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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 22 de outubro de 2017

Eleicoes para americano ver: presidential election in Brazil, 2002 - Paulo Roberto de Almeida

Como eu estava nos Estados Unidos em 2002, e era frequentemente chamado a me pronunciar sobre as eleições, geralmente para os meios acadêmicos, acabei preparando, com a ajuda de dados constantes nos boletins preparados pelo professor David Fleischer, da UnB, um pequeno dossiê em inglês, que tem o mérito de apresentar todos os 30 partidos então em funcionamento no Congresso, com seus respectivos presidentes (muitos ainda por aí, alguns na cadeia), e todos os candidatos nas eleições daquele ano.
Creio que pode ser útil para rememorar como andávamos cheios (literalmente) de candidatos e de propostas (de todos os tipos).
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


The Upcoming Presidential Election in Brazil:

Parties, Platforms, and Candidates


Dossier prepared by

Paulo Roberto de Almeida
Minister Counselor, Brazilian Embassy
BRAZIL:
One of the largest countries in the world, 5th in population, 10th in GDP
Population: 174,5 million;
Voters: 115,3 million (66% of the population); 52% ages 16 to 35 years; 51% women
Federation: 26 states and 1 federal district (Brasília); Acre, Alagoas, Amapa, Amazonas, Bahia, Ceara, Distrito Federal, Espirito Santo, Goias, Maranhao, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Para, Paraiba, Parana, Pernambuco, Piaui, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondonia, Roraima, Santa Catarina, Sao Paulo, Sergipe, Tocantins
Suffrage: voluntary between 16 and 18 years of age and over 70; compulsory over 18 and under 70 years of age
Elections: president and vice president elected on the same ticket by popular vote for four-year terms; election last held 4 October 1998; election results: Fernando Henrique CARDOSO reelected president; percent of vote - 53%

October 2002: the 6th:1st run for presidency (50%+1 rule); Congress (2/3 of the Senate); state governors and local assemblies;
the 27th: 2nd run: two most voted for presidency or state governors

Legislative Branch:  bicameral National Congress or Congresso Nacional consists of the Federal Senate or Senado Federal (81 seats; three members from each state or federal district elected according to the principle of majority to serve eight-year terms; one-third elected after a four year period, two-thirds elected after the next four-year period) and the Chamber of Deputies or Camara dos Deputados (513 seats; members are elected by proportional representation to serve four-year terms)
Elections: Federal Senate - last held 4 October 1998 for one-third of Senate (next to be held: October 6, 2002 for two-thirds of the Senate); Chamber of Deputies - last held 4 October 1998 (next to be held October 6, 2002);
1998 election results: Federal Senate - seats by party: PMDB 27, PFL 20, PSDB 16, PT 7, PPB 5, PSB 3, PDT 2, PPS 1; Chamber of Deputies: seats by party - PFL 106, PSDB 99, PMDB 82, PPB 60, PT 58, PTB 31, PDT 25, PSB 19, PL 12, PCdoB 7, other 14
Judicial Branch: Supreme Federal Tribunal (11 ministers are appointed by the president and confirmed by the Senate); Higher Tribunal of Justice; Regional Federal Tribunals (judges are appointed for life)
Main Political Parties: Brazilian Democratic Movement Party or PMDB [Michel Temer, president]; Brazilian Labor Party or PTB [Roberto Jefferson]; Brazilian Social Democracy Party or PSDB [José Anibal]; Brazilian Socialist Party or PSB [Miguel ARRAES, president]; Brazilian Progressive Party or PPB [Paulo Salim MALUF]; Communist Party of Brazil or PCdoB [Sergio Roberto Gomes SOUZA, chairman]; Democratic Labor Party or PDT [Leonel BRIZOLA, president]; Liberal Front Party or PFL [Jorge BORNHAUSEN, president]; Liberal Party or PL [Francisco Teixeira de OLIVEIRA]; Popular Socialist Party or PPS [Roberto FREIRE, president]; Worker's Party or PT [Jose DIRCEU, president]
Pressure groups: left wing of the Catholic Church, Landless Worker's Movement, and labor unions allied to leftist Worker's Party are critical of government's social and economic policies

General Elections 2002
Registered Parties (by order of registration)

PMDB **       PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO
30.06.81          MICHEL TEMER; DEPUTADO: 15
PTB **           PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO
03.11.81; JOSÉ CARLOS DE CASTRO MARTINEZ; DEPUTADO: 14
PDT **           PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA
10.11.81          LEONEL BRIZOLA  -: 12
PT **  PARTIDO DOS TRABALHADORES       
11.02.82          JOSÉ DIRCEU DE OLIVEIRA E SILVA; DEPUTADO: 13
PFL **            PARTIDO DA FRENTE LIBERAL
11.09.86          JORGE KONDER BORNHAUSEN; SENADOR: 25
PL *    PARTIDO LIBERAL
25.02.88          VALDEMAR COSTA NETO; DEPUTADO: 22
PC do B *       PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL
23.06.88          JOSÉ RENATO RABELO; -: 65
PSB **           PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO
01.07.88          MIGUEL ARRAES: -: 40
PSDB **        PARTIDO DA SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA
24.08.89          JOSÉ ANIBAL PERES PONTES; DEPUTADO: 45
PTC    PARTIDO TRABALHISTA CRISTÃO (ANTIGO PRN)
24.04.01          DANIEL SAMPAIO TOURINHO;  -: 36
PSD    PARTIDO SOCIAL DEMOCRÁTICO
16.03.90          NABI ABI CHEDID; -: 41
PSC * PARTIDO SOCIAL CRISTÃO
29.03.90          VICTOR JORGE ABDALA NÓSSEIS; -: 20
PMN   PARTIDO DA MOBILIZAÇÃO NACIONAL
25.10.90          OSCAR NORONHA FILHO; -:: 33
PRONA          PARTIDO DE REEDIFICAÇÃO DA ORDEM NACIONAL
30.10.90          ENEAS FERREIRA CARNEIRO; -: 56
PRP     PARTIDO REPUBLICANO PROGRESSISTA
29.10.91          DIRCEU RESENDE; -: 44
PPS **            PARTIDO POPULAR SOCIALISTA- (ANTIGO PCB)
19.03.92          ROBERTO J.P.FREIRE; SENADOR: 23
PV *    PARTIDO VERDE
30.09.93          JOSÉ LUIZ DE FRANCA PENNA; -: 43
PT do B          PARTIDO TRABALHISTA DO BRASIL
11.10.94          CARLOS ALBERTO DA SILVA; -: 70
PPB **            PARTIDO PROGRESSISTA BRASILEIRO (PPR+PP)
16.11.95          PAULO MALUF; -: 11
PSTU  PARTIDO SOCIALISTA DOS TRABALHADORES UNIFICADO-ANT. PRT
19.12.95          JOSÉ MARIA DE ALMEIDA; -: 16
PCB     PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO
09.05.96          ZULEIDE FARIA DE MELO; -: 21
PST * PARTIDO SOCIAL TRABALHISTA
28.08.96          MARCILIO DUARTE LIMA; -: 18
PRTB  PARTIDO RENOVADOR TRABALHISTA BRASILEIRO
18.02.97          JOSÉ LEVY FIDELIX DA CRUZ; -: 28
PHS * PARTIDO HUMANISTA DA SOLIDARIEDADE - (Antigo PSN)
20.03.97          PAULO ROBERTO MATOS; -: 31
PSDC PARTIDO SOCIAL DEMOCRATA CRISTÃO - ANT. PDC
05.08.97          JOSÉ MARIA EYMAEL; -: 27
PCO   PARTIDO DA CAUSA OPERÁRIA
30.09.97          RUI COSTA PIMENTA; -:29
PTN * PARTIDO TRABALHISTA NACIONAL
02.10.97          JOSÉ DE ABREU; DEPUTADO: 19
PAN    PARTIDO DOS APOSENTADOS DA NAÇÃO
19.02.98          DREYFUS BUENO RABELLO; -: 26
PSL *  PARTIDO SOCIAL LIBERAL
02.06.98          LUCIANO CALDAS BIVAR; DEPUTADO: 17
PGT    PARTIDO GERAL DOS TRABALHADORES
02.09.99          FRANCISCO C.P.DO NASCIMENTO; -: 30


Total: 30 registered parties (half active in Parliament)



Portrait of the Brazilian Voter, 2002



Class A


Class B

Class C

Class D

Class E

Total

How many?

9 m
(8%)
14 m
(12%)
29 m
(25%)
28 m
(24%)
36 m
(31)
116 m
(100%)
Income Tax
90%
60%
0%
0%
0%
7 m pay
University studies
20%
10%
3%
3%
0%

Middle school
70%
60%
20%
15%
?

Basic school
100%
100%
50%
60%
70%

Illiterate
-
-
-
15%
20%

Television
100%
100%
100%
96%
80%

Newspapers, magaz.
80%
65%
47%
27%
17%
15 m read
Cable TV
60%
40%
-
-
-

Dissatisfied w. life
25%
27%
35%
37%
36%

Earned income (reais per month)
2,000
and plus
1,000 to
2,000
400 to
1,000
200 to
400
Up to
200

Lula voters *
34%
27%
32%
36%
37%

Ciro Gomes *
33%
32%
21%
17%
18%

Serra voters *
20%
12%
14%
15%
15%

Garotinho *
2%
10%
12%
11%
9%


Only 20% of the voters pay income tax
80% of the electorate does not pay income tax; earn R$ 200 to 1,000

Source: * According to a pool in Veja, “O retrato do eleitor”, nr. 1762, 31 jul 02


Distribution of Voters, 2002
Regions
Municipalities
%
Number of Voters
%
South-East
1,668
29.48
50,696,091
43.98
North-East
1,793
31.69
31,015,810
26.91
South
1,189
21.01
17,833,502
15.47
Center-West
466
8.24
8,026,084
6.96
North
449
7.94
7,630,413
6.62

Abroad

93
1.64
69,878
0.06

Total

5,658
100
115,271,778
100


Fragmentation of Brazilian Parties, 1986-2001

Represent. in the House

1986
1990
1994
2001
100 ou +
1
-
-
-
75 à 99
2
1
1
3
50 à 74
2
1
1
2
25 à 49
3
6
5
2
0 à 24
3
11
10
9
Total number of parties:
11
19
17
16


Evolution of the number of Brazilian Voters, 1933-2000

(million)
Year

Number

Year
Number
Year

Number

1933
1.466
1982
58.616
1992
90.222
1945
7.459
1986
69.371
1994
94.000
1950
11.455
1988
75.813
1996
101.284
1960
15.543
1989
82.075
1998
106.101
1970
28.966
1990
83.817
2000
109.826


Presidential Elections 2002
Registered Candidates

1.  Luiz Inácio Lula da Silva (Coalition “Lula President”), 13
            PT, PL, PcdoB, PCB, PMN
1. Economists’ Document - Instituto de Cidadania (June 2001)
2. Resolutions Recife convention (December 2001)
3. Letter to the Brazilian People (June 22, 2002)
4. Program (July 23, 2002)

2. Ciro Ferreira Gomes (Coalition “Labor Front”), 23
            PPS, PTB, PDT (informal support of the PFL)
1. Program (February 2002)

3. José Serra (Coalition “Big Alliance”), 45
            PSDB, PMDB
1. Interview (June 25, 2002)
2. Program (August ?, 2002)
                        site: www.joseserra.com.br

4. Anthony William Garotinho (Coalition “Brazil Hope Front”), 40
            PSB, PGT, PTC
                        site: www.garotinho40.com.br

5. José Maria de Almeida, 16
            PSTU
                        site: www.pstu.org.br

6. Rui Costa Pimenta, 29
            PCO
                        site: www.pco.org.br

Analytical works by Paulo Roberto de Almeida
1. Análise do documento dos economistas do Instituto de Cidadania (PT)
2. Comentários ao Programa do Candidato Ciro Gomes
3. As campanhas presidenciais no Brasil, de 1994 a 2002
4. A política externa e a campanha presidencial de 2002

A politica externa e a campanha presidencial de 2002 - Paulo Roberto de Almeida

Mais um dos textos, este bem mais curto, resumindo a informação e análise sobre as plataformas dos diferentes candidatos em temas de política externa e relações internacionais do Brasil nas eleições presidenciais de 2002. Como nos outros casos, nunca foi divulgado, pois eu os fazia para minha própria informação em primeiro lugar, como registro para trabalhos posteriores, o que de fato ocorria em artigos de cunho acadêmico, ou em algum dos meus livros.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de outubro de 2017


A política externa e a campanha presidencial de 2002

Paulo Roberto de Almeida

A campanha presidencial de 2002 teve início em meio a uma ameaça de crise financeira, com a provável negociação de um novo acordo de apoio por parte do FMI, como aliás já tinha acontecido durante a campanha anterior, em 1998. O debate sobre a crise financeira tinha sido em grande parte eludido durante a campanha presidencial de 1998, graças a uma atuação relativamente hábil do Governo FHC. Com efeito, seu governo soube combinar uma política econômica ortodoxa — juros altos e mecanismos de atração do capital estrangeiro de curto prazo — ao apoio externo do sistema financeiro internacional — com promessas de sustentação por parte do FMI e do G-7 — e uma retórica política tranquilizadora na frente interna — como a preservação do poder de compra da moeda e a prioridade na luta contra a inflação.
O Governo FHC logrou assim delongar um inevitável processo de ajuste que já vinha sendo anunciado desde vários meses antes das eleições pelo candidato Ciro Gomes, em especial no que se refere à opção pela flexibilização cambial. A preservação da semi-rigidez cambial foi, com efeito, um dos principais elementos em que se apegaram economistas de “esquerda” e de “direita” para condenar um dos elementos centrais do programa de estabilização monetária conduzido desde 1994, e que tinha sido em grande medida responsável pela vitória fácil do candidato FHC em ambos os escrutínios.
O rompimento da camisa de força cambial, em janeiro de 1999,1 quase no imediato seguimento do primeiro memorando de entendimento com o FMI — no final de 1998 — não foi todavia devidamente capitalizado pelos aparelhos partidários de oposição, talvez porque essa ruptura tenha ocorrido no bojo de uma perturbação “semi-populista” do sistema político de atuação “normal” dos grupos partidários no âmbito congressual ou através da mídia, qual seja: o anúncio da moratória da dívida estadual pelo recém empossado governador de Minas Gerais, Itamar Franco. Some-se a isso as dificuldades subsequentes de constituição de uma frente de oposição ao Governo FHC que conseguisse unir interesses conjunturais de caráter econômico-orçamentário — bastante fragmentados aliás, em vista de situações diversas no plano administrativo —e interesses de mais longo prazo no terreno político-eleitoral.
O debate político, em que pese as advertências formuladas anteriormente pelo candidato Ciro Gomes e por economistas da oposição, deslocou-se de certo modo dos aspectos conceituais da política econômica para mergulhar em aspectos mais prosaicos de caráter jornalístico, como os meandros da desvalorização cambial, os extraordinários lucros alcançados na passagem ao regime de flutuação por grandes grupos financeiros e a atuação do Banco Central em ações especialmente nebulosas nesse período nervoso em que foi mergulhado o Brasil de meados de janeiro a meados de março de 1999. Com a relativa estabilização da paridade cambial sob o regime de flutuação, a urgência do debate nessa área perdeu muito de sua natureza “ideológica”, deixando praticamente a questão de ser explorada pelos partidos de oposição. Ganharam realce, sobretudo, os aspectos eventualmente lesivos dos acordos com o Fundo Monetário Internacional e com os países do G-7.
De modo geral, não se pode dizer que os desenvolvimentos recentes de “política prática” no Brasil, em especial os desdobramentos da crise financeira e seus efeitos na agenda congressual, tenham alterado de modo substancial as posições dos ex-candidatos e atuais participantes do jogo político-partidário no que se refere às principais “soluções” escolhidas por cada um deles para enfrentar os dilemas da conjuntura econômica e às opções de mais longo prazo que devem — ou deveriam — orientar a inserção internacional do Brasil. Grosso modo, o presidente FHC continuou a ser partidário de uma ativa participação do Brasil nos processos de globalização e de integração regional, aceitando as implicações da interdependência combinadas a uma moderada postura de controle no caso dos chamados capitais voláteis. O principal líder da oposição também continuou a condenar de forma veemente a “submissão” do governo brasileiro aos “ditames” do FMI e sua abertura ao “capital internacional”, mas a retórica não esconde uma posição sobretudo pragmática em relação, por exemplo, aos investimentos diretos estrangeiros.
Pouco a pouco, porém, com a continuidade da fragilidade financeira do Brasil, sua relativa baixa competitividade nas exportações, os exemplos patentes de protecionismo comercial (em especial agrícola) por parte dos principais parceiros nas negociações comerciais externas e, sobretudo, os desastres ocorridos na Argentina a partir do momento em que se tornou evidente a insustentabilidade de seu modelo de conversibilidade cambial, os principais líderes políticos foram assumindo uma postura mais realista em matéria de política econômica externa, aliás necessária em vista da complexidade dos desafios que se colocam ao Brasil no plano internacional.
De novo mesmo, na campanha presidencial de 2002, é a notável diminuição do número de candidatos, com as exceções de praxe (dois representantes sem qualquer importância social de partidos insignificantes de extrema esquerda). Como um dos aspectos saudáveis, também, a confirmação de que, se o jogo político se apresenta ainda relativamente personalizado, a construção de alianças e os esquemas eleitorais seguem linhas claramente partidárias, consolidando, portanto, um espectro partidário que passa a apresentar as linhas clássicas dos sistemas pluripartidários mais avançados: grandes agrupações à direita e à esquerda do cenário e um bloco de tipo centrista, ainda que fragmentado, que dá sustentação ao governo em exercício.
Outro aspecto que merece destaque na campanha de 2002 é a relativa convergência observado em temas econômicos ou mesmo de política externa, como a demonstrar que as duas administrações FHC conseguiram, de fato, alterar a agenda interna e externa do País, no sentido de esterilizar os velhos debates principistas contendo mais slogans do que ideias e suscitar uma discussão responsável em torno de algumas opções fundamentais para o país: entre elas se situava a responsabilidade fiscal, o respeito aos contratos constituídos (e portanto o repúdio à moratória tão facilmente aventado anteriormente) e a “desideologização” das relações com o FMI.
Do ponto de vista da campanha eleitoral, estavam registrados seis candidatos, dos quais quatro com estruturas e lideranças representativas do leque político-partidário, sendo que um deles, o candidato Anthony Garotinho (PSB), tinha muito poucas propostas no plano da política externa e das relações internacionais.
De fato, eram três as coalizações e candidatos que merecem análise detalhada nesse particular: (a) Luís Inácio “Lula” da Silva, desta vez com uma coalização que incluía, além dos tradicionais partidos de extrema esquerda, um pequeno partido de “direita” (PL); (b) Ciro Gomes, ainda vinculado ao pequeno PPS, mas desta vez representando uma coalização trabalhista que incluía ademais o PDT e o PTB, mas contando também com o apoio de setores do PFL e do próprio PSDB; (c) José Serra, ex-ministro do Planejamento e da Saúde nos dois governos FHC, defendendo parte da antiga coalizão governista numa aliança entre o PSDB e o PMDB.


1. Lula e o novo realismo diplomático

Ainda que partindo na frente de todos os demais candidatos, tanto em termos de candidatura oficiosa como no que se refere aos índices de aceitação eleitoral, o candidato do PT e o próprio partido foram desta vez extremamente cautelosos na formulação das bases da campanha política, a começar pela aliança contraída com o pequeno Partido Liberal para viabilizar uma sustentação “centrista” ao candidato tradicional das esquerdas, apoio personificado no candidato a vice-presidente, o industrial e senador por Minas Gerais José de Alencar. Lula foi também bastante cauteloso na exposição de sua ideias, ainda que algumas delas, ainda no início da campanha, tenham sido exploradas por seus adversários (como por exemplo o apoio às políticas subvencionistas da agricultura europeia ou a proposta de que o Brasil deveria deixar de exportar alimentos até que todos os brasileiros pudessem se alimentar de maneira conveniente). Nessa fase, ele ainda repetia alguns dos velhos bordões do passado (contra o FMI e a Alca, por exemplo), que depois foram sendo corrigidos ou alterados moderadamente para acomodar as novas realidades e a coalizão de forças com grupos nacionais moderados que se pensava constituir de forma inédita.
Em matéria de política externa, mais especificamente, a intenção – aliás partilhada com os demais candidatos e, de certa forma, implementada pelo governo FHC – era a de ampliar as relações do Brasil com outros grandes países em desenvolvimento, sendo invariavelmente citados a China, a Índia e a Rússia (sic). No plano econômico, o compromisso – também expresso pelos demais candidatos – era o de diminuir o grau de dependência financeira externa do Brasil, mobilizando para tal uma política de promoção comercial ativa, com novos instrumentos para esse efeito (possivelmente uma secretaria ou ministério de comércio exterior). Segundo a “Carta ao Povo Brasileiro”, divulgada por Lula em 22 de junho, o povo brasileiro quer “trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas”. De maneira ainda mais enfática, nesse documento, Lula afirmou claramente que a “premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do País”.
Depois de algumas ameaças iniciais de se retirar das negociações da Alca (que seria “mais um projeto de anexação [aos EUA] do que de integração”), Lula passou a não mais rejeitar os pressupostos do livre-comércio, exigindo apenas que ele fosse pelo menos equilibrado, e não distorcido em favor do parceiro mais poderoso, o que constituiu notável evolução em relação a afirmações de poucas semanas antes. O principal assessor econômico do candidato, deputado Aloizio Mercadante foi bastante cauteloso na qualificação das eventuais vantagens da Alca: “Esta não deve ser vista como uma questão ideológica ou de posicionamento pró ou contra os Estados Unidos, mas sim como um instrumento que pode ou não servir aos interesses estratégicos brasileiros” (Valor Econômico, 15.07.02). Os contatos mantidos pela cúpula do PT com industriais, banqueiros e investidores estrangeiros  tendiam todos a confirmar esse novo realismo diplomático, e sobretudo econômico, do candidato.
De fato, os principais dirigentes do PT começaram, em plena campanha, a se afastar cautelosamente das propostas tendentes a realizar um plebiscito nacional sobre a Alca (a ser presumivelmente organizado pela CUT, pelo MST e pela CNBB), uma vez que ele teria resultados mais do que previsíveis, todos negativos para a continuidade dessas negociações. De modo ambíguo, porém, o assessor Mercadante parecia acreditar na possibilidade de um acordo bilateral com os EUA, sem explicar como e em que condições ele poderia ser mais favorável do que o processo hemisférico: “é importante que, independentemente da Alca, o Brasil e os Estados Unidos iniciem um processo de negociação bilateral direcionado para a ampliação do seu intercâmbio comercial e a distribuição mais justa de seus benefícios”.
O PT parece ter iniciado, ainda que de maneira hesitante, o caminho em direção ao reformismo moderado, o que foi amplamente confirmado pela divulgação de seu programa oficial (disponível no website de campanha do candidato: www.lula.org.br). Talvez mais importante para medir a distância entre a antiga retórica militante e a nova postura moderada seja uma leitura desse programa em confronto com as resoluções que tinham sido aprovadas em convenção do partido realizado no Recife, em dezembro de 2001, e na conferência de elaboração de diretrizes programáticas, realizada no final do primeiro semestre de 2002.2 De fato, o programa constitui uma solução essencialmente pragmática para encaminhar os dilemas de um partido ainda relativamente dividido entre os compromissos de esquerda assumidos até 2001 e o novo realismo necessário a uma agremiação que se coloca como alternativa de poder.


2. Ciro Gomes e o trabalhismo reformista: inovação cautelosa

Apoiado numa coligação que unia o seu pequeno PPS aos “irmãos-inimigos” trabalhistas PDT e PTB, Ciro Gomes lançou-se novamente desde cedo como candidato da oposição “responsável” ao governo FHC. Ele foi também o primeiro a organizar o seu website de campanha e apresentar um programa estruturado, ainda que parcial em determinados aspectos. Ele recomendava, por exemplo, negociar a Alca “sem pressa e sem medo”, afirmando também que o Brasil deve fortalecer seu poder de barganha nesse processo negociando simultaneamente com a UE, a China e a Índia. De fato, para ele, o Brasil “rejeita a ideia de inevitabilidade da Alca”, pois que a “formação de um espaço das Américas transcende os interesses apenas comerciais”, mas ele indicava que, em seu governo, a diplomacia brasileira “insistirá em condicionar a integração comercial a políticas igualizadoras seguindo nisso o modelo da UE e não o do Nafta” (sem explicar contudo como tal mudança no formato das negociações poderia ser materializada).
Essas alianças estratégicas também teriam um sentido mais elevado, buscando a própria reforma da ordem mundial, uma vez que a nova diplomacia deveria “aproximar-nos estrategicamente de outros grandes países periféricos, sobretudo a China e a Índia, e buscar aliados para a luta pela reforma da ordem econômica e política mundial”. Essa luta seria em prol de “um mundo pluralista, mais aberto à diversidade de trajetórias nacionais de desenvolvimento”, sem elucidar, contudo, a aparente contradição entre a busca de uma coalizão com outros parceiros “periféricos” com o objetivo de preservar “trajetórias nacionais”.
Ao propor mais especificamente uma política externa ativa, de “integração do Brasil com o mundo”, o candidato começava por uma proposta aparentemente em sentido contrário às tendências liberalizantes e privatizantes dos anos 90 ao afirmar que a “indústria de armamentos será integralmente estatizada e posta sob o controle das Forças Armadas.” Um certo irrealismo quanto à relação de forças também se desenhava em uma de suas principais propostas: “O Brasil trabalhará com os outros grandes países continentais marginalizados - a China, a Índia, a Rússia e a Indonésia - para reformar as organizações do sistema Bretton Woods (o FMI, o Banco Mundial e a Organização Internacional [sic] do Comércio). Atuará, junto com seus parceiros políticos e econômicos, para impedir que essas organizações sirvam de instrumentos para a imposição das políticas de desenvolvimento preferidas pelas potências dominantes e pelos países ricos.” Da mesma forma, sem considerar as dificuldades práticas no que se refere à reforma da Carta da ONU, Ciro Gomes pretendia que o Brasil proponha o “revigoramento e reorganização do sistema das Nações Unidas para refletir as realidades e as ansiedades atuais, inclusive por meio do redimensionamento do Conselho de Segurança.”

3. José Serra: continuidade sem continuísmo
Apoiado numa coalização governista que reunia apenas o PSDB e o PMDB, como grandes partidos (uma vez que o PFL, desgostoso com o tratamento dado a sua pré-candidata, a governadora do Maranhão, resolveu afastar-se do governo), Serra demorou a apresentar seu programa, mas adotou um atitude cautelosa em relação às políticas e práticas do governo FHC. Aparentando endossar a maior parte das posições de política econômica e de política externa da administração que lhe dava apoio político, Serra também deixava em aberto, como Ciro Gomes, as opções do Brasil no processo da Alca.
De forma geral, sua política externa seria, em grande medida, uma política econômica externa, com forte ênfase na promoção das exportações e numa política industrial capaz de substituir importações. Revelando sua intenção de criar um Instituto do Comércio Exterior, o candidato Serra confirmou sua intenção de, via incentivos fiscais, gastos públicos e investimento em infraestrutura, privilegiar a exportação e a substituição de importações. Ao contrário de outros candidatos, Serra não vê a globalização como problema, mas como um dado da realidade, embora enfatize que esse processo deva ser compatível com os interesses e as possibilidades da economia nacional. A trajetória desta última precisa ser inserida num contexto progressivo de redução da vulnerabilidade externa do Brasil, basicamente derivada de sua fragilidade financeira.
Serra, em lugar de avançar posições principistas ou slogans políticos contra a Alca, faz um diagnóstico basicamente correto desse desafio para o Brasil. Como ele declarou em entrevista, a “Alca vai depender mais dos Estados Unidos que do Brasil. Os EUA são amplamente protecionistas pelo mecanismo não-tarifário e o Brasil não tem praticamente esses mecanismos” (revista Época, 1/07/02). Ele ostenta, por outro lado, à diferença dos demais candidatos, uma atitude relativamente cética em relação ao Mercosul, baseado na premissa de que se avançou rápido demais e de que o Brasil precisaria recuperar sua liberdade de fazer política comercial sozinho.
Com efeito, na sua mais explícita crítica ao bloco do Cone Sul, Serra disse que “fortalecer o Mercosul significa revisá-lo de maneira criteriosa. (…) O Mercosul quis fazer em quatro anos o que a União Europeia fez em 40. Acabou não dando certo. (…) Mas deveremos enfatizar a zona de livre-comércio e dar mais liberdade no que se refere à tarifa externa comum. Até porque assim o Brasil vai poder negociar com o resto do mundo tratados de livre-comércio autônomos. Hoje, para fazer isso, é preciso levar o Mercosul junto” (idem).
Em outros termos, pode haver um certo retorno a políticas dirigistas, com tinturas desenvolvimentistas, como convém a um antigo expoente do pensamento cepaliano. Pelo exposto, confirma-se portanto a ideia de que a diplomacia terá forte viés “economicista”, com o uso das políticas comercial, industrial e tributária como forma de fazer avançar os interesses exclusivos do Brasil, o que de certa forma pode significar uma reversão das linhas de política externa seguidas desde a administração Sarney, baseadas numa aliança com a Argentina e na afirmação do caráter estratégico do projeto de integração regional.
=
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 929: 30/07/2002

Notas:
1. Procedi a uma análise detalhada do impacto das crises financeiras sobre o Brasil em um dos capítulos de meu livro Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002, tema anteriormente tratado no artigo “O Brasil e as crises financeiras internacionais, 1929-2001”, Cena Internacional. Brasília: vol. 3, nº 2, dezembro 2001, pp. 89-114. Uma análise de mais longo fôlego histórico sobre as relações entre os partidos políticos e a política externa no sistema político brasileira foi feita em meu livro Relações internacionais e Política externa do Brasil. 2ª ed.: Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

2. Coletei os programas oficiais e os principais documentos de campanha dos principais candidatos em meu site acadêmico, www.pralmeida.org, onde eles podem ser consultados na rubrica “Dossiê Eleições 2002”.

Propostas PRA para um programa de governo utopico-realista (2002)

Como todo mundo, ou melhor, todos os candidatos, apresentavam as propostas mais inexequíveis, na campanha eleitoral das presidenciais de 2002, eu também resolvi apresentar as minhas, nenhuma delas com viabilidade de ser executada por qualquer candidato eleito, mas ainda assim indicativas de minhas prioridades em termos de políticas públicas.
Pouco divulgadas na época – a não ser num site acadêmico sem grande repercussão, e no meu livro de 2002, A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil –, como estou fazendo com vários outros textos dessa época, transcrevo-as aqui, para deleite próprio e possível sugestão aos candidatos em 2018.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Dez coisas que eu faria se tivesse poder
(licença poética imaginária, mas justificada em uma fase pré-eleitoral)

Paulo Roberto de Almeida
(junho de 2002)

As indicações constantes da lista a seguir, explicitadas mais abaixo, devem ser consideradas como propostas modestas para melhorar o índice de desenvolvimento humano no Brasil, bem como a qualidade do relacionamento de seu povo com o mundo externo. Trata-se, obviamente, de mera expressão da vontade pessoal do autor, mas que expressa, com grau razoável de clareza, uma certa concepção do mundo e dos modos possíveis pelos quais o Brasil poderia ser organizado para aperfeiçoar o nível de bem estar de seu povo. Como eu, também obviamente, não tenho poder, a lista pertence mais ao reino da utopia do que a uma plataforma de propostas realizáveis no imediato, mas ela pode servir igualmente de critério de aferição da qualidade da agenda de transformações que políticos em geral propõem como base de sua ação em prol da Nação.
Quem quiser pode elaborar sua própria lista de propostas e confrontá-la, por exemplo, às medidas que estarão sendo inscritas nas plataformas de campanha política dos principais candidatos nas próximas eleições presidenciais, como forma de verificar se o seu “pequeno poço de desejos coletivos” ou se sua “lista de prioridades de reforma social” encontra correspondência nesses documentos programáticos. Trata-se de um exercício que pode ser considerado como de “cobrança preventiva” de resultados.
Vejamos, em primeiro lugar, minha lista sintética de propostas – a serem implementadas não necessariamente na ordem aqui seguida –, para passarmos depois a seu detalhamento e explicitação.

1. Mudaria o hino nacional, colocando bem-estar e desenvolvimento em seu âmago;
2. Acabaria com os chamados “direitos adquiridos”;
3. Tornaria a educação pública de base as cinco primeiras prioridades exclusivas de governo durante uma geração inteira;
4. Transformaria o Estado em agente do bem estar coletivo, retirando-o de atividades produtivas ou de setores dotados de melhor eficiência quando de caráter privado;
5. Mudaria o caráter e a orientação das forças armadas;
6. Aprofundaria a abertura econômica e a inserção internacional do País;
7. Elaboração e execução orçamentária totalmente transparentes, visíveis na Internet;
8. Reforma tributária radical, com imposto único de transações financeiras e poucas taxas seletivas de natureza social;
9. Abertura de creches públicas em todos os perímetros dotados de uma certa densidade potencial de mães;
10. Abertura de bibliotecas públicas infantis em todos os perímetros dotados de uma certa densidade potencial de crianças.

A maior parte dessas propostas fala por si e elas deveriam ser autoexplicativas à sua simples leitura, mas para facilitar a discussão em torno de sua implementação possível (ou hipotética), vejamos agora o que poderia servir de rationale para sua adoção e efetivação, em qualquer governo dotado de um grau razoável de comprometimento com os níveis de bem estar da população, com esta qualificação importante de que elas devem ser vistas como simples meio de atingir o objetivo maior de melhoria no índice de felicidade do povo, não como uma finalidade em si mesmas.


1. Mudaria o hino nacional, colocando bem-estar e desenvolvimento em seu âmago.

Trata-se, obviamente, de objetivo não prioritário e totalmente não relevante para o atingimento das demais finalidades de bem estar superior da população, mas totalmente congruente com o espírito no qual elas são formuladas, válido aliás não apenas para o Brasil, mas para a ampla maioria dos países. Os hinos nacionais expressam, como se sabe, o chamado “espírito nacional”, representando a síntese da história daquele povo, sua forma de se conceber enquanto Nação e uma defesa de seus objetivos prioritários.
Ora, todos sabem que a maior parte desses hinos foi concebida numa fase de lutas políticas e militares em prol da independência e unidade nacionais e traduzem, em sua grande maioria, um espírito militar e de ufanismo “patrioteiro” totalmente ultrapassados em função dos avanços da consciência cidadã e do direito internacional. Eles se referem a glórias nos combates, incitam os instintos guerreiros – “aux armes citoyens!” – e falam de um país ideal que está muito longe do sonho dos simples cidadãos reais da atualidade. Por isso, ganhariam em ter suas letras ·– em alguns casos a própria música – mudados para algo que expressasse o consenso da nacionalidade presente com o progresso social, o bem estar da população, a cooperação internacional, a paz e a justiça universais.


2. Acabaria com os chamados “direitos adquiridos”.

Os chamados “direitos adquiridos” representam, em grande medida, privilégios corporativos transformados em garantia legal de caráter vitalício, sem qualquer correspondência com as reais possibilidades da economia ou sua extensão universal, e nada mais são, portanto, do que um tratamento discriminatório em relação ao conjunto da população, em especial suas frações mais pobres. Eles hoje estão concentrados em geral na previdência do setor público (e assemelhados), que precisa ser reformada para torná-la compatível com o caráter verdadeiramente universal e impessoal da legislação. Uma simples emenda constitucional poderia, e de fato deveria, acabar com os privilégios remanescentes, ainda que preservando os direitos dos atuais beneficiários e seus dependentes imediatos, mas introduzindo a partir daí um regime universal dotado de legitimidade pois que livre de discriminações abusivas que comprometem o equilíbrio das contas públicas em favor de uma minoria de trabalhadores.


3. Tornaria a educação pública de base as cinco primeiras prioridades exclusivas de governo durante uma geração inteira.

Todos sabem que o Brasil, país totalmente industrializado, dotado de economia pujante e diversificada, é um campeão de iniquidades sociais e de injustiças praticadas contra seus próprios cidadãos. Ora, as políticas diretamente redistributivas apresentam efeitos indesejados em matéria de investimentos e alocação de recursos e nem sempre conseguem atingir os objetivos a que se propõem. É também consenso praticamente universal que a educação é a melhor forma possível de elevação dos padrões de vida, em primeiro lugar ocupacionais, da maioria da população, contribuindo assim para uma correção efetiva, ainda que não imediata, das distorções em matéria de repartição da renda. O que se propõe, portanto, é a concentração dos recursos educacionais na educação pública de primeiro e segundo grau (ou num grande ciclo básico ampliado), bem como nas escolas técnicas profissionalizantes, com extensão da presença e da permanência escolar efetiva do aluno carente, com oferta de bolsa-escola onde e quando pertinente (esta deve ser concebida como algo a ser reduzido e, em última instância, eliminado, pois que representando na verdade uma confissão de nossas mazelas sociais, a serem eliminadas via emprego e renda, não mediante assistência social suscetível de manipulação política).
Se possível, ademais, esse esforço – que deve continuar como prioridade absoluta por pelo menos uma geração inteira, para produzir resultados efetivos em termos de redução da pobreza e correção das iniquidades distributivas – deve concentrar igualmente os recursos de promoção de programas setoriais de atividades econômicas (geralmente usados para beneficiar grupos industriais ou agrícolas de interesse restrito) ou aqueles hoje não mobilizados por motivo de isenções fiscais não justificadas socialmente de maneira ampla e não discriminatória. Como regra de princípio, o dinheiro público deve ser utilizado para promoção de atividades de interesse social universal – daí a razão de se concentrar o dispêndio na educação do conjunto da população, não em atividades de cunho econômico que apresentam interesse apenas setorial – pois esta é a melhor forma de elevar o nível geral de qualificação da população, em especial de seus segmentos mais pobres, e seu consequente índice de remuneração monetária.


4. Transformaria o Estado em agente do bem estar coletivo, retirando-o de atividades produtivas ou de setores dotados de melhor eficiência quando de caráter privado.

Consolidar o modelo de privatização de setores que não têm diretamente a ver com a orientação geral do Estado enquanto agente social de atividades de interesse coletivo, como a educação, a saúde, o saneamento básico (água e esgoto), justiça e segurança pública e assistência social, onde e quando pertinentes. Creio que existe já um razoável consenso social em torno das novas funções regulatórias do Estado – e não diretamente produtor de bens ou serviços, ainda que “públicos” – para insistir neste ponto de aceitação praticamente universal hoje em dia. Que não se assista mais ao ridículo de se ver políticos de projeção nacional opondo-se à privatização das telecomunicações ou da exploração do minério de ferro, por considerá-las “atividades de caráter estratégico para o futuro do País”, que isso ofende à inteligência do cidadão menos educado. Estratégico é colocar toda criança na escola, alimentada pelo menos com arroz e feijão, e não pagar regiamente burocratas de alto coturno em funções que estariam melhor sob direção e responsabilidade privadas, concentrando-se os recursos públicos naquelas atividades que são típicas do Estado como as indicadas acima.


5. Mudaria o caráter e a orientação das forças armadas.

Ainda que exista um grau razoável de “consenso” em torno dos argumentos tradicionais – do tipo: todo “grande país” necessita de forças armadas compatíveis com sua “importância no mundo”; como “não se pode prever o futuro”, daí a razão de “se preparar para qualquer eventualidade”, que terminam por justificar a manutenção de uma panóplia completa de instrumentos militares, altamente custosos e de eficácia apenas relativa em função dos riscos reais, eu seria francamente a favor de uma outra linha de argumentação: quais as ameaças reais – não as percebidas – à soberania e independência do País? Elas emergem do nosso imediato entorno geográfico ou mesmo de potências hegemônicas que pretenderiam “subalternizar” o País ou impedir seu desenvolvimento econômico e social?
Como não acredito no tipo de raciocínio que pretende preparar a Nação para qualquer hipótese de conflito ou ameaças imponderáveis – inclusive por considerar os dados da realidade internacional e nosso tipo de relacionamento com o mundo –, preferiria diminuir o grau de comprometimento dos recursos disponíveis com a defesa exclusivamente “nacional” e, em contrapartida, aumentar de maneira significativa o nível de envolvimento do País com as operações de paz das Nações Unidas, tanto as de “peace keeping” como, de modo inédito até aqui, as de “peace making” – compatível com nossa aspiração a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança –, adaptando em consequência nossos requerimentos militares para esse tipo de situação e de “confronto” bélico. Ameaças residuais do tipo guerrilhas vizinhas ou narcotráfico estariam contempladas no novo esquema, mas não a defesa do território pátrio contra invasões hipotéticas ou uma guerra em grande escala (que nunca é aquela imaginada pelos generais). O cenário cooperativo com os vizinhos e também com as grandes potências deve ser pensado na perspectiva da promoção da paz e da cooperação em prol do desenvolvimento econômico e social, não como a partir da hipótese do conflito com algum inimigo externo não percebido como real ou em função da afirmação unilateral do “interesse nacional”.


6. Aprofundaria a abertura econômica e a inserção internacional do País.

Existe igualmente grau razoável de consenso em que a abertura “unilateral” dos anos 90 estimulou o mais intenso e rápido processo de modernização econômica e de competitividade tecnológica já conhecido na história do País, trazendo novos patamares de produtividade, tanto no setor industrial, como nas várias áreas do primário e do hoje imenso setor de serviços. Os argumentos quanto ao “desmantelamento tarifário sem barganha” são inconsistentes com a experiência comercial e de integração do Brasil, em escala mundial e regional, e não levam em conta os efeitos benéficos efetivamente verificados da abertura, tanto para os produtores como para os consumidores.
Nenhum economista razoável, inclusive nas fileiras da oposição oficial, acredita ser possível hoje continuar o processo de modernização da economia brasileira em uma situação de isolamento em relação aos mercados internacionais. Vários partidários da “soberania econômica nacional” acreditam, entretanto, ser possível algum grau razoável de proteção para indústrias ditas – pelo burocrata governamental – “estratégicas”, assim como doses “moderadas” de incentivos e isenções fiscais, de molde a estimular setores considerados competitivos a partir do apoio governamental. Além das distorções do jogo econômico e dos desvios das regras de concorrência provocados por esse tipo de política, trata-se provavelmente do mais seguro caminho para a volta aos padrões antigos de estruturação industrial do País, bem como de má alocação dos recursos públicos, com o efeito adicional de enviar sinais contraditórios aos investidores nacionais e estrangeiros, que ficarão aguardando – ou farão pressão em prol de – medidas especiais de estimulo a novas inversões nos setores pertinentes, cada um podendo esperar pela classificação de “estratégico”.
Em contraste, uma sinalização clara em favor da continuidade da abertura e da inserção internacional dá um recado transparente a todos os agentes econômicos, ou seja, o de que o jogo econômico será pautado pelas regras da concorrência, sem outras regras especiais. Esta é a melhor maneira de assegurar o prosseguimento da modernização e de modo geral e o aumento da produtividade da economia de modo particular.


7. Elaboração e execução orçamentária totalmente transparentes, visíveis na Internet.

A manutenção da estabilidade econômica é ameaçada não tanto pela chamada preservação da “memória inflacionária” por parte dos agentes econômicos como pelas práticas eventuais de permissividade emissionista e/ou prodigalidade nas despesas por parte dos próprios agentes do poder político, legisladores ou executivos, dependendo da conjuntura. Com efeito, o descontrole inflacionário, raiz de tantos e tão perversos males sociais no passado econômico brasileiro – como a inflação renitente, causa principal e fonte primeira da desigualdade extrema na distribuição de renda –, tem sido provocada, quase invariavelmente, pelos péssimos hábitos orçamentários do Estado brasileiro, cujos governos, desde Juscelino pelo menos, tinham criado uma curiosa compulsão por gastos não cobertos pelo orçamento ordinário. Brasília, aliás, foi construída sem sequer estar prevista no orçamento, criando um ciclo ficcional nas contas do Estado que recém começa a ser encerrado pelos últimos anos de ajuste fiscal.
Por isso, o primeiro e principal dever do agente público, como de resto de todo cidadão politicamente consciente, seria o de exigir transparência total na formulação e na execução do orçamento público, em todos os níveis e etapas do processo de elaboração e implementação das contas públicas, das receitas originais às despesas finais. O objetivo, que pode ser alcançado em tempo real via Internet, tem por finalidade assegurar limpidez e correção na elaboração desse importante instrumento das políticas públicas, e não deveria ter qualquer limitação técnica para seu estabelecimento e funcionamento.


8. Reforma tributária radical, com imposto único de transações financeiras e poucas taxas seletivas de natureza social.

Um dos mais poderosos fatores de “deseconomia” na estrutura produtiva do Brasil é o seu sistema tributário, caracterizado pela cumulatividade, pela incidência em cascata e pela regressividade implícita na tributação indireta, ademais de aspectos pouco louváveis, no plano da aplicação e eficácia, como os altos graus de evasão e de elisão fiscais. Diferentes propostas de simplificação e de racionalização não têm logrado obter apoio dos diferentes setores políticos (sobretudo dos governos estaduais) em vista das incertezas associadas à federalização de alguns tributos e eliminação de outros.
Como o consenso se torna muito difícil em torno do sistema “ideal”, talvez o mais factível seria uma mudança radical nas próprias bases conceituais do regime tributário, a partir da eliminação pura e simples de todos os impostos e tributos e sua substituição por uma contribuição única sobre as transações financeiras, a mais eficiente possível de todas as formas impositivas, uma vez que insonegável e de custo praticamente zero no que respeita a máquina arrecadatória (eliminando, portanto, todos os focos possíveis de corrupção e de desvio, nas diversas pontas do sistema). Ela seria complementada, apenas para fins de “dissuasão do vício”, por taxas seletivas sobre tabacos e bebidas, bem como, para fins de “indução ao transporte coletivo”, por um imposto adicional sobre os combustíveis de transporte individual.
Os efeitos negativos – cumulatividade e incidência em cascata, igualmente – da nova CPMF (permanente e única) seriam compensados por uma desgravação parcial baseada numa simulação econométrica a partir de uma espécie de matriz de Leontieff construída para cada tipo de cadeia produtiva em causa, segundo as transações operadas tradicionalmente naquela atividade. A repartição funcional e social das receitas – uma vez que a base territorial do novo sistema seria unicamente a federação – seria decidida pelo Parlamento, com base na arrecadação estadual e municipal e sistemas de compensação para correção de desigualdades estruturais e para programas de investimentos sociais previstos nos planos plurianuais e nas diretrizes orçamentárias votadas pelo corpo legislativo.


9. Abertura de creches públicas em todos os perímetros dotados de uma certa densidade potencial de mães.

Uma das desigualdades mais persistentes do gênero humano é aquela justamente baseada na distinção de gêneros, característica estrutural que insiste em discriminar as mulheres a despeito de todos os progressos sociais e culturais realizados nas últimas décadas – ou séculos – de conquistas femininas e feministas. Quotas e reservas fazem pouco para diminuir a desigualdade de chances nos mercados de trabalho e no mercado político, uma vez que a mulher tem de carregar o peso e as responsabilidades da gestação natural e da criação social dos descendentes. Uma vez que os homens parecem pouco dispostos a dividir os encargos domésticos e os inerentes à paternidade conjunta, uma forma de liberar a mulher das restrições impostas por uma longa maternidade seria a multiplicação de creches de boa qualidade onde necessário, como forma de prover um ambiente sadio para as crianças de mães trabalhadoras, até que a pré-escola possa assumir o encargo no seguimento dos primeiros serviços infantis de provimento público.


10. Abertura de bibliotecas públicas infantis em todos os perímetros dotados de uma certa densidade potencial de crianças.

Trata-se de outra medida corretiva das desigualdades de chance associadas a um nascimento em lares menos afortunados. Sendo eu mesmo filho de família modesta e tendo complementado minha educação em escolas do sistema público pela frequentação assídua e contínua de uma biblioteca infantil de bairro, sei avaliar o quanto esse tipo de oportunidade pode fazer a diferença entre o sucesso e o fracasso no acesso ao ensino superior e depois, na vida profissional adulta. Associada às escolas públicas de boa qualidade, a disponibilidade de bibliotecas, junto com sistemas on-line em ambos os ambientes, pode efetivamente reduzir um pouco o imenso gap de oportunidades que separa os filhos das classes A e B dos demais estratos sociais menos privilegiados. É uma proposta sem dúvida modesta, mas compatível com a modéstia de recursos disponíveis no Brasil para promoção social.
Para terminar com os livros, e aproveitando para retomar minha licença poética neste planejamento utópico do futuro brasileiro, recordemos a recomendação de um verdadeiro profeta da redenção do povo, Castro Alves, o mais libertário dos poetas brasileiros: “Ó bendito quem semeia, livros, livros à mão cheia, e manda o povo pensar. Por que o livro caindo n’alma, é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar!”

Resumo: Ensaio politico no estilo das propostas utópico-realistas, sob a forma de lista de mudanças a serem eventualmente implementadas por um governo com orientação social-reformista no Brasil. Coloca-se na perspectiva de declaração de intenções em período pré-eleitoral. Palavras-chave: Brasil. Mudanças politicas e sociais. Propostas para melhoria do Índice de Desenvolvimento Humano. Política econômica.
Paulo Roberto de Almeida
Charlottetown, Ilha do Príncipe Edward, Províncias Atlânticas do Canadá;
1º e 2 de junho de 2002; Relação de Trabalhos nº 906