Similarly, the official justification of the Common Agricultural Policy introduced in 1962 was to create a unified agricultural market. But markets do not need States or treatiesto exist and they certainly do not need the European Union.

The parallel between false Europeanism and false individualism is also relevant when it comes to their respective imperialistic tendencies. Whereas the French revolutionaries wanted to invade Europe to impose their “universal values” through force, the European Union does not tolerate, in the name of Europe, independent States that do not want to submit to Brussels. Switzerland, for instance, is forced by the European Union to adopt countless regulations concerning food safety and gun ownership. If the Swiss confederation does not comply with many provisions of European law, the European Union threatens to cut Switzerland’s access to the single market.

The most incredible political success of the European Union zealots is their constant shaming of those who refuse to submit to a European hegemonic super-State. But we must understand that only so-called “Euro sceptics” can truly be pro-Europe. Only “Euro sceptics” can be loyal toward the history and liberal values of their continent. In other words, the European Union is a highly anti-European institution.

We Need Decentralization

On June 28, 2016, the British will vote on whether they want to stay in the EU or not. If the NO vote wins, it might be the end of the European Union as we know it. Historically, Britain played a major role in the maintenance of a fairly decentralized European order. Whether it was with Napoleonic France, or the German 2nd Reich, or Nazi Germany, it has always been Britain that ultimately helped to break up the hegemonic endeavors of empires on continental Europe. The question is, then, will Britain play its historical role this summer against the imperialistic European Union? We should consider any attempt to establish a more decentralized system with more competition between States as a boon for Europe and the Europeans. To be sure, the Nation-States must be dismantled, but not if it means the creation of an even bigger European Leviathan. It is, on the contrary, the regionalists and independence movements that must be supported, whether it is Scotland, Catalonia, or Corsica. The European miracle can be revived only through extreme political decentralization. What history teaches us is that Europe is greater than the individuals that compose it only insofar as it respects liberty. Insofar as it is controlled or directed by a monolithic and central political authority or by bellicose Nation-States, Europe is limited by the inability of Europeans to escape the arbitrary restrictions of their governments.

Mercosul: um artigo antiotimista (contra o Chanceler) - Marcos Degaut

Permito-me, a propósito, linkar minha minibiografia não autorizada do Mercosul, já publicada, resumo de uma "biografia" bem maior, mas que evitou bater muito nesse bloco esfarrapado, tendo em vista a tradicional discrição dos diplomatas nessas coisas de política externa atual e corrente.
Neste link:
1216. “O Mercosul aos 25 anos: minibiografia não autorizada”, Boletim Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais (IRel-UnB; n. 103; 27/03/2016; ISSN: 2175-2052; link: http://www.mundorama.net/2016/03/27/o-mercosul-aos-25-anos-minibiografia-nao-autorizada-por-paulo-roberto-de-almeida/). Postado no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/03/o-mercosul-faz-25-anos-uma-biografia.html); disseminado no Facebook (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1116984871698295). Relação de Originais n. 2947.
Paulo Roberto de Almeida 

Mercosul: Os fatos além do discurso

Marcos Degaut

Folha de S. Paulo, 3/04/2016


 

 

O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, retratou o Mercosul como grande êxito de política externa e um dos pilares da ação exterior brasileira. Os argumentos desfilados pelo chanceler em artigo publicado recentemente nesta Folha renderiam um bom roteiro de ficção, não fosse seu primarismo assombroso. Trata-se de enganosa peça de propaganda institucional, com pouco suporte estatístico e factual.

Mauro Vieira menciona no texto um "salto quantitativo e qualitativo do comércio do Brasil com os parceiros (de US$ 4,5 bilhões, em 1991, para US$ 30,3 bilhões, em 2015)", mas silencia quanto à queda sistemática na corrente de comércio Brasil-Mercosul –importações e exportações– desde 2006.

As exportações para o Mercosul –apenas 9% do total da pauta, índice que já foi de 16%– decresceram 18% em 2014 e 12% em 2015, retrocedendo aos níveis de 2006 (US$ 18 bilhões). As importações, que já foram de 13% e se encontram em meros 6%, diminuíram 11% em 2014 e 28% em 2015, recuando também ao patamar de 2006 (US$ 12 bi).

Em 25 anos, a corrente Brasil-Mercosul cresceu apenas US$ 1 bilhão por ano, em média, um acréscimo de 0,27% no comércio exterior brasileiro. No mesmo período, as trocas com os EUA e a China cresceram US$ 45 bilhões e US$ 65 bilhões, respectivamente. Esses números refletem aguda perda de vitalidade desse esquema sub-regional, muito longe de ser "fonte de estabilidade para o Brasil e para a América do Sul", como alardeia o ministro.

O conto da carochinha diplomático é desmentido ainda pelo fato de os países mais dinâmicos da região –Colômbia, Peru, Chile e México– terem formado sua própria zona de livre-comércio, a Aliança do Pacífico, em 2012, para se contrapor ao imobilismo do Mercosul.

Desde então, a Aliança firmou acordos com Estados Unidos, Europa e China, além de integrar a Trans-Pacific Partnership. Sua taxa anual de crescimento do PIB é de 4%, enquanto a do Brasil é inferior a 1%. Suas exportações cresceram, em média, 3,5% ao ano, representando 47% do total da América Latina.

Outro erro grotesco do chanceler é afirmar que a pauta exportadora para o Mercosul é composta majoritariamente de bens de alto valor agregado. Dados da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento indicam que, à exceção de veículos automotores, os 40 principais produtos referem-se a itens como alumina calcinada, adubos e fertilizantes, minério de ferro, carnes suínas, café, papéis e mate, todos de baixíssimo ou nenhum valor agregado, incapazes de gerar efeito multiplicador dinâmico na economia. Assim, cai por terra a vergonhosa falácia de que o "Mercosul ajuda a elevar os salários do trabalhador brasileiro".

Vieira argumenta que o bloco facilitou a circulação de turistas e de trabalhadores e o reconhecimento de diplomas. Ora, não é necessária uma união aduaneira para dar luz a tais benefícios, quando simples acordos bi ou multilaterais podem fazê-lo, sem o efeito colateral de vincular o país a compromissos econômicos, comerciais e políticos que minam estratégias autônomas de desenvolvimento.

Politicamente, o Mercosul é um fiasco, como atestam a equivocada suspensão do Paraguai, a inclusão de um país falido e não democrático como Venezuela e os assaltos à liberdade de imprensa na Argentina nos governos Kirchner.

Argumentos melhores talvez explicassem eventual importância do Mercosul, mesmo porque os brasileiros têm o direito de saber como nossa diplomacia despende recursos e o capital político do país.

Contudo, na medida em que a política externa é executada às margens dos interesses da sociedade, do Parlamento e das demais instituições públicas, e com base em dados e interpretações incorretas, ela não pode mais ser considerada política de Estado, mas exclusiva de um grupo corporativista –razão pela qual o Brasil acaba sendo reduzido ao tamanho do Itamaraty em suas relações internacionais.

 

MARCOS DEGAUT, 45, cientista político, é doutor em estudos de segurança e professor-adjunto na Universidade da Flórida Central (EUA).