Bric:
reflexões a partir do Brasil
Paulo
Roberto de Almeida
Publicado,
sob o título de “To Be or Not the Bric”,
Inteligência (Rio de Janeiro: Ano: XI -
4º trimestre, 12/2008, p. 22-46).
Sumário:
Introdução: a caminho da briclândia
1. Radiografia dos Bric
2. Ficha corrida dos personagens
3. De onde vieram, para onde vão?
4. New kids in the block
5. Políticas domésticas
6. Políticas econômicas externas
7. Impacto dos Bric na economia mundial
8. Impacto da economia mundial sobre os Bric
9. Conseqüências geoestratégicas
10. O Brasil e os Bric
Alguma conclusão preventiva?
Resumo: Radiografia do
conceito Bric, questionando a realidade subjacente a um exercício intelectual
que levou em conta realidades puramente econômicas, sem maiores preocupações
com as implicações político-diplomáticas do novo grupo. São analisadas suas
políticas e posicionamentos diplomáticos, constatando-se uma grande diversidade
de posições. Enfatiza a necessidade de uma agenda positiva dos Bric, não
puramente defensiva ou confrontacionista com o atual G7.
Palavras-chave: Bric. Brasil.
Rússia. Índia. China. Relações
econômicas internacionais.
Introdução: a caminho da briclândia
Economistas costumam ser pessoas estudiosas,
essencialmente focadas na estrita racionalidade dos dados da vida material,
aparentemente preocupadas apenas com os fundamentos empíricos da economia prática,
ou, se pesquisadores, com suas elegantes equações de equilíbrio de mercados,
suas linhas de regressão e suas belas curvas de tendência. Eles pareceriam
insensíveis aos problemas sociais ou às implicações humanas de eventuais
prescrições de políticas econômicas. Segundo certo senso comum, eles seriam,
sobretudo, indiferentes às relações de causa a efeito de determinadas propostas
feitas a partir de uma análise fria das realidades correntes e suas
conseqüências práticas no plano político ou diplomático, ignorando, por outro
lado, elementos de psicologia social, tão importantes em estudos de outras
vertentes das ciências sociais aplicadas e das humanidades em geral.
Seria esta nova condenação da dismal science aplicável, de alguma forma, ao exercício intelectual
de economistas corporativos, que aventaram a idéia de um grupo – quiçá
convertido em uma nova entidade internacional – identificado com quatro
economias emergentes, os Bric, apresentados repentinamente como as novas
estrelas da economia mundial? Constituiria essa suposta identidade grupal,
construída a partir de dados econômicos elementares, a base institucional para
uma atuação política e diplomática coordenada no plano mundial? Seria essa
eventual atuação melhor e mais benéfica do que aquela conduzida atualmente
pelos países, individualmente, no seio das organizações internacionais
existentes, ou coletivamente por meio dos grupos mais conhecidos de coordenação
de políticas econômicas, como o G7 ou a OCDE?
O presente ensaio pretende examinar dez questões
relativas a esta nova conformação da geografia econômica mundial e oferecer, em
conclusão, uma nota de caução quanto às implicações político-estratégicas desse
exercício intelectual que vem encontrando suporte nas ações de diplomacia
prática de vários dos Bric. Ele foi escrito com a convicção de que – muito além
dos sonhos eventuais dos líderes dos Bric quanto ao poder relativo de seus
respectivos países e de suas possíveis intenções de mudar a geografia econômica
do mundo e de redesenhar a geopolítica mundial, pela alteração nas relações de
poder atualmente existentes – o comprometimento básico de estadistas
responsáveis tem de estar com a prosperidade e o bem-estar de seus povos, com a
preservação do meio ambiente e com a paz e a segurança internacionais, num
quadro de plena vigência (nacional) de instituições democráticas e de total
respeito aos direitos humanos.
1. Radiografia dos Bric
O conceito foi cunhado originalmente pelo economista Jim
O’Neill, da Goldman Sachs, e figurava num estudo pioneiro intitulado “Building Better Global Economic Brics” (Global Economics
Paper nr. 66; November 30, 2001; link: http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/brics-dream.html). A proposta de um novo “grupo econômico”,
integrado pelas quatro maiores economias emergentes, Brasil, Rússia, Índia e
China (que provavelmente deveriam figurar na ordem inversa de importância
econômica: Cirb), foi, em seguida, sugerida num estudo de 2003 da mesma Goldman
Sachs, sobre a evolução da economia mundial até 2050, assinado pelos
economistas Dominic Wilson e Roopa Purushothaman: “Dreaming with Brics: the
path to 2050” (Global Economics Paper nr. 99; October 1st, 2003; link: http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/book/99-dreaming.pdf). Esses papers
foram consolidados em dois livros editados pela própria Goldman Sachs, Growth and
Development: The Path to 2050, publicado em
janeiro de 2004, e The World and the
BRICs Dream, publicado em fevereiro
de 2006. Esses estudos foram complementados, em 2007,
por nova compilação englobando outras onze economias emergentes e países de
grande população (N11), chamado “Brics and Beyond”, que amplia a perspectiva do
primeiro trabalho, com novas projeções para 2050 (ver: http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/BRICs-and-Beyond.html;
paper: http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/book/BRIC-Full.pdf).
A rigor, o “grupo” Bric não existia oficialmente, ou
sequer informalmente, mas dado o succès
d’estime logrado pelo conceito e o excelente acolhimento obtido pela idéia
mesma de um novo conjunto de futuras economias preeminentes, o que se teve, a
partir de então, foi a adoção paradigmática dessa noção, praticamente virtual,
como correspondendo a uma nova realidade na economia mundial, digna, portanto,
de ser contemplada em estudos e formulações sobre as novas relações econômicas
reais. O que é importante sublinhar, desde já, é que a origem do nome buscava
apresentar a idéia de novos fundamentos – bricks,
ou tijolos – da futura economia mundial em meados do século XXI, sem que no
entanto esses fundamentos fossem examinados em sua interação recíproca, que de
fato não existia, sequer virtualmente.
Em outros termos, um exploratory
paper, que poderia ser considerado mera especulação de um economista
inventivo, veio a impulsionar uma realidade política que ainda precisa
confirmar suas potencialidades, o que prova, mais uma vez, o poder das idéias
no mundo real.
2. Ficha corrida dos personagens
A “sopa de letras” proposta nos trabalhos dos
economistas do Goldman Sachs não pode nos fazer esquecer uma simples realidade:
estamos falando de quatro países absolutamente distintos entre si, de quatro
economias contrastantes e de quatro nações que possuem histórias e percursos
civilizatórios fundamentalmente diferentes, nos planos social, militar,
econômico e geopolítico, quando não nas esferas cultural e religiosa. No plano
demográfico, estamos falando dos dois países mais populosos do planeta e de dois
outros de populações “médias”, ainda assim consideráveis, do ponto de vista de
seus mercados internos, como se pode constatar na tabela 1. A China representa,
sozinha, mais de um quinto da população mundial, seguida de perto pela Índia (17,5%) e,
bem mais longe, pelo Brasil (2,9%) e Rússia (2,2%).
1. População (milhões de pessoas) e território (milhões km2)
|
Bric
|
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
km2
|
Brasil
|
171.2
|
173.8
|
176.3
|
178.9
|
181.5
|
184.1
|
186.7
|
189.3
|
8,5
|
China
|
1,267.4
|
1,276.2
|
1,284.5
|
1,292.2
|
1,299.8
|
1,307.5
|
1,314.4
|
1,321.0
|
9,3
|
Índia
|
1,007.0
|
1,025.5
|
1,041.7
|
1,058.0
|
1,074.7
|
1,091.7
|
1,108.0
|
1,123.9
|
3,2
|
Rússia
|
146.9
|
146.3
|
145.2
|
145.0
|
144.2
|
143.5
|
142.8
|
142.1
|
17,0
|
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April
2008; CIA Fact Book
|
Mesmo dispondo de grandes territórios – dos 17 milhões
de km2 da Rússia, aos 3,2 da Índia, passando pelos 9,3 da
China –, os quatro Bric diferem entre si, no que se refere a recursos naturais,
graus de industrialização e capacidade de impacto na economia mundial. A tabela
2 apresenta, em valores correntes e em paridade de poder de compra, a evolução
absoluta do produto bruto dos Bric, desde 2000.
2. (a) PIB, preços correntes (US$ bilhões)
|
Bric
|
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
|
Brasil
|
644.2
|
554.4
|
505.7
|
552.2
|
663.5
|
881.7
|
1,072.3
|
1,313.5
|
|
China
|
1,198.4
|
1,324.8
|
1,453.8
|
1,640.9
|
1,931.6
|
2,243.6
|
2,644.6
|
3,250.8
|
|
Índia
|
461.9
|
473.0
|
494.9
|
573.1
|
669.4
|
783.1
|
877.2
|
1,098.9
|
|
Rússia
|
259.7
|
306.5
|
345.4
|
431.4
|
591.8
|
764.2
|
988.6
|
1,289.5
|
|
(b) PIB, estimado em Paridade de Poder de Compra (PPP) (US$ bilhões)
|
Brasil
|
1,230.9
|
1,276.9
|
1,333.8
|
1,377.8
|
1,494.6
|
1,584.6
|
1,695.9
|
1,835.6
|
China
|
3,006.5
|
3,334.1
|
3,701.0
|
4,157.8
|
4,697.9
|
5,333.2
|
6,112.2
|
6,991.0
|
Índia
|
1,519.5
|
1,616.4
|
1,719.5
|
1,876.5
|
2,096.1
|
2,354.4
|
2,665.4
|
2,988.8
|
Rússia
|
1,120.5
|
1,205.9
|
1,284.6
|
1,407.7
|
1,548.7
|
1,697.8
|
1,881.1
|
2,087.8
|
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April
2008
|
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É importante registrar tais características, pois que a
força de um conceito ingenuamente unificador pode fazer com que similitudes
indevidas – ilegítimas, talvez, no plano conceitual – sejam traçadas quanto ao
papel dos quatro países na economia mundial; daí redundando possíveis
conclusões equivocadas quanto ao que esperar de sua presença – certamente
marcante e crescentemente determinante – nos cenários futuros que se possam
traçar para o mundo em meados do presente século.
Comecemos pela letra final: China. Trata-se, seguramente
– junto com o povo judeu, que passou, entretanto, por processos de fragmentação
territorial e social como nenhum outro povo conhecido no mundo, e que, no
entanto, conseguiu sobreviver culturalmente de modo relativamente homogêneo –,
da mais antiga civilização contínua registrada na história da humanidade, não
necessariamente dotada de perfeita unidade política, mas sim de uma notável
continuidade cultural. Sua história, moderna e contemporânea é, no entanto,
dramática, senão trágica, no sentido da decadência econômica, da instabilidade
política, da humilhação militar e de retrocessos sociais expressos em
degradação profunda do tecido social, quando as loucuras do maoísmo levaram o
país a uma verdadeira hecatombe humana, com uma “lacuna” demográfica que pode
ser estimada em algumas dezenas de milhões de pessoas sacrificadas. Em claro: a
população e a economia diminuíram, em conseqüência dos anos de socialismo
totalitário. Marcas profundas desse passado recente são ainda visíveis na
sociedade chinesa, que emerge de um longo intervalo – provavelmente mais de
três séculos – de declínio e de deterioração da qualidade de vida no imenso
país asiático.
A Índia é, provavelmente, a segunda civilização
“contínua” mais antiga do mundo, valendo as aspas pela imensa diversidade de
culturas e etnias existentes no subcontinente indiano. Não há, propriamente, e
nunca houve unidade cultural na Índia e sua história “política” só parece fazer
sentido com base na “unidade” temporária introduzida por invasões estrangeiras,
em especial o Império mongol, seguido pela dominação de uma companhia de
comércio inglesa, depois convertida em supremacia britânica sobre povos muito
distintos entre si, lingüística e religiosamente falando. A Índia moderna é uma
“invenção” do Império britânico, tendo sido, aliás, amputada parcialmente (com
o Paquistão e depois o Bangladesh, que dele emergiu) logo em seguida à
proclamação de sua independência política (sublinhe-se o “política”, posto que
economicamente ela já conformava uma jurisdição monetária própria e passou a
ter seu próprio território aduaneiro, reconhecido precocemente pelo GATT-1947).
A Rússia é também antiga; não tanto quanto esses dois
primeiros países, mas dotada de tradições culturais que a identificam como
unidade cultural e lingüística desde a alta Idade Média; deslocamentos de povos
bárbaros deram origem a uma nação eslava em processo de homogeneização cultural
e social, a caminho de uma formação nacional, que só veio a existir, de fato,
quando Pedro, o Grande, submeteu as autoridades feudais e consolidou seu poder
sobre um território em grande parte indefinido, sob a forma de um Estado
incipiente, baseado no conceito de absolutismo imperial. Esse Estado se estendeu
imperialmente ao longo dos séculos XVIII a XX, até atingir o máximo de sua
extensão e poderio já sob o domínio dos “czares” soviéticos. O “império
soviético” representou, de certo modo, um paradoxo na trajetória da “grande”
Rússia, posto que lhe deu a segurança nacional a que sempre aspirou aquele
Estado semi-europeu e semi-asiático, ao mesmo tempo em que criou um sistema
econômico profundamente irracional no plano de seu funcionamento, o que
determinou, inclusive, sua crise estrutural e derrocada estrondosa, basicamente
por auto-implosão, não por ter sido minada por um poder exterior ou guerra de
usura.
O Brasil, finalmente, é um caso “clássico” de criação
colonial – característica que não partilha com nenhum outro Bric – e de lenta
constituição de uma economia diversificada, no quadro de uma construção estatal
mais precoce e bem sucedida. De fato, o Brasil teve um Estado unificado – e
centralizador – antes de ter uma economia integrada nacionalmente ou
positivamente integrada à economia mundial. Esse Estado certamente não
construiu a nação de modo exclusivo, mas representou um poderoso elemento
indutor na construção dessa economia industrializada e relativamente moderna
para os padrões usuais dos países “periféricos” ou em desenvolvimento. A despeito
de sua qualificação inicial enquanto constituição política – Império – e de sua
expansão territorial ao longo do período colonial e imediatamente posterior à
sua independência, o Brasil nunca foi de fato imperial ou dominador, como
talvez as duas grandes potências militares dos Bric; assim como ele não exibe a
mesma “pujança” demográfica e os problemas geopolíticos da Índia. Trata-se de
um país “contente” com sua geografia e bastante tranqüilo quanto ao
relacionamento regional, o que não é o caso dos demais Bric, envolvidos em
disputas de diversos tipos, nem sempre solucionáveis de modo fácil ou rápido.
Esse contexto de “paz regional” – pelo menos desde o final da Guerra do
Paraguai – e de ausência de ameaças externas define o Brasil em sua
singularidade geopolítica no quadro dos Bric e deve ser considerado com um
“ativo” positivo no seu processo de inserção regional e internacional.
Estas digressões sobre cada um dos Bric, tomados
individualmente, permite visualizar algumas das características que podem marcar
sua forma de relacionamento com o entorno geográfico e na comunidade
internacional. A percepção que se retira deste brevíssimo racconto storico é a de que seus problemas e ambições nacionais são
profundamente distintos, pelo menos observados retrospectivamente. Pode até ser
que, no futuro, seus projetos e interesses nacionais possam ser objeto de
alguma ação convergente ou ação coordenada; mas esta hipótese ainda precisa ser
construída e testada com base em dados da realidade, não apenas a partir da vontade
política ou da retórica diplomática de seus dirigentes ocasionais. Esta
questão, central para os propósitos deste ensaio, será vista mais adiante.
3. De onde vieram, para onde vão?
As trajetórias respectivas dos Bric na economia mundial,
nos últimos dois séculos, e particularmente nas últimas duas décadas, foram
bastante desiguais, para não dizer divergentes e contraditórias, seja entre si,
seja na sua relação com os centros mais dinâmicos dessa economia global. Suas
relações recíprocas ao longo do último meio século foram, aliás, relativamente
marginais, com a exceção, talvez, da URSS e da China, numa primeira fase da
construção do socialismo neste último país.
Quais foram e quais são os centros dinâmicos e como eles
interagiram entre si na construção de uma economia globalizada e cada vez mais
abrangente na integração de mercados, na localização de fatores produtivos e na
disseminação de tecnologias e circulação de capitais? Para resumir, eles foram,
num primeiro momento, a Inglaterra, país pioneiro na revolução industrial e na
integração comercial do mundo, e, por outro lado, o mercado financeiro londrino
como grande investidor direto e “emprestador de última instância” de países
carentes de capitais. Num segundo momento, o centro se deslocou para os EUA e
Nova York, respectivamente, com grande
desenvolvimento tecnológico e científico e disseminação do “American way of
life” pelos veículos de comunicação e através da indústria do cinema.
A esse respeito, o relacionamento ou a interação, dos
Bric, individualmente tomados, com a economia mundial, seguiu uma trajetória
errática, nos últimos dois séculos, com alguma convergência nas últimas duas
décadas, ou seja, sua maior integração à globalização capitalista, processo
complementado, agora, por uma maior interação recíproca, justamente motivado
pela “invenção” do conceito de Bric por um banco de investimentos privado.
Deve-se dizer, antes de tudo, que os Bric, tomados individualmente e
conjuntamente, retrocederam em sua participação nos grandes fluxos mundiais de
capitais, comércio, investimentos e tecnologia nos dois séculos que levam da
primeira revolução industrial à oitava década do século XX, retomando, a partir
daí, uma interação mais intensa com a economia global. Esse retrocesso, no
passado, ocorreu tanto por decisões próprias – revoluções socialistas na Rússia
e na China, adoção do planejamento estatal na Índia –, como de maneira
totalmente involuntária, em virtude de desastres externos, seguidos de
introversão estatizante, como no caso brasileiro (basicamente, a crise de 1929
e a depressão dos anos 1930 foram fatores indiretos de estímulo à definição de
um projeto nacional de industrialização e de desenvolvimento, aliás
exageradamente introvertido).
No período de construção de uma nova ordem econômica
internacional, no segundo pós-guerra, tanto a URSS como a China, se
auto-excluíram das instituições típicas do sistema mundial capitalista – FMI,
BIRD, GATT – enquanto o Brasil e a Índia aderiam de modo muito relutante, e
marginal, a essas entidades “capitalistas”. Na verdade, o Brasil foi muito
ativo nesses órgãos da interdependência capitalista, ainda que ele o tenha sido
mais um “cliente” do que um responsável por processos decisórios que, até a
pouco, passaram ao largo de sua capacidade de atuação. Em todo caso, mais do
que qualquer outro Bric, ele preservou estruturas de mercado e um estilo
capitalista de gestão econômica em razoável sintonia com o padrão formal de
organização econômica do capitalismo avançado. O único outro Bric “capitalista”
do período da Guerra Fria, a Índia, foi muito mais estatizante, burocratizado e
atrasado, no plano gerencial, do que o Brasil, devendo o país do Sul asiático
seu forte impulso modernizador do período recente bem mais à sua diáspora
econômica nos EUA do que às transformações internas à própria Índia.
A China foi um total desastre econômico, não só pela sua
contínua decadência na época da guerra civil e da invasão japonesa, mas também
pelos catastróficos (e até criminosos) planos econômicos da era do maoísmo triunfante
(Grande Salto Para a Frente e Revolução Cultural). Basta com dizer que,
possuindo um produto nacional bruto equivalente, grosso modo, a quase um terço
do PIB mundial até o final do século XVIII, ela regrediu a menos de 5% do PIB
global nos anos 1960, recuperando parte razoável do que tinha perdido
historicamente só nos 2000. Quanto à Rússia, ademais de notavelmente diminuída
depois da implosão da URSS, suas estatísticas da era socialista são pouco
confiáveis para o estabelecimento de uma série relevante de seu desempenho ao
longo do século XX, quando sofreu, além das destruições das duas guerras
mundiais, desastres incomensuráveis em termos materiais e, sobretudo, humanos.
No período “clássico” do stalinismo triunfante, ao final da Segunda Guerra Mundial,
a contribuição do sistema econômico do Gulag (geralmente concentrado nas áreas
florestal, mineral e obras de infra-estrutura) pode ter representado quase 5%
do PIB soviético. A própria CIA superestimou a produção industrial e a
capacidade tecnológica do que era, finalmente, uma imensa “aldeia Potemkim”,
vivendo uma mentira institucionalizada ao longo de sete décadas.
A “reincorporação” dos Bric ao mainstream da economia mundial, a partir da oitava década do século
XX, foi também muito diferenciada, devido às características bastante
divergentes de seus modos de inserção no sistema global. O Brasil, a rigor,
nunca dele se afastou, mas exibia, até meados dos anos 1980, quase 95% de
nacionalização na oferta interna, por força de um protecionismo renitente. A
Índia, provavelmente, levou mais longe o capitalismo burocrático de Estado, o
que, junto com um planejamento extensivo, foi responsável por décadas de
crescimento reduzido e de baixa modernização tecnológica. Foi a China, na
verdade, quem deu a partida para a “grande transformação” na divisão mundial do
trabalho, ao iniciar, com as reformas da era Deng Xiao-Ping, uma rápida
reconfiguração na geografia mundial dos investimentos diretos. A Rússia, por
sua vez, operou uma lamentável reconversão a um capitalismo mafioso nos anos
1990, passando a contar mais como fornecedora de matérias-primas energéticas do
que como participante ativa da economia mundial. O Brasil passou a ser um
grande provedor de commodities
alimentícias e minerais; a Índia consolidou sua presença nas tecnologias de
informação e de comunicação e nos serviços vinculados; ao passo que a China
industrial assumiu a liderança virtual nos produtos de consumo de massa de todo
o tipo, com dominância dos bens duráveis eletrônicos. Todos eles se beneficiaram
de suas vantagens ricardianas, com ênfase em mão-de-obra no caso chinês,
tecnologia no modelo indiano e recursos naturais para o Brasil e a Rússia.
E para onde caminham os Bric nas próximas décadas?
Certamente não em direção ao mesmo destino, ainda que o traço comum de suas
respectivas trajetórias seja uma crescente adesão, incontornável, à economia
mundial. O estudo de 2003 da Goldman Sachs aposta que esse G4 ultrapassará,
conjuntamente, o PIB do atual G7 em 2035, sendo que a China ultrapassará a
todos, individualmente, até 2040 (ela já o fez para três ou quatro). Os
componentes dessa ultrapassagem econômica são, contudo, muito diversos, com uma
provável “explosão” tecnológica da China, uma continuidade “extrativa” no caso
da Rússia, uma enorme competitividade agrícola para o Brasil e de serviços de
internet e de tecnologia da informação para a Índia, ou seja, nada de muito
diferente do que já está ocorrendo atualmente.
A verdade é que a economia mundial apresenta estruturas
muito lentas em seu processo de constituição e um pouco menos lentas em sua
transformação progressiva. Muitos dos argumentos sobre o declínio inevitável
dos atuais países avançados podem carecer de fundamentos reais, uma vez que a
natureza dos ganhos de produtividade, na economia moderna, depende bem menos de
domínio físico sobre fatores brutos de produção e muito mais sobre elementos
intangíveis, ou imateriais, da nova sociedade do conhecimento, e estes são
inesgotáveis e sempre surpreendentes. Ou seja, ainda que a “massa atômica” dos
Bric possa superar o peso do atual G6 ou G7, todos eles permanecerão, em termos
per capita, bem abaixo dos indicadores atuais de bem estar e de produtividade
dos países mais avançados. A própria noção de “blocos” parece ser totalmente
ilusória, posto que os vínculos entre todas essas economias – e entre eles e
novos emergentes – serão substantivamente transformados nas próximas décadas.
4. New kids in the block
Transformações econômicas são sempre o resultado de uma
combinação de fatores, alguns estruturais – ao estilo das ondas “geológicas”
braudelianas –, outros de natureza contingente, ou seja, derivados de decisões
políticas tomadas em alguns momentos especiais por líderes visionários. A
Rússia e a China afundaram no “caos destruidor” de suas economias socialistas
pela força carismática de líderes políticos bastante competentes no plano
orgânico-partidário e absolutamente ineptos no tocante à capacidade de compreender
o modo de funcionamento de uma moderna economia de mercado. No primeiro caso, a
transição do socialismo ao capitalismo continuou sendo errática e especialmente
inepta; mas no caso da China ocorreu uma combinação exitosa de autoritarismo
político e de firme condução para um regime de mercado que a converteu em
exemplo único na história econômica mundial de crescimento inédito (e
sustentado) com transformações estruturais de enorme impacto social.
No caso do Brasil e da Índia, as transformações foram
menos o resultado de processos dirigidos de “retorno aos mercados”, ou de
“revoluções pelo alto”, e bem mais a ação das “forças profundas” de regimes
semi-capitalistas finalmente liberados em suas energias criadoras pela abertura
econômica e a liberalização comercial. O problema básico do Brasil era o de
romper com a retro-alimentação inflacionária e o estrangulamento cambial,
processo conduzido a termo mesmo em meio a turbulências financeiras que
ameaçaram o êxito do ajuste entre a segunda metade dos anos 1990 e o início dos
2000. No caso da Índia, se tratava de romper com o dinossauro estatal da
economia planejada e do protecionismo exacerbado, o que foi feito de modo
tardio, mas facilitado pela existência de uma “diáspora” econômica de alta
qualidade nas principais economias desenvolvidas, diáspora que também existe,
embora com outras características, na experiência histórica chinesa.
A rigor, a China
parece reproduzir, com maior velocidade adaptativa e uma imensa ambição de
recuperar rapidamente as décadas perdidas de socialismo doentio, a experiência
japonesa da Revolução Meiji – mandar seus filhos aprenderem com os líderes
científicos e tecnológicos do capitalismo avançado – e, sobretudo, o milagre
japonês do pós-Segunda Guerra, com muita cópia e adaptação do know-how
ocidental e um cuidado extremo em logo reproduzir os mesmos produtos com novos
desenhos e marcas próprias. De todos os Bric, é a única economia emergente que
está destinada a converter-se, efetivamente, em economia dominante, ademais de potência
militar de primeira classe, muito embora ela ainda esteja muito longe de
igualar, para os seus cidadãos – muitos deles ainda súditos de um regime
autoritário –, os níveis de bem-estar individual das populações dos países do
capitalismo avançado.
A Rússia, amputada de territórios, recursos naturais e
humanos em dimensões relativamente importantes, não parece próxima de recuperar
a relevância estratégica e política alcançada no ponto máximo de sua “expansão”
geopolítica, que correspondeu ao “brejnevismo senil” do final dos anos 1970.
Ainda que detentora de formidável arsenal nuclear e de certa capacidade de
projeção militar, ela não terá condições de desafiar efetivamente os dois
gigantes da economia mundial de meados do presente século. Ela depende de
recursos finitos e mesmo sua demografia é declinante (ver tabela 1), como já
tinha chamado a atenção, desde aquela época, um observador atento como Emmanuel
Todd (La Chute Finale, 1976).
No que se refere à Índia, ela pode até dominar com ainda
maior competência os serviços eletrônicos que já oferece de maneira bastante
competitiva; mas terá de absorver na moderna economia de mercado centenas de
milhões de camponeses miseráveis que ainda vegetam numa economia ancestral,
totalmente incompatível com o que se entende como modernidade capitalista. O
Brasil, finalmente, tem pela frente, durante uma geração aproximadamente, a
chance de beneficiar-se do chamado “bônus demográfico” – ou seja, a melhor
relação possível entre população ativa e dependentes econômicos –, oportunidade
que será provavelmente perdida, em grande medida devido à baixa qualificação
técnica e educacional da população, o que reduz bastante os ganhos de
produtividade que seriam de se esperar, se fossem outras as condições de
capacitação de sua mão-de-obra.
Essas deficiências relativas não impedirão quase todos
os Bric de se tornarem relevantes no quadro da economia mundial de meados do
século. Mas eles o serão pelo seu enorme peso demográfico e enquanto mercados
de consumo em expansão, com exceção da
Rússia, obviamente; não é provável que eles alcancem o nível de excelência
tecnológica já logrado por quase todos os países do bloco avançado do
capitalismo mundial. A exceção, mais uma vez, deverá ser a China, que
reproduzirá, provavelmente, o desempenho tecnológico de Taiwan e da Coréia do
Sul em escala ainda mais importante e com uma rapidez surpreendente para os
padrões conhecidos.
Cabe registrar, preventivamente, que os Bric lograrão
tais desempenhos, sem qualquer uniformidade de ritmos, sem qualquer
similaridade entre as características essenciais de seus processos respectivos
de modernização, sem qualquer coordenação conjunta e de maneira totalmente
independente uns dos outros. Ou seja, eles devem confirmar sua ascensão
relativa no futuro cenário econômico mundial sem apresentar os mesmos traços
imanentes em suas respectivas economias de mercado – algumas mais capitalistas
e capitalizadas do que outras – e sem qualquer comparação possível entre suas
políticas econômicas nacionais.
5. Políticas domésticas
Essas políticas não seguem e não seguirão um padrão
uniforme por uma razão muito simples. O mundo ainda é, e continuará sendo no
futuro previsível, um “teatro de variedades” de experiências econômicas
divergentes e até contraditórias entre si, em que pese a gradual convergência
de políticas macroeconômicas básicas (fiscal, monetária e cambial), mas com
imensas variações de detalhe entre elas. Registre-se que estamos falando aqui
de políticas macroeconômicas e setoriais, não de grandes tendências
estruturais, que se movem mais lentamente, mas que são, igualmente,
determinantes da posição ocupada pelas economias nacionais no sistema mundial.
Políticas domésticas podem ser aferidas por uma
variedade de instrumentos de análise econômica. Mas em última instância são
julgadas pela sua capacidade de “entregar” (ou não) aquilo que se espera de
políticas responsáveis: crescimento (o que significa maior renda nacional), num
ambiente de relativa estabilidade (ou seja, com inflação baixa e manutenção do
poder de compra da moeda) e equilíbrios interno e externo (contas fiscais em
ordem, com pequeno ou nenhum déficit orçamentário, dívida pública administrável
e tranqüilidade no balanço de pagamentos). Todos esses indicadores são
aferíveis objetivamente, através de séries estatísticas (preferivelmente
uniformes, segundo padrões internacionais). Mas eles não querem necessariamente
dizer que uma economia em crescimento traga desenvolvimento social, o que
implica transformações estruturais (ganhos de produtividade), que se traduzem
em bem estar crescente para a população (distribuição relativamente equânime
daqueles ganhos) e preservação de um ambiente sustentável para as futuras
gerações.
Atendo-se, contudo, ao essencial das políticas
domésticas dos Bric, podemos constatar que, a despeito da lógica implícita ao
seu agrupamento – grandes economias de crescimento dinâmico, com grande poder
de impacto na futura economia mundial –, eles se diferenciam quanto ao
desempenho econômico, ainda que suas taxas de crescimento econômico possam ter
apresentado, com a exceção conhecida do Brasil, comportamento vigoroso nos
últimos anos, como se pode constatar na tabela seguinte.
3. Taxas de crescimento anual do PIB, 2000-2007
|
Países
|
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
Brasil
|
4,3
|
1,3
|
2,7
|
1,1
|
5,7
|
3,2
|
3,8
|
5,4
|
China
|
8,4
|
8,3
|
9,1
|
10
|
10,1
|
10,4
|
11,1
|
11,4
|
Índia
|
5,4
|
3,9
|
4,6
|
6,9
|
7,9
|
9,1
|
9,7
|
9,2
|
Rússia
|
10,0
|
5,1
|
4,7
|
7,3
|
7,2
|
6,4
|
7,4
|
8,1
|
Emergentes
|
5,9
|
3,8
|
4,7
|
6,2
|
7,5
|
7,1
|
7,8
|
7,9
|
G7
|
3,6
|
1,0
|
1,2
|
1,8
|
3,0
|
2,3
|
2,7
|
2,2
|
Mundo
|
4,7
|
2,2
|
2,8
|
3,6
|
4,9
|
4,4
|
5,0
|
4,9
|
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April
2008
|
A China tem crescido duas vezes mais do que a média
mundial e um terço a mais do que os emergentes, ao passo que o Brasil não
conseguiu acompanhar aquela média e se situa sistematicamente aquém dos
emergentes. Com base em suas taxas de crescimento, a renda per capita nos Bric
tem crescido de forma consistente nos últimos anos; com menor vigor no Brasil,
cuja progressão nominal pode ser explicada pela valorização de sua moeda
nacional, em contraste com a modéstia de resultados quando os valores são
considerados em paridade de poder de compra, como se pode constatar na tabela
4. A Rússia operou uma reversão significativa, comparativamente ao terrível
declínio que tinha experimentado na última década do século anterior.
4. (a) PIB per capita, preços correntes (US$ mil)
|
Bric
|
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
Brasil
|
3,761
|
3,189
|
2,866
|
3,085
|
3,654
|
4,787
|
5,741
|
6,937
|
China
|
945
|
1,038
|
1,131
|
1,269
|
1,486
|
1,715
|
2,011
|
2,460
|
Índia
|
458
|
461
|
475
|
541
|
622
|
717
|
791
|
977
|
Rússia
|
1,767
|
2,095
|
2,379
|
2,975
|
4,104
|
5,325
|
6,923
|
9,075
|
(b) PIB per capita, em Paridade de Poder de Compra
(PPP) (US$ mil)
|
Brasil
|
7,186
|
7,346
|
7,561
|
7,697
|
8,231
|
8,603
|
9,080
|
9,695
|
China
|
2,372
|
2,612
|
2,881
|
3,217
|
3,614
|
4,078
|
4,649
|
5,292
|
Índia
|
1,508
|
1,576
|
1,650
|
1,773
|
1,950
|
2,156
|
2,405
|
2,659
|
Rússia
|
7,627
|
8,242
|
8,847
|
9,708
|
10,740
|
11,832
|
13,173
|
14,692
|
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April
2008
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
Aplicando-se um índice 100 à renda PPP per capita do
começo do período, pode-se verificar que o melhor desempenho é o da China, com
um índice equivalente a 223 em 2007, seguida da Rússia, com um índice de 192. A
Índia, a despeito de sua enorme (e ainda crescente) população, conseguiu
multiplicar sua renda per capita em 1,76, ao passo que o Brasil experimentou
modesto desempenho, expandindo seu índice em apenas 1,34. Políticas de
distribuição de renda representam um componente essencial de todo país moderno.
Mas os indicadores e modalidades que apresentam os Bric nesse particular tornam
pouco significativa uma comparação direta entre eles.
A capacidade dos governos garantirem estabilidade
monetária nesses países também tem variado ao longo dos anos, como se pode ver
na tabela 5. O Brasil vem consolidando um modelo bem sucedido de metas de
inflação, o que tem produzido bons resultados no período recente. O ritmo do
aumento de preços tem declinado no Brasil e na Rússia, mas aumentado na China e
na Índia, mesmo antes da ascensão generalizada nos preços das commodities e da energia no período
recente.
5. Inflação: aumento
médio dos preços ao consumo (% anual)
|
Bric
|
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
Brasil
|
7.0
|
6.8
|
8.4
|
14.7
|
6.5
|
6.8
|
4.1
|
3.6
|
China
|
0.4
|
0.7
|
-0.7
|
1.1
|
3.9
|
1.8
|
1.4
|
4.7
|
Índia
|
4.0
|
3.7
|
4.2
|
3.8
|
3.7
|
4.2
|
6.1
|
6.3
|
Rússia
|
20.7
|
21.4
|
15.7
|
13.6
|
10.8
|
12.6
|
9.6
|
9.0
|
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April
2008
|
A despeito de que praticamente todos os governos de
países avançados apresentam resultados fiscais moderadamente deficitários e
dívidas públicas na faixa de 40 a 60% do PIB, estes são indicadores relevantes
de risco soberano que interessa mais de perto os Bric, uma vez que é a partir
deles que são fixadas as taxas de risco associadas a empréstimos e outros
movimentos de capitais. Nesse particular, os dados dos Bric também são variados
entre si e variáveis ao longo do tempo, mesmo numa perspectiva de curto e médio
prazo. Brasil e Índia são os que apresentam os resultados fiscais mais
preocupantes, uma vez que não se trata apenas de déficits orçamentários
construídos para fins de investimentos produtivos ou construção de
infra-estrutura, e sim de políticas governamentais adotadas com claro sentido
político que acabam provocando a agravação das contas públicas.
O
serviço público indiano, com seus 10 milhões de empregados, é um sugador
contínuo de recursos, da mesma forma como os subsídios para agricultores pobres
ou a combustíveis e produtos básicos. No caso do Brasil, despesas com o
desequilibrado sistema da Previdência social, mais o peso dos juros da dívida
pública e a crescente folha de pagamentos do funcionalismo público representam
três enormes e perigosos componentes de uma bomba-relógio fiscal. Em ambos os
países, as despesas vêm sendo cobertas pelo aumento da arrecadação gerada pelo
crescimento econômico; mas se ocorre uma reversão nessa frente, ou se a demanda
externa entra em fase declinante, o cenário está criado para uma nova crise no
setor. O nível da dívida pública da Índia, acima de 90%
do PIB, é enorme para todos os padrões conhecidos, comparativamente aos 65% da
dívida brasileira e menos de 20% para os dois outros.
O governo russo, por sua vez, tem operado uma
consistente volta do Estado aos negócios, passando a controlar um número
crescente de companhias que operam em setores ditos estratégicos: a
conseqüência mais provável pode ser o afastamento de investidores estrangeiros
de novas oportunidades empreendedoras naquele país, com uma possível diminuição
do ritmo de crescimento no futuro de médio prazo. Reações nacionalistas são
típicas em todos os Bric, mas este pode não ser o fator principal na decisão de
um investidor estrangeiro. Mais relevantes são: o ambiente de negócios (e,
segundo as pesquisas do Banco Mundial em seus relatórios anuais, Doing Business, o cenário no Brasil é
extremamente burocratizado) e, sobretudo, peculiaridades da política
tributária, setor no qual o Brasil também consegue se alinhar aos países de
mais alta extração fiscal – aproximadamente 38% do PIB, que é a média da OCDE
–, reduzindo proporcionalmente a poupança privada dirigida aos investimentos.
6. Políticas econômicas externas
As políticas mais importantes no plano da inserção
externa têm a ver com o câmbio, a liberalização dos movimentos de capitais e
abertura comercial, terrenos nos quais as políticas dos Bric são também muito
diversas. Todas tendem à adoção de um padrão mais propício à sua integração
econômica internacional, o que contrasta com as formas historicamente
restritivas que todos eles exibiam até menos de uma geração atrás. As rupturas
políticas mais importantes ocorreram, obviamente, com os dois gigantes
socialistas, uma vez que o Brasil e a Índia se situavam nos limites de um
capitalismo fortemente marcado pela presença avassaladora do Estado
empreendedor. Estes dois últimos foram membros fundadores do GATT e estiveram
presentes, desde cedo, nas instituições de Bretton Woods, sem necessariamente
acatar de bom grado as prescrições de política econômica formuladas pelas duas
entidades de Washington.
A China e a Rússia ingressaram no FMI e no BIRD tão
pronto superaram suas restrições ideológicas às duas entidades-símbolo do mundo
capitalista, mas o processo foi mais complicado na esfera comercial. A China
levou 14 anos para ser admitida no GATT, fazendo-o apenas às vésperas do início
da Rodada Doha (2001), mantendo ainda várias práticas não conformes ao padrão
normal de relacionamento comercial. A Rússia, a despeito de politicamente
admitida no G7 desde os anos 1990 e de ter sido reconhecida como “economia de
mercado” desde o G7 de Kananaskis (2002) por esse mesmo G7, não conseguiu,
ainda, cumprir todos os requisitos para ingressar no sistema multilateral de
comércio, nem parece perto de ingressar na OCDE. O recente retorno a uma
política externa “musculosa” pode deixá-la ainda mais longe dessas organizações
típicas da interdependência capitalista.
Brasil e Índia mantiveram, durante várias décadas, o
padrão típico da política desenvolvimentista preconizada por economistas
keynesianos como Raul Prebisch ou Gunnar Myrdal, com muitas restrições
cambiais, protecionismo comercial e medidas discriminatórias contra o capital
estrangeiro, políticas que começaram a ser mudadas no final dos anos 1980 e
início dos 1990. Eles ainda mantêm uma política comercial basicamente defensiva
no plano industrial. A Índia, graças à sua qualificação no campo das
tecnologias de informação, tem operado abertura no setor de serviços, ao passo
que o Brasil se mostra mais ofensivo no combate às políticas subvencionistas na
área agrícola (o que deveria incluir, além dos protecionistas desenvolvidos,
também os aliados do Brasil no G20, China e Índia, precisamente).
As políticas cambial, comercial e do capital estrangeiro
mantidas pelos Bric são, portanto, tão variadas quanto suas formas específicas
de inserção internacional. Mas os resultados acabam refletindo-se, como seria
de se esperar, no balanço de transações correntes, cujos saldos, deficitários
ou superávitários, são então corrigidos pelos movimentos de capitais
voluntários e pelos financiamentos compensatórios. A tabela 6 oferece o
panorama da evolução recente dos movimentos de fatores para os Bric, com uma
evolução crescentemente positiva para os dois grandes exportadores de
mercadorias (China) e energia (Rússia), e um comportamento mais errático do
lado dos dois outros.
6. (a) Balança de transações correntes (US$ bilhões)
|
Bric
|
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
Brasil
|
-24.225
|
-23.215
|
-7.637
|
4.177
|
11.679
|
14.193
|
13.621
|
3.555
|
China
|
20.519
|
17.405
|
35.422
|
45.875
|
68.660
|
160.818
|
249.866
|
360.705
|
Índia
|
-4.599
|
1.410
|
7.061
|
8.773
|
0.781
|
-10.285
|
-9.800
|
-19.345
|
Rússia
|
46.839
|
33.935
|
29.116
|
35.410
|
59.514
|
84.443
|
94.257
|
76.600
|
(b) Balança de transações correntes (% do PIB)
|
Brasil
|
-3.7
|
-4.1
|
-1.5
|
0.7
|
1.7
|
1.6
|
1.2
|
0.2
|
China
|
1.7
|
1.3
|
2.4
|
2.7
|
3.5
|
7.1
|
9.4
|
11.0
|
Índia
|
-0.9
|
0.2
|
1.4
|
1.5
|
0.1
|
-1.3
|
-1.1
|
-1.7
|
Rússia
|
18.0
|
11.0
|
8.4
|
8.2
|
10.0
|
11.0
|
9.5
|
5.9
|
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April
2008
|
O Brasil saiu de uma situação bastante frágil, na
segunda metade dos anos 1990 e início dos 2000, o que o levou a buscar
financiamento preventivo por meio de três acordos concluídos com o FMI (1998,
2001 e 2002), para uma posição de relativo conforto no plano externo, com
reservas internacionais superiores à dívida externa. O superávit em transações
correntes deve, no entanto, reverter ainda em 2008, com déficit moderado
plenamente coberto por ingressos a título de investimentos diretos. Com seus
enormes saldos comerciais, a China caminha para novos recordes de reservas em
divisas – superiores a US$ 2 trilhões – e deve se manter como grande
exportadora pelo futuro previsível. Os saldos da Rússia são também crescentes
ou confortáveis, mas sua posição estrutural apresenta fragilidades, dada a
dependência do petróleo e do gás. Os déficits da Índia, por sua vez, a despeito de crescentes, têm apresentado proporção
administrável para sua economia também em expansão.
Déficits de transações correntes são financiáveis até
certo ponto, dependendo das demais relações da economia com o sistema
internacional. Países abertos a fluxos comerciais e financeiros, com contas
fiscais ordenadas e perspectivas de crescimento, conseguem obter financiamento
a taxas razoáveis, o que parece ser parcialmente o caso de Brasil e Índia. A Rússia,
provavelmente, não terá um problema desse tipo pela frente no médio prazo. Mas
o único país verdadeiramente confortável quanto à sua inserção dinâmica na
economia mundial parece ser a China, como se depreende da tabela 8, mais
abaixo.
A despeito de todo o seu sucesso nos fluxos mundiais de
mercadorias, a China se mantém como uma grande usuária de medidas de defesa
comercial e permanece em posição defensiva quanto a demandas adicionais para
abertura de seus mercados (em especial o agrícola), no que ela é largamente acompanhada
pela Índia. As diferenças de política comercial entre os Bric são
provavelmente maiores do que nos demais vetores da política econômica externa,
o que pode surpreender ao se considerar que, à exceção da Rússia, eles integram
o mesmo bloco negociador na Rodada Doha (G20).
7. Impacto dos Bric na economia mundial
A grande justificativa para a existência da sigla Bric,
segundo seu propositor original, é a dimensão do impacto dessas economias
emergentes na economia mundial e sua capacidade de moldar o futuro de muitos
outros países em desenvolvimento. De fato, à exceção do Brasil, os três outros
Bric vêm consistentemente ganhando peso e importância no contexto global e
setorial, como se depreende da tabela 7.
7. PIB em PPP em
proporção do PIB mundial (%)
|
Bric
|
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
Brasil
|
2,9
|
2,9
|
2,9
|
2,8
|
2,8
|
2,8
|
2,8
|
2,8
|
China
|
7,2
|
7,6
|
8,1
|
8,6
|
9,1
|
9,5
|
10,1
|
10,8
|
Índia
|
3,6
|
3,7
|
3,7
|
3,9
|
4,0
|
4,2
|
4,4
|
4,5
|
Rússia
|
2,6
|
2,7
|
2,8
|
2.932
|
2,9
|
3,0
|
3,1
|
3,1
|
Fonte: International Monetary Fund, World
Economic Outlook Database, April 2008
|
Teoricamente, portanto, como indicam os autores desse
tipo de estudo, os Bric representarão, em poucos anos, um quinto da economia
mundial, caminhando paulatinamente para ultrapassar o G7 em duas décadas,
segundo as estimativas. Essa agregação de “volumes” individuais pode fazer
sentido nesse tipo de exercício intelectual, no qual a aritmética parece
predominar sobre a política; mas é pouco provável que ela indique tendências de
desenvolvimento da economia mundial, cujos vetores são dados por transformações
tecnológicas, fluxos de capitais e informação de tipo científico e estratégico,
como sempre ocorreu, aliás, na história do capitalismo.
De fato, pela sua crescente importância demográfica,
assim como através da disseminação crescente da tecnologia e de capitais de
investimento, pode-se prever com toda segurança que a participação dos países
em desenvolvimento (entre os quais estão inseridos os Bric, segundo o FMI) nas
exportações mundiais de bens e serviços e no PIB total deverá se expandir a
partir dos valores atuais, resumidos na tabela abaixo.
8. Participação no PIB agregado, nas exportações
de bens e serviços e na população mundial, 2007 (%)
|
|
PIB agregado
|
|
Export. bens-serviços
|
|
População
|
Países
|
ricos
|
mundo
|
|
ricos
|
mundo
|
|
ricos
|
mundo
|
Ricos
(31)
|
100
|
56,4
|
|
100
|
66,4
|
|
100
|
16,3
|
EUA
|
37,9
|
21,4
|
|
14,4
|
9,6
|
|
30,7
|
4,7
|
Alemanha
|
7,7
|
4,3
|
|
13,8
|
9,2
|
|
8,4
|
1,3
|
França
|
5,6
|
3,2
|
|
6,0
|
4,0
|
|
6,3
|
1,-
|
Itália
|
4,9
|
2,8
|
|
5,6
|
3,7
|
|
6,0
|
0,9
|
Japão
|
11,7
|
6,6
|
|
7,2
|
4,7
|
|
13,0
|
2,0
|
Reino Unido
|
5,9
|
3,3
|
|
6,4
|
4,2
|
|
6,2
|
0,9
|
Canadá
|
3,5
|
2,0
|
|
4,4
|
2,9
|
|
3,3
|
0,5
|
G7
|
77,2
|
43,5
|
|
57,8
|
38,4
|
|
73,8
|
11,3
|
|
PIB agregado
|
|
Export. bens-serviços
|
|
População
|
Países
em
|
em des.
|
mundo
|
|
em des.
|
mundo
|
|
em des.
|
mundo
|
desenv.(141)
|
100
|
43,6
|
|
100
|
33,6
|
|
100
|
84,7
|
Brasil
|
6,4
|
2,8
|
|
3,2
|
1,1
|
|
3,5
|
2,9
|
China
|
24,8
|
10,8
|
|
23,3
|
7,8
|
|
24,2
|
20,5
|
Índia
|
10,5
|
4,6
|
|
4,0
|
1,3
|
|
20,6
|
17,5
|
Rússia
|
7,3
|
3,2
|
|
6,8
|
2,3
|
|
2,6
|
2,2
|
México
|
4,8
|
2,1
|
|
5,1
|
1,7
|
|
1,9
|
1,6
|
Fonte: International Monetary Fund, World
Economic Outlook 2008, Statistical Appendix, p. 235
|
Trata-se, no entanto, de uma constatação elementar, que
nada diz sobre os demais aspectos, sobretudo institucionais e políticos, que
atuam de modo interativo com as forças estruturais que estão moldando o sistema
econômico mundial. Ou seja, o impacto econômico dos Bric é necessariamente
decisivo; mas ele sozinho nada diz sobre os demais condicionantes de um
complexo relacionamento que não se resume à contabilidade de PIB e exportações,
mas tem a ver com fatores complexos de interdependência recíproca, não dos Bric
entre si, mas entre eles, individualmente tomados, e seus múltiplos parceiros
na economia mundial.
Em outros termos, os valores registrados nos
intercâmbios globais, bem como os próprios volumes físicos de bens e serviços
comercializados, não podem ser considerados unicamente em sua base territorial
ou sua jurisdição nacional, uma vez que eles resultam de relações contratuais
de propriedade intelectual e de criação e apropriação tecnológica – subjacentes
a outros fluxos de renda não computados de modo adequado naquelas estatísticas
– que traduzem a verdadeira complexidade da economia contemporânea (e futura).
Desse ponto de vista, os Bric não possuem existência econômica de fato, sendo
puramente uma criação do “espírito econômico”.
8. Impacto da economia mundial sobre os Bric
Os Bric e os demais países emergentes não têm, no
contexto da globalização capitalista, um itinerário e um destino econômico
independentes dos que possam ser concebidos para os pólos mais avançados da
economia mundial. Estes estabelecem os padrões e parâmetros fundamentais por
meio dos quais ela se organiza, num processo dinâmico que não é dominado
exclusivamente por um centro específico, mas possui “nós” articulados de
produção e de disseminação de idéias e de conhecimento prático, através dos
quais é tecida a teia da economia mundial. Obviamente, as modalidades de
inserção de cada economia nacional no sistema mundial são distintas, assim como
são distintos os nichos ocupados e os papéis desempenhados por cada uma delas
nessa interdependência cambiante, posto que os processos de desenvolvimento
econômico e social são sempre únicos e originais, respondendo a ênfases,
orientações e opções que são determinadas, em grande medida, pelas elites
dirigentes dos Estados nacionais.
Assim como os Bric podem contribuir para moldar o perfil
da futura economia mundial, esta possui um impacto ainda mais decisivo sobre
eles, aqui individualmente considerados (já que não se observa, na presente
conjuntura, uma ação coordenada no plano das políticas macroeconômicas ou
setoriais). A crise financeira deslanchada em 2007 a partir do episódio das
subprimes hipotecárias americanas, estendida em 2008 às bolsas e ao sistema
financeiro como um todo, nos diversos continentes, demonstra essa interconexão
das unidades econômicas nacionais. Com efeito, a despeito das teses sobre o
“descolamento” dos Bric do ciclo econômico dos países do G7 e dos demais
avançados, o fato é que o impacto destes sobre aqueles é mais relevante do que
o usualmente admitido. Não se trata, apenas, de mercados de consumo e de fluxos
de investimento direto, mesmo se esses vetores já são importantes para os
ciclos econômicos dos emergentes e os de outros países em desenvolvimento.
Ademais das especializações ricardianas e de outras vantagens adquiridas, os
emergentes, em geral, e os Bric, em particular, estão integrados seja como
tomadores, seja como provedores de recursos financeiros para o sistema em seu
conjunto.
De fato, a economia mundial não se apresenta apenas como
um conjunto de espaços (reais ou virtuais) para o intercâmbio de bens e
serviços, com os quais cada unidade nacional pode ter maior ou menor interação
física. Mesmo na hipótese de uma osmose dinâmica entre cada economia nacional
com essa interface internacional relativamente complexa, ela não esgota as
características fundamentais da economia moderna. Esta é, no seu aspecto
essencial, sobretudo um espaço para o intercâmbio de idéias. Nesse sentido, a dominação intelectual do chamado Ocidente
desenvolvido deve continuar a se exercer pelo futuro previsível e imaginável:
ainda que a inovação tecnológica possa se disseminar mais rapidamente, a
pesquisa científica continua a ter maior densidade nos centros universitários
ligados à tradição baconiana.
Quando se observa o panorama geral da economia mundial,
uma conclusão parece inevitável: as mesmas forças que transformaram o mundo
desde o século XVI continuam a moldar o mundo contemporâneo e aquele previsível
no horizonte, não só pelos fluxos de bens e serviços, mas também pelas formas
de organização econômica e, sobretudo, pela produção de idéias e conceitos que
sustentam os fluxos reais. Desse ponto de vista, não se pode, ainda, conceber
uma suposta independência dos países em desenvolvimento do núcleo central da
economia mundial. Aliás, o próprio conceito de “países em desenvolvimento”, ou
de economias centrais e “periféricas” pode ser posto em dúvida para fins de uma
análise isenta de supostos ideológicos.
Não caberia, nos limites deste ensaio, discutir os
preconceitos filosóficos e de organização “mental” que presidiram à construção
política do mundo contemporâneo, feita de divisões políticas entre grupos de
países supostamente homogêneos, tanto porque esse constructo tem sólidos fundamentos na realidade: existem, claro,
países “centrais” e “periféricos”; existem, sim, economias “dominantes” e as
“dominadas” ou “dependentes”; ocorre, obviamente, “extração” de recursos e de
renda de umas pelas outras, assim como a tutela política e a influência
cultural são parte da história mundial nos últimos cinco séculos. Mas essas
dicotomias simplistas e redutoras não esgotam a realidade formada a partir das
grandes navegações dos séculos XV e XVI, aquela constituída pela unificação
econômica do mundo a partir do século XIX, provisoriamente interrompida,
durante “breves” setenta anos do século XX, por um experimento socialista
alternativo, depois retomada sob a égide do capitalismo global.
Em qualquer hipótese, os Bric possuem a sua própria
“periferia”, assim como cada um deles constitui o “centro” de um espaço
econômico específico, que não deixa de vincular-se aos muitos círculos
concêntricos que emanam naturalmente dos vários pólos da economia mundial.
Nesse sentido, pode-se parafrasear George Orwell e dizer que, se todos são
interdependentes, alguns são mais interdependentes do que outros. A China, por
exemplo, o único dos Brics que tem condições de impactar de maneira decisiva –
para o bem ou para o “mal” – a economia mundial, é também a economia mais
integrada ao atual pólo hegemônico do capitalismo global: ela “extrai” dele os
excedentes comerciais mais volumosos, mas também “devolve” esses recursos sob a
forma de financiamento à dívida pública americana, via compra de T-bonds. O
Brasil, aliás, é o quarto mais financiador do Tesouro dos EUA, tendo investido
três quartos de suas reservas internacionais nos mesmos instrumentos
financeiros.
9. Conseqüências geoestratégicas
Qualquer que seja a conformação futura da economia
mundial, os Bric, assim como todas as outras economias, maduras, emergentes ou
ainda em “hibernação”, são parte integrante de qualquer paisagem geoeconômica
ou geopolítica que se possa conceber. Essa é uma realidade que independe de
estudos por especialistas e que não tem a ver com o “ajuntamento” artificial de
quatro, ou mais, países num novo bloco, supostamente homogêneo, por agregação
arbitrária de um desses especialistas em processos econômicos. Todas as
economias, em maior ou menor grau, têm um papel a cumprir no sistema econômico
mundial. Mas, obviamente, como ocorre no mundo da política de poder, algumas
economias são “mais iguais” do que outras, e entre estas se situam os Bric,
países capazes de impactar, seletivamente, um ou outro aspecto das relações
econômicas internacionais, sem que sua ação seja coordenada ou intencional.
Economistas
acadêmicos, como outros cientistas sociais, tendem a simplificar a realidade a
pretexto de racionalizar processos que necessitam de uma explicação mais
complexa ou elaborada. O conceito “Bric”, em sua aparente novidade, é uma dessas
trouvailles interessantes que passam
a ocupar espaços informativos e a mente dos jornalistas, impedindo, talvez, que
análises mais elaboradas sejam conduzidas de modo responsável e, talvez até,
excitando a imaginação de líderes políticos em busca de alguma idéia nova,
mesmo desinteressante. O conceito Bric pode ter essa função.
Mas o que esse conceito representa, verdadeiramente, em
acréscimo à, ou além da virtude heurística de organizar – eventualmente
simplificando – uma análise mais complexa sobre as novas configurações do
sistema mundial? Independentemente de suas conseqüências práticas, em termos de
reorganização parcial da economia mundial e, a partir daí, seus inevitáveis
reflexos nos planos estratégico, político e até militar, o conceito também tem
a capacidade de induzir espíritos preocupados com a realidade de uma “velha”
hegemonia a alimentar a idéia de uma “ruptura de sistema”, ou seja, a
eliminação, ou talvez a substituição, dessa antiga hegemonia.
Esta é, talvez, a conseqüência mais visível da proposta
de transposição de um conceito virtual da análise econômica – conduzida pelos
economistas do Goldman Sachs – para a realidade tangível da vida
político-diplomática, sob a forma de uma proposta tendente a converter o Bric
num grupo efetivo de coordenação de políticas (e eventuais ações) no plano
mundial. Estimulados pela honrosa distinção que lhes foi gratuitamente
oferecida por um “aprendiz de feiticeiro” econômico, que viu neles os
substitutos designados dos velhos hegemons,
líderes políticos dos Bric começam a se encantar com a idéia de encarnar uma
nova realidade política que, bafejada pela propaganda também gratuita dos meios
de comunicação, esperava tão somente por sua formalização adequada.
Essa institucionalização, concebida informalmente, num
primeiro momento, entre alguns protagonistas dos Bric, assumiu, em maio de
2008, um formato mais estruturado, quase parecido a um “grupo”, termo que,
entretanto, não é utilizado no comunicado liberado em nome dos quatro “Bric
countries” em 16 de maio, em Ecaterimburgo, Rússia. Na declaração, os ministros
de relações exteriores dos Bric sublinham, em primeiro lugar, seus “interesses
comuns” e a “coincidência ou similaridade de abordagens em relação aos
problemas urgentes do desenvolvimento global”, para depois concordar com a
tarefa de construir “um sistema internacional fundado no predomínio do direito
(rule of law) e na diplomacia
multilateral”. O resto do texto é ocupado pelo diplomatês habitual da agenda
internacional; mas no ponto que mais interessavam o Brasil e a Índia, qual seja,
seu eventual acesso ao Conselho de Segurança da ONU, a linguagem é mais
cuidadosamente formulada: “Os Ministros da Rússia e da China reiteraram que seus
países dão importância ao status da Índia e do Brasil nos assuntos internacionais, e
compreendem e apóiam as aspirações da Índia e do Brasil em desempenhar um maior papel nas Nações
Unidas.” Ou seja, nada além de compreensão e apoio, sem que no entanto esse
apoio se traduza em votos efetivos no processo de reforma da Carta da ONU.
Independentemente, porém, do grau efetivo de
“coincidência ou similaridade” dos Bric quanto a seus “interesses comuns”, o
fato é que esse exercício intelectual deslanchou um processo de efetiva
coordenação entre quatro grandes emergentes, que prometem exercer o seu quantum de poder econômico a serviço de
causas políticas ainda não de todo claras, mas que poderiam significar a
conformação de uma “nova geografia econômica internacional”; talvez, até, uma
“mudança no eixo do poder mundial”, segundo formulações já ouvidas de alguns
dentre eles. Com efeito, o que pode estar subjacente à formalização do Bric
seria o não tão secreto desejo de alterar a balança de poder, em termos de
influência econômica e política mundial por certo, mas talvez também no plano
do equilíbrio militar, o “definidor de última instância” do poder mundial.
Historicamente, são raras as tentativas de alteração
pacífica do equilíbrio do poder mundial, na medida em que os beneficiários do status quo tendem a resistir às demandas
dos contestadores por novos espaços no quadro dessa mesma ordem. Caso as
expectativas não sejam atendidas, os contestadores podem se decidir pela
mudança dessa ordem, se possível por meios pacíficos, se necessário por métodos
violentos. A Alemanha imperial empreendeu, por duas vezes, entre 1870 e 1918,
uma tentativa de alterar o equilíbrio do poder na Europa, com sucesso pleno na
primeira vez e um quase sucesso na segunda vez, não fosse pela intervenção dos
EUA nos campos do norte da França, em 1917. A partir de 1938, com a anexação da
Áustria e de parte da Tchecoslováquia, a Alemanha nazista deu início, em
cooperação com a Itália fascista e o Japão militarista, à mais ousada tentativa
de alterar pela força a ordem mundial; os três poderes contestadores estiveram
próximos de realizar suas metas expansionistas, não fosse pela resistência do
Reino Unido e pelo poderio econômico americano (em 1939, a URSS apoiou,
indireta mas voluntariamente, essa tentativa de eliminação dos velhos hegemons, mas acabou vítima, ela também,
do expansionismo nazista).
Contidos, derrotados e radicalmente transformados os
contestadores fascistas do entre-guerras, a geopolítica do poder mundial passou
a ser dominada, a partir de 1947, pelo expansionismo soviético, sem, contudo,
chegar-se ao enfrentamento direto com a superpotência americana, em vista da
mudança brutal nas ferramentas militares em função do vetor nuclear, ele mesmo
uma arma de última instância. Os conflitos se deram, então, por procuração,
cada lado contabilizando avanços e recuos nos teatros periféricos que passaram
a concentrar o essencial do “grande jogo”. Essa “terceira guerra mundial”
terminou sem que o hegemon
conservador tivesse logrado vitória; a derrota do lado economicamente mais
débil se deu, na verdade, por auto-implosão de um socialismo esclerosado e
incapaz de competir no plano da eficiência produtiva. Depois da derrocada
espetacular da URSS e do momento “unipolar”, do qual os EUA emergiram como
única superpotência efetiva, o mundo parece caminhar para uma nova fase de
transição, na qual se assiste a um declínio relativo dos EUA e à ascensão
(China), reafirmação (Rússia) ou emergência de novos atores (Índia, Brasil, União Européia), que poderão redistribuir as cartas nos
novos cenários estratégicos.
Existem fundadas dúvidas, entre os analistas, sobre se o
mundo entra em uma era de competição entre novos candidatos a hegemon – dos quais o mais falado seria
a China pós-socialista – ou se estão sendo lançadas as bases de uma paz
não-kantiana. Esta seria a estabilidade fundada, não sobre a convivência
pacífica entre repúblicas democráticas, mas sobre a mútua tolerância entre
grandes potências, dado o impasse estratégico produzido pela arma nuclear. O
fato é que dentre os poderes emergentes que poderiam entrar na nova equação
estratégica figuram pelo menos dois Bric, por acaso ex-socialistas e ainda
dominados por sistemas políticos autoritários e agitados por problemas étnicos
e territoriais em suas fronteiras próximas e territórios próprios.
10. O Brasil e os Bric
Qualquer que seja a evolução futura da geopolítica
mundial no século XXI, é evidente que problemas desse tipo – ou seja, nova
Guerra Fria, ou uma Paz Fria – não têm nada a ver com a condição de membro de
algum grupo inventado na prancheta de um economista, ainda que conflitos
prováveis possam surgir da condição de alguns candidatos a emergente global. A
situação de “Bric” é acidental e fortuita, ao passo que a condição de emergente
econômico mundial foi adquirida ao longo de um lento processo de qualificação
produtiva e tecnológica que deve converter-se em poder político e militar na
seqüência natural das coisas. Em outros termos, a construção do futuro
geopolítico não será determinada pela introdução fortuita do grupo Bric.
Normalmente, a constituição de agrupamentos políticos ou
econômicos tem a ver com afinidades regionais ou agregação de interesses comuns
para a realização de objetivos partilhados, seja na esfera da segurança, do
desenvolvimento ou na defesa de seus espaços respectivos. Assim foi desde a
Liga Ateniense – que escondia mal o imperialismo da cidade e sua supremacia
naval –, a Liga Hanseática – criada para defender interesses de mercadores
livres – e, mais recentemente, as alianças militares dos dois blocos inimigos –
Otan e Pacto de Varsóvia – e a verdadeira proliferação de “Gs”, dentro e fora
do sistema onusiano, a começar pelo G77.
O G7, politicamente convertido em G8 com a inclusão da
Rússia, tinha (talvez ainda tenha) um sentido claro: coordenar (ou pelo menos
tentar fazê-lo) as políticas econômicas dos países mais importantes do
capitalismo avançado num momento de desestruturação do sistema monetário criado
em Bretton Woods. Vários outros “Gs” foram criados antes e depois do G7, sempre
com o sentido de responder de forma coletiva ou coordenada a desafios comuns,
como pode ter sido o caso do G20 liderado pelo Brasil: evitar um novo “Blair
House” na Rodada Doha e promover os interesses dos países em desenvolvimento na
frente negociadora agrícola. Ele é, de certa forma, “complementado” pelo G33,
que visa defender a postura mais restritiva dos países em desenvolvimento
importadores líquidos de alimentos, congregando inclusive alguns membros do
próprio G20, o que pode parecer contraditório. Quase não se fala mais,
atualmente, do G15, que deveria ser o pendant
desenvolvimentista do G7, este “assediado”, agora, por um G5 de candidatos ao
clube (Brasil, Índia, China, México e África do Sul).
Existe, também, um G20 financeiro, que deveria seguir de perto os trabalhos do
Fóro de Estabilidade Global, que parece ter ficado hibernando desde o
arrefecimento da crise financeira dos anos 1997-1999.
Seja como for, cada um desses grupos responde a uma
lógica intrínseca a seus membros e foram
concebidos e implementados a partir de uma coordenação que se desenvolveu
internamente, com base em uma agregação voluntária dos integrantes. O Bric
parece ser o primeiro grupo a ser primeiro definido externamente, por critérios
que respondem mais a uma lógica econômica de tipo analítico do que propriamente
a critérios políticos definidos soberanamente por cada um dos membros. O
conceito, aparentemente, primeiro ganhou status
atraente no mundo do jornalismo econômico, para depois ser absorvido e
promovido pelos objetos centrais do exercício analítico.
Cada um dos Bric apresenta características
fundamentalmente diferentes, sem que essa pretensa unificação de traços
econômicos exteriores, por força de uma sigla atraente pelo seu significado
simbólico, constitua de fato um elemento agregador de interesses ou um “adesivo”
político capaz de justificar a criação de um novo grupo diplomático. O empenho
em sua criação pode ser explicado por diferentes razões nacionais, nenhuma
delas exatamente coincidentes com as dos demais “membros”. Dos quatro
integrantes, os dois ex-socialistas apresentam características políticas
profundamente autoritárias, consolidando o legado de séculos de Estados
totalitários, eventualmente sob a forma de um Império centralizado, em suas
diversas formas, inclusive o comunista. O analista Robert Kagan não hesita em
falar de um retorno da Rússia a um sistema político “czarista”, olhando, aliás,
para o que os chineses fizeram como modernização econômica e manutenção de um
sistema político autoritário (“The End of the End of History”, The New Republic,
April 23, 2008). Os outros dois, ditos em
desenvolvimento, apresentam trajetórias passavelmente democráticas, ainda que
com extremas deficiências de funcionamento e de justiça social; mas também são
as economias de mercado que mais se aproximam do padrão usual, capitalista, de
organização econômica e social.
Mesmo essa divisão bipartite não permite, porém,
aproximar os quatro países para fins dessa entidade artificial que se cogita
introduzir no cenário internacional. O Brasil, de todos eles, é o que possui
estruturas capitalistas mais avançadas e ostenta a mais moderna dentre as três
sociedades. Dos quatro é seguramente a sociedade mais integrada nacionalmente –
nos planos lingüístico, cultural, étnico e, talvez, religioso – o que permite,
em princípio, melhores formas de administração política, sem grandes rupturas
institucionais, e condições mais favoráveis para a modernização econômica e
social. O grau de democratização social pode tornar mais lento o ritmo de
crescimento e os processos de adaptação aos novos ambientes da economia
mundial, mas isso também contribui para maior coesão em torno de objetivos
nacionais.
De fato, o Brasil é, dentro os Bric, o país que tem
apresentado a menor taxa de crescimento do PIB no período recente, não tendo
contribuído em praticamente nada para a alteração do peso econômico dos Bric em
face dos países da OCDE. Como se pode constatar pela tabela 9, o aumento da
participação do bloco no PIB mundial se deve inteiramente aos RICs (Rússia,
Índia e China), tendo o Brasil atuado bem mais como fator retardatário na nova
dinâmica criada. Essa tendência pode, evidentemente, vir a ser modificada, caso
a economia brasileira venha a conhecer taxas mais vigorosas de crescimento, mas
o registro de suas taxas de poupança e de investimento nas últimas duas décadas
e as estimativas para a evolução de suas contas fiscais, nos próximos anos, não
oferecem perspectivas muito otimistas nesse particular.
9. PIB em PPP em proporção
do PIB mundial (%)
|
|
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
BRICs
|
21,54
|
22,28
|
23,05
|
23,94
|
24,75
|
25,66
|
26,53
|
RICs
|
18,64
|
19,38
|
20,15
|
21,14
|
21,95
|
22,86
|
23,73
|
Brasil
|
2,9
|
2,9
|
2,9
|
2,8
|
2,8
|
2,8
|
2,8
|
OCDE
|
60,18
|
59,43
|
58,63
|
57,53
|
56,48
|
55,36
|
54,37
|
Fonte: Calculado
a partir de FMI, World Economic Outlook
Database, April 2008
|
Uma questão relevante, por fim, tem a ver com a
geopolítica mundial. A diplomacia brasileira sempre foi exercida de modo
bastante profissional, preservando uma tradição de excelência que remonta à
própria formação do Estado nacional, tendo herdado a grande experiência prática
da diplomacia lusitana (que ela soube preservar e reforçar). Seus processos de
recrutamento e formação de quadros sempre foram reputados pela qualidade e
preservação do profissionalismo inerente a uma carreira de Estado. O que
ocorreu, na fase recente, é que a diplomacia brasileira foi tomada por um
ativismo inédito para os padrões usualmente mais discretos do Itamaraty,
retomando teses desenvolvimentistas e de coordenação Sul-Sul que se pensava
superadas nesta fase de globalização ascendente (a cooperação Sul-Sul, aliás, é
expressamente citada na declaração dos ministros dos Bric de 16 de maio de
2008).
A busca de um papel mais ativo nos cenários regional e
internacional levou a diplomacia brasileira a desenvolver uma série de
articulações no eixo Sul-Sul e com “parceiros estratégicos”, cujos exemplos
mais evidentes são o IBAS (Índia, Brasil e África do
Sul), o G20 (no contexto da Rodada Doha), as cúpulas inter-regionais (com
países africanos e do Oriente Médio), diversas iniciativas no âmbito da América
do Sul (reforço e ampliação do Mercosul, criação da Comunidade Sul-Americana de
Nações, Conselho de Defesa no âmbito da Unasul, etc.), além de vários outros
foros de diálogo e de cooperação com atores relevantes da agenda internacional
(UE e seus mais importantes países, os próprios EUA), para culminar agora na
proposta do Bric, que coloca o patamar de articulação mundial da diplomacia
brasileira num nível mais elevado de interação com a agenda internacional.
As iniciativas adotadas pela diplomacia brasileira no
período recente não se encontram em descompasso ou em ruptura com linhas
tradicionais de atuação dessa diplomacia no passado, uma vez que ela sempre
buscou aquilo que foi identificado com a “desconcentração do poder mundial” –
supondo-se que os atores dominantes estavam interessados no “congelamento”
desse poder –, ou seja, uma democratização do sistema internacional. Essa idéia
encontra-se potencialmente em contradição com o projeto de ascender ao inner circle do poder mundial – na Liga
das Nações ou, agora, a candidatura a uma cadeira permanente no CSNU. Mas não
convém enfatizar este ponto neste momento. O fato é que o projeto do Bric, como
grupo institucionalizado, pode chocar-se com o outro grande princípio de
atuação da diplomacia brasileira, que é o do “pragmatismo democrático”,
respaldado em orientações gerais de política externa que figuram na própria
Constituição do País.
A atuação do Brasil nos Bric pode ser pautada pela
“prevalência dos direitos humanos” e pelo apoio ao “Estado democrático de
direito”, que constituem princípios constitucionais brasileiros, embora não se
possa garantir que a ação coordenada dos membros do Bric o seja. Como a agenda
externa, individual, de cada um dos Bric, deve diferir de uma agenda conjunta,
esta teria de ater-se a um mínimo denominador comum, que não necessariamente
incorporará aqueles princípios. Por exemplo, uma das possíveis iniciativas dos
Bric poderá ser em apoio à proposta brasileira explicitada no comunicado: “Os
ministros da Rússia, da Índia e da China saudaram a iniciativa do Brasil de organizar
um encontro dos ministros de economia e/ou finanças dos países Bric
para discutir questões econômicas e financeiras globais”.
Em face desse tipo de proposição, pode-se perguntar:
essa ação conjunta seria no sentido de reforçar as instituições que, para todos
os efeitos práticos, criaram algumas décadas de prosperidade para os povos dos
países que a elas aderiram desde a sua criação?; tratar-se-ia, presumivelmente,
de redistribuir a estrutura do processo decisório e de aumentar sua
participação nos órgãos de direção, como é legitimamente seu direito?; ou se
trata, alternativamente, de transformar seu modo de funcionamento para que ele
passe a refletir uma outra orientação de política econômica que não a que vem
sendo seguida tradicionalmente?
Muitas outras questões podem e devem ser colocadas no
tocante às propostas dos Bric em pontos sensíveis da agenda mundial:
não-proliferação (e o que fazer com proliferadores rebeldes); meio ambiente (e
a questão das responsabilidades atuais, não apenas passadas); terrorismo (e a
assunção de tarefas concretas para combatê-lo, além da letra das convenções da
ONU); desarmamento (e a necessária negociação de um código de conduta para os
principais mercadores); a questão do desenvolvimento dos países pobres e
Estados falidos (com um comprometimento preferencial pelo lado dos mercados e
do comércio, mais do que pela assistência tradicional). Estarão os Bric em
condições de se colocar de acordo sobre todas essas frentes de trabalho e
manter uma postura não confrontacionista – com o G7, em primeiro lugar – no
encaminhamento de soluções consensuais a problemas que afligem a grande maioria
da humanidade?
Não existem, por certo, respostas prontas a essas e a
muitas outras questões que figuram na agenda mundial e às quais devem se
confrontar os Bric, como grupo ou individualmente. Muitas outras questões,
talvez a maioria, ostentam uma dimensão basicamente regional e representam, portanto,
um desafio considerável a um grupo que nasceu destinado a ser o “sucessor
econômico” do atual G7. Outras questões, as mais relevantes provavelmente, têm
a ver com o exercício do poder em sua dimensão mais elementar, e nesse
particular a postura comum dos Bric enfrentará certamente outros percalços,
sendo eles constituídos por três potências nucleares e dois membros permanentes
do Conselho de Segurança. O Brasil apresenta, nesse contexto, um perfil único e
diferente dos demais Bric, sendo mais propriamente visto como uma potência
regional do que mundial.
Alguma conclusão preventiva?
Não há, propriamente, conclusões a serem tiradas nesta
fase constitutiva, equivalente de alguma forma ao conjunto de testes iniciais
que fazem os competidores antes de empreender uma corrida. Os Bric, sendo
verdade que eles vão se consagrar e se consolidar como grupo formal, estão,
ainda, flexionando seus músculos e polindo seus discursos antes de se lançarem
na arena de um mundo em rápida transformação.
Pode ser que a própria idéia dos Bric acabe sendo,
finalmente, o que ela de fato representa enquanto exercício intelectual: um
conceito destinado mais a organizar dados e a alinhar indicadores numa tela de
computador – excitando, com isso, a imaginação dos jornalistas – do que uma
realidade operacional no plano político ou diplomático. Nesse caso, se estaria
fazendo muito barulho por nada, ou quase nada. Mas pode ser, também, que se
trate, efetivamente, de um novo animal na paisagem geopolítica mundial, com
todas as conseqüências que isso pode ter nos alinhamentos existentes e nos
realinhamentos prováveis a partir da implementação desse conceito. Nesse caso,
os quatro Bric deveriam estar prontos a assumir a responsabilidade de propor
uma agenda positiva, que não seja uma simples reação – defensiva ou negativa –
à agenda proposta atualmente pelo G7 e os demais participantes do mundo
norte-atlântico (que continuam a dominar as principais interações em escala
mundial que ocorrem nos planos econômico, comercial, tecnológico, financeiro e
cultural).
As principais questões que dividem o mundo não são mais,
ainda bem, de natureza ideológica, como ocorria ainda menos de três décadas
atrás, quando projetos concorrentes se mobilizavam para conquistar os corações
e mentes dos cidadãos ao redor do mundo. Elas nem são de ordem técnica, uma vez
que parece haver razoável consenso e colaboração entre cientistas e
pesquisadores de todo o mundo em torno das principais fronteiras a desafiar o
conhecimento humano nos campos da medicina, da física, da biologia. Os
principais dilemas se dão em torno das prioridades políticas e das políticas
econômicas alternativas que se colocam, sob a forma de opções, aos estadistas,
na busca de soluções a velhos problemas
que afligem a humanidade: fome, desemprego, saúde, educação, segurança e
bem-estar.
A experiência do passado – aliás, ainda recente – em
torno de algumas dessas escolhas e sobre as tentativas de impô-las de modo
autoritário a sociedades inteiras, não nos traz ensinamentos muito otimistas
sobre algumas das soluções propostas por desafiantes radicais do status quo. Não é preciso rememorar a
história terrível da Alemanha nazista e do Japão militarista para constatar que
poderes emergentes podem ser competidores apressados, aptos a contestar, pela violência
em alguns casos, o poder estabelecido de hegemons
mais antigos. A lição, em todo caso, deve ter sido aprendida. Mas tampouco é
preciso ser candidamente panglossiano para desejar que a unificação econômica e
política do mundo contemporâneo se processe, doravante, mais com a ajuda
filosófica de Erasmo e de Kant do que com as recomendações operacionais de Sun
Tzu ou de Clausewitz. Esperemos que desta vez seja diferente...
Paulo
Roberto de Almeida é doutor é ciências sociais, mestre em planejamento
econômico e diplomata de carreira desde 1977. Professor de Economia Política
Internacional no Centro Universitário de Brasília, tem diversos livros nos
campos das relações econômicas internacionais, processos de integração e de
política externa do Brasil (www.pralmeida.org).
[Brasília, 26 de agosto de 2008;
Revisão:
20 de novembro de 2008]