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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 20 de janeiro de 2019

REdescobrindo ineditos (4) o problema do Mercosul (2014) - Paulo Roberto de Almeida


O Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, mas também econômico-comercial. Estas notas de 2014 pretendiam oferecer algumas sugestões para revitaliza-lo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de janeiro de 2019


O problema do Mercosul

Paulo Roberto de Almeida

Hartford, 27/07/2014


O Mercosul, desde 2003, deixou de ser uma ferramenta para a inserção internacional do Brasil, tal como tinha sido concebido no início dos anos 1990, e tornou-se um problema triplo: diplomático, econômico e de política comercial. Os desvios quanto aos objetivos do TA, detectados ainda na fase 1995-1999, foram ampliados depois da crise argentina, e tremendamente potencializados pelo curso errático das políticas adotadas pelas administrações Kirchner e Lula desde 2003. O tripé essencial para a continuidade do bloco – liberalização comercial para dentro, política comercial unificada para fora e coordenação de políticas macro e setoriais – foi totalmente desvirtuado a partir de então, em favor de uma politização indevida das instituições próprias ao bloco, seguindo-se uma verdadeira anarquia institucional.
No campo das negociações externas, ocorreu um desastre incomensurável, ao se adotar uma postura defensiva baseada no mínimo denominador comum, que passou a ser o protecionismo ordinário argentino. A implosão ideológica da Alca e a crença ingênua num acordo com a UE foram dois passos irrefletidos no caminho da insensatez. Nada avançou a partir de então, a não ser acordos ridículos na dimensão Sul-Sul, e um com Israel, apenas para compensação visual. Não estranha, assim, que vizinhos mais sensatos tenham procurado suas próprias soluções para comércio e investimentos, ao negociar acordos com os EUA, com a UE e outros parceiros, e ao adotar seus próprios esquemas de liberalização real dos fluxos comerciais (Aliança do Pacífico), já pensando na grande integração produtiva que terá seu centro na bacia do Pacífico e até no Índico, reunindo todos os grandes atores do comércio internacional (dos EUA à Austrália e NZ, e toda a Ásia Pacífico integrada na globalização). Brasil e Mercosul estão totalmente ausentes desse novo universo absolutamente central da atual e futura economia mundial.
Pior ainda foi a expansão indevida, totalmente política, do Mercosul em direção de vizinhos pouco propensos a adotar os mecanismos básicos da união aduaneira tal como definida em 1991 e supostamente implementada (com defeitos) em 1995. O ingresso desastroso da Venezuela, a suspensão ilegal do Paraguai, a abertura apressada e injustificada a parceiros incapazes de cumprir os requisitos básicos do TA e do POP (como Bolívia, Equador, talvez Suriname) não apenas não retificam o que foi feito de errado no Mercosul, como acrescentam novos problemas ao edifício instável do bloco.

2. Diagnóstico
Existem diferentes problemas no e do Mercosul, nenhum deles derivado de mecanismos e instituições do próprio bloco, todos eles derivados de políticas, atitudes e comportamentos das administrações nacionais, com destaque para a Argentina, mas contando ela com a conivência, complacência e cumplicidade dos governos petistas. Os problemas se situam na zona de livre comércio – e aqui o diálogo único a ser travado é com a Argentina – mas também na união aduaneira, o que envolve todos os parceiros, mas em especial a Argentina e o Paraguai. Nem se considera o problema da Venezuela, que deriva de seu próprio caos econômico: ela deveria ser, simplesmente, colocada em quarentena e isolada das negociações que precisam ser feitas com os sócios originais do bloco, para que se possa iniciar o processo de renegociação diplomática. Uma decisão preliminar é quanto ao sentido desse processo, o que será visto na seção das propostas.
No plano do livre comércio, caberia fazer um mapeamento dos impedimentos práticos à sua total consecução, e isolar esses setores numa espécie de “caixa amarela”, para então começar a discussão sobre seu enquadramento ou dispensa semipermanente. No campo da união aduaneira, caberia, igualmente, contabilizar e identificar os fluxos que são levados ao abrigo e fora da TEC, para um diagnóstico mais detalhado da situação. O mais importante, porém, seria um exercício de exame das políticas comerciais dos quatro membros – uma espécie de TPRM-OMC, adaptado às configurações do bloco – com vistas a ter um panorama real, e realista, sobre todas as políticas nacionais compatíveis e incompatíveis com os objetivos do bloco. Apenas a partir desse diagnóstico mais preciso se poderá partir para o terreno das prescrições de políticas, algumas simplesmente diplomáticas, mas a maior parte dependente de definições nas próprias políticas comerciais e industriais do Brasil (e dos sócios).

3. Propostas
Impossível fazer qualquer proposta realista sobre o maior problema diplomático do Brasil sem partir de uma visão muito clara quanto às demais definições de políticas nacionais, no campo econômico, certamente, mas também no das relações com a Argentina e com os demais parceiros prioritários do Brasil (que não são os do Ibas, do Brics, ou fantasias sulistas do gênero, mas), basicamente, EUA, UE, China, Argentina, demais sul-americanos, e todos os demais, nessa ordem.
Imaginando-se que essa macro-visão e macroplanejamento sejam impossíveis de serem feitos, por dificuldades práticas, e por falta total de “policy planning” no Estado brasileiro, caberia, simplesmente, começar com um grupo de trabalho no âmbito do MRE, integrado por representantes da Fazenda, do MDIC, do BC e talvez Camex (ou qualquer outra configuração restrita, segundo o perfil da nova administração), cujo mandato deverá ser o de uma discussão aberta, extensa e intensa, sobre o que fazer com o Mercosul, no sentido institucional e operacional, o que envolve necessariamente vários exercícios de simulação diplomática e econômica de dimensões variáveis.
A primeira grande definição, porém, mais de caráter estratégico do que propriamente diplomática, é a de saber se vale a pena prosseguir com o Mercosul, no seu formato e mandato atuais (do TA e do POP, sem os penduricalhos petistas), ou se cabe propor uma redefinição geral de seus pressupostos e fundamentos. É opinião deste que subscreve estas linhas que o Brasil deveria recuperar totalmente sua liberdade de estabelecer políticas econômicas e comerciais, e opções diplomáticas. Ou seja, o Mercosul deve servir ao Brasil, não o contrário, embora isso não possa ser dito.
Se não houver, contudo, definição pela reconfiguração estratégica da nossa política diplomática para o Mercosul e para a América do Sul, o grupo de trabalho deveria ser orientado a propor, em três meses, a convocação de uma “comissão de trabalho do Mercosul” para, no prazo de seis meses, definir, com os demais membros, as grandes linhas de uma nova conferência diplomática destinada a dar um novo rumo ao Mercosul. Seria uma espécie de refundação, ou um novo formato de convivência.
As definições a serem alcançadas pelo grupo de trabalho do MRE serviriam de balizamento para as posições brasileiras na comissão quadrilateral do Mercosul, e depois para a conferência diplomática a ser convocada em no máximo um ano a partir da posse do novo governo. Não é preciso dizer que essa conferência diplomática deverá ter posicionamentos compatíveis com todas as demais definições que o Brasil pretende ter nas suas políticas macro e setoriais nos âmbitos econômicos interno e externo.
Em síntese, o Mercosul precisaria voltar a ser um componente na estratégia brasileira de inserção internacional na economia mundial, não o problema que ele é hoje. Se isso não for possível, a nova administração precisaria estar disposta a aceitar o ônus de o Brasil “ficar sozinho” na América do Sul. Ficar sozinho, nesse contexto, significa deixar a Argentina entregue a seus próprios demônios, e seguir na mesma trajetória que outros grandes atores da região e fora dela estão adotando nesta conjuntura de reconfiguração geral – TPP, Tafta, etc. – da economia mundial. O Brasil nunca ficaria sozinho adotando uma grande estratégia de inserção internacional; ele pode, sim, virar anão diplomático se ficar amarrado a um Mercosul moribundo como é hoje esse bloco outrora promissor.

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 27/07/2014

Redescobrindo ineditos (3): rumos adequados para a politica externa (2014) - Paulo Roberto de Almeida

Dado continuidade a esta série de trabalhos esparsos, nunca antes divulgados, vou reproduzir aqui o que eu escrevia ainda antes da campanha eleitoral de 2014, a partir de meu posto de observação nos Estados Unidos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de janeiro de 2019


Rumos adequados à política externa brasileira na próxima década

Paulo Roberto de Almeida
Portland, Maine, 31 de maio de 2014 

Quais os rumos mais adequados à política externa brasileira na próxima década? Quando alguém se questiona sobre “rumos adequados” para a política externa, a noção implícita, ou mesmo a suposição direta, é a de que a política externa que foi seguida nos últimos dez anos não foi exatamente adequada, ou pelo menos não tanto quanto poderia, ou deveria ter sido. Pode ser que esta seja apenas uma suspeita sem fundamento, e que, ao contrário do que possam pensar espíritos malévolos e indivíduos mal-intencionados, a política externa que está aí, esta mesma que esteve e está conosco pelos últimos dez anos e meio, foi a maior das maravilhas do governo do nunca antes. De fato, como está no título do meu livro mais recente, nunca antes na diplomacia brasileira tivemos uma política externa como essa.
Mas também pode ser que, ao falar de rumos adequados para a política externa, a intenção seja essa mesma, ou seja: colocar em dúvida os propósitos, as intenções, os resultados, e quem sabe até os fundamentos da diplomacia do nunca antes. De fato ocorreu no Brasil, nos últimos dez anos, uma troca da diplomacia do Itamaraty, nossa velha conhecida, pela política externa partidária dos companheiros das boas causas, ainda que estas sejam perdidas ou simplesmente anacrônicas. Por isso mesmo, permito-me formular nos parágrafos seguintes alguns argumentos que poderiam sustentar uma hipotética política externa alternativa à dos companheiros, uma que tenha rumos adequados ao país, já que a que está ai trouxe fundadas desconfianças de que não serve a um país como o Brasil, que pode ser várias coisas, menos certamente bolivariano.
Caberia então, antes de falar do que poderia ser adequado para a política externa brasileira na próxima década, começar pela simples identificação do que não foi adequado nessa política, durante a última década. A partir daí talvez seja possível corrigir alguns dos erros, os desvios, os muitos equívocos, as deformações, enfim tudo aquilo que, antes dos companheiros chegarem ao poder, nunca tinha sido feito, mas que ele fizeram, de modo até despudorado, como se fosse essa mesma a intenção, ou seja, perpetrar todas essas iniciativas inadequadas, o que nos permite justamente estar agora discutindo, numa espécie de balanço, os seus rumos inadequados, num arremedo de “sessão descarrego” contra os maus espíritos, como se faz com alguns dos santos mais conhecidos do candomblé.
Se poderia começar, por exemplo, afastando qualquer retórica grandiloquente, dessas pelas quais se proclama, a altos brados, que se está defendendo a soberania nacional, lutando contra uma fantasmagórica dominação estrangeira, contra a submissão ao FMI, aos especuladores de Wall Street, aos neoliberais de Washington e tantas outras bobagens do gênero. Quem se enrola na bandeira da soberania, para enfrentar moinhos imaginários, é porque tem um sério problema psicológico, e não tem, no fundo, muita certeza de estar de fato defendendo o interesse nacional. O mais provável é que continue em campanha eleitoral e fica escondendo sua falta de imaginação com invectivas contra supostos inimigos da pátria, o que é, na verdade, uma insegurança tremenda sobre o que fazer, de fato, para defender os interesses nacionais. Ainda recentemente, um desses iluminados do partido da soberania nacional voltou a agitar o fantasma de uma volta ao passado, referindo-se continuamente ao neoliberalismo, como se um país dirigista e estatizante como o Brasil tenha sido, algum dia, um país liberal, e que não se sabe bem quais traidores da pátria andaram por aqui praticando as artes sempre perversas do neoliberalismo. Que falta de imaginação, ou que falta do que falar, justo do nosso velho fantasma do neoliberalismo. Devia ser numa assembleia da UNE, certamente.
Vamos ser diretos: a defensa dos interesses nacionais se faz com uma avaliação isenta, tecnicamente fundamentada, economicamente embasada, da agenda que cabe implementar na frente externa, sem arroubos, sem retórica vazia, sem grandes golpes de propaganda enganosa. Durante os últimos dez ou doze anos, os companheiros no poder fizeram exatamente isso: primeiro ficaram deblaterando contra quem os precedeu, inventando uma tal de herança maldita que só existiu por profunda desonestidade sub-intelectual, uma vez que a deterioração da situação econômica do Brasil, durante os meses da campanha eleitoral de 2002 só existiu por que os mercados temiam, justamente, os possíveis efeitos de uma política econômica esquizofrênica que os aprendizes de feitiçarias econômicas do partido dos companheiros tinham se encarregado de propagar durante os meses anteriores ao pleito presidencial.
Uma vez no poder, eles foram logo se empenhando na implosão da Alca, o projeto americano de uma zona de livre comércio hemisférica, não porque tivessem conduzido brilhantes estudos técnicos de simulação econômica sobre os efeitos de um tal acordo para o Brasil, mas apenas porque ideologicamente eram contra tudo o que pudesse provir do gigante do norte. Em seu lugar eles esperavam maravilhas de um hipotético acordo entre a União Europeia e o Mercosul, ou até chegaram a propor um acordo de livre comércio entre o bloco do Cone Sul e a China, como se esta fosse a solução para todos os problemas externos do Brasil e do Mercosul. Deve-se reconhecer que eles conseguiram o seu intento os companheiros, não exatamente o livre comércio com a União Europeia – uma ilusão de ingênuos e de amadores – e menos ainda tal tipo de arranjo com a China, mas obtiveram, de fato, a implosão da Alca, transformada em dragão da maldade imperialista.
Os companheiros também ficaram iludidos pela possibilidade de o Brasil ser admitido como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidos, uma verdadeira obsessão para alguns, numa outra suprema demonstração de irrealismo e de total falta de prioridades para a agenda externa do Brasil. Em nome desse objetivo, o supremo mandatário saiu pelo mundo perdoando dívidas bilaterais de ditadores do petróleo e prometendo apoio político para os mesmos inimigos das liberdades e dos direitos humanos. Aliás, fazer amizade com ditaduras parece que se converteu numa mania dos companheiros, sempre dispostos a tratar com complacência os piores perpetradores de atentados aos direitos humanos e valores democráticos no mundo. Antigamente, o Brasil apenas se abstinha quando das discussões e votos a respeito dos casos mais politizados nessas matérias nas instâncias da ONU: a partir de 2003, o país passou a votar ativamente com os violadores e inimigos da democracia ao redor do mundo. Não se está aqui inventando nada: basta conferir os votos envolvendo alguns desses países. Um embaixador político companheiro numa dessas ditaduras até chegou a defender o fuzilamento de simples balseiros que tentavam fugir da ilha-prisão da qual os companheiros gostam tanto (a ponto de financiá-la fartamente nos dias que correm).
Um outro comportamento inadequado do ponto de vista dos verdadeiros interesses do Brasil, sob qualquer critério que se julgue, foi o abandono da agenda comercial do Mercosul, em favor de uma agenda política que poucos progressos trouxe ao bloco; ao contrário, fê-lo retroceder tremendamente nos últimos dez anos. Dizer que o Mercosul não é só econômico ou não é só comercial, e que ele deve também avançar nos terrenos político ou social, não constitui apenas uma impropriedade semântica, mas representa um crime contra o bloco. O Mercosul é, antes de mais nada, um tratado de integração comercial, e se fundamenta, basicamente, na abertura econômica recíproca, na liberalização comercial, e na plena integração produtiva do bloco ao resto do mundo, ponto. É isso que está escrito em seu tratado constitutivo e é essa agenda pela qual os países deveriam se bater em suas políticas comercial e industrial. Nada disso se fez na lula-década, ao contrário. Durante todo esse tempo, o bloco só recuou na liberalização interna e na abertura externa, voltando a ser o avestruz temeroso que nossos países eram nos tempos pouco gloriosos do protecionismo comercial e da introversão econômica.
Finalmente, os rumos sensatos da diplomacia profissional foram bastante afetados pelo personalismo presidencial, e tudo passou a girar em torno da figura retumbante do guia genial dos povos, o grande líder das nações oprimidas pelo imperialismo, o homem que iria comandar uma cruzada contra o unilateralismo arrogante dos países hegemônicos, até mudar a relação de forças no mundo e inaugurar uma nova geografia do comércio internacional. Em nome desses objetivos grandiloquentes, várias iniciativas de grande envergadura foram tomadas, para as quais se mobilizaram mundos e fundos, e recursos humanos em abundância, sempre com o objetivo de exaltar a figura do chefe e seus discursos de sindicalista universal. Tudo começou pela tentativa de se implantar um Fome Zero Universal, quando sequer o brasileiro deu certo, e foi logo abandonado e substituído pela assemblagem marota de todos os programas sociais existentes desde o governo anterior, apenas rotulando-os com um novo nome e aumentando o poder de fogo do curral eleitoral então criado. Sinceramente, não sei se deveria ser motivo de orgulho nacional o fato de ter mais de um quinto da população do país numa lista oficial de assistidos por esmolas do governo, como se isso fosse um sinal de normalidade no quadro da comunidade internacional.

Bem, chega de inadequações e de equívocos do passado. Cabe agora refletir sobre o que significa ter uma política externa adequada para um país que pretende se inserir plenamente nos circuitos da economia globalizada, não retrair-se defensivamente apenas porque o Brasil perde competitividade, e se mostra incapaz de concorrer com outros parceiros comerciais por não lograr ganhos de produtividade que dependem de um diagnóstico correto dos problemas reais e uma prescrição conforme as necessidades sentidas. A primeira condição para superar o estado lastimável em que se encontra o Brasil atualmente é justamente saber traçar uma avaliação adequada dos desafios a serem enfrentados e colocar-se corajosamente na condição de propositor de novas medidas proativas, não ficar atribuindo ao ambiente externo as razões de seu baixo desempenho no contexto internacional.
Quais são os principais problemas enfrentados atualmente pelo Brasil? Eles estão, na frente interna, no baixo crescimento, no recrudescimento da inflação, na infraestrutura medíocre, na nossa insuficiente produtividade, que por sua vez se reflete, no plano externo, na perda de competitividade da economia brasileira, na chamada reprimarização da pauta exportadora – que diminuiu bastante em sua composição – e na nossa dependência de alguns grandes compradores dos produtos primários de exportação. O Brasil se tornou hoje bem mais dependente da China do que ele jamais o foi, no passado, dos Estados Unidos, país com o qual sempre mantivemos uma interface bastante diversificada, feita das exportações as mais variadas, inclusive manufaturados, e que sempre nos abasteceu de know-how, tecnologia, financiamentos, cooperação educacional, e também filmes de Hollywood e, ultimamente, iPhones e iPads.
Aparentemente, mais até do que esses problemas de ordem econômica, o Brasil parece ter perdido uma mercadoria ainda preciosa na frente internacional, uma coisa que se chama credibilidade. É isso que dá ficar apoiando ditaduras comunistas, violadores dos direitos humanos, agressores dos valores democráticos e outros meliantes do mesmo tipo. Vejam bem: temos consagrados na nossa Constituição alguns princípios que nos são muito caros, pois lutamos muito, no passado, para assegurá-los na ordem política interna e na nossa expressão externa: o pleno respeito dos direitos humanos, dos valores democráticos, a condenação do terrorismo e a não intervenção nos assuntos internos de outros países. E o que aconteceu nos últimos dez ou doze anos? Segundo um “wikileaks” do Itamaraty, recentemente divulgado pelo grupo Anonymous, pedimos aos Estados Unidos que retirem Cuba da lista dos países que patrocinam terroristas. Parece que somos aliados, justamente, de alguns dos piores regimes do planeta que violam esses princípios e valores constantemente, e ainda hoje o fazemos, numa superação da antiga hipocrisia – que parece ser normal quando alguns desses temas são politizados na agenda internacional – em favor de um apoio direto e solidário a essas ditaduras.
Mais grave ainda: nossa Constituição consagra o princípio de que qualquer acordo gravoso para o país tem de ser necessariamente aprovado pelo Congresso, para ser plenamente válido, depois de formalmente ratificado. Não é isso que tem ocorrido nos últimos tempos. Um outro princípio relevante da Constituição, que é a necessária aprovação do Senado para operações financeiras externas, também tem sido descurado em diversas ocasiões, por acaso envolvendo algumas das mesmas ditaduras. Como é possível que empréstimos de órgãos públicos possam ser classificados como secretos, e se eximirem, assim, do necessário escrutínio do Congresso? Não se trata nem mais de só fazer favores a ditaduras corruptas, mas de um desrespeito a todo o povo brasileiro – que alimenta esses empréstimos com os seus impostos – bem como ao próprio poder legislativo, que deveria monitorar as condições sob as quais são feitas esses generosos empréstimos a regimes muito pouco frequentáveis nesse nosso planetinha redondo.
A credibilidade de nossa política externa também tem sido posta à prova nesses episódios de inadimplência negociadora: o país, que pertence a um bloco que outrora pretendia ser um mercado comum, não consegue montar uma oferta exportadora, e concessões nas importações, para as negociações entre o Mercosul e a União Europeia. O bloco tampouco consegue dar início a novos processos negociadores com parceiros promissores, e isso quando esses mesmos parceiros têm assinado acordos de livre comércio ou de liberalização comercial com vizinhos mais ousados, ou talvez mais inteligentes e mais abertos do que nós. Por que é que o Brasil insiste nessa política de avestruz, se fechando ao comércio internacional, atribuindo a outros as fontes de nossos velhos problemas internos e pretendendo voltar a construir uma economia apenas baseada no mercado interno, quando sabemos que esse tempo já passou? Será que os companheiros no poder pretender voltar ao stalinismo industrial praticado em outras eras de nosso itinerário econômico?
Quando é, finalmente, que vamos parar de sustentar ditaduras miseráveis, e regimes inviáveis, e nos relacionarmos normalmente com as maiores democracias de mercado, atendendo de fato ao que nos prescreve a Constituição? Quando é que vamos deixar a introversão de lado e nos integrarmos plenamente nos circuitos da globalização contemporânea, sem mais esses pruridos defensivos que só tem atuado para diminuir, cada vez mais, nossa participação no comércio internacional? Quando é, por fim, que vamos deixar de lado essa diplomacia partidária, extremamente enviesada do ponto de vista dos interesses nacionais, e voltar às boas tradições do Itamaraty, baseadas numa análise isenta e objetiva das realidades externas, num tratamento profissional, tecnicamente embasado, dos itens da agenda internacional, e numa implementação consensual de questões que deveriam nos integrar cada vez mais ao mundo como ele, não colocar-nos à margem, e por vias obscuras, da grande integração global que se processa sob nossos olhos mas com pouca participação do Brasil?
Está na hora de retificar os rumos e de realmente adotar uma política externa que seja consentânea, adequada e condizente com o que o Brasil passou a ser depois do Plano Real: uma democracia, ainda que com muitas falhas, fundada numa economia de mercado, e que deve procurar defender sua estabilidade interna e sua plena integração ao mundo contemporâneo. O Itamaraty sabe como fazer, sempre fez, mas seria preciso deixá-lo fazer.

Portland, Maine, 31 de maio de 2014

Redescobrindo estudos ineditos (2): poder militar e economia nacional - Paulo Roberto de Almeida


Poder militar e economia nacional: argumentos esparsos

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 13 de julho de 2013;
Revisão: Brasília, 19 janeiro 2019

Os argumentos abaixo reproduzem parte de um debate que mantive, três anos atrás, com um colega de carreira, João Paulo Soares Alsina, que especializou-se em temas de estratégia, defesa e segurança nacional, por motivo da publicação de mais um livro desse excelente analista das questões relativas a assuntos de defesa. Meu próprio conhecimento dessas áreas é lacunar e imperfeito, pois nunca me dediquei, realmente, ao estudo sistemático de temas de defesa e segurança, ocupando-me bem mais de assuntos relativos às relações econômicas internacionais do Brasil, integração econômica e comércio e finanças internacionais. Creio, no entanto, dispor de algum conhecimento sobre essas interfaces disciplinares que envolvem o poder militar e o potencial econômico nacional, daí o conceito de “argumentos esparsos” do título.
As conexões entre o poder militar e a economia do país, estão, obviamente, intimamente entrelaçadas, e elas têm a ver, de certa forma, com a estratégia de desenvolvimento de um povo. Emprego estratégia num sentido largo, pois não creio que todo um povo, uma nação inteira, tenha “sentado” alguma vez para refletir sobre os caminhos que estão abertos para seu itinerário político e econômico. Mesmo os estadistas que eventualmente possam ter estado à frente da nação em alguns momentos decisivos de seu itinerário histórico podem ter alguma consciência da importância de escolher algumas vias, sobre outras alternativas, como as melhores para a prosperidade futura da nação, mas mesmo eles não controlam todos os elementos que entram na difícil equação do crescimento sustentado, com transformação produtiva e distribuição relativamente equitativa dos frutos desses crescimento, num ambiente de liberdades democráticas e pleno respeito dos direitos humanos.
Essa é uma equação complexa, que os povos vão cumprindo aos “trancos e barrancos”, para empregar uma frase de Darcy Ribeiro, mas que alguns povos fizeram melhor do que outros, em função de elementos estruturais – ligados à sua formação histórica – e de fatores contingentes, que são aqueles derivados das lideranças políticas e dos caminhos que estas imprimem à nação.
Olhando-se o mapa da prosperidade no mundo de hoje é evidente que alguns povos são mais prósperos do que outros, e outros, ainda, além de prósperos, também são poderosos, embora possa haver poderosos que não são prósperos, e prósperos que são débeis, militarmente. Mas, podemos dizer que existe uma correlação positiva, não mecânica, entre potência econômica e poderio militar, e creio que estes dois conceitos balizam este debate, que pode ser feito de maneira tópica e sistemática.

Fortalecimento da economia nacional antes do reforço do seu poder militar?
Nenhum processo que envolve um número complexo de variáveis – estamos falando da construção da prosperidade, como forma de se ter a base econômica para poder dispor de capacidade de projeção externa – ocorre naturalmente. Existem processos deliberados de construção de potência econômica e de poder militar – chamemo-los de “via bismarckiana” – e existem processos que respondem a tendências naturais, eventualmente impulsionados por lideranças clarividentes, mas que só podem “comandar” mudanças decisivas nos itinerários de seus povos respectivos a partir de certo acúmulo de condições favoráveis para responder aos estímulos e impulsos vindos de cima. Podemos chamar esta segunda via de “americana”, como hipótese.
A Alemanha, pela via bismarckiana, esteve na origem da três guerras que definiram o destino da Europa desde 1870, e que de certa forma também definiram o destino do mundo, ao precipitar a Europa na decadência com sua “segunda guerra de Trinta Anos”, o que a afastou do comando do mundo em favor de potências relativamente periféricas, como foram os EUA e a Rússia-URSS, mas por vias muito diferentes uma da outra. Houve uma via americana para a prosperidade, o que trouxe potencial econômico e poderio militar ao país, e houve uma via russa para os mesmos fatores, mas que passou pela autocracia, pelo escravismo stalinista, pelo imenso desperdício de recursos humanos e rebaixamento cultural de todo um povo, durante praticamente todo o século 20. Reconheçamos que a via americana foi mais positiva. Como foi essa via?
Em 1870 os EUA ainda estavam se recuperando de sua longa, cruel, mortífera guerra civil – que até hoje foi a que mais matou americanos, em qualquer conflito – e recém iniciavam o caminho para a sua prosperidade (o livro Economic Growth, de Robert Barro e Xavier Sala-i-Martin, com introdução disponível no site do MIT, dá os elementos factuais de seu crescimento desde 1870, com as alternativas possíveis). Na verdade, os EUA só se tornaram a primeira potência econômica a partir da última década do século 19, numa época em que a Alemanha já tinha superada a Grã-Bretanha como maior economia europeia e grande exportadora planetária.
Os Estados Unidos não parecer ter sido uma potência militar desde a 1a Guerra, pois acredito que isso só ocorreu com sua entrada na 2a Guerra justamente, e ainda assim a Alemanha permaneceu durante algum tempo como a principal máquina de guerra da guerra, possivelmente até 1943. Os EUA que venceram a Alemanha não foram a potência militar e sim a potência econômica (industrial), e a URSS que venceu a Alemanha nazista foi a horda de contingentes humanos que Stalin mandava para a frente de batalha, continuamente, não um oponente militar equivalente (os tanques ajudaram, mas teve muita ajuda ocidental, sem a qual a URSS não teria resistido à ofensiva alemã em 1941).
Os EUA salvaram a Europa ocidental duas vezes de uma derrota para a Alemanha, mas na Grande Guerra (1917-18) eles o fizeram ainda com base no número de soldados e no seu aprovisionamento, não porque fossem superiores estrategicamente. Eles tinham mais recursos, mas só entraram na guerra depois do afundamento do Lusitania e de algumas outras provocações alemãs (aliás, se, na Segunda Guerra, a Alemanha não tivesse declarado guerra aos EUA, três dias depois de Pearl Harbor, talvez o cenário militar na Europa fosse um pouco diferente, não como resultado, mas como desenvolvimento). Os EUA não tinham uma máquina de guerra eficiente até a Segunda Guerra, portanto, pois antes eles confiavam no seu isolamento do mundo, e na proteção natural dada por um território continental sobre dois oceanos, com uma marinha razoável, e um exército mais ou menos pífio.
Mesmo depois de serem a primeira potência econômica planetária, os EUA não investiram tanto quanto os europeus e o Japão em meios militares, pois não eram um império colonialista e não pretendiam dominar outros povos. Mais importante: não se sentiam ameaçados. Algumas perguntas podem ser feitas a esse propósito, envolvendo os Estados Unidos e o Brasil, a título hipotético.
OS EUA precisavam construir o seu potencial econômico para dispor de um formidável poderio militar? Não, tanto que o seu potencial econômico foi construído naturalmente, não da maneira bismarckiana, para serem preeminentes e poderosos, mas porque a sua formidável máquina produtiva se colocou em marcha, pela via dos mercados, não do governo, porque eles construíram, naturalmente, um modo inventivo de produção, que lhe trouxe riqueza, prosperidade, preeminência econômica, mas não militar, e assim foi até 1939 praticamente.
O Brasil precisa construir o seu potencial econômico? Certamente, não pelo PIB em si, mas pela prosperidade e bem-estar do seu povo, pois ele já tem o oitavo PIB mundial; mas seu povo continua miserável e o país tem um ridículo poderio militar.
O Brasil precisa construir o seu poder militar? Eu diria que não, pois ele não dispõe de poder econômico, e não tem nenhuma ameaça em vista, como não tinham os EUA, desde 1870 até 1941, praticamente (enfim, um pouco antes, mas os esforços não foram sistemáticos). Naquela época, e na cabeça do chanceler Rio Branco, a ameaça provinha da Argentina, daí o programa naval e outras coisas. Certo, mas isso não era uma ameaça à sobrevivência da nação, tanto que a construção do nosso poderia foi descontinuada, em parte por falta de meios econômicos, em parte porque o cenário podia ser contornado diplomaticamente, como Rio Branco sempre fez.
O Brasil precisa hoje fazê-lo? Minha resposta é negativa, mas compreendo que os militares prefiram uma resposta positiva a essa questão, o que faz parte da sua essência profunda. Eles não seriam militares se concordassem com um fraco poder militar. A questão está em saber que PIB sustenta o esforço para construir tal poder, sem mencionar a questão ainda mais importante que é a de saber que tipo de poder militar construir. Os militares provavelmente vão dizer que eles precisam de toda a panóplia militar, pois as ameaças são imponderáveis, e eu diria que a barreira do PIB seria nesse caso ainda maior. Recomento uma reflexão entre fins e meios, no plano estratégico.

O Brasil necessita, realmente, de um grande poder “duro”?
O poder duro das FFAA é relevante para o quê, exatamente, ou para quem, e em que condições, e para quais utilizações? O poder duro é relevante para nos transformar numa potência mundial? Ou seja, exagerando na comparação, ser um outro Paquistão, que tem a bomba atômica e um povo miserável, um Estado falido que não consegue assegurar sequer educação primária para as meninas?
Nós não conseguimos assegurar um padrão mínimo e decente para nossos estratos mais miseráveis, mas queremos ter um “poder duro”. Pois bem, o que faremos com ele? Paradas na nossa Praça dos Três Poderes, como se faz na Praça Vermelha? Isso é ridículo. Mesmo que o Brasil construa um “poder mais ou menos duro” apenas para atuar em operações de imposição da paz da ONU, ainda assim fica ridículo deixarmos gente miserável na frente interna para ter essa capacidade de projeção externa. Eu tenho minhas prioridades e elas passam antes pela prosperidade do povo brasileiro do que pelo “poder duro”. Este só se justificaria se tivéssemos ameaças, mas quais são elas, de onde provêm, quem nos quer mal e quer nos prejudicar? Estas são questões relevantes no debate sobre o “poder duro”: quem nos quer mal?
Pode estar na agenda dos militares, ou de certas elites, a construção desse “poder duro, mas dificilmente na de uma nação que ainda tem um PIB per capita muito atrás das nossas possibilidades. Tal pretensão me parece muito desconectada da realidade do país que nós somos. É possível, sim, ser um Paquistão nuclear, continuando a ser um Paquistão social e econômico, mas isso me parece patético e não muito desejável.

Quem construirá o “poder duro”? Uma decisão política ou a evolução econômica?
Investimentos nas FFAA sempre podem ser justificados, mas eu volto a me perguntar para o quê, exatamente? Qualquer planejamento para tal demora algo como 25 anos, e nesse período as tecnologias militares podem ter evoluído, mas as ameaças externas também. Os preparativos setoriais que foram feitos lá no começo podem não ser os melhores possíveis.
Gostaria de insistir na correção de uma concepção que me parece equivocada desde o início, a de que quem garante a segurança dos EUA e o poder militar americano é o Pentágono e os enormes gastos em defesa daquele país. Refuto isto, pois acredito que os EUA são poderosos A DESPEITO do Pentágono, não graças a ele. Quem garante o poderio militar dos EUA não é o Pentágono, e sim a professorinha de aldeia. O dia em que as FFAA (americanas ou brasileiras) precisarem se preparar para a defesa, ou mesmo para a guerra, em face de ameaças percebidas ou reais, elas vão precisar de engenheiros, tecnólogos, indústrias, cientistas, etc. Ou seja, aquilo que tem de ser programado, 25 anos antes ou mais, é a capacitação geral de todo um povo, não um exército formidável construído sobre a miséria relativa do seu povo.
Volto a dizer: os EUA só conseguiram mandar homens para o teatro europeu em 1917 porque já eram uma potência econômica há pelo menos 20 ou 30 anos, e já tinham feito seus pequenos experimentos guerreiros nas imediações (por circunstâncias, não porque estivessem naturalmente destinados a fazê-lo). O Brasil só foi ter um arremedo de poderio militar na guerra do Paraguai, e porque fomos obrigados a fazê-lo. Depois deixamos a coisa andar, mas os militares foram envolvidos na política e nunca mais deixaram de se envolver, até 1979, mais ou menos.
Agora acabou, mas isso também é irrelevante no plano do poderio militar. Os militares não foram decisivos nem na Alemanha, nem nos EUA, e sim os líderes civis, que levaram o povo a secundar suas decisões de aventuras militares.
E a China, que parece estar construindo o seu poderio militar sob instruções do PCC? Isso é certo, mas o PCC de Deng Xiaoping tratou primeiro de construir o poderio econômico do país, antes de se lançar na modernização das FFAA E o país atua num ambiente no qual a China já foi terrivelmente humilhada pelas potências ocidentais e esquartejada pelos militaristas japoneses. Ela não pretende mais ser humilhada como no passado. O Brasil tem esse cenário, precisa de um “poder duro”? Não creio.

As FFAA gastam mais com pessoal (inclusive inativos) que com equipamento
Não há como não concordar com essa realidade, o que talvez esteja ligado à relativa “irrelevância” das FFAA enquanto “poder duro”. Será que ela se ocupa mais dela mesma do que de seus objetivos constitucionais? Se trata da corporação mais segura do Brasil, a melhor organizada, a que não corre nenhum risco de vida,  a que tem a mais alta “desproporção contábil” entre contribuições previdenciárias e retornos de aposentadoria, justamente por causa desse investimento na remuneração, não no equipamento.
Concordo que se o investimento fosse de 3% do PIB talvez o equipamento e a preparação fossem melhores, mas qualquer economista sensato diria que as dotações orçamentárias das FFAA são e sempre serão gastos improdutivos, a não ser quando integrados nos circuitos produtivos nacionais. Mas por isso mesmo que digo que se trata antes de construir o poderio econômico, pois junto virão orçamentos melhores para as FFAA. O destaque orçamentário para as FFAA, nas condições do Brasil, sempre será feito em detrimento de outros gastos, que já são a porcaria que são, pois se gasta mais com os ricos, e os mais espertos (que são os mandarins da República, a classe média universitária, a burguesia do BNDES, os banqueiros da dívida pública, etc.) do que com o imenso contingente de jovens que não dispõem de condições adequadas de estudo. Eu sinceramente trataria da educação em primeiro lugar, e não apenas por destaques orçamentários, mas por uma revolução nos métodos e nos instrumentos. Essa é a verdadeira tragédia do Brasil, em face da qual a “pobreza” das FFAA me parece um falso problema, e uma reclamação a mais da parte dos mandarins de uniforme.

O cenário sempre será de restrições orçamentárias para as FFAA?
As FFAA não correm o risco de ficar mais “pobres” do que já são, pois como os universitários, os políticos, os magistrados, elas são bem organizadas, e conseguem, de vez em quando, “assaltar os cofres públicos”, e melhorar a vida dos seus, ainda que não o tal “poder duro”. Não se pense que não é assim, pois é exatamente assim: quando os lobbies vão a Brasília, implorar recursos nos ministérios, pedir proteção tarifária, convencer os parlamentares que a sua causa é “estratégica”, ou “social”, o dinheiro acaba saindo e tudo fica como está. Esse é um cenário que conhecemos muito bem: é o do cobertor curto, e todos disputando um naco do bolo, que é infelizmente muito pequeno.
Um planejamento orçamentário focado nos pobres e nos problemas reais do país deixaria todos eles à míngua – universitários, magistrados, banqueiros, industriais, militares – e cuidaria da educação em geral, mais da primária, secundária e técnica em particular. Foi isso que fez a Alemanha, durante dois séculos – Prússia e depois Alemanha – e conseguiu ser, primeiro o maior perturbador da paz europeia e mundial, e depois a principal potência produtiva do planeta, o que ela ainda é, de certa forma, sem ser mais bismarckiana.
Como toda a conversa em torno do declínio relativo dos EUA, e ele existe certamente no terreno industrial, eles ainda são a primeira potência econômica planetária, baseada sobretudo na economia da inteligência. Nossos militares ainda querem um pouco mais de “stalinismo industrial” – ou seja, uma base econômica essencialmente nacional –, mas como sempre, eles estão lutando batalhas passadas. Acho que já está na hora dos mandarins militares – já que os civis continuam indolentes, inconscientes, quando não corruptos – tomarem consciência disso e colaborarem, não bismarckianamente, para o progresso da nação. Acho que a via tem de ser americana, mas todos os nossos mandarins, inclusive os militares, acham que os mercados têm de ser “regulados” pela mão visível do Estado. Por isso mesmo vamos continuar nosso lento itinerário em direção da riqueza e da prosperidade. É muito mais fácil e rápido fazê-lo pelos mercados do que pelo Estado, mas muita gente não concorda com isso, infelizmente.

Estes argumentos são muito liberais? Provavelmente...
Eu não chamaria a minha visão dos problemas de desenvolvimento do Brasil de liberal, de mercadista, ou qualquer outra conotação ideológica. Já fui marxista, stalinista industrial, essas coisas, mas creio que nunca cheguei a ser um mandarim da República, ainda que objetivamente eu seja um da classe, hoje, mas não da espécie, sequer da família. Sou antes de tudo um bom observador do mundo, conhecimento adquirido em viagens, e um estudioso da história, especialmente a econômica. Acredito divergir radicalmente da maior parte dos nossos colegas, dos militares, dos nossos burgueses e de outros mandarins da República: tendo vindo da pobreza para uma situação aceitável com base no meu próprio esforço e na educação, acredito que as crianças do Brasil precisariam ter as mesmas oportunidades que eu tive de se educar e se enriquecer intelectualmente. Acredito que esse foi o caminho seguido pelos imigrantes nos EUA, sem qualquer planejamento estatal, apenas com algum discernimento sobre o que era relevante na vida privada e na vida pública.
Acredito que continuaremos a perder oportunidades de crescer, de construir potencial econômico e poderio militar porque insistimos em fazer as coisas pela via da superestrutura estatal, onde os recursos são dilapidados entre os que controlam o Estado. Acho que ganharíamos mais se começássemos, por uma vez, pela infraestrutura educacional, isto é, pelos mais pobres.

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 13 de julho de 2013;
Revisão: Brasília, 19 janeiro 2019