Uma tradição política convergindo para a centralização estatal
A formação da nação brasileira, a construção do Estado no Brasil, sua afirmação nos planos regional e internacional estão em grande medida ligadas à política externa, à sua diplomacia, antes mesmo de sua constituição, ao início do século XIX, enquanto entidade autônoma na comunidade de países independentes e de estados reconhecidos formalmente como pertencentes ao sistema de interlocutores legítimos nas relações internacionais. O Brasil emerge para esse cenário, e para as realidades da política internacional ainda em sua fase colonial, quando se passa dos antigos arranjos bilaterais concertados em Tordesilhas, em 1494, antes mesmo do descobrimento formal do Brasil, aos novos arranjos contraídos entre os dois reinos ibéricos em 1750, no quadro do Tratado de Madrid, em grande medida negociado por um “diplomata” brasileiro, Alexandre de Gusmão a serviço do rei português, D. João V. Sua grande contribuição à construção da futura diplomacia brasileira foi a adoção do princípio, ou do instrumento, do uti possidetis, como base da aceitação recíproca dos limites territoriais da possessão colonial portuguesa na América do Sul. Esse princípio se firmou subsequentemente, e serviu para consolidar as fronteiras do Brasil, no decorrer do século XIX e início do XX, tanto pela via arbitral, em alguns casos, quanto pelas negociações diretas, como preferido pelo Barão do Rio Branco a partir de sua posse como chanceler, em 1902.
Tais características da formação incipiente da diplomacia brasileira, no século XVIII, e logo em seguida ao início do século XIX, são evidenciadas no novo livro do embaixador Rubens Ricupero, A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017). Quais eram seus fundamentos essenciais? A afirmação do Direito, sem dúvida, em face das demonstrações de força das potências hegemônicas, às quais o Brasil não tinha condições de responder em igualdade de condições. Isso ficou evidente, por exemplo, nas exações britânicas contra o tráfico escravo, finalmente extinto em 1850, depois de muitas tergiversações e medidas “para inglês ver”. A continuidade da centralização política foi outro elemento essencial, o que permitiu manter a unidade nacional, num contexto de rebeliões periféricas, desde a Regência, o que poderia resultar no surgimento de três ou quatro unidades políticas em lugar de um Império unificado. Aí surge a força do Estado, que se constitui como um outro elemento essencial na construção do Brasil moderno. A partir do Segundo Império, o Brasil contemporâneo assume contornos mais definitivos, ainda que a velha República tenha buscado imprimir um sistema mais descentralizado, em seu início, movimento logo revertido, nos anos 1930 e novamente a partir do regime militar (1964-85), com a grande centralização operada em favor da União (sobretudo no plano fiscal), o que se mantém em larga medida na atualidade.
O Brasil moderno, mas ainda tradicional
As duas forças básicas do Brasil, a partir de meados do século XIX, são o estatismo e o nacionalismo, ambos refletidos perfeitamente em sua diplomacia, assim como em suas diversas elites (econômicas, políticas, acadêmicas), ao lado de outras forças históricas evidenciadas por diversas analistas, como o patrimonialismo (objeto de estudos clássicos de Antonio Paim e de Ricardo Vélez-Rodríguez). O patrimonialismo encontra-se entranhado na burocracia pública do Estado imperial, e projetou-se nos estamentos burocráticos do regime republicano, permanecendo extremamente forte em toda a nossa história. De certa forma, essa confusão entre o público e o privado se apresenta ainda mais forte nos dias que correm, com um “estamento burocrático” – a expressão vem do estudo clássico de Raymundo Faoro sobre os “donos do poder” – extremamente cioso de suas vantagens, privilégios e distinções, extraídos à custa de um sistema tributário iníquo e extorsivo dos verdadeiros criadores de riqueza no país, os empresários e trabalhadores do setor privado.
A diplomacia brasileira sempre pertenceu ao “estamento burocrático”: ela começou por ser portuguesa, mas se metamorfoseou em brasileira pouco depois, e a ruptura entre uma e outra deu-se na superação da aliança inglesa, que era a base da política defensiva de Portugal no grande concerto europeu. Já na Regência existe, segundo o livro de Ricupero, uma “busca da afirmação da autonomia” (p. 703), afinal conquistada a partir de 1844, conceito que veio a ser retomado numa fase recente da política externa, mas que Ricupero demonstra existir embebido na política exterior do Império. A construção dos valores da diplomacia do Brasil se dá nessa época, seguido pela confiança no Direito como construtor da paz, o princípio maior seguido pelo Barão do Rio Branco em sua diplomacia de equilíbrio entre as grandes potências da sua época. Vem também do Barão a noção de que uma chancelaria de qualidade superior devia estar focada na “produção de conhecimento, a ser extraído dos arquivos, das bibliotecas, do estudo dos mapas” (p. 710). A diplomacia brasileira é mais baseada na inteligência dos seus servidores do que na força externa do Estado, a rigor inexistente, como demonstrado pelas dificuldades de projeção externa, seja na guerra do Paraguai, seja no envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Depois da revolução de 1930, o estatismo, a centralização e o nacionalismo são extremamente reforçados, e são complementados pela ideologia do desenvolvimento, que se converte na ideia central dos dirigentes nacionais, quaisquer que sejam suas outras posturas políticas em relação a questões econômicas ou sociais. Ideólogos de “direita”, ou conservadores, assim como representantes de correntes de esquerda, ou aproximadas a tal, são igualmente estatizantes, nacionalistas e desenvolvimentistas. Essas “ideias-forças” estão amplamente internalizadas e profundamente associadas ao que Dante Moreira Leite chamou de “caráter nacional brasileiro”, a sua investigação sobre os traços maiores da psicologia nacional.
Militares e diplomatas, os dois agentes por excelência de um Estado organizado, partilham integralmente as mesmas ideias estatizantes e nacionalistas, e estão unidos em torno de projetos difusos ou mais explícitos de desenvolvimento econômico, ao longo do último século. Esses projetos – consubstanciados em uma sucessão impressionante de “planos nacionais de desenvolvimento” – não são exatamente liberais, mas sim tutelados pelo Estado, e basicamente críticos em relação à participação dos capitais estrangeiros no processo de desenvolvimento. Esses novos princípios continuam a conviver com o patrimonialismo, e de fato, o regime Vargas, que marca o Brasil ainda hoje, nada mais fez senão alterações cosméticas no patrimonialismo.
Esses mesmos traços de caráter acabam resvalando para certa rejeição de uma integração mais ousada com a economia mundial e o sistema internacional. Segundo Wilson Martins, um observador arguto de nossas construções mentais:
O Brasil sofre da mania de perseguição colonialista – é ela a responsável pelo nosso alheamento da realidade. Resultante de velho complexo de inferioridade – compensado e sublimado delirantemente pela criação de estereótipos os mais inconsistentes – ela alcança, neste momento da vida nacional, formas verdadeiramente patológicas, erigida que está em política, em programa da vida coletiva. (História da Inteligência Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1979, vol. VII, p. 418).
Essa mania de perseguição refletiu-se, no decorrer dos últimos cem anos, no desejo de escapar a toda “dependência” do exterior, o que na verdade significa uma atitude de desconfiança em relação aos países mais poderosos, ou seja, os mesmos que investiam, por seus agentes privados, no Brasil. Essa atitude reforça o nacionalismo e, mais tarde, já no mundo onusiano a partir do pós-Segunda Guerra e sobretudo nos anos 1960, desemboca no terceiro-mundismo, que permanece uma das opções preferenciais, por vezes atenuada, da diplomacia oficial. Estatismo, nacionalismo, desenvolvimentismo e terceiro-mundismo constituem, portanto, os traços mais relevantes da diplomacia brasileira, que influenciam poderosamente a conformação de sua política externa, e portanto, os grandes traços das relações internacionais da nação.
Rupturas e continuidades nas relações internacionais do Brasil
As relações internacionais da nação e a sua política externa constituem, a rigor, duas áreas nas quais os elementos de continuidade costumam ser mais fortes do que as forças de ruptura, inclusive pela própria estrutura dos vetores que atuam sobre as opções disponíveis aos agentes públicos. Estes podem, sem maiores constrangimentos, mudar mais amplamente políticas domésticas, inclusive a econômica, do que conseguem atuar sobre forças que se exercem a partir do exterior, geralmente no sentido da continuidade. A própria independência do Brasil, em certa medida, respondeu a reações a fatores externos, como a tentativa das cortes portuguesas de modificar o status do Brasil no quadro do Reino Unido estabelecido em 1815. As mudanças subsequentes na política comercial, em 1844 por exemplo, também se deveram à necessidade de romper com os compromissos feitos por Portugal e pelo próprio Brasil independente no quadro da aliança britânica, cuja hegemonia também esteve presente na decisão de abolir o tráfico.
A República, por sua vez, surge de uma crise propriamente interna, embora não fossem desimportantes o exemplo de progresso econômico da grande nação hemisférica e o fato de o Brasil ser considerado uma anomalia política num continente quase que inteiramente republicano. O manifesto dos republicanos de 1870 começava, aliás, pela frase: “Estamos na América e queremos ser americanos”. Outras mudanças políticas e econômicas também tiveram apoio em alterações do quadro externo, embora nem sempre determinante, como a revolução liberal de 1930 (em parte acelerada pela crise econômica iniciada em 1929), e a própria saída do Estado Novo, em 1945. O clima de Guerra Fria e a suposta ameaça de “comunização” do país estiveram subjacentes às crises politico-militares do início dos anos 1960, que desembocaram no golpe militar e na implantação do regime autoritário em 1964. Todos esses episódios tiveram reflexos na política externa e nas relações internacionais do país, com novas ênfases atribuídas a determinadas orientações em relativa ruptura com a fase precedente.
Outras mudanças, porém, decorreram de impulsos propriamente internos, ainda que respondendo a certas percepções quanto ao ambiente internacional e sua propensão mais ou menos convergente com os já mencionados projetos das elites (políticas, militares e diplomáticas) no sentido de acelerar o processo de desenvolvimento econômico. A Política Externa Independente (1961-64), por exemplo, ou o retorno não declarado às suas principais premissas desenvolvimentistas, a partir de 1967, respondem à percepção geral de que a aliança estreita com a potência hegemônica não estava dando os retornos esperados em termos de financiamento do desenvolvimento – guiado pelo Estado, como seria natural esperar – e que era necessário ampliar o leque de relações em direção a novas parcerias, inclusive para reafirmar o sempre presente projeto de autonomia plena em certas políticas estratégicas e tecnológicas (na nuclear, sobretudo).
Na maior parte dos casos, no entanto, a política externa acompanhou as grandes opções de política econômica seguidas por uma elite desenvolvimentista e nacionalista, mas não necessariamente doutrinária, ou ideológica, pois que propensa a adotar diversas configurações na frente externa – cooperação e atitudes mais ou menos favoráveis ao capital estrangeiro, segundo os casos, adesão a projetos integracionistas até certos limites, abertura econômica e liberalização comercial decididas de maneira ad hoc, de acordo com as circunstâncias e necessidades –, as quais a diplomacia profissional atendia de forma disciplinada, ainda que transmitindo ao decisor último sua própria visão dos desafios externos do Brasil. As preocupações naturais da área econômica do governo sempre estiveram mais focadas nos equilíbrios (ou desequilíbrios) externos de balanço de pagamentos, nos riscos cambiais e de solvência nos pagamentos externos, ao passo que a diplomacia colou mais o Brasil nas coalizões típicas da ONU, distinguindo, antes, países desenvolvidos, os socialistas e os em desenvolvimento, o que mudou, no período recente, com a implosão do socialismo e o ingresso decisivo da China nas relações internacionais, bem mais na vertente econômica do que em outras áreas.
Durante o período militar – que representou, paradoxalmente, um ponto alto no desempenho da diplomacia profissional – algumas “rupturas” com a prática tradicional da diplomacia foram registradas, embora se alinhassem todas com o objetivo maior de busca de mercados, de promoção das exportações brasileiras de manufaturados, de uma maior amplitude, justamente, no projeto autonomista que era também o dos militares. A política do “pragmatismo responsável” retomava, sem precisar mencionar isso de forma explícita, muitas das teses e posturas da Política Externa Independente, que continuou, sendo, aliás, o paradigma de todas as demais diplomacias no curso da redemocratização. As inovações feitas foram todas adaptativas, no sentido de avançar nos projetos já em curso de integração regional, com uma dimensão sul-americana mais afirmada, e de dar prosseguimento à universalização das relações internacionais do Brasil, estendendo a rede de contatos, de visitas recíprocas e de acordos de cooperação a um número maior de parceiros em todos os continentes.
A grande ruptura com os padrões tradicionais da diplomacia brasileira se deu, obviamente, quando da assunção do Partido dos Trabalhadores ao poder, em 2003, e mais até do que o PT, a personalidade do presidente e as de seus principais assessores diplomáticos – tanto os do partido quanto os diplomatas profissionais – no sentido de passar a imprimir uma orientação partidária, antes que consensual, às grandes linhas da política externa. Tal ocorreu bem mais no plano regional – com uma aliança explícita, até constrangedora do ponto de vista dos valores democráticos, com alguns dos piores regimes na região – do que no plano mundial, mas aqui também ocorreu a opção por uma anacrônica “diplomacia Sul-Sul”, como se os demais parceiros na região tivessem essa mesma dimensão em suas respectivas agendas diplomáticas. No contexto da América do Sul, e até mais além, houve uma nítida preferência ideológica – mas materializada em vários projetos com implicações econômicas para o Brasil – pelos chamados regimes “bolivarianos”, em total desprezo por regras elementares do jogo democrático, e até por normas constitucionais e diplomáticas relevantes, como o princípio da não interferência nos assuntos internos de outros países. Traços ainda mais vergonhosos para o relacionamento externo do Brasil foi o envolvimento do presidente, como chefe de Estado ou já ex-mandatário, mas ainda influente na política nacional, com diversos negócios envolvendo construtoras brasileiras nitidamente contrários, e até afrontosos, a compromissos internacionais do país, como a convenção da OCDE sobre a corrupção nos contratos envolvendo governos e funcionários estrangeiros.
Impedido o governo do PT por um processo de impeachment, a diplomacia brasileira retomou padrões mais tradicionais, ou simplesmente adequados ao perfil do Brasil, como um país respeitador de certos princípios e valores, a começar pela cessação de afinidades ideológicas na fixação de diretrizes para as grandes opções da política externa nacional. Uma das principais reorientações compatíveis com as necessidades atuais de reinserção do Brasil na economia mundial foi a decisão de se solicitar adesão plena à OCDE, o clube de boas práticas que são absolutamente indispensáveis para o país efetivar as reformas estruturais que se impõem na atual fase de transição política.
A diplomacia na reconstrução do Brasil: que tipo de agenda econômica se requer?
O Brasil não possui nenhum problema de política externa, ou sequer de diplomacia. Esta última está bem servida por um corpo profissional de funcionários competentes e devotados disciplinadamente à política externa determinada pelo presidente. O Brasil se relaciona amplamente com a comunidade internacional, com base em princípios constitucionais, e em valores que são os da sua diplomacia, também amparados constitucionalmente. Mas o Brasil possui um grave problema de política econômica externa, que é a sua NÃO INSERÇÃO internacional, resultado de políticas econômicas equivocadas e de posturas diplomáticas pouco adequadas a uma correta inserção internacional, como infelizmente tivemos nos anos 2003-2016.
É a política externa, portanto, que precisa mudar para que a diplomacia possa contribuir de modo competente e coadjuvante para a solução dos mais graves problemas da nação, que são todos de ordem exclusivamente interna. Com efeito, praticamente todos os graves problemas brasileiros — econômicos, políticos, sociais, regionais — têm origem interna e precisam receber soluções essencialmente, senão totalmente, domésticas, para que o Brasil possa iniciar um novo processo de crescimento sustentado, com transformações estruturais de seu sistema produtivo, no sentido de maiores ganhos de produtividade e com a distribuição social de seus benefícios.
A diplomacia sempre foi a coadjuvante dos processos e programas nacionais de desenvolvimento, mas ela nem sempre foi orientada da maneira mais racional possível para servir plenamente a tais objetivos. A primeira tarefa da política externa, e consequentemente também a de sua diplomacia, é contribuir para um processo de crescimento sustentado da produtividade da economia, pela redução do custo do capital e o aperfeiçoamento do capital humano, os dois elementos mais importantes da produtividade total de fatores, junto com as demais externalidades positivas que cabe ao Estado prover de forma eficiente.
A melhor maneira de atingir esses objetivos passa pela abertura econômica e pela liberalização comercial, e ambas medidas constituem, igualmente, decisões de política doméstica, bem mais do que de política externa, que só pode ser acessória a esses objetivos maiores. A maneira de fazê-lo é necessariamente uma tarefa de política interna, tanto por razões estruturais quanto conjunturais, e é fácil identificar as razões.
O Brasil é hoje um país introvertido, o mais fechado do G-20, o grupo de nações economicamente mais importantes do mundo, que todas possuem coeficientes de abertura externa bem superiores ao exibido pelo Brasil. Numa fórmula simples, somos estruturalmente, sistemicamente protecionistas. No plano conjuntural, contudo, o mundo atravessa uma fase de relativa estagnação nas iniciativas e propostas de negociações comerciais multilaterais, e não há muito o que esperar da OMC, daí a razão dos muitos acordos de livre comércio em escala regional, ou dos esquemas mais abrangentes do que as zonas de comércio preferencial, restritos aos países dispostos a ir além dos meros mecanismos de acesso à mercados para entrar no terreno regulatório e nos novos temas dos intercâmbios globais (investimentos, serviços, propriedade intelectual, etc.). O Brasil, como no caso da abertura tarifária, está singularmente ausente desse universo negociador, o que constitui mais uma razão para que as iniciativas nesse terreno sejam também de origem basicamente interna.
Abertura econômica e liberalização comercial constituem, portanto, os dois grandes objetivos das medidas de política doméstica que precisam e devem ser coadjuvados pela política externa e pela diplomacia para produzirem resultados benéficos no curto e no médio prazo. Foram esses dois elementos que contribuíram, junto com as privatizações, para maiores ganhos de produtividade na economia brasileira no curso dos anos 1990, quando importantes reformas foram feitas nessa direção, o que preparou o Brasil, a partir da estabilização macroeconômica conduzida entre 1994 e 1999, para a fase de maior crescimento na primeira metade dos anos 2000, expansão revertida logo adiante pelas políticas equivocadas adotadas pelos dirigentes políticos entre 2003 e 2016.
É nesse contexto de reformas estruturais importantes, a serem implementadas nos planos interno e externo, que se situa a importante decisão tomada pelo atual governo de transição no sentido de solicitar adesão plena do Brasil à OCDE, o “clube das boas práticas” que pode contribuir para esse processo de reformas que o Brasil deve perseguir no seu próprio interesse nacional. A OCDE possui notória expertise e vasta experiência nos terrenos das reformas fiscais, setoriais e sociais, com destaque para as áreas de políticas comercial, industrial, tecnológica e educacional, ou seja, tudo o que o Brasil necessita para deslanchar um novo salto no plano do crescimento sustentado. Os requerimentos de entrada podem, aliás, apoiar as reformas.
O Brasil sempre privilegiou a via multilateral e a coordenação regional em diversas áreas, inclusive em matéria de integração econômica. O que caberia fazer agora seria recuperar a autonomia da política externa na coordenação das políticas nacionais em todas as áreas de negociações internacionais e regionais, compatíveis com as reais necessidades da economia e da sociedade nacional. O Brasil é grande o suficiente, e dotado de uma diplomacia suficientemente preparada, para poder atuar de modo independente nos mais diferentes foros de negociações internacionais, sem precisar de uma coordenação redutora em certas áreas, o que o acaba levando a um mínimo denominador, em escala regional ou em outras esferas, distante, portanto, de objetivos mais ambiciosos, que correspondem ao seu novo objetivo de integração plena à economia mundial.
A plena capacitação tecnológica de sua economia, por exemplo, pode e deve-se fazer numa abertura decisiva em direção de tradicionais parceiros de seu processo de desenvolvimento e atendendo a requisitos objetivos de centros de estudos reputados por sua qualidade técnica e visão objetiva. Políticas sociais e educacionais, ou mesmo a regulação setorial, ganhariam bem mais com a adoção de padrões já adequadamente testados em países avançados, todos pertencentes à OCDE, do que em experimentos descolados da vida empresarial, ou estimulados num âmbito puramente governamental.
Qualquer consulta aos relatórios técnicos mais relevantes da economia global — competitividade, ambiente de negócios e liberdade econômica — revela que o Brasil não avançou, e que, de fato, ele recuou em vários desses indicadores globais ou setoriais. Cabe agora avançar, para recuperar o atraso acumulado em várias áreas.
O que se propõe, portanto, é a adoção verdadeiramente estratégica de todos esses indicadores, refinados e adaptados ao nosso contexto, para guiar as diretrizes setoriais da política externa e da diplomacia brasileira nesse esforço de integração do Brasil à economia global. Os relatórios do Fórum Econômico Mundial sobre competitividade, os do Banco Mundial sobre “Fazendo Negócios” e os do Fraser Institute sobre liberdades econômicas deveriam converter-se em manuais práticos de nossos técnicos econômicos e diplomatas na redefinição de amplas áreas da regulação nacional tratando de políticas econômicas externas e de relações econômicas internacionais. Uma leitura atenta desses relatórios, confrontando indicadores relativos ao Brasil com os de outros países, inclusive economias menores ou nações de menor renda per capita que a brasileira, revela o que já se sabe: nosso país apresenta inúmeras distorções macro e setoriais, quase todas derivadas da burocracia estatal, de um sistema tributário inadequado, de uma regulação excessivamente intrusiva, tudo isso fazendo um ambiente de negócios extremamente negativo para o empresariado nacional. Todos esses relatórios exibem um número excessivo de idiossincrasias brasileiras, ou mais exatamente do Estado brasileiro.
A diplomacia brasileira pode, em consequência, identificar como outros países, colocados num mesmo patamar de desenvolvimento, atuaram sobre os mecanismos mais distorcivos e mais perversos que retiram competitividade aos produtos e serviços, indicadores que colocam o Brasil nos piores lugares em escala comparativa. A Índia, por exemplo, deu enormes saltos de produtividade e de competitividade no plano mundial simplesmente ao identificar os critérios no levantamento do Banco Mundial que a colocavam numa classificação muito baixa no ranking do Doing Business: o trabalho feito de correção dessas distorções levou-a, em poucos anos, a ultrapassar o Brasil na classificação geral. O mesmo pode ser feito pela diplomacia brasileira em diversos outros componentes de políticas setoriais, identificando as melhores práticas pelos países que apresentam indicadores mais favoráveis ao ambiente de negócios.
O mesmo se estende, por exemplo, aos mercados de capitais, regimes laborais, sistemas de inovação, funcionamento do ensino público e sua complementação pelo setor privado nos diversos níveis e várias outras áreas problemáticas no atual cenário brasileiro: a diplomacia pode, e deve, trazer uma grande contribuição para diagnósticos realistas sobre as disfunções brasileiras, atribuindo-se depois à política externa a missão de negociar eventuais acordos de cooperação para que as prescrições adequadas sejam seguidas de propostas concretas de reformas setoriais, em linha com padrões existentes de qualidade em países de melhor desempenho nessas áreas. Aqui, novamente, os estudos da OCDE e os relatórios do Banco Mundial poderiam prover o Brasil de todas as informações necessárias a esses diagnósticos, com vistas a estabelecer as prescrições adequadas. O resto é liderança política…
Sobre o autor
Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira e diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI-MRE.
Como citar este artigo
Mundorama. "A diplomacia na construção da nação: qual o seu papel?, por Paulo Roberto de Almeida".
Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 10/01/2018]. Disponível em: <
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