O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Colapso de civilizações: mais um ? - Luke Kemp (BBC)

Estamos à beira de mais um colapso de civilizações?

  • Luke Kemp
  • *Especial para a BBC Future
Cabeça de estátua abandonada na Síria

CRÉDITO, JOSEPH EID / GETTY IMAGES

Legenda da foto, 

'As civilizações são frequentemente responsáveis pelo próprio declínio, mas sua autodestruição geralmente recebe ajuda externa', diz pesquisador

Grandes civilizações não são exterminadas, mas acabam com a própria existência.

Essa é a conclusão do historiador britânico Arnold Toynbee em sua principal obra, Um Estudo da História, dividida em 12 volumes. Ele explorou a ascensão e a queda de 28 civilizações diferentes.

O historiador estava certo em alguns aspectos: as civilizações são frequentemente responsáveis por seu próprio declínio. Sua autodestruição, no entanto, geralmente tem alguma "ajuda" externa.

O Império Romano, por exemplo, foi vítima de diversos problemas graves, incluindo superexpansão, mudanças climáticas, degradação ambiental e más lideranças. Um episódio marcante nesse processo de decadência foi a invasão e saque de Roma pelos visigodos no ano de 410 e pelos vândalos em 455.

O exemplo romano mostra que tamanho não necessariamente blinda civilizações do colapso. O Império chegou a abranger cerca de 4,4 milhões de quilômetros quadrados (equivalente a pouco mais da metade do território brasileiro), mas em poucos séculos viu suas dimensões encolherem praticamente a zero.

Pesquisa

Nosso passado é marcado por fracassos recorrentes. Como parte da minha pesquisa no Centro para o Estudo do Risco Existencial, da Universidade de Cambridge, estou tentando descobrir, por meio de uma "autópsia histórica", por que colapsos ocorrem. 

O que a ascensão e a queda das civilizações históricas nos dizem sobre a nossa? Quais são as forças que precipitam ou retardam um colapso? Conseguimos ver padrões semelhantes hoje em dia?

A primeira forma de observar civilizações passadas é comparar sua longevidade. Mas isso pode ser difícil, já que não há uma definição absoluta de civilização, nem um banco de dados abrangente dos nascimentos e mortes das populações.

Eu comparei o tempo de vida de várias civilizações, que defino como uma sociedade com agricultura, várias cidades, domínio militar em sua região geográfica e uma estrutura política abrangente. Dada essa definição, todos os impérios são civilizações, mas nem todas as civilizações são impérios. 

Um colapso pode ser definido como um processo de perda de população, identidade e complexidade socioeconômica. Há desmantelamento de serviços públicos e a desordem cresce à medida que o governo perde o controle de seu monopólio sobre a violência.

Praticamente todas as civilizações passadas encararam esse destino. 

Algumas se recuperaram ou se transformaram, como os chineses e os egípcios. Outros colapsos foram permanentes, como foi o caso da Ilha de Páscoa. Às vezes, as cidades no epicentro do colapso são recuperadas, como foi o caso de Roma. Em outros casos, como as ruínas maias, elas são abandonadas como mausoléu para futuros turistas e pesquisadores.

Forum Romano em Roma, Itália. Coliseu à distância.

CRÉDITO, GETTY IMAGES

Legenda da foto, 

Às vezes as cidades no epicentro do colapso são recuperadas, como foi o caso de Roma

Lições

O que isso pode nos dizer sobre o futuro da civilização moderna global? As lições de impérios baseados na agricultura se aplicam ao nosso período pós-século 18 de capitalismo industrial?

Eu diria que sim. As sociedades do passado e do presente são apenas sistemas complexos compostos por pessoas e tecnologia. A teoria dos "acidentes normais" sugere que sistemas tecnológicos complexos frequentemente permitem que falhas ocorram. Dessa forma, colapsos podem ser fenômenos normais para as civilizações, independentemente de seu tamanho e estágio.

As civilizações atuais podem estar mais avançadas tecnologicamente, mas isso nos dá pouco fundamento para acreditar que somos imunes às ameaças que dizimaram nossos ancestrais. As nossas novas habilidades tecnológicas trazem novos desafios sem precedentes.

E enquanto nossa escala pode agora ser global, o colapso parece acontecer tanto em vastos impérios quanto em reinos jovens. Não há razão para acreditar que um tamanho maior seja armadura contra a dissolução social. Nosso sistema econômico globalizado, fortemente conectado, é até mais propenso a propagar crises.

Imagem mostra casa sendo arrastada pelo mar agitado

CRÉDITO, GETTY IMAGES

Legenda da foto, 

Não há uma teoria única aceita sobre o porquê dos colapsos. Várias explicações são apontadas e, entre elas, estão ambiente e clima

Se o destino das civilizações anteriores pode ser um roteiro para o nosso futuro, o que ele diz? 

Uma forma de analisá-lo é examinar as tendências que precederam colapsos históricos e observam os acontecimentos de hoje.

Embora não exista uma teoria única aceita sobre o porquê da decadência de civilizações, historiadores, antropólogos e outros especialistas propuseram várias explicações, incluindo:

Mudança climática: Quando a estabilidade climática muda, os resultados podem ser desastrosos, resultando em quebra de safra, fome e desertificação. O colapso dos anasazis, da civilização de Tiwanaku, dos acadianos, dos maias, do Império Romano e de muitos outros coincidiu com mudanças climáticas abruptas, geralmente secas.

Degradação ambiental: Colapsos podem ocorrer quando as sociedades sobrecarregam seu ambiente. Essa teoria do colapso ecológico aponta para o desmatamento excessivo, a poluição da água, a degradação do solo e a perda da biodiversidade como causas principais.

Desigualdade e oligarquias: A riqueza e a desigualdade política podem ser fatores centrais da desintegração social, assim como a oligarquia e a centralização de poder entre líderes. Isso não só causa desconforto social, mas prejudica a capacidade de uma sociedade responder a problemas ambientais, sociais e econômicos.

O campo da cliodinâmica (ciência que tenta explicar eventos históricos a partir da interação de diversos fatores) analisa de que modo aspectos como igualdade e demografia se correlacionam com a violência política. 

A análise estatística de sociedades anteriores sugere que isso acontece em ciclos. À medida que a população aumenta, a oferta de mão de obra supera a demanda, os trabalhadores tornam-se "baratos" e a sociedade se torna mais disfuncional. Essa desigualdade enfraquece a solidariedade coletiva e alimenta turbulências políticas.

Complexidade: O historiador Joseph Tainter afirma que as sociedades acabam entrando em colapso sob o peso de sua própria complexidade e burocracia acumuladas. Sociedades são coletivos de solução de problemas que crescem em complexidade para superar novos problemas. No entanto, o crescimento dessa complexidade acaba alcançando um limite. Depois desse ponto, o declínio acabará acontecendo.

Outra medida de crescente complexidade é chamada de Energia Retornada Sobre Energia Investida (EROI, na sigla em inglês). Isso se refere à razão entre a quantidade de energia produzida por um recurso em relação à energia necessária para obtê-lo. Em seu livro The Upside of Down(atualmente sem edição no Brasil), o cientista político Thomas Homer-Dixon observou que a degradação ambiental em todo o Império Romano levou à queda da EROI de sua fonte de energia básica: as culturas de trigo e alfafa. 

O império caiu junto com seu EROI. Tainter também considera a queda do indicador uma das principais responsáveis pelos colapsos, inclusive dos maias.

Choque externo: Em outras palavras, os "quatro cavaleiros do apocalipse": guerra, desastres naturais, fome e pragas. O Império Asteca, por exemplo, foi extinto pelos invasores espanhóis. 

A maioria dos primeiros Estados agrários desapareceu devido a epidemias mortais. A concentração de seres humanos e gado em assentamentos murados e com higiene precária tornou os surtos de doenças inevitáveis e catastróficos. 

Às vezes esses desastres acontecem combinados a fatores como, por exemplo, a introdução da salmonela (bactéria causadora de diversas doenças) nas Américas por meio dos conquistadores espanhóis. 

Acaso/má sorte: Análises estatísticas sobre os impérios sugerem que o declínio é aleatório e independente de longevidade. 

A bióloga evolucionista e cientista de dados Indre Zliobaite e seus colegas observaram um padrão semelhante no registro evolutivo das espécies. Uma explicação comum para essa aparente aleatoriedade é a "Hipótese da Rainha Vermelha": se as espécies estão em luta constante pela sobrevivência em um ambiente em transformação com inúmeros concorrentes, a extinção é uma possibilidade real. 

Presentational grey line

CRÉDITO, AFP

Apesar da abundância de livros e artigos, não temos uma explicação conclusiva sobre o porquê de as civilizações entrarem em decadência. O que sabemos é o seguinte: todos os fatores destacados acima podem contribuir. 

O colapso é um fenômeno que acontece quando fatores de tensão ultrapassam a capacidade de tolerância da sociedade.

Podemos examinar esses indicadores para ver se o risco, no caso das civilizações atuais, está caindo ou aumentando. Quatro desses possíveis indicadores que deveriam ser considerados são mudanças climáticas, impacto ambiental, desigualdade e complexidade.

A temperatura é um claro indicador de mudança climática, o PIB é um parâmetro de complexidade e a pegada ecológica é um indicador de degradação ambiental. Cada um desses indicadores tem seguido uma tendência de alta acentuada.

A desigualdade é mais difícil de calcular. A medição típica do Coeficiente de Gini (instrumento estatístico para medir condições de renda das populações) sugere que a desigualdade diminuiu um pouco globalmente (embora esteja aumentando dentro de determinados países). 

No entanto, o Coeficiente de Gini pode ser equivocado, pois mede apenas as mudanças relativas à renda. Em outras palavras, se um indivíduo que ganha US$ 1 e outro que ganha US$ 100 mil dobrassem sua renda, o Gini não mostraria mudança alguma. Mas a lacuna entre os dois teria saltado de US$ 99.999 para US$ 198.998.

Por causa disso, eu também olhei para a renda dos 1% mais ricos do mundo. 

Esse 1% aumentou sua participação na receita global de aproximadamente 16% em 1980 para mais de 20% hoje. É importante ressaltar que a desigualdade de riqueza é ainda pior. 

A parcela da riqueza global desse 1% aumentou de 25-30% na década de 1980 para aproximadamente 40% em 2016. É provável que a realidade seja mais acentuada, pois esses números não consideram riqueza e renda desviadas para paraísos fiscais no exterior.

Imagem mostra possível morador de rua sentado em meio à nevasca

CRÉDITO, DREW ANGERER / GETTY IMAGES

Legenda da foto, 

Os ricos estão ficando mais ricos, o que nas civilizações do passado criou uma tensão adicional sobre as sociedades

Estudos sinalizam que o EROI para combustíveis fósseis vem diminuindo ao longo do tempo, à medida que as reservas mais fáceis de alcançar e as mais ricas estão se esgotando. Infelizmente, a maioria das fontes renováveis, como a solar, tem um EROI consideravelmente menor, principalmente devido à densidade de energia, metais raros e processo de fabricação necessários para produzi-los.

Isso levou grande parte dos pesquisadores a discutir a possibilidade de um "abismo energético", à medida que o EROI diminui a um ponto em que os atuais níveis sociais de riqueza não podem mais ser mantidos. 

Esse "abismo energético" não precisa ser definitivo se as tecnologias renováveis continuarem a melhorar e as medidas de eficiência energética forem rapidamente implementadas.

Medidas de recuperação

Uma notícia mais tranquilizadora é que os indicadores de colapso não são definitivos. A recuperação social pode atrasar ou até mesmo impedir o colapso.

Por exemplo, globalmente, a "diversidade econômica" - uma medida da diversidade e sofisticação das exportações dos países - é maior hoje do que era nas décadas de 1960 e 1970, segundo medições pelo Índice de Complexidade Econômico (ECI, na sigla em inglês). 

As nações são, em média, menos dependentes de tipos únicos de exportação do que eram antes. Por exemplo, uma nação que conseguisse diversificar suas exportações para além de produtos agrícolas estaria mais propensa a enfrentar a degradação ecológica ou a perda de parceiros comerciais. 

O ECI também mede a intensidade do conhecimento das exportações. Populações mais qualificadas podem ter maior capacidade de lidar com crises à medida em que elas surgem.

Da mesma forma, a inovação - medida por pedidos de patente per capita - também está aumentando. Em teoria, uma civilização pode ser menos vulnerável ao colapso se novas tecnologias puderem amenizar pressões como as mudanças climáticas.

Também é possível que o declínio possa acontecer sem uma catástrofe violenta. Como Rachel Nuwer escreveu para o BBC Future em 2017, "em alguns casos, as civilizações simplesmente desaparecem - tornando-se material para a História sem um grande estrondo, mas apenas com um gemido".

Homens trabalham usando maçaricos em indústria

CRÉDITO, GETTY IMAGES

Legenda da foto, 

Nossas capacidades tecnológicas podem ter o potencial de retardar a decadência da civilização

Ainda assim, quando olhamos todos esses indicadores de colapso e recuperação como um todo, a mensagem é clara: não devemos ser complacentes. 

Existem algumas razões para sermos otimistas, graças à nossa capacidade de inovar e diversificar longe do desastre. No entanto, o mundo está piorando em áreas que contribuíram para o colapso das sociedades anteriores. 

O clima está mudando, a distância entre ricos e pobres está aumentando, o mundo está se tornando cada vez mais complexo e nossa pressão sobre o meio ambiente está sobrecarregando o planeta.

A escada sem degraus

Isso não é tudo. O mundo está agora profundamente interligado e interdependente. 

No passado, o colapso acontecia em nível regional - era um retrocesso temporário, e as pessoas podiam facilmente retornar a estilos de vida agrários ou caçadores-coletores. 

Para muitos, o colapso funcionou como um alívio da opressão dos primeiros Estados. Além disso, as armas disponíveis durante as rebeliões sociais eram rudimentares: espadas, flechas e ocasionalmente armas de fogo.

Hoje, o declínio social é uma perspectiva mais traiçoeira. As armas disponíveis para um Estado e, às vezes, até para grupos, agora variam de agentes biológicos a armas nucleares. Novos instrumentos de violência, como armas autônomas letais, podem estar disponíveis num futuro próximo. 

As pessoas estão cada vez mais especializadas e desconectadas da produção de alimentos e bens básicos. E as mudanças climáticas podem prejudicar irremediavelmente nossa capacidade de retornar a práticas agrícolas simples.

Pense na civilização como uma escada mal construída. Conforme você sobe, cada degrau que você usou desmorona. Uma queda de uma altura de apenas alguns degraus não é tão perigosa. No entanto, quanto mais alto você sobe, maior a queda. Inevitavelmente, uma vez que você alcance uma altura maior, qualquer queda da escada é fatal.

Com a proliferação de armas nucleares, podemos já ter atingido este ponto de limite civilizacional. Qualquer colapso - qualquer queda da escada - corre o risco de ser permanente. Uma guerra nuclear em si poderia resultar em um risco existencial: a extinção de nossa espécie ou uma catapulta permanente de volta à Idade da Pedra.

Mulher caminha com criança em meio a ruínas de cidade na Síria após conflito entre combatentes

CRÉDITO, YASIN AKGUL / GETTY IMAGES

Legenda da foto, 

'Qualquer colapso - qualquer queda da escada - corre o risco de ser permanente', diz especialista

Enquanto estamos nos tornando economicamente mais poderosos e resistentes, nossas capacidades tecnológicas também apresentam ameaças sem precedentes que nenhuma civilização teve que enfrentar. Por exemplo, as mudanças climáticas que estamos encarando são de natureza diferente daquelas que os maias ou anazasi enfrentaram. Elas são globais, influenciadas pelas ações dos seres humanos, mais rápidas e mais severas.

A ajuda para nossa ruína auto-imposta não virá de vizinhos hostis, mas das nossas próprias capacidades tecnológicas. O colapso, no nosso caso, seria uma armadilha do progresso.

O colapso da nossa civilização não é inevitável. A História sugere que ele é provável, mas temos a vantagem única de poder aprender com as ruínas das sociedades do passado.

Nós sabemos o que precisa ser feito: as emissões podem ser reduzidas, as desigualdades, niveladas, a degradação ambiental, revertida, a inovação, desencadeada e as economias, diversificadas. 

As propostas políticas estão aí. O que falta é a vontade política. Nós também podemos investir em recuperação. Evitar a criação de tecnologias perigosas e amplamente acessíveis também é fundamental. Tais medidas diminuirão a chance de um colapso futuro se tornar irreversível.

Nós só entraremos em declínio se avançarmos cegamente. Estaremos condenados apenas se não estivermos dispostos a ouvir o passado.

Presentational grey line

CRÉDITO, AFP

*Luke Kemp é especialista em colapsos de civilizações. 

Este artigo faz parte de uma nova série da BBC Future chamada "Deep Civilisation" (Civilização Profunda, em tradução livre), sobre uma visão de longo prazo da humanidade, que visa se afastar do ciclo de notícias diárias e ampliar o olhar sobre nosso lugar atual no tempo. A sociedade moderna está sofrendo de "exaustão temporal", disse a socióloga Elise Boulding. "Se alguém está o tempo inteiro mentalmente sem fôlego, por lidar com o presente, não resta energia para imaginar o futuro", escreveu ela. É por isso que essa série de reportagens vai explorar o que realmente importa no arco mais amplo da História humana e o que isso significa para nós e nossos descendentes.


quinta-feira, 6 de maio de 2021

Itamaraty; um mês da nova administração, o que há de novo? -

 Mudança pode ter sido cosmética': Carlos França completa 1 mês na chefia do Itamaraty

Sputnik, 06/05/2021

O chanceler, Carlos França, completa um mês na chefia do Ministério das Relações Exteriores do Brasil longe dos holofotes. O perfil discreto do novo chanceler contribui para uma mudança real na política externa brasileira?

Nesta quinta-feira (6), o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos Alberto Franco França, completa um mês na chefia da política externa brasileira.

Sua ascensão ao cargo se deu após grave crise entre o Itamaraty e o Legislativo, que forçaram a saída do então chanceler, Ernesto Araújo.

A gestão de Araújo foi culpada pelas dificuldades do Brasil em adquirir vacinas contra a COVID-19 internacionalmente, enquanto o novo coronavírus ceifava mais de três mil vidas diariamente.

O presidente, Jair Bolsonaro, optou por nomear o diplomata que chefiava o seu cerimonial, Carlos Alberto Franco França, para liderar o Ministério das Relações Exteriores.

Com perfil mais discreto, o novo chanceler parece ter retomado o tom polido característico das chancelarias ao redor do mundo.

Mas, sem poder para influenciar o presidente, França pode não realizar mudanças significativas na política externa brasileira.

"O Carlos Alberto França é um quadro interno do Itamaraty que pode até ser excelente, mas não tem força política dentro do governo", disse o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, em São Paulo, Gilberto Maringoni, à Sputnik Brasil.

Maringoni lembra que Carlos Alberto França, antes de ser ministro, "não chegou a chefiar embaixadas ou ocupar postos de destaque". "Então a possibilidade de ele influenciar o Bolsonaro é muito pequena, até porque não sabemos se ele tem a capacidade de influenciar o próprio Itamaraty internamente", considerou.

Apesar da fragilidade política, a chegada de França traz alguns avanços concretos para a política externa brasileira.

"O principal ganho de termos o França no ministério é que já não há aquele tipo de balbúrdia, como acusações irresponsáveis contra a China pelo coronavírus, ou aquela postura negacionista que víamos com o Ernesto Araújo", ponderou.

Nesta semana, Carlos Alberto França compareceu à Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, na qual apresentou os resultados de seu primeiro mês de mandato.

De acordo com Maringoni, França "fez um discurso razoavelmente longo, no qual sobretudo prestou contas sobre o andamento da diplomacia da vacina".

"É um discurso anódino, o que, no caso do Brasil, é um fator positivo. Antes um discurso anódino do que a postura negacionista que víamos anteriormente", considerou Maringoni.

No entanto, "por mais que o Carlos Alberto França possa ter diferenças em relação ao Ernesto Araújo, é muito difícil ele virar esse transatlântico que é a política externa brasileira", alertou o especialista.

Segundo ele, a política externa não é definida somente "pela diplomacia do Itamaraty", mas também pela "conduta econômica do Brasil conduzida pelo [ministro da Economia] Paulo Guedes, a questão do meio ambiente conduzida pelo [ministro do Meio Ambiente] Salles, e a própria diplomacia presidencial".

Portanto, sem uma mudança mais profunda nas políticas conduzidas pelo governo federal, a atuação internacional do Brasil não deve sofrer alterações significativas.

Um exemplo seria a atuação do Brasil na Cúpula do Clima convocada pelo presidente norte-americano, Joe Biden, em meados de abril. 

"Na reunião sobre o clima, o Bolsonaro pode fazer um discurso civilizado, mas internamente não há mudança nenhuma", lamentou Maringoni.

Segundo ele, o governo segue adotando política que desfavorece o combate ao desmatamento na Amazônia e dificulta a fiscalização por parte dos órgãos competentes.

"Por isso, tenho receio de que a mudança no Itamaraty com o Carlos Alberto França seja cosmética, como foi a troca no Ministério da Saúde do general Pazuello pelo ministro Queiroga", notou o especialista.

Segundo ele, apesar de Queiroga se apresentar como um perfil mais aberto ao diálogo, a política de saúde do governo Bolsonaro não sofreu nenhuma alteração de monta. 

"O que mudou com o Queiroga no Ministério da Saúde? Mudou que temos um sujeito civilizado na chefia da pasta, mas a política brasileira continua sendo de cortes no orçamento do Sistema Único de Saúde [SUS]", apontou.

"No Itamaraty podemos estar vendo isso também. Não tem uma mudança operacional, temos uma mudança no verbo, na fala, e não uma mudança efetiva nas ações", disse Maringoni.

O especialista chama a atenção para a atuação do Itamaraty no caso recente de El Salvador.

Em 2 de maio, a destituição de cinco juízes da Suprema Corte de El Salvador por parte do presidente do país, Nayib Bukele, foi considerada, por muitos países, como uma tentativa de golpe parlamentar.

"Os EUA, assim como diversos outros países, imediatamente condenaram o ocorrido como uma escalada antidemocrática", relatou Maringoni. "Mas o Itamaraty não se pronunciou até agora."

O deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), apoiou a destituição ao publicar postagem em rede social, comemorando a decisão do presidente salvadorenho.

Por um lado, "forças políticas dentro do Brasil caminham na direção de fazer coro com El Salvador, por outro, países democráticos condenam a destituição dos juízes, e, no meio disso, o Itamaraty permanece paralisado", ilustrou Maringoni.

Para ele, o caso de El Salvador é ilustrativo do atual momento que vive o Ministério das Relações Exteriores brasileiro.

"É justamente durante acontecimentos que colocam em choque a atuação internacional do Brasil e a diretriz autoritária do governo Bolsonaro que veremos qual será o comportamento do Itamaraty", explicou o especialista.

Por enquanto, é necessário monitorar qual o real impacto da chegada de um chanceler com perfil mais polido na chancelaria.

"É claro que é melhor termos uma pessoa com ares civilizados no comando do Itamaraty, mas isso não pode ser interpretado como uma mudança de política externa", alertou o especialista.

Nesta quinta-feira (6), o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos Alberto Franco França, comemora um mês de permanência no cargo, considerado essencial para o acesso a vacinas e produtos médicos para combater a pandemia de COVID-19 no país. O Brasil confirmou mais 2.791 mortes e 75.652 casos de COVID-19, totalizando 414.645 óbitos e 14.936.464 vítimas fatais, informou o consórcio entre secretarias estaduais de saúde e veículos de imprensa.

https://br.sputniknews.com/opiniao/2021050617471355-mudanca-pode-ter-sido-cosmetica-carlos-franca-completa-1-mes-na-chefia-do-itamaraty/