Finalmente publicado meu texto de vários meses atrás, sobre o importante documento da SAE-PR em torno da "falta de estratégia" na política externa brasileira, o que pode ser admitido, pelo menos parcialmente, ou temporariamente, mas que cabe matizar em função de considerações conceituais e de ordem prática, o que tento fazer no texto abaixo, publicado em
Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais (2/12/2017; link:
http://www.mundorama.net/?p=24308).
O Brasil carece de uma grande estratégia para ter sucesso internacional?
Em seu discurso de posse no Itamaraty,
em 7 de março de 2017, o ministro Aloysio Nunes improvisou em diversos
pontos em relação ao texto-base que havia sido preparado para seu
pronunciamento, indo muito além do que estava escrito para a ocasião, e
do que continua registrado no portal do Itamaraty. Ao final,
declarando-se aberto ao debate democrático em torno da política externa,
o ministro mostrou-se receptivo aos posicionamentos pessoais dos
diplomatas quanto aos rumos da diplomacia brasileira. Ele terminou seu
discurso por uma frase famosa, ao ter sido primeiramente pronunciada por
Mao Tsé-tung em circunstâncias específicas, em 1957: “Que floresçam as
cem flores”, convidando a que todas as tendências políticas se
manifestassem de maneira totalmente livre, em “cem escolas de
pensamento”. Depois de algum tempo, o líder chinês se encarregou de
ceifar as 99 flores que discordassem de seu pensamento pessoal, mas esta
não é certamente a intenção do ministro Aloysio Nunes.
Em todo caso, de acordo com o texto
registrado, o ministro manifestou sua concepção quanto à natureza do seu
ofício: “Política externa é política pública. Política pública
estratégica e prioritária, da qual o Brasil irá necessitar cada vez
mais. É uma politica cuja execução exige cada vez mais a integração do
Itamaraty com outras áreas do governo…” (Texto-base para o discurso de
posse do ministro de Estado das Relações Exteriores Aloysio Nunes
Ferreira, Itamaraty, 7/03/2017; disponível:
http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/15828-texto-base-para-o-discurso-de-posse-do-ministro-de-estado-das-relacoes-exteriores-aloysio-nunes-ferreira-palacio-itamaraty-7-de-marco-de-2017).
Pois vem exatamente do governo a
primeira crítica sistemática à política externa brasileira, sob a forma
de um documento de trabalho elaborado no âmbito da Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Secretaria Geral da Presidência da República,
assinada pelo Secretário Especial e pelo seu Adjunto, respectivamente
Hussein Kalout e Marcos Degaut, ambos com conhecimento avançado das
relações internacionais e da política externa brasileira, mas com
interação mais limitada com a diplomacia brasileira, que é também objeto
das críticas dos autores nesse trabalho. Seu título, ambicioso, é este:
Brasil, um país em busca de uma grande estratégia (Brasília:
Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Secretaria Geral da
Presidência da República, Relatório de Conjuntura n. 1, maio 2017, 29
p.; disponibilidade online não assegurada; outros colaboradores: Marcelo
Baumbach, Secretário de Ações Estratégicas; Carlos Roberto Pio, Secretário de Planejamento Estratégico; Pablo Cardoso, Diretor de Assuntos Internacionais Estratégicos; e Carlos Góes).
O Secretário Geral da Presidência, ao
apresentar o trabalho, o define como sendo uma ferramenta de trabalho de
uma série, um “Relatório de Conjuntura”, o que não corresponde
exatamente ao caráter e à natureza do documento, que em sua essência é
caracterizadamente analítico-estrutural. Ele examina a política externa
brasileira com a intenção explícita de reformular suas bases conceituais
e operacionais, não apenas de descrever ou discutir a agenda corrente
da diplomacia do Brasil, o que seria mais banal (talvez não apropriado
ao mandato da SAE e aos objetivos intelectuais dos autores). O SG-PR
ressalva, todavia, que os conceitos teóricos e políticos são de
responsabilidade dos autores, o que não deixa de ser algo surpreendente,
em se tratando de documento publicado por um órgão do Governo sem
sequer uma consulta à área pertinente (MRE).
A introdução ao trabalho justifica a
amplitude adotada pelos autores e já mostra uma crítica implícita, ou
mesmo explícita, ao governo ao qual servem os autores, quando afirmam
que a análise dos mandatos precedentes ao da presidente afastada no
processo de impeachment de maio-agosto de 2016 “carrega o risco de
permitir ao atual governo uma complacência improcedente” (o que é no
mínimo sincero; em todo caso, eles estimam que o governo Temer tem uma
“agenda pontual e conjuntural que ainda não integra um projeto de
política exterior estratégico e coerente” (p. 9).
Os autores acreditam que “os problemas
que acometem a política externa brasileira são significativamente mais
profundos do que análises superficiais permitiriam concluir e já se
arrastam há longo tempo” (p. 9). A crítica mais explícita, feita de
forma geral à política externa, é apresentada na introdução de maneira
algo impressionista, mais pelo que seria a falta de algo impreciso
(“objetivos concretos”) do que devido a acusações específicas sobre
determinadas políticas, como se lê abaixo:
E por carecer destes elementos
fundamentais – a identificação precisa de objetivos concretos e meios de
traduzi-los em ação diplomática efetiva – a política externa
brasileira, que deveria traduzir os interesses do país na arena
internacional, parece ainda não ter encontrado o seu norte. (10)
A diplomacia e a política externa brasileira agregados num pacote atemporal
A primeira crítica que pode ser feita
aos autores é a assemblagem de diferentes políticas exteriores dos
governos das décadas precedentes num mesmo conjunto de orientações
doutrinárias e ações operacionais, tudo isso colocado sob a bandeira
dessa entidade vaga que se chama “Brasil”; trata-se do erro mais
frequentemente cometido por jornalistas apressados (geralmente
estrangeiros) e acadêmicos amadores em relações internacionais. O
“Brasil” é acusado, nas diferentes partes do documento, de ter falhado
aqui e ali – Conselho de Segurança, Mercosul, negociações comerciais,
BRICS, etc. –, sem que se faça a necessária distinção entre os
diferentes governos ao longo do tempo, e talvez até entre dois mandatos
de um mesmo presidente. Ocorre aqui a mesma confusão que decorre do
amálgama entre Estados e instituições formais de administração, de um
lado, e a ação circunstancial ou contingente dos ocupantes dos
mecanismos de governo e sua ação política, de outro. Teria sido mais
simples, mais claro, e necessário, ter dito que “o governo Lula fez isso
e mais aquilo, com tais e tais efeitos concretos”, em lugar de se
remeter a essa entidade genérica chamada “Brasil”. Tal tipo de
assemblagem pode ser desculpada em observadores estrangeiros – que, de
toda forma, julgam legítimas as ações tomadas pelo país na frente
externa – mas não em analistas nacionais, que devem possuir uma
consciência perfeitamente clara das orientações de cada governo, e mais
que tudo, de cada personalidade imperial em nosso presidencialismo
exacerbado.
A segunda crítica, de caráter geral, a
ser feita à orientação principal do trabalho é precisamente a pretensão
de fazer, não uma simples crítica à política externa e à diplomacia
brasileira – o que seria perfeitamente legítimo do ponto de vista de um
governo democrático, sobretudo no espírito das “cem flores” –, mas um
documento fundacional de uma nova orientação geral em tom enfático e
dotado de pretensões globalizantes. Com efeito, afirmam os autores que
… tal situação [ou seja, a falta de um norte para a política externa] evidencia certo grau de desacerto na formulação de uma grande
estratégia, entendida como mecanismo que permita ao Brasil, em um mundo
em constante transformação, garantir o interesse nacional em todas as
suas manifestações, a partir de uma visão integrada de país. (10; ênfase
original)
Essa avaliação negativa parece
equivalente ao lamento de muitos intelectuais orgânicos quanto à falta
de um “projeto nacional”, conceito que aparece em muitas passagens do
documento. Ambos os conceitos, “projeto nacional” e “grande estratégia”
são recorrentes nesse tipo de literatura, ou de peroração, e compatíveis
com certa transpiração acadêmica, sempre em busca de algum Santo Graal
salvador de todos os nossos vícios. Mas eles parecem muito pouco
adequados a uma análise realista das possibilidades e limitações da
governança brasileira na fixação dos objetivos prioritários do país
nessa área específica de uma das políticas setoriais de governos
democráticos. Quais seriam esses objetivos? Aparentemente, o
desenvolvimento nacional, a prosperidade de seu povo, o bem estar
social, um Estado funcional, a segurança cidadã e, last but not the least, uma
efetiva inserção internacional, ou seja, um mergulho na globalização.
Para tudo isso o Brasil, ou seus governos necessitam efetivamente de uma
grande estratégia? Ou de uma estratégia que seja grande, apta a
resolver todos esses problemas, ou a alcançar todos esses objetivos?
Eu pessoalmente não acredito, uma vez
que os grandes problemas do Brasil não estão exatamente no plano
externo, mas inteiramente na frente interna, e isso de uma maneira quase
avassaladora. Todos os problemas que impedem o Brasil de exibir uma
grande projeção internacional são exatamente derivados de equívocos
domésticos em suas políticas macroeconômicas e setoriais. A presente
crise recessiva constitui, aliás, uma prova eloquente disso: ela é
totalmente made in Brazil. No plano internacional, parece
evidente que o ambiente externo tem sido eminentemente favorável e
propenso ao atingimento de todos os objetivos brasileiros, como aliás
demonstram as experiências de “globalizadores” no próprio continente e
de forma eloquente os atuais grandes atores dentre as economias
emergentes (mas também vários países já desenvolvidos), todos eles
continuam exibindo desempenhos bastante favoráveis em termos de
crescimento econômico, ganhos de produtividade e competitividade global.
O fato de o Brasil não apresentar
desempenho comparável nessas frentes, e isso mesmo no confronto mais
modesto com vizinhos latino-americanos e não com os países dinâmicos da
Ásia Pacífico, não deriva de insuficiências de sua política externa ou
de sua diplomacia, ou da falta de uma “grande estratégia”, mas resulta,
sim, da quase total anomia em diversos elementos de suas políticas
domésticas, sobretudo econômicas, mas em quase todas as demais políticas
públicas igualmente. As frentes de trabalho abertas à sua diplomacia,
com grandes ou pequenas estratégias, ou na ausência completa destas, não
serão muito diferentes das que existem atualmente – uma vez que os
sistemas mundial e regional, e os parceiros externos não serão muito
diversos dos atuais – embora possam ser muito diferentes as posturas
externas adotadas em relação a estas ou aquelas políticas nacionais:
comercial, industrial, tecnológica, de investimentos, fiscal e
tributária, etc., dependendo, é claro, dos tipos de coalizões políticas e
dos líderes governamentais que estejam à frente da formulação e
implementação de sua diplomacia.
O definhamento do Brasil na arena
internacional não derivaria apenas da falta de prioridades do governo
anterior, da carência de recursos, da ausência de diretrizes, mas da
“ausência de paradigmas e [de] planejamento estratégico” (p. 12), mas de
algo mais grave, tal como explicado pelos autores:
Trata-se, antes, de falha sistêmica,
na medida em que todas as instituições governamentais, o setor privado e
a sociedade civil revelaram-se incapazes de formular e executar uma
grande estratégia nacional. (12; ênfase no original)
A “ausência de uma grande estratégia”,
volto a dizer, é o equivalente funcional da lamentação de nacionalistas e
desenvolvimentistas de todas as épocas quanto à falta de um “projeto
nacional” – embora o Brasil tenha sido um dos países mais prolíficos em
termos de planejamento estatal ao longo da segunda metade do século XX –
como se a sociedade pudesse se reunir ordeiramente numa grande
assembleia nacional para decidir quanto aos melhores rumos para a nação,
com a expressão máxima da racionalidade instrumental da parte de
representantes iluminados. Os governos petistas, durante os treze anos
de seu reinado catastrófico, pois que resultando naquilo que eu chamei
de “A Grande Destruição”, foram os maiores especialistas mistificadores
em convocar grandes conferências nacionais sobre qualquer coisa,
agregadas à realização regular de reuniões de um “Conselhão” de
ultra-iluminados, dedicados, inutilmente, a orientar as melhores
políticas possíveis em cada uma e em todas as áreas do desenvolvimento
nacional.
De seus relatórios e recomendações não
foi possível extrair nem uma pequena estratégia? Errou o Brasil ou
erraram esses governos carentes de pensamento claro?
Quais são os quatro grandes pecados da falta de grande estratégia do Brasil?
Os autores afirmam, e nisso eu concordo integralmente com eles, que
… nestes últimos anos, o Brasil não foi bem sucedido em nenhum
dos quatro eixos principais de sua política exterior – reforma do
Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), a integração
sul-americana, a política comercial extrarregional e a atuação no âmbito
dos BRICS. (12; idem)
Outra vez, eu corrigiria esse “Brasil”,
que é indevido a vários títulos, e colocaria, como deve ser, que “os
governos lulopetistas não foram bem sucedidos” em nenhuma de todas as
frentes nas quais resolveram “inovar” sobre a diplomacia “tradicional”
do Itamaraty (que eu chamaria simplesmente de profissional). As razões
para isso são evidentes, e eu já explicitei várias das razões em minhas
críticas feitas à diplomacia lulopetista ao longo de todos os governos
da organização criminosa que assaltou o Brasil a partir de 2003 (para
ser dele parcialmente apeado em 2016). A maior parte dessas críticas
foram reunidas em meu livro Nunca antes na diplomacia…: a política
externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014),
mas também estão esparsas em muitos outros trabalhos feitos antes e
depois de publicada essa obra.
Ressalvei, nele, que esses fracassos
retumbantes não podem ser inteiramente atribuídos à gestão inepta do
lulopetismo diplomático, uma vez que o Brasil (ou os governos que o
representam) não pode determinar a dinâmica de todos os processos que se
passam nas esferas global – entrada no CSNU, negociações comerciais
multilaterais –, plurilateral – BRICS – ou regional – Mercosul e
integração econômica sul-americana. Mas os governos lulopetistas e sua
diplomacia aloprada são responsáveis pela forma como cada uma dessas
frentes de trabalho foram conduzidas, e eu explico em meu livro o que
deu errado em cada uma delas.
Expliquei, por exemplo, que a formação
do G4 para a questão da reforma da Carta da ONU e a ampliação do CSNU
poderia não ser o método mais adequado para impulsionar esse pouco
discreto desejo de gerações de diplomatas e militares ao longo da
existência das Nações Unidos, uma vez que tenderia a agregar o Brasil a
países que enfrentavam fortes resistências em suas próprias regiões e
até de aliados políticos. Tampouco abrir embaixadas em todos os países
do mundo serviria à causa, pois não se tratava de apoio na AGNU, e sim
de um acerto particular com um ou dois países decisivos no âmbito mais
restrito possível. Aliás, os governos ditos “neoliberais” de FHC nunca
atribuíram prioridade a essa ambição, por razões próprias ao Brasil e
também por avaliarem realisticamente o cenário negociador em várias
frentes, inclusive a regional (a começar pela Argentina).
O sucesso nas negociações comerciais
multilaterais da Rodada Doha, por sua vez, nunca esteve garantido, e não
apenas devido ao Brasil, mas aqui também erros clamorosos foram
cometidos ao longo dos anos: o tão saudado G20 comercial era um poço de
contradições, ao reunir competidores agrícolas de mercado (Brasil,
Argentina e outros) e subvencionistas e protecionistas irredutíveis
(como dois grandes asiáticos, nossos “aliados” em várias esferas), mas
tampouco a nossa política comercial para essa área era isenta de
contradições intrínsecas: o Brasil lulopetista era provavelmente o único
país do mundo a ter dois ministérios na área agrícola com posturas
radical e diametralmente opostas em quase todos os assuntos, o MAPA
suposto defensor do agronegócio, e o MDA, entregue a esquizofrênicos
opositores do agribusiness.
Os retrocessos do Mercosul, sim, foram
inteiramente devidos aos governos lulopetistas – e apenas parcialmente
ao “Brasil protecionista” – tanto no que se refere ao desvio do bloco de
seus objetivos comercialistas e econômicos originais – em direção de um
palanquismo político e social pouco compatível com o Tratado de
Assunção – como no tocante à completa ausência de reação às salvaguardas
abusivas e outras medidas de proteção introduzidas extensivamente pela
Argentina, ilegais do ponto de vista não só do Mercosul, como das normas
multilaterais aplicáveis a essas práticas. Ainda na área comercial, a
bem sucedida implosão do projeto americano da Alca pelo trio de
anti-imperialistas confirmados da Venezuela (Chávez), do Brasil (Lula) e
da Argentina (Kirchner), também serviu para deixar o Brasil
completamente isolado no terrenos dos acordos “minilateralistas”, que
poderiam garantir algum acesso a mercados (ainda que pouco na área
agrícola, que continuaria protegida, tanto nos EUA quanto na UE), mas
sobretudo fluxos de investimentos diretos que colocariam suas indústrias
nas cadeias mundiais de valor das quais ele se encontra tragicamente
ausente atualmente.
Quanto ao BRICs, eu já anunciava quando
da formação do BRIC original que se tratava de um agrupamento totalmente
artificial, desprovido de maiores convergências substantivas e
unicamente formado por razões essencialmente políticas e explorado de
maneira oportunista por cada uma das lideranças nacionais para seus
objetivos próprios. O pouco de convergência em torno de uma agenda
parcial de interesses comuns de dava à base de um mínimo denominador
comum que provavelmente não justificaria o grande esforço de
transpiração, e de reduzida inspiração, que o mantinha de pé. Continuo
com a mesma opinião, mesmo se a formação de um banco de
“desenvolvimento” – se este exibir a mesma garantia quanto à qualidade
técnica dos projetos exigida pelos demais bancos multilaterais – pode
introduzir um grau maior de competição num terreno que perde sua
importância supostamente política, num mundo que não carece de recursos
para investimentos, e sim de um bom ambiente para acolhê-los em cada um
dos países.
Os autores fazem bem em sublinhar nessa
parte, com a ajuda de gráficos, a diminuição da participação dos
parceiros da América do Sul no comércio exterior total do Brasil entre
os anos 1990 e atualmente, mas parte do fenômeno pode ser creditado ao
espetacular avanço da China sobre todos os mercados, inclusive o
brasileiro, eis que o gigante asiático foi convertido em principal
parceiro comercial do Brasil desde 1999 (ainda que numa distorção de
pautas típica das situações “coloniais” do passado). Um outro gráfico
relativo ao diminuto comércio intrabloco no Mercosul comparativamente a
outros esquemas de integração comercial é ainda mais surpreendente
tendo-se em conta que o grupo do Cone Sul é basicamente introvertido nas
suas políticas comerciais, mas não deixa de ser extrovertido nos fluxos
reais de comércio.
Mas, tanto no caso do Mercosul quanto no
dos Brics, os autores continuam falando do “Brasil”, essa entidade
inocente de todos esses pecados, uma vez que foram os governos
lulopetistas e sua diplomacia deformada que imprimiram essas orientações
ao país que praticamente o deixaram descolado dos grandes intercâmbios
globais e dos grandes fluxos de integração produtiva que se construíam
em escala global ao longo de todos esses anos de fulgurante ascensão
chinesa a pontos culminantes do PIB mundial e dos grandes fluxos de
comércio e investimentos. O Brasil simplesmente perdeu todas as
oportunidades que estavam sendo oferecidas à sua economia, não como
resultado de uma “vontade nacional” expressa nesse conceito inadequado
de “Brasil”, mas como o efeito desastroso das políticas econômicas e
diplomáticas do lulopetismo aloprado.
A falência da “grande estratégia” do lulopetismo diplomático
Os autores também apontam acertadamente –
com a provável ajuda gráfica do economista Carlos Góes – que o Brasil
permaneceu à margem das garantias jurídicas que poderiam ter sido
oferecidas a investidores internacionais – sobretudo pequenos e médios –
por não ter ratificado nenhum dos APPIs assinados nos anos 1990, e aqui
mais uma vez por exclusiva responsabilidade dos partidos de esquerda,
com o PT à frente, que se opuseram estupidamente à conclusão desses
acordos. Mais uma vez, não se trata do Brasil, e sim de governos
equivocados na forma e na substância quanto aos objetivos desses
instrumentos auxiliadores do relacionamento entre Estados e investidores
diretos. Os APPIs foram substituídos por acordos de facilitação de
investimentos que produzem mais burocracia num terreno que deveria ser
deixado à dinâmica dos mercados e dos sistemas flexíveis de arbitragem
comercial, bilateral ou usando meios multilaterais.
As críticas muitas vezes dirigidas a
esses diferentes esquemas adotados nos planos do comércio, das
“parcerias estratégicas”, de grandes objetivos regionais ou até globais
são, na maior parte das vezes, corretas e pertinentes, mas eles não
acertam em sempre caracterizas tais escolhas como sendo do Brasil,
quando elas foram nitidamente marcadas por a prioris ideológicos e
equívocos políticos e diplomáticos claramente identificados com os
governos lulopetistas que destruíram a economia brasileira nos últimos
anos de seu reinado desastroso e criminoso. Sobre o BRICS, por exemplo, o
julgamento é sem qualquer complacência:
Para além da retórica diplomática – e
excetuado, talvez, o seu Banco de Investimentos … –, a verdade é que o
BRICS ainda não disse a que veio: o grupo não avançou rumo à construção
de uma identidade coletiva, a uma plataforma concreta de propostas
estratégicas, a uma nova moldura teórica para negociações comerciais.
Permanece uma frágil associação de interesses, o que deverá muito ao
fato de as relações entre seus membros serem mais de competição, ou
mesmo franco desinteresse, do que de cooperação.
Historicamente, Brasil, Rússia, China,
Índia e África do Sul pautaram-se por estratégias de desenvolvimento,
prioridades externas, estilos de negociação, tradições, sistemas e
práticas políticas inteiramente diversos. Em razão disso, suas ações
conjuntas raramente vão além da emissão de declarações de intenções, de
encontros coreografados e iniciativas de reduzido espectro e alcance.
(14)
Quanto à China, os autores reconhecem, também acertadamente, que
… o Brasil tornou-se dependente da China, tanto pelo volume de nossas exportações (responsáveis por quase um quarto de nosso superávit comercial) quanto pelo de nossas importações.
(…) Mas também é verdadeiro que (…) o
Brasil perdeu espaço em outros mercados, notadamente o americano, em
grande medida por nossa incapacidade de negociar acordos de livre
comércio capazes de atender a nossos interesses e necessidades. (14;
ênfases no original)
Mais uma vez, caberia sublinhar que o
“Brasil” não tem nada a ver com todos esses erros políticos e equívocos
econômicos, que não foram capazes de atender a “nossos” interesses; eles
resultam de ações, iniciativas, e orientações deliberadamente
construídas e conduzidas pelos estúpidos responsáveis lulopetistas que
estiveram à frente da diplomacia brasileira durante todo o reinado da
organização criminosa. O próprio chefe da quadrilha, entusiasmado e
iludido com as fabulosas perspectivas de uma sólida relação de amizade
anti-imperialista com os chineses, prometia, desde sua primeira viagem
ao país (em 2003), conceder-lhe o status de economia de mercado e até
propunha um acordo de livre-comércio Mercosul-China. Já o segundo
ministro da Fazenda lulopetista, numa rara exibição de estupidez
monetária e cambial, pretendia realizar intercâmbio em “moedas locais”, o
que faria o Brasil retroceder mais de 80 anos na escala da
multilateralização dos pagamentos correntes. Quanto ao preclaro ministro
das relações exteriores do lulopetismo diplomático, ele pretendia
construir uma “nova geografia do comércio internacional”, provavelmente
ignaro de que os principais parceiros asiáticos já tinham inaugurado a
sua “geografia”, exportando desde longos anos para todos os mercados
possíveis, o que incluía, obviamente, os principais centros
desenvolvidos (especialmente Europa e EUA), em lugar de insistir numa
ainda mais estúpida diplomacia Sul-Sul, feita de comércio preferencial
com parceiros de mercados mais limitados e linhas de crédito e de
comercialização ainda mais limitadas. O mesmo fiel serviçal do “Nosso
Guia” se gabava, durante a crise de 2008 iniciada nos EUA, de que a
implosão da Alca, três anos antes, tinha sido uma “boa estratégia”, já
que ela não tinha deixado o Brasil tornar-se “dependente” comercial do
gigante hemisférico, numa outra magnífica demonstração de estupidez
econômica e de desonestidade política.
Retirando conclusões dos fracassos nos
quatro eixos – CSNU, integração sul-americana, comércio e BRICS –, os
autores insistem em afirmar que eles servem para
… ilustrar os danos que a falta de uma
grande estratégia pode acarretar ao Brasil, na medida em que esses eixos
não se reforçam mutuamente e revelam processos decisórios por vezes
erráticos e frequentemente marcados por tensões e contradições. (16)
Mais uma vez, cabe ressaltar o equívoco
fundamental desse tipo de julgamento. O que não faltava – não ao Brasil,
que nunca esteve em causa, mas – aos lulopetistas foi uma “grande
estratégia”, embora essa fosse totalmente equivocada. Mas ela existia:
ela era composta, justamente, desses impulsos terceiro-mundistas
anacrônicos, desse anti-imperialismo fora de moda e completamente fora
de propósito, de um mal disfarçado antiamericanismo de fato, contornado
por gestos retóricos e exibição de uma “amizade” hipócrita com Bush
júnior, de uma escolha prévia de “alianças estratégicas” com supostos
parceiros “anti-hegemônicos”, de um sólido apoio a todos os dirigentes
que representassem um vago interesse do “Sul global” hipoteticamente
mobilizável para realizar esse sonho quimérico de “mudar as relações de
força no mundo”, enfim, de diversos outros elementos de uma “estratégia”
destinada a projetar a figura idealizada do líder megalomaníaco em
todos os continentes, num estilo de diplomacia personalista mais
adequada a uma versão tropical do “Roi Soleil” do que da realidade de um
dirigente de uma potência média – com imensas carências internas –
empenhando recursos vultosos do Tesouro Nacional na busca de apoio a
projetos mal concebidos.
Ressalto, ainda desta vez: não foi o
Brasil ou a sua diplomacia profissional que falharam, mas a “estratégia”
míope, equivocada, feita de iniciativas estúpidas, mal concebidas e mal
implementadas; foram essas iniciativas, em todas as frentes referidas
pelos dois autores, e em várias outras mais, que falharam
estrepitosamente, como só poderiam falhar, dadas sua falta de
consistência intrínseca e a total inadequação dos meios empregados.
Quando se tem uma estratégia deformada e carente de objetivos realistas,
não há tática que resista: estratégia e táticas falharam em todas as
frentes. Mas falhas e sucessos precisam ser atribuídos expressamente,
não a “governos precedentes”, num mesmo agregado indistinto de políticas
com orientações e forças muito diferentes.
Falharam, portanto, todas as iniciativas
diplomáticas empreendidas pelos lulopetistas, com uma única exceção: a
de enaltecer a figura do chefão da gangue, que conseguiu ser o dirigente
político mais dignificado por um número considerável de honoris causae, igualmente
equivocados, provavelmente em toda a história da diplomacia mundial e
das relações bilaterais do Brasil (o que aliás apenas confirma a
deterioração dos padrões acadêmicos em várias universidades do mundo, no
caso basicamente empurradas por grupos gramscianos das Humanidades
nessas entidades).
Os quatro outros pecados da política externa ex-ante e da diplomacia ex-post
Em outras quatro sucessivas seções
setoriais – “Cooperação Sul-Sul” e a reforma da ONU”; “Ativismo
comercial fora do eixo”; “A integração sul-americana e as ambições
globais do Brasil”; e “Defesa, segurança e inteligência” (p. 16-27) – os
autores voltam a incidir nos equívocos conceituais apontados acima – a
de confundir e misturar governos e políticas ao examinar os “insucessos”
do “Brasil” ao longo de governos e períodos diferentes –, ainda que
formulando críticas pertinentes em cada um desses capítulos, críticas
que eles creditam, em vários casos erradamente, à diplomacia brasileira,
e não às forças políticas, partidárias ou personalistas, que estiveram à
frente dessas diferentes orientações de relações exteriores bilaterais,
regionais, plurilaterais ou multilaterais. Um exame detalhado de cada
um dos temas abordados – e suscetíveis de uma avaliação crítica de minha
parte – tornaria esta análise quase tão longa quanto o documento de
referência, razão pela qual apenas alguns pontos serão destacados, a
favor e contra os argumentos esgrimidos pelos autores.
No primeiro dos tópicos, tratando do
“fortalecimento da cooperação Sul-Sul” e do objetivo de “refundar as
regras que governam a ordem internacional sob novas bases”, os autores
acreditam que ambas as opções “em si, eram e permanecem objetivos
válidos” (16). Eles também acham que “a postura brasileira revelou boa
dose de pragmatismo”, mas que, ao se aliar com países como Venezuela e
Rússia, “essas opções se construíram, em boa medida, em detrimento de
valores e princípios que o Brasil sempre defendeu e promoveu” (idem). Ou
seja, se não fosse por essas incômodas alianças, aqueles objetivos
seriam válidos em si mesmos, o que eu, pessoalmente, reputo como sendo
profundamente equivocado quanto à substância, no primeiro objetivo, e
também mal direcionado, quando aos métodos, no segundo objetivo. Não é o
caso de engajar aqui uma complexa discussão a respeito de cada um
desses objetivos, tanto porque já o fiz amplamente em meu citado livro Nunca antes na diplomacia.
Em todo caso, concordo com várias
críticas tópicas feitas pelos autores em torno dessa questão das tensões
“entre valores e interesses”, que estão presentes, “em maior ou menor
medida, na política exterior de qualquer país” (16). O erro poderia ter
sido de “dosagem”, ou na assunção de um “duplo padrão de comportamento
que [o Brasil] sempre criticou em países mais poderosos” (17). Os
autores têm uma explicação válida para isso, mas enfatizo, mais uma vez,
que o Brasil, ou o Itamaraty, não têm nada a ver com isso, pois tudo
resultou de decisões tomadas na esfera político-partidária:
Talvez por desejar integrar uma nova
oligarquia internacional ampliada, o Brasil não tenha afirmado
suficientemente o seu comprometimento com o primado dos direitos humanos
e do direito internacional.
Ao longo dos últimos anos [PRA: ou seja,
do lulopetismo diplomático], o Brasil omitiu-se sistematicamente de
criticar as atrocidades cometidas na Síria e no Iêmen, além de se abster
de apoiar, quando necessário, iniciativas no âmbito das Nações Unidas
que visavam à garantia do respeito às normas internacionais.
O mesmo se deu quando o país permaneceu
silente quanto à intervenção russa na Ucrânia; (…). Mais perto de casa,
em nome de uma suposta solidariedade ideológica continental, essa
dinâmica se repetiu quando se fecharam os olhos para as violações de
direitos humanos cometidas pelo governo de Nicolás Maduro, na Venezuela,
quando se incluíram a prisão arbitrária e ilegal de oponentes
políticos… (17).
Tudo isso é absolutamente correto, e até
se poderia ir além: não foi o “Brasil” que “fechou os olhos”, mas foram
os governos lulopetistas que colaboraram ativamente para a construção
da ditadura chavista no país vizinho, como perpetraram vários outros
“crimes” políticos e econômicos contra os interesses brasileiros em
países vizinhos, assim como apoiaram ditaduras execráveis em várias
outras partes do mundo. Hoje sabemos, aliás, como resultado de
investigações de caráter policial e judicial, que várias dessas ações e
iniciativas envolveram igualmente “negócios” escabrosos, que lesaram os
cofres públicos em somas absolutamente inéditas para os padrões da
corrupção mundial, e que se destinavam a financiar o monopólio
continuado no poder do partido neobolchevique e a garantir o
enriquecimento pessoal de seus dirigentes e aliados. A trajetória de
crimes comuns perpetrados pela organização criminosa que assaltou o
Brasil a partir de 2003 pode ter contaminado igualmente a sua política
externa – mas provavelmente não a sua diplomacia – embora não se possa
contar, provavelmente, com provas documentais dessas ações delinquentes,
devido justamente aos métodos de trabalho dos criminosos políticos. Da
mesma forma, uma parte da história diplomática e, de forma geral, da
história nacional, teria de ser reescrita em novas bases, com essa
compreensão de processos clandestinos, que talvez nunca venham a ser
revelados.
Os autores apontam com razão que, em
relação ao Oriente Médio, por exemplo, “os posicionamentos brasileiros
foram excessivamente dúbios, contraditórios e destoantes dos eixos
principiológicos da política exterior nacional”, e concluem essa questão
por esse julgamento absolutamente pertinente:
Para corrigir essa discrepância, a
diplomacia brasileira [PRA: mas lembremos uma vez mais que a diplomacia
cumpre instruções da autoridade política] precisa realinhar seu discurso
à realidade de suas ações objetivas, de maneira a dar a devida
consideração ao tema dos direitos humanos. A escolha entre princípios e
interesses é uma falsa dicotomia. [PRA: na prática, as escolhas são
sempre difíceis.] O estabelecimento de parcerias preferenciais que levem
em conta o respeito aos preceitos fundamentais dos regimes
internacionais proporcionaria ganhos de legitimidade internacional no
longo prazo. (18)
Pessoalmente, mantenho uma prevenção de
princípio com respeito a essas parceria preferenciais, que estão na base
de agrupamentos e alianças que podem se revelar incômodos em certas
circunstâncias. Já expressei essa opinião, certamente minoritária, em
vários trabalhos, nomeadamente aqui: “Contra as parcerias estratégicas:
um relatório de minoria”, Monções: (vol. 4, n. 7, jan.-jun. 2015,
p. 113-129; disponível:
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/4134/2265).
Cabe lembrar, uma vez mais, que as mais esquizofrênicas alianças e
parcerias estratégicas foram feitas pelo lulopetismo diplomático, e não
pelo “Brasil”, ou pelo Itamaraty. Os autores retomam um precedente
argumento meu em relação ao “outro lado” da aliança no G4 para a
conquista de uma cadeira no CSN, ao salientar que:
Existem elementos suficientes para
sustentar que o Brasil, ao associar-se a aspirações que estavam longe de
incontroversas, pode ter minado as suas próprias chances, ao atrair
para si a oposição que a Rússia e a China dedicavam às demais
candidaturas. (18-19)
Os autores continuam creditando vários
outros “equívocos brasileiros” – como a retirada voluntária, a retração
ou abstenção deliberada de candidaturas brasileiras a órgãos ou
tribunais internacionais – à diplomacia, de modo geral, incorrendo no
repetido erro repetidamente criticado nesta análise, quanto à origem das
determinações políticas, ou melhor, partidárias, da maior parte dessas
opções e orientações mal concebidas ou mal implementadas.
No segundo tópico, “Ativismo comercial
fora do eixo”, o mesmo viés da atribuição de responsabilidades se
repete: o Brasil, aparentemente como um todo, é acusado de “ignorar as
transformações em curso no sistema de comércio internacional, insistindo
em conceitos que o afastam cada vez mais das principais cadeias
produtivas globais e reduzem sua participação no total de trocas
internacionais” (20). Ocorre aqui o mesmo e repetido erro de quando se
fala do famoso “custo Brasil”, diluindo equívocos e distribuindo
responsabilidades, que deveriam ser específicas e nominais, a essa
entidade vaga chamada “Brasil”, o que libera muita gente, e muitas
entidades, da culpa efetiva pela manutenção do atraso. Nem todas as
estupidezes apontadas em matéria de políticas comerciais, tarifárias,
negociadoras e de medidas de fato des-integracionistas cometidas nas
últimas décadas podem ser atribuídas unicamente aos governos petistas,
que são, como se sabe, tão dirigistas, protecionistas, intervencionistas
e nacionalistas primários quanto o foram, por exemplo, governos
anteriores, notadamente os dos militares, que praticaram o mesmo
“stalinismo industrial” – ou seja, a industrialização num só país – que
foram revitalizados, e isto é um fato, sob os governos lulopetistas, com
toda a honra que lhes cabe pelo renascimento do que já era um erro na
origem, em épocas anteriores.
Não seria difícil nomear os responsáveis
por esse atraso, esse isolamento, esse descolamento dos fluxos mais
dinâmicos da economia mundial, que são meia dúzia (ou mais) de
federações industriais, uma ou outra federação setorial, e diversas
associações de ramos industriais – e possivelmente agrícolas e de
serviços também, com ênfase no setor bancário e no de construção e
manutenção –, mas essa nomeação apenas cobriria uma parte do problema.
Corretamente, os capitalistas no Brasil – que sempre estiveram
umbilicalmente vinculados ao Estado, desde os anos 1930, e mesmo antes –
não hesitam em recorrer ao governo de plantão para se defender da
competição estrangeira, de um aumento de custos trazido pela inflação,
pelo novo salário mínimo, os tributos sempre crescentes em sua carga
total, mesmo na ausência de mecanismos explícitos como a criação de
novos impostos e/ou contribuições ou a criação de novos, reforço no
papel ou elevação das alíquotas existentes.
Mas há um outro aspecto predomina sobre
os demais, com o qual a diplomacia estrito senso não tem rigorosamente
um vínculo explícito, a não se pela mesma mentalidade dirigista, no
limite do fascismo: é a tendência a se instituir um pacto perverso entre
patrões e operários organizados – apenas a fração sindicalizada – com o
objetivo de consolidar ganhos setoriais em forma de salários e lucros
aumentados, em detrimento de toda a sociedade, os contribuintes ou
consumidores compulsórios dessa aliança espúria que se faz ao abrigo de
uma proteção que é ao mesmo tempo estatal e patrimonialista. A
diplomacia é certamente uma corporação, ainda que uma das mais
esclarecidas da burocracia estatal, o que implica que ela não é a única,
ou principal, responsável pelos erros protecionistas e isolacionistas
praticados pelo “Brasil”. Mas, apenas amadores em diplomacia poderiam
acreditar que o “Brasil” – no caso a diplomacia brasileira – ignora ou
desconhece as novas realidades do comércio internacional, como afirmam
os autores:
Talvez por ser histórico defensor do multilateralismo, o Brasil [encore] relute
em reconhecer que um novo sistema comercial está sendo gestado às
margens da OMC. Como resultado, o país se encontra hoje fora do eixo dos
grandes projetos comerciais em curso ou em análise [TTIP, TPP, Aliança
do Pacífico]… (21)
Não é necessário ter acesso a todos os
telegramas expedidos dos postos lidando com blocos comerciais (Genebra,
Bruxelas, Montevidéu, grandes capitais) para saber o que pensam e o que
informam os diplomatas sobre isso, com centenas, milhares de telegramas a
respeito dessas novas realidades comerciais, desde que foi negociado o
primeiro acordo plurilateral no âmbito da OMC, o Information Technology Agreement. Mesmo
os jornalistas especializados escrevem a respeito, o que transforma a
frase acima em comunis opinio da parte do público envolvido em
diplomacia comercial. Uma outra sugestão feita no documento, a de que
deveria ser revista a Decisão 32/2000 do Mercosul, que obriga a uma
negociação em bloco de novos acordos comerciais, também vem sendo
discutida há anos, dentro e fora do bloco, por seus apoiadores e
opositores.
Por outro lado, os autores fazem bem em
lembrar que o Brasil dispõe atualmente de mais representações no
exterior (226 no total, entre embaixadas e consulados) do que países
como Alemanha (215), Itália (205) e Canadá (180), inferior apenas aos
EUA (270), França (267), China (265) e Reino Unido (256). Eles apontam
que desde 2003, por coincidência o início da gestão companheira no
governo e da chamada diplomacia “megalonanica” no Itamaraty, foram
criadas 77 novas embaixadas ou consulados, “a maioria em países de
escasso interesse comercial” (22). Os autores concluem essa seção de
forma judiciosa:
Diante desses exemplos, torna-se lícito
inquirir em que medida um país como o Brasil, que vem padecendo de
evidentes dificuldades econômicas, deve continuar perseguindo
estratégias que se revelam disfuncionais e onerosas aos cofres públicos.
(23)
Totalmente de acordo, sendo apenas de se
lamentar que onde está “Brasil”, o que implicaria supostamente também
sua diplomacia, não está escrito “o governo do PT”, ou “os tresloucados
que conduziram a diplomacia lulopetista entre 2003 e 2016”, pois caberia
indicar claramente onde as responsabilidades pelas disfuncionalidade
custosas criadas ao longo desses anos, o que redundou em claro
desprestígio para a diplomacia brasileira, a ter de deixar de honrar
compromissos financeiros com organismos internacionais e com as próprias
representações criadas de forma tão irresponsável ao longo desses anos
trêfegos.
Na seção seguinte, o amadorismo
acadêmico se revela desde o primeiro parágrafo, ao questionarem os
autores se o Brasil não consegue superar uma suposta
real dicotomia, nunca superada, em seu
pensamento geopolítico para a região em torno de qual caminho seguir:
integração ou hegemonia. (23)
Apenas acadêmicos invocariam um
imaginário pensamento geopolítico num governo, ou num Estado, que parece
não possuir nenhum pensamento próprio, a não ser o dos ocupantes
ocasionais de funções eleitas ou tecnocráticas, assim como apenas os que
lidam com a realidade por meio de conceitos pré-fabricados poderiam
colocar esse tipo de “dicotomia” como preocupação dos profissionais da
diplomacia: integração ou hegemonia. O mesmo se poderia dizer deste
outro conceito invocado a torto e a direito, mas dotado de escassa
realidade objetiva: uma suposta “liderança” brasileira na região, ou até
mesmo uma “liderança não hegemônica”. Conceitos como esses pertencem ao
mundo acadêmico, ainda que diplomatas carentes de alguma retórica
elegante possam esgrimi-los ocasionalmente ou até empregar tais
expressões em seus expedientes de serviço (o que seria, provavelmente,
objeto de risos entre profissionais mais sérios).
Os autores questionam a “crença longamente arraigada no imaginário do establishment político
brasileiro” segundo a qual seria possível ao Brasil “se tornar uma
potência global sem se tornar antes verdadeiro líder regional”. Na
verdade, não se trata de crença tão arraigada assim, nem é ela
partilhada por toda a elite política brasileira, pois essa espécie de
mini-revolução “copernicana” na diplomacia do período lulopetista foi
inteiramente fabricada pelo governo companheiro, que começou justamente
por um pouco secreto desejo político-diplomático de fazer do Brasil um
líder regional (mas com essa particularidade de “ser um líder sem
seguidores”, como afirmou um acadêmico), para pouco depois – seja
incitado por estímulos “megalonânicos” vindo de súditos fieis, seja
gratificado pelo seu tremendo sucesso at large, com imprensa e líderes
mundiais saudando o novo “líder do Terceiro Mundo” – decidir investir
numa carreira verdadeiramente mundial, com vistas não apenas a emular,
mas superar o antigo líder cosmopolita da “diplomacia presidencial”, o
neoliberal FHC.
Os autores creditam as iniciativas de
Colômbia, Peru e Chile, no sentido de firmar acordos de livre comércio
com os EUA, como sendo um reflexo da agitação brasileira – na verdade
lulopetista – em torno dessa liderança regional, quando as razões, e as
raízes, são mais antigas, e têm a ver com antigos projetos de
liberalização comercial no hemisfério: o Chile, por exemplo, vinha
perseguindo tal objetivo desde que Bush pai anunciou a “Iniciativa para
as Américas”, em 1990, e os dois andinos se puseram em marcha nessa
direção assim que os “três amigos” – Chávez, Kirchner e Lula –
conseguiram implodir o projeto da Alca, de Clinton, em 2005. O Mercosul,
e o Brasil, além dos bolivarianos, foram os únicos excluídos dessa nova
modalidade de acordos bilaterais ou plurilaterais empreendidos pela
estratégia imperial.
Dizer, como fazem os autores, que o
Brasil “permaneceu atrelado ao Mercosul e a seus sócios, economias no
mais das vezes instáveis e problemáticas” é, de certa forma, ofensivo às
outras economias, sobretudo as dos menores (mais estáveis do que a do
próprio Brasil), assim como ao Mercosul, que não tem nenhuma culpa – no
sentido de sua estrutura e funcionamento – pelas disfunções,
descumprimentos e insolvências institucionais dos países membros, em
especial os dois grandes. Numa avaliação geral, no entanto, a análise
conduzida pelos autores nesta seção não reconhece o verdadeiro trabalho
de sapa, de desmantelamento institucional – talvez involuntário, de
amadores em questões comerciais e integracionistas como sempre foram os
companheiros – que foi conduzido sistematicamente pelos três governos
lulopetistas ao longo do período, em total contradição com os objetivos
originais do Mercosul e seu papel de plataforma para a inserção externa
dos países membros na economia global.
Na última seção, finalmente, “Defesa,
segurança e inteligência”, os autores lamentam que o “Brasil” não tenha
conseguido ser um “player global” (25), o que parecer ter sido a
obra de “sucessivos governos… inábeis em articular uma doutrina de
inteligência e de defesa adequada às necessidades e desafios impostos
pelos novos tempos” (idem). Se o problema fosse apenas o de articular
uma “doutrina” – o que muitos acadêmicos seriam capazes de prover, no
papel – essa incapacidade seria de fácil superação. Como diria Nelson
Rodrigues, “o subdesenvolvimento não se improvisa; é uma obra de
séculos”, e nisso parece residir todo o drama detectado pelos autores: o
Estado brasileiro, pelos seus tecnocratas permanentes – inclusive os da
“inteligência” – ou pelos seus governantes ocasionais, tem sido incapaz
de articular tal doutrina, mas isso é tudo o que se “espera” de uma
estrutura política carente de maior desenvolvimento institucional, e
submetida a um sistema político claramente disfuncional, capaz de
permitir o desmantelamento econômico, político e moral a que se assistiu
nos anos de vigência do lulopetismo criminoso.
Que o Brasil careça de uma verdadeira
agência de inteligência trata-se de um segredo de Polichinelo, e cabe
saudar os autores por colocarem o dedo na ferida. Mas a preocupação dos
autores está claramente focada na projeção internacional do Brasil,
quando essa “inteligência” não é sequer capaz de detectar e de
contra-arrestar a ação dos inimigos internos do Estado e das
instituições, como se verificou durante os exatos treze anos e meio da
dominação lulopetista sobre o “sistema” político e todas as agências
públicas. Cabe, em todo caso, acolher como uma boa sugestão dos autores a
proposta de se ter, nos quadros do Itamaraty, mais “profissionais
treinados no exercício de atividades de inteligência” (26). Já
representa algum progresso o fato de o Instituto Rio Branco, a academia
de formação dos diplomatas, e que detém o monopólio de seu recrutamento e
formação continuada, ter inaugurado uma cátedra de “defesa e
segurança”, o que pode ser a base futura para a almejada especialização
em inteligência.
Da mesma forma, são úteis as sugestões
dos autores no sentido de fazer com que o Itamaraty participe mais
ativamente da “tarefa de formulação das prioridades da inteligência
nacional”, eventualmente por meio da criação, em sua estrutura, de um
órgão similar ao “Bureau of Intelligence and Research (INR) do
Departamento de Estado, uma unidade que fornece all-source intelligence
de alto nível para o Secretário de Estado, o Conselheiro de Segurança
Nacional e o próprio Presidente dos EUA” (27). Tudo isso, obviamente, em
favor de “qualquer grande estratégia de política exterior”, que é o
objetivo último dos autores neste documento útil, mas controverso, ao
mesmo tempo.
Um diplomacia de pouco brilho? Conclusões pouco conclusivas…
Em suas conclusões os autores já partem
da percepção “corrente” de que “a política exterior [do “Brasil”] perdeu
muito de seu brilho, e não sem razão” (27). Mas, como vimos ao longo
desta análise conduzida em bases que acredito honestas, os autores
jamais atribuem as responsabilidades onde elas deveriam estar. Esse
“pouco brilho” se deve essencial e fundamentalmente ao desastre trazido
ao país e às suas empresas e cidadão pela gestão inepta e corrupta (além
de corruptora) dos quase três lustros de dominação lulopetista sobre o
país (ainda não de todo eliminada, como se depreende pelo ambiente de
divisão e de quase anomia em vigor atualmente). Os companheiros
simplesmente destruíram a economia do país e levaram ao descrédito quase
todas as suas instituições, inclusive os tribunais superiores.
Os autores insistem – mas este era o objetivo principal do documento – na necessidade de
formulação de uma grande estratégia
nacional que seja coerente e habilite o Brasil a perseguir seus
objetivos nacionais e globais, de forma coordenada e complementar, e que
evite as armadilhas inerentes à busca de objetivos contraditórios por
meios ineficientes – armadilhas que, como se viu, resultam em
desperdício de recursos, energia e capital político. (27-28)
Eles até chegam a pregar a utilidade de
se usar uma eventual “diplomacia coerciva” (28), ou seja, com alguns
dentes à mostra, o que seria alcançado pelo fortalecimento dos recursos e
habilidades nacionais de hard power, o que poderia horrorizar
mais de um diplomata (mas não certos militares, presume-se, ainda que
estes também pareçam inerentemente pacíficos). Existe aqui uma
contradição nos termos, pois como afirmam os autores:
O Brasil, apesar dos problemas que aqui
se apontam, continua a dispor de capacidades diplomáticas consideráveis e
de uma base econômica que lhe dá condições de tornar-se um verdadeiro
ator global. Em contraste, seus recursos militares, de inteligência e de
segurança não têm a mesma projeção. Enquanto o país não encaminhar esse
problema, equalizando os seus recursos e fazendo-os operar em sintonias
semelhantes, não terá condições de realizar as suas ambições
estratégicas. (28)
Como se constata, os autores acreditam
que o Brasil, a despeito de tudo o que se conhece, tem “ambições
estratégicas”, e que o país “não pode contentar-se com uma diplomacia
reativa e conformista”, o que certamente suscitará algum ranger de
dentes na Casa de Rio Branco, talvez um dos mitos diplomáticos que os
autores pretenderiam desmantelar. Em todo caso, acreditando basear-se em
“realismo propositivo”, os autores acreditam que
…o Brasil deve definir claramente
objetivos, princípios e recursos que orientem sua política exterior e
garantam o foco da diligência política nos temas verdadeiramente
importantes para a consecução desses objetivos. Sem isso, o Brasil
fracassará em sua busca por um lugar junto às grandes potências
mundiais, e suas ações nesse sentido permanecerão para sempre no terreno
da retórica. (28)
Descartando-se o fatalismo algo
determinista da última frase, percebe-se que a grande ambição dos
autores – que eles transferem, por meio deste documento bastante
provocador, ao país, ou à nação – é, de fato, a de colocar o Brasil
entre as grandes potências, um objetivo que os militares do regime
autoritário de 1964-85 já perseguiam incessantemente, por diversos
meios, mesmo os mais arriscados, e que provocaram as primeiras grandes
crises econômicas da contemporaneidade. Os companheiros, com os mesmos
grandes objetivos, e dotados de sua “grande estratégia” – algo que os
autores não reconhecem, pois nem mesmo atribuem responsabilidades onde
elas devem estar – conseguiram repetir o feito, dando o seu “grande
salto para a frente” (sem qualquer concessão inicial às “cem flores”),
em direção ao desastre econômico, à delinquência política e ao
desregramento ético, senão à falência moral. Militares e sindicalistas
mafiosos, ajudados estes pelos “guerrilheiros reciclados”, tinham os
mesmos grandes objetivos e “estratégias” razoavelmente concordantes.
Estas foram feitas de muito protecionismo comercial, de dirigismo
estatal, de intervencionismo exacerbado, de nacionalismo rastaquera, de
corporativismo quase fascista, e de um patrimonialismo nouvelle manière,
que abandonou suas feições razoavelmente modernizantes e weberianas da
era militar para se projetar como patrimonialismo de tipo gangster sob
os companheiros. A grande diferença é que os militares queriam o Brasil
firmemente ancorado nos círculos concêntricos do “Ocidente cristão”, ao
passo que os companheiros pretendiam reeditar o projeto de uma “terceira
via”, por certo anti-hegemônica, mas de fato inserida nos círculos
anacrônicos de regimes socialistas falidos, ou pretensamente
“policêntricos” (ou seja, contra a arrogância imperial).
Ainda bem que neste documento provocador
vez por outra aparece uma frase mais realista, sem as ambições
declaradas da “grande estratégia”, como por exemplo esta aqui, com a
qual concordo integralmente:
Maximizar o bem-estar de sua população é parte indispensável de qualquer esforço de defesa do interesse nacional. (28)
Apenas não entendo porque esse grande
objetivo nacional, que me parece resumir as aspirações nacionais mais
relevantes, deva ser agregado a um novo projeto tipicamente acadêmico de
relevante “projeção internacional”, o que me parece ser uma meta
inteiramente gratuita e sem sentido para as reais necessidades do país.
Estimo que quando o Brasil for uma nação decente para os seus próprios
cidadãos, ele será, ipso facto, um grande país no plano
internacional. Colocar o carro na frente dos bois é algo que eu não
recomendaria a nenhum órgão tecnocrático de planejamento de políticas
públicas, inclusive em meu próprio domínio profissional, supostamente na
área externa.
Esta não é, contudo, a visão dos autores
deste documento bastante útil para dar início a um debate relevante
sobre os caminhos do Brasil nesta fase de transição (embora ainda não
saibamos bem para o quê). Eles insistem, nas conclusões, sobre a
necessidade de se formular a tal de “grande estratégia” de política
exterior, como transparece neste penúltimo parágrafo:
A defesa efetiva do interesse nacional
dependerá de nossa capacidade de formular uma grande estratégia que nos
permita uma atuação internacional proativa, coerente e integrada, por
meio da qual possamos antecipar-nos a novas circunstâncias e desafios.
(28)
Eles acreditam, ademais, que tal projeto
contribuirá para resolver os demais problemas brasileiros, o que eu
reputo uma inversão de prioridades, segundo a minha preferência por uma
modesta estratégia de desenvolvimento nacional:
Uma estratégia nesses moldes, de resto,
haverá de constituir-se em auxílio fundamental em nossa missão mais
ampla de retomar o crescimento econômico e contribuir para resgatar a
identidade, o orgulho e a altivez da política exterior brasileira.
(28-29)
A menção ao conceito de “altivez”
remete, inevitavelmente, à tal de “diplomacia ativa e altiva” dos
companheiros, o maior exercício de mistificação diplomática de que se
tem notícia nos anais da moderna diplomacia brasileira, que aliás não é
sequer mencionada no “documento de conjuntura” da SAE, por razões que
permanecem para mim obscuras. Impossível não fazer uma análise da
política externa brasileira, nas últimas duas décadas, sem mencionar os
inúmeros pontos de ruptura (conceitual e prática) com a diplomacia
profissional do Itamaraty e com as orientações de política externa
mantidos no “ancien régime” tucanês, ou em qualquer outra época e
governos. Aliás, me parece impossível discorrer sobre a história
política e econômica brasileira deste início de século sem considerar
que o Brasil esteve, entre 2003 e 2016, sob o comando de uma organização
criminosa travestida de partido político. Os companheiros não apenas
destruíram a economia brasileira, como levaram suas instituições
políticas, inclusive as de controle da constitucionalidade e da boa
gestão pública a um total descrédito, deformando a atuação do Tesouro,
do Banco Central, das grandes agências públicas e de muitas empresas
estatais (que são infelizmente ainda muito numerosas e sujeitas ao
descalabro de um sistema político profundamente corruptor).
Esta é uma falha grave neste documento que poderia ter representado, em primeiro lugar, um bom balanço – do tipo stock-taking –
do que tivemos em matéria de política externa nas últimas décadas, suas
insuficiências e limitações, e o que poderia ser feito para melhorá-la.
Em vez disso, temos um amálgama equivocado de políticas externas
“anteriores”, todas inevitavelmente falhas e pouco ambiciosas, aos olhos
dos autores, e uma avaliação em vários pontos equivocado da ferramenta
diplomática, que foi, aparentemente, submissa aos desvarios dos governos
companheiros, sem que tal fato seja apropriadamente considerado na
análise conduzida neste documento.
A outra falha – mas que pretende ser uma
qualidade, aos olhos dos autores, e provavelmente de muitos leitores na
academia – é essa pretensão de se formular uma “grande estratégia” para
tornar o Brasil igualmente grande, belo e forte, e respeitado
internacionalmente, o que me parece um objetivo totalmente secundário em
face das – que entendo serem as – reais necessidades brasileiras em
termos de desenvolvimento econômico, de inclusão social e de inserção na
globalização. Como já explicitei em um dos capítulos de meu livro Nunca antes na diplomacia (disponível
nesta postagem de meu blog Diplomatizzando:
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/06/uma-grande-estrategia-para-o-brasil-eis.html),
minha “grande estratégia” passa antes pela questão da produtividade, ou
seja, basicamente através da educação e da capacitação humana dos
trabalhadores brasileiros. Mas, ainda que se considerem serem os fatores
e alavancas vinculados à interface externa do Brasil os mais
importantes nesse trabalho de aggiornamento do país – e que também podem
ser de trasformismo da nação, para permanecer nos conceitos clássicos
ligados à emergência da Itália contemporânea –, mesmo assim considero
não ser necessária nenhuma “grande estratégia” para alcançar os modestos
objetivos de uma potência média (o que o Brasil sempre será, ao menos
no horizonte previsível), mas dotado de uma democracia funcional, de um
padrão de vida condizente com as exigências de sua cidadania, e de um
ambiente de negócios totalmente aberto aos requisitos da economia
global, não o Estado disforme, o ogro famélico que se tornou um
obstáculo real a um processo de crescimento sustentado da economia
brasileira.
Estas são as minhas observações e
opiniões – por certo subjetivas, o que é meu direito – ao documento da
SAE; ele é, contudo, uma boa oportunidade para um debate sincero sobre
as grandes opções da nação. Não creio, objetivamente, que o Brasil deva
se propor assumir, como sugerem os autores, “um papel global ou exercer
liderança em sua região”, necessitando para isso de um “projeto
estratégico de Estado” (29). Se ele conseguir ser um bom país para os
seus cidadãos já será um grande projeto estratégico para si mesmo, e
conseguirá com isto projetar-se naturalmente no plano internacional.
Para mim, em última instância, a cidadania vem antes do Estado, e tem
total prioridade em qualquer projeto de desenvolvimento nacional. Esta
talvez seja a grande diferença entre a minha visão e a dos autores.
Obviamente, o debate permanece aberto…
Sobre o autor
Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira e diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI-MRE.
Como citar este artigo
Mundorama. "Uma visão crítica da política externa brasileira: a da SAE-SG/PR, por Paulo Roberto de Almeida".
Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais. [Acessado em 03/12/2017]. Disponível em: <
http://www.mundorama.net/?p=24308>.