O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 22 de outubro de 2017

Programa do candidato Ciro Gomes, em 2002 - comentarios Paulo Roberto de Almeida

Como em todos os demais casos, este meu texto de comentários e sugestões ao programa eleitoral do candidato Ciro Gomes, na campanha presidencial de 2002, permaneceu rigorosamente inédito, razão pela qual eu o estou divulgando nesta ocasião.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de outubro de 2017


Observações e comentários de Paulo Roberto de Almeida
Ao Programa de Campanha do
Candidato Ciro Gomes (2002):

Desenvolvimento com Justiça
O Brasil do Trabalho, da Produção,
da Inovação e da Justiça
Iniciativas de um governo que crie condições para
aproveitar a energia de todos os brasileiros

Texto Básico

[Texto Original = caracteres normais]
[Comentários Paulo Roberto de Almeida = caracteres itálicos]

[PRA: Observações gerais: A maior parte dos comentários tópicos efetuados a seguir, sobretudo no campo econômico, tem unicamente o objetivo de “testar” a validade das propostas apresentadas pelo candidato contra a maior parte das críticas que serão, ou poderão ser, opostas pelos adversários “liberais” ou então por “mainstream” economistas, podendo ser vistos estes comentários, portanto, como uma espécie de confrontação dessas propostas à realidade, a partir de uma posição de “advogado do diabo”. Não obstante, algumas das observações aqui apresentadas correspondem efetivamente a uma postura crítica real, especialmente na parte que se refere à política externa ou às relações internacionais do Brasil, na qual seu autor pode apresentar uma certa “vantagem comparativa”.]
[PRA: Observações gerais 2: Estão consignadas aqui apenas os elementos passíveis de observação crítica, à exclusão de todos os demais que não apresentam “problemas” ou são intrinsecamente corretos, do ponto de vista deste comentarista, que considera o programa como de excelente nível, coerente com uma visão “reformista” global do Brasil e bastante condizente com suas necessidades de desenvolvimento. Obviamente, um detalhamento específico seria necessário para testar sua consistência orçamentária e adequação ao equilíbrio da balança de pagamentos, mas no geral trata-se de um “programa realista”, podendo sustentar uma campanha de alto nível, como requerido nas atuais condições políticas do Brasil e de seu sistema político-partidário.]

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 19 de fevereiro de 2002

INTRODUÇÃO


1.         Natureza deste documento.
(…)
2.         Estrutura do documento e temas centrais.
Divide-se o documento em seis partes:
OS PROBLEMAS DO DIA-A-DIA: O SOCIAL QUE FUNCIONE. A política social tem de fazer muito com pouco. Suas prioridades são capacitar os brasileiros, multiplicar os empregos, inclusive por medidas emergenciais, aumentar a participação dos salários na renda nacional e reduzir rapidamente os dois maiores bolsões de pobreza no país: nas periferias das grandes cidades e no campo.

[PRA: O compromisso com o social parece resultar aqui mais de uma redistribuição do estoque existente de riqueza disponível – ou seja, mediante medidas distributivistas e moderadamente “punitivas” da riqueza efetiva hoje disponível –  do que de uma nova distribuição da riqueza potencial, podendo ser sustentada por uma fase de crescimento contínuo, sustentável e baseado em uma série de investimentos sociais que resultem naquilo que se busca: o aumento da participação dos salários na renda nacional e a diminuição geral dos bolsões de pobreza. A distinção pode parecer trivial, mas ela revela a tensão inerente entre duas filosofias básicas, assim como a escolha apropriada dos instrumentos de política econômica disponíveis: ou esses instrumentos atuam sobre o estoque de renda existente, ou eles se dirigem aos novos fluxos a serem criados com um novo estilo de crescimento, que não necessariamente precisam estar vinculados ao fator “salário” na economia.]


            O NOVO RUMO DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO: A RECUPERAÇÃO DA CAPACIDADE ESTRATÉGICA ESTADO. O Estado precisa ter os recursos, os quadros e as práticas necessários para atuar como parceiro da iniciativa privada e para redimir metade da Nação da vida de biscateiro.

            [PRA: Insinua-se aqui uma visão básica, filosófica quase, de como o candidato vê a atividade econômica e o papel do Estado. Este não é apenas o garantidor de condições mínimas (e igualitárias) para que o setor privado possa investir e promover crescimento e empregos, mas ele é sobretudo o PARCEIRO, isto é, aquele irmão maior, que sabe mais, e que portanto vai dizer ao capitalista privado como ele deve fazer para melhor investir o dinheiro dele (não o do Estado, pois este é sócio nas empreitadas privadas) e assim salvar a Nação (eventualmente privilegiando alguns, ou certos setores, em detrimento de outros, menos “socialmente vocacionados”). O capitalista geralmente está interessado no maior lucro possível e normalmente não gosta que lhe digam onde e como deve gastar (ou investir) o seu dinheiro. A própria noção de “redimir a Nação” implica uma vocação salvacionista e uma postura messiânica que podem assustar alguns setores, pois leva à noção de que o candidato se vê a si próprio como o grande “salvador da Pátria”, ou pelo menos aquele que sabe o caminho da verdade e da luz e que, portanto, vai reconciliar a própria Nação com sua “verdadeira vocação”.]

(…) O país tem de elevar sua poupança e dirigir a poupança de longo prazo ao investimento de longo prazo para poder depender menos do financiamento externo. (O capital estrangeiro é tanto mais útil quanto menos se depende dele.)

[PRA: Trata-se aqui, o aumento da poupança, de um aspecto crucial, estratégico mesmo, do desenvolvimento brasileiro que precisa ser mais enfatizado e sobretudo detalhado pois ele constitui um dos nós essenciais do baixo crescimento historicamente observado nas últimas décadas. Não se trata apenas de criar condições diretas para o aumento da poupança, mas sobretudo de permitir as condições indiretas pelas quais esse aumento será sustentável e crescente, ou seja, estabilidade, existência de horizontes de investimento, garantia de retorno e outros elementos mais, basicamente derivados da CONFIANÇA na economia, mais do que da ação do dirigente estatal, que, como sabemos, sempre será visto com desconfiança pelos poupadores e investidores privados. A menção, por outro lado, ao capital estrangeiro, pode ser dispensável, pelo menos nesta parte, por duas razões: ainda que a menção ao papel do capital estrangeiro esteja correta, intrinsecamente, seu papel “macroeconômico” no estoque total de poupança é muito pequeno, sendo apenas relevante quando direcionado e concentrado em investimentos setoriais com efeitos em cadeia; a noção de “dependência”, por outra parte, pode revelar uma desconfiança de princípio do capital estrangeiro que não há porque estimular.]

(…) Os compromissos com a estabilidade da moeda, com o realismo fiscal (o governo e o país não devem viver acima dos seus meios) e com a abertura criteriosa da economia brasileira para o mundo, precisam ser reafirmados.

[PRA: Duas observações aqui: o governo certamente não deve, ainda que possa, viver acima dos seus meios, pois a persistência de déficits orçamentários é o caminho mais direto para o descontrole inflacionário, para práticas emissionistas irresponsáveis e para o desastre econômico em termos de dívida pública, interna e externa. Agora, o País pode, e em certas condições deve, viver acima de seus meios durante as fases de crescimento e de desenvolvimento sustentável. A literatura econômica não condena absolutamente os déficits fiscais, desde que estes sejam financiáveis e guardem consistência com a trajetória normal de uma economia sólida e sadia. Geralmente, o estado normal de uma economia é a de um ligeiro déficit global (não governamental), o que indica que a geração presente está investindo em plena confiança no retorno futuro desses investimentos produtivos e que a geração seguinte terá plenas condições de pagar o investimento hoje realizado e continuar na trajetória de crescimento. Ou seja, nem todo excedente fiscal é bom – ele pode ser ruim se for dinheiro esterilizado – e nem todo déficit fiscal é ruim, pois ele pode significar grandes investimentos produtivos. Mas certamente que todo processo contínuo de déficits orçamentários é intrinsecamente perverso para a saúde econômica como um todo, ainda que seja admissíveis no curto prazo e em doses razoáveis.
A segunda observação refere-se ao conceito de “abertura criteriosa da economia”, que por si só já revela uma desconfiança filosófica em qualquer abertura, ou seja, ela só é admissível se for criteriosa, o que quer dizer medida, concedida a conta gotas, vigiada pelos poderes públicos e dispensada com extrema cautela e os cuidados de praxe. Assim como no caso do Estado ser parceiro do setor privado, está indicando que o candidato pretende delegar a um punhado de burocratas públicos a função de saber o ponto exato do equilíbrio, que não pode ser deixado ao sabor do mercado, das condições econômicas gerais da economia ou ao arbítrio do setor privado.]

(…) Não devem, porém, servir de pretexto para sacrificar a economia real e produtiva aos interesses financeiros. Portanto, uma das prioridades tem de ser baixar os juros. Enquanto o juro real for superior à taxa média de retorno aos negócios, o crescimento continuará estrangulado. Viver de renda será melhor do que viver de trabalhar e produzir.

[PRA: Este trecho revela a natural desconfiança, comum aos brasileiros, em relação ao setor financeiro, ou a “viver de renda”. Viver de renda pode ser muito bom, ou mesmo necessário, para quem pode, ou para quem não tem outra opção de rendimento real, isto é, a velhinha aposentada que tem sua poupança como única fonte (ou complemento) de aposentaria, e que portanto espera poder receber uma remuneração digna pelo que acumulou durante a vida, mas não tem intenção nem possibilidade de fazer grandes investimentos que imobilizem seu capital durante muito tempo. Ou seja, não há nada de errado em viver de renda, desde que a remuneração seja compatível com as condições gerais da economia e que o investimento produtivo possa oferecer um retorno mais atrativo, suscetível portanto de interessar o maior número possível de poupadores e investidores.
Quanto ao setor financeiro, trata-se, sem dúvida alguma, de um dos setores mais regulados e vigiados da economia, e que depende, como nenhum outro, de medidas regulatórias da parte do Estado: de um dia para o outro, por exemplo, uma determinação – que não é nem lei, discutida no Congresso, mas mera circular do Banco Central – relativamente aos depósitos compulsórios e direcionamento regulado das aplicações pode, num fiat, retirar qualquer rendimento sustentável ao setor financeiro, que ficaria assim à mingua. Falar de “interesses financeiros” revela um velho preconceito popular contra o setor bancário e seus “fabulosos lucros”, o que nada mais indica senão uma incapacidade dos poderes públicos em regular os condutos econômicos fazendo com que mais poupança se dirija ao investimento produtivo, cabendo ainda observar que o “grande capital” do setor financeiro não pertence a uma matilha de gananciosos capitalistas, mas ao conjunto da população que para ali dirigiu suas economias.]

            (…)
(…)

            O BRASIL NO MUNDO: INTEGRAÇÄO ATIVA. O Brasil não deve nem precisa escolher entre isolar-se do mundo, política ou economicamente, e render-se à forma atual da globalização. Precisa optar pela integração atuante, crítica e reconstrutiva.

            [PRA: Raramente, na história da humanidade, ou mesmo nas trajetórias individuais, a vida nos coloca entre escolhas tão dicotômicas como a indicada acima: fechar-se ou aceitar passivamente a globalização. Isto só existe no discurso, pois que na vida real as opções são feitas a cada dia, mediante pequenas medidas de inserção ou outras pequenas decisões de isolamento.
            Na verdade, nem esta visão clara, ou percebida, da vida real nos é dada como instrução a ser aceita ou cumprida, pois se é verdade que a globalização é um dado da realidade (como eu acredito que seja), há muito pouco que os governos possam ou não fazer pró ou contra a globalização. Obviamente, eles podem atrapalhar e obstaculizar um pouco mais, mediante medidas ativas de cerceamento, a integração do País com o mundo, mas ele sempre fará mal, tarde e de maneira pouco apropriada. O que de interessante ele pode fazer, de imediato e sempre, seria preparar cidadãos e empresas para participar plenamente, e com vantagens, da globalização.
            Por outro lado, falar de “integração atuante, crítica e reconstrutiva” parece mais retórica condicionante (e retraimento psicológico) em relação à globalização, do que verdadeira capacidade de atuação num mundo já globalizado, que não depende de nós ou do nosso tipo de atuação para continuar sua trajetória anárquica e incontrolada. Não é certo que o Brasil possa optar por fazer essa “integração atuante, crítica e reconstrutiva”, mas é certo que os candidatos podem, em geral, demonstrar que não são passivos ou acríticos em relação à globalização. Sempre rende alguns pontos, de graça, e a globalização não está ai para reagir…]

Expressão do projeto interno, o projeto externo deve buscar as parcerias e os acordos que ajudem a ampliar o espaço para nossa estratégia nacional. Isso significa negociar, sem medo, tanto com os Estados Unidos quanto com a Comunidade Europeia, aproximar-nos estrategicamente de outros grandes países periféricos, sobretudo a China e a Índia, e buscar aliados para a luta pela reforma da ordem econômica e política mundial. Lutar por um mundo pluralista, mais aberto à diversidade de trajetórias nacionais de desenvolvimento.

[PRA: Falar em buscar parcerias para uma determinada “estratégia nacional” implica na existência prévia dessa estratégia ou do “projeto externo”, que é mais afirmado e proclamado do que verdadeiramente demonstrado. Dito isto vejamos os detalhes:
“Negociar sem medo” significa que estamos hoje negociando com medo de qualquer das potências mencionadas, o que não é obviamente verdade. Trata-se de retórica de eleição, o que pode ser aceitável para o público at large, mas é ofensivo às áreas envolvidas nessas negociações. A ex-Comunidade já virou União Europeia desde 1993. Aproximar-se estrategicamente significa dispor de um “grande desígnio”, que não está explícito, significa também que esses outros países periféricos partilhem desse mesmo desígnio, caso contrário pode-se cair no “dilema do Garrincha”: o outro lado “sabe disso?” Sobretudo China e Índia quer dizer particularizar, à exclusão dos demais, uma determinada categoria de “países periféricos”, os grandes e poderosos dentre os países em desenvolvimento, que por acaso são nucleares, que por acaso estão envolvidos em disputas regionais e estratégicas que nada têm a ver com os interesses brasileiros, que por acaso têm um modelo de desenvolvimento que não corresponde exatamente ao nosso, que por acaso não coordenam suas posições com outros países, que por acaso podem não sentir essa mesma necessidade de “lutar pela reforma da ordem econômica e política mundial” com os mesmos objetivos perseguidos pelo Brasil, enfim, há uma declaração de intenções que possui muitos imponderáveis para traduzir-se na prática.
Por fim, lutar por essa reforma com outros países periféricos é totalmente contraditório com a proposta que segue: “Lutar por um mundo pluralista, mais aberto à diversidade de trajetórias nacionais de desenvolvimento”, que implica justamente descoordenação e diferenças nos objetivos perseguidos. Se a trajetória é nacional, ela não busca coordenação com outros.]

3.         Ideias-força da proposta. Alguns conceitos centrais, ligados entre si, animam toda a proposta.
            A CAPACITAÇÃO DO ESTADO. Precisamos de um Estado atuante e enriquecido de quadros e recursos como agente da capacitação dos brasileiros e promotor da democratização dos mercados. Temos de contar com um nível mais alto de poupança, e com um estreitamento dos vínculos entre a poupança e a produção, para não termos de depender do financiamento externo, que vem e volta, periodicamente interrompendo nosso crescimento, com resultados sociais penosos.

            [PRA: Sinceramente, eu não começaria minhas “ideias-força” pela capacitação do Estado, que traduz o velho vezo lusitano de colocar o Estado na frente da sociedade e de colocar esta sob o império do Estado. Por que não começar pelo fortalecimento democrático da sociedade, por libertá-la de certos constrangimentos impostos por políticas públicas, por que não começar dando confiança às forças sociais e declarando que elas, hoje, estão plenamente capazes de construir uma nova “sociedade democrática” no Brasil?]

            A DEMOCRATIZAÇÃO DO MERCADO. Não basta regular a economia, (…). O novo motor do desenvolvimento brasileiro  (…) será a descentralização do acesso aos recursos e às oportunidades da produção, (…)  o Estado é o parceiro indispensável,…

            [PRA: O “não basta” indica que a condição é necessária mas não suficiente, ou seja, a regulação virá de qualquer maneira, como de hábito, quando uma alternativa seria começar por proclamar que se pensa diminuir a regulação, ou pelo menos alterar-lhe o caráter e o sentido, numa direção menos intrusiva, talvez, menos pesada, mais autorregulada pela própria sociedade. A “descentralização do acesso”, por outro lado, implica numa certa concessão do Estado: ele tem muitos recursos, reconhece isso, e passa por decisão própria a redistribuir um pouco desses recursos para a sociedade. Outra postura será proclamar que o acesso a vários recursos sociais para investimento não precisariam mais passar pelo Estado, mas poderiam ser mobilizados e recanalizados pela própria sociedade, mediante novas formas de regulação e de organização da própria sociedade. Finalmente, proclamar o Estado como “parceiro indispensável” sinaliza aos agentes privados que, quer eles queiram, quer não, o “Big Brother” estará ali, ainda que seja para auxiliá-los, ou pelo menos olhando por cima do ombro para ver se está tudo bem, se eles não precisam por acaso de alguma ajuda, se não aceitam algum conselho ou recomendação para que seus negócios marchem melhor ainda, etc. Em outros termos, traduz a velha tradição de se ter o Estado como centro organizador de todas as coisas, como dispensador de favores ou, como se proclama, como “parceiro”. Não caberia uma atitude menos “patronizing”?, mais voltada para a liberdade dos agentes econômicos?, compatível com a verdadeira concorrência e abertura de oportunidades que se pretende firmar numa sociedade democrática?]

              O APROFUNDAMENTO DA DEMOCRACIA. (…) Não temos por que imitar as democracias sonolentas de países ricos e consolidados, que dependem de crises para conseguir reformas. Essa democracia de alta energia precisa favorecer uma dinâmica de auto-organização na sociedade brasileira, respeitando a parte já organizada da sociedade civil sem permitir que o interesse nacional se confunda com os interesses corporativos.

            [PRA: De acordo com a “dinâmica de auto-organização na sociedade brasileira”, mas o conceito de “democracia de alta energia” e esse novíssimo conceito de “democracias sonolentas” são por demais imprecisos e podem se prestar a confusões. Significa que iremos ficar incitando os cidadãos a serem mais energéticos em sua afirmação democrática?; significa que os países desenvolvidos dispõem de mecanismos democráticos usados, deficientes, pouco participativos? Não se acredita na concepção que nesses países não é o Estado que dispensa democracia, mas que a própria sociedade é democrática, e que a sonolência que se observa significa na verdade participação contínua nas coisas menores, mais perto dos cidadãos, e que um certo alheamento aos grandes debates nacionais supostamente decisivos significa ausência de “grandes mudanças” (que sempre trazem uma certa instabilidade), que são na verdade marcas de países em crise, sem rumo, como o nosso por exemplo?]

OS PROBLEMAS DO DIA-A-DIA:

O SOCIAL QUE FUNCIONE

1.         Emprego
A) Aumentar oportunidades de emprego através de medidas emergenciais que também estimulem a retomada do crescimento.

[PRA: Poucos países no mundo aumentaram o emprego de forma regular e duradoura mediante “medidas emergenciais”. De toda forma, isso significaria uma certa disponibilidade keynesiana para aumentar o déficit público durante um certo tempo, quando no Brasil essa faculdade parece extremamente limitada.]

            - Regularizar a posse da terra nas periferias das grandes cidades. Esta é a iniciativa que, em menos tempo e com menor custo relativo, estimula o morador a construir ou a melhorar o que já construiu.

            [PRA: Mais fácil falar do que fazer, e isto pode trazer resultados inesperados, no sentido do estímulo a novas ocupações selvagens que depois seriam “reguladas” com certas facilidades por parte do poder público, dispensador como sempre de favores aos mais humildes, um pouco como aconteceu em Brasília, sob a direção irresponsável do Gov. Roriz. O essencial seria fazer com as residências se deslocassem onde estariam as novas oportunidades de emprego, não fixar as pessoas num determinado lugar, e depois tentar resolver o problema do emprego, que estaria contaminado já pelas “oportunidades” abertas pelo crime e marginalidade.]

Desenvolver em parceria com os Estados e os Municípios rede de postos habitacionais para vender material de construção a preço subsidiado (…)
            - Construir trezentas mil casas populares por ano, com participação comunitária e técnicas simplificadas de construção.

            [PRA: Será criado um novo programa para administrar esse subsídio? A “Habitobrás” por acaso? Esse tipo de programa acaba gastando muito na administração e se prestando a práticas de manipulação política ou desvio de recursos (lembra “programa do leite”?). O velho financiamento hipotecário a juros razoáveis não se presta aos mesmos objetivos?
            Ficar metas quantificadas é o mais seguro caminho para ser cobrado mais adiante pelo não realizado: 300 mil pode ser um número arbitrário e tão válido como qualquer outro…]

            - Dar condições de estabilidade e modernização à agricultura, sobretudo de porte familiar: organização dos estoques estratégicos e de um sistema de seguro contra as flutuações violentas dos preços dos produtos agrícolas; (…) implantação de um sistema nacional de segurança alimentar.

            [PRA: “Sobretudo de porte familiar” significa um preconceito contra outras formas de posse e exploração agrícola, quando não é seguro que, nas condições brasileiras, a agricultura de tipo familiar seja a forma predominante, a mais rentável ou a desejável em relação a outras, que podem ser tão ou mais racionais do que a familiar. “Estoques estratégicos” lembra a administração, sempre capenga, de grandes quantidades de produtos por parte do estado, quando não é certo que se necessite desse tipo de “reserva” para resolver problemas de renda agrícola ou de abastecimento das cidades hoje em dia. “Flutuação” é algo inerente ao mercado, tanto mais danosas, quanto eventuais “ameaças” de intervenção pública (geralmente não realizadas, justamente por falta de recursos) trouxerem insegurança ao agricultor quanto a plantar ou não em função dessas benesses públicas agitadas de forma demagógica; o seguro pode ser feito em condições de mercado, mais do que isso entra naquela zona do “moral hazard” (ou irresponsabilidade pela existência de alguma garantia terceirizada) que faz os agentes se comportarem de maneira arriscada. “Segurança alimentar” é algo totalmente dependente de renda e não de qualquer sistema estatal (posto que “nacional”) de administração “alimentar”. O Brasil não tem nenhum problema de falta de alimentos, ainda que muitos brasileiros tenham uma óbvia carência nesse particular. Nada que sua integração produtiva no mercado não possa resolver, em lugar de novos, grandes e custosos programas de “segurança” alimentar. Tendo renda, o brasileiro não enfrentará nenhuma “insegurança” alimentar.]

B) Trazer para o mercado formal os trabalhadores que trabalham sem carteira assinada - metade da população adulta do país.
- Acabar com todos os encargos sobre a folha salarial.
- Deslocar as contribuições à previdência da folha salarial para o faturamento líquido das empresas, extinguindo, com isso, um poderoso desestímulo ao emprego.

[PRA: Será preciso encontrar novas formas de financiar determinados serviços públicos, o BNDES, etc. Deslocar encargos laborais para o faturamento pode gerar novas formas de desvio contábil, mas certamente é uma forma mais justa que a folha salarial, ainda que as empresas possam alegar inconstitucionalidade, se a vinculação permanecer (não existirá correspondência). Nesse caso, uma nova estrutura tributária deveria compensar essas incongruências.] 

2.         Salário.           
         - Elevar o salário mínimo gradativa e continuamente no curso do mandato.

            [PRA: Aumentos políticos são um dos caminhos para o descontrole inflacionário e a perda de poder de compra desse mesmo salário. E se o mercado regular os níveis de remuneração, como aliás já acontece, e o governo empregar suas energias na melhoria da qualificação da mão-de-obra?]

            - Tomar como objetivo da política salarial aumentar gradativamente a participação da massa salarial na renda nacional.

[PRA: Esse aumento deveria ser consequência do crescimento econômico e da expansão de empregos, e não necessariamente de uma política “dirigista” tornando tal objetivo particular compulsório, independentemente das condições econômicas objetivas. Considerar que o aumento da participação salarial na renda global constitui um objetivo legítimo de política econômica pode significar que a estrutura da economia será sempre moldada segundo os padrões clássicos do capitalismo industrial, com patrões de um lado e assalariados de outro. Ora, a evolução da economia moderna, com a diversificação das atividades produtivas e dos serviços e das próprias relações contratuais, o surgimento de “novos” serviços num terciário muito diferente do que ele era na fase da segunda revolução industrial, tudo isso pode redundar, pelo menos do ponto de vista teórico, numa diminuição da massa salarial em relação a outras formas de rendimento, com o que fica invalidada a proposta do candidato.]

(…)  Compreender que a política mais eficaz de redistribuição de renda no Brasil atual é o aumento sustentável do salário real, possibilitado tanto pelos ganhos de produtividade quanto pela defesa dos direitos trabalhistas.

[PRA: Pode ser esta “uma” das formas. A outra seria via aumento da qualificação da mão-de-obra via investimentos educacionais e capacitação técnica da população.]

            - Rejeitar a retórica e a política da "flexibilização" do mercado de trabalho. (…)

            [PRA: Pode ser uma proposta “quixotesca”, se é verdade que o próprio mercado está se encarregando de “flexibilizar” essas relações, via contratos parciais, “work at home” ou “tele-trabalho”, etc.]

3.         Segurança.
(…)
            - Federalizar amplo elenco de crimes: contrabando de armas, narcotráfico, crimes contra a administração pública, crime financeiro, crimes cometidos por policiais civis e militares, crime organizado.

            [PRA: E os crimes contra os direitos humanos?]

            - Construir uma rede de penitenciárias federais em regiões inóspitas.
           
            [PRA: Trata-se de uma concepção antiquada de prender criminosos, que pode aumentar os custos de manutenção do sistema penitenciário. Que tal privatizar uma parte do sistema carcerário?: o Estado paga um certo “preço” por condenado, obviamente menor do que ele próprio gasta atualmente e recebe propostas em concorrência pública? As empresas teriam o direito de colocar seus “prisioneiros” em alguma atividade produtiva, contra pagamento de salário em condições “normais” de empregabilidade.]

            (…) 
            - Desarmar o país. Proibir o uso de armas. Estatizar a indústria de armamentos de todos os tipos.

            [PRA: De acordo em decretar a ilegalidade da posse de armas (creio que é esse o sentido de “proibir o uso”), mas quanto a estatizar a indústria para quê?: criar uma “Armobrás”? Qual a vantagem econômica ou política desse absurdo?]

4.         Saúde.
            (…) 

5.         Educação.
            (…)
            - Acabar com o vestibular. Substituí-lo por provas federais administradas aos alunos em cada um dos três últimos anos do segundo ciclo. O estudante concorrerá a um lugar no sistema universitário de acordo com a média das notas obtidas nas provas de cada um desses três anos.

            [PRA: O vestibular, a despeito de todas as suas imperfeições, ainda constitui um sistema relativamente democrático de acesso ao terceiro ciclo, na medida em que “recolhe”, justamente, todos aqueles que não puderem cumprir a escola regular, ou que tiveram de interromper os estudos por motivo de trabalho, saúde ou qualquer outro. Qualquer cidadão, em qualquer idade, pode decidir passar o vestibular, democraticamente. Da mesma forma, uma pessoa que teve péssimos resultados durante todo o ensino médio, por falta de condições objetivas, pode decidir-se por estudar duramente durante um certo tempo (eventualmente com a ajuda de bolsas ou empréstimo públicos) e aceder assim ao tão almejado ciclo superior. O vestibular apenas pode ser extinto quando o ensino médio for verdadeiramente universalizado, e ainda assim ele poderia cumprir certas finalidades que a avaliação seriada não atinge (como a da volta aos estudos na idade madura, por exemplo).]

            - Implantar programa agressivo de bolsas de estudo avançado no estrangeiro para acelerar a formação de quadros em setores estratégicos do nosso desenvolvimento. (…)

            [PRA: Pode ser uma perda de dinheiro. A qualidade da ciência brasileira já assegura que muitos profissionais possam ser formados no próprio Brasil. O programa de bolsa em divisas estrangeiras (por definição escassas) tem de ser rigorosamente seletivo, mesmo nos chamados “setores estratégicos” (cuja definição não pode ser simplesmente burocrática).]

6.         Iniciativas comuns à saúde e à educação.
- Atrair a classe média ao sistema público de educação e saúde. Transformá-la em fiadora da qualidade do serviço, em proveito de todos. Libertá-la do ônus da mensalidade da escola e do plano de saúde.

[PRA: Objetivo nobre, que pode se chocar com as realidades orçamentárias do Estado e a complementaridade que sempre existiu entre sistema público e opção particular, em ambos os setores.]

            - Instituir colegiados transfederais que reúnam o governo federal, os Estados e os Municípios em órgãos comuns. (…)

[PRA: De acordo com a coordenação, mas imensas dúvidas sobre a constituição efetiva desse novo tipo de estrutura. A experiência ensina, mormente no Brasil, que a confusão gerencial e o desperdício de recursos nas atividades-meio podem condenar qualquer boa ideia à morte por inanição burocrática.]

            - Propor legislação que permita ao cidadão recorrer ao Judiciário na defesa de mínimos de investimento ou desempenho. Regulamentar o mandado de injunção, previsto na Constituição, para servir a esse objetivo.

            [PRA: O objetivo é certamente nobre, mas nossa justiça, que já é lenta, insegura e por vezes “injusta”, vai encontrar-se mais uma vez sobrecarregada.]

7.         Moradia e terra.
A primeira etapa do programa de moradia são as medidas emergenciais para a regularização da posse da terra nas periferias das grandes cidades. Essa regularização será acompanhada pela instalação de rede de postos habitacionais para a venda subsidiada de material de construção e a difusão de técnicas simples de construção. Para evitar desvios e fraudes a venda do material de construção será mediada por meio de associações comunitárias credenciadas.

[PRA: Ademais do simples aspecto orçamentário e do problema mais complicado da fixação espacial de pessoas que não dispõem necessariamente de emprego local, a medida corre o risco de se prestar a utilização política, mesmo com as tais de “associações comunitárias”: uma “indústria” pode surgir para tal efeito.]

            (…)
                                O NOVO RUMO DO DESENVOLVIMENTO:

RECUPERAÇÃO DA CAPACIDADE ESTRATÉGICA DO ESTADO

            (…)
1.         O novo regime tributário simplificado.
            (…)
            No futuro imediato, a única maneira de desonerar a produção sem deixar de equilibrar as receitas do Estado com suas responsabilidades é dar grande peso a um imposto geral sobre o consumo - o chamado imposto sobre o valor agregado (IVA).
            (…)
Em segundo lugar, ao substituir todos os impostos e encargos que oneram a folha salarial e recaem em cascata sobre a produção, ele favorece a produção e o emprego.  (…)

[PRA: Seriam necessárias simulações concretas para saber se, aos níveis de arrecadação atuais, esse IVA (que só pode ser federal), poderia efetivamente substituir todas as contribuições e demais taxas vinculadas ao emprego e sistema produtivo.]

(…)
            - Passar a tributar os ganhos obtidos por brasileiros no exterior através de empresas localizadas em paraísos fiscais, hoje livres de tributação.

            [PRA: Essa medida requer obviamente a cooperação desses paraísos fiscais…]

            - Passar a calcular o IR das empresas globalizadas considerando sua realidade econômica, de modo a identificar e tributar a parcela dos lucros mundiais atribuíveis à pessoa jurídica brasileira sempre que tal parcela exceder os lucros apurados pela forma tradicional.

            [PRA: Essa faculdade já existe no atual código tributário.]

            ([Questão de ordem geral])
            [PRA: Não se cogita eventualmente de simulações em torno do imposto único federal, tal como proposto pelo Deputado Marcos Cintra, ou então a própria adoção do imposto único geral?]

2.         O novo regime previdenciário e a mobilização da poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo.
           
(…) Instituir, dentro do sistema público, contas individualizadas de capitalização.

            [PRA: Trata-se de um regime completamente diferente do atual, como instituí-lo dentro do sistema atual? Como será feita a transição, como será financiada a passagem de um sistema a outro, que implica obviamente a cessação de contribuições pelo regime anterior?]
            (…)

3.         O mercado de capitais.
             (…)
            - O governo trabalhará com as instituições financeiras privadas para organizar o investimento em empreendimentos emergentes ("venture capital"). O princípio será sempre iniciativa privada quando possível e iniciativa pública quando necessária. Mesmo a iniciativa pública, porém, preferirá a terceirização em favor de administradores privados profissionais, por meio do mecanismo anteriormente descrito.
           
            [PRA: Isto supõe obviamente que as instituições financeiras privadas apreciarão ter o Governo como sócio gestor e decisor…]

4.         A administração das dívidas e a baixa dos juros.
           
          - Reconhecer que não há condições para o crescimento sustentável enquanto o juro real que o governo paga pelos títulos de sua dívida for maior do que a taxa média de retorno dos negócios produtivos (…)

[PRA: Reconhecer tal fato não é o mais difícil; a questão não é tanto o nível do juro e sim o fato de que o Governo se vê obrigado a tomar dinheiro de forma contínua; o tamanho do juro é mera consequência disso…]
            (…)

5.         O serviço público.
            (…) Organizar serviço público com quadros de elite, altamente qualificados e recompensados,… (…) Dentro do serviço público, serão criadas novas carreiras administrativas de ponta.

            [PRA: A concepção de “elite” ou “de ponta” pode não ser realista. O ideal seria assegurar em primeiro lugar um serviço público eficaz nas extremidades do sistema, justo às populações carentes e nos setores mais importantes, como saúde e educação. Para esses casos, um serviço público “normal”, com funcionários dedicados (que não precisam ser de elite) é mais importante do que despejar recursos em Brasília uma vez mais. A própria concepção dessa proposta indica um “desvio elitista” que deveria ser normalmente corrigida, em prol do bom funcionamento do serviço público como um todo.]
            (…) 

6.         Banco Central.
- Respeitar margem ampla de autonomia operacional do Banco Central sem perder o princípio da responsabilidade política. Reconhecer que o Banco Central tem servido à primazia dos interesses financeiros sobre os interesses produtivos. Não permitir que continue a fazê-lo.

[PRA: Uma promessa de manutenção de status quo junto com uma acusação e uma ameaça? Por que não discutir simplesmente a questão da autonomia real do BC, condição essencial para uma política monetária comprometida com a estabilidade?]

            - Rever o sistema de "metas inflacionárias" para assegurar que o compromisso com o crescimento pese ao lado do crescimento com a estabilidade da moeda.

            [PRA: Dar compromisso de “crescimento” para o BC é a via mais segura para o reinício do processo inflacionário. Quem tem de assegurar crescimento são as autoridades econômicas e os demais setores do Governo, não o BC. O BC deve existir justamente para garantir o poder de compra da moeda e a estabilidade monetária.]

            - Manter o regime do câmbio flutuante verdadeiro e rejeitar qualquer responsabilidade pública pelo risco cambial das empresas.

            [PRA: O que significa um regime de câmbio flutuante verdadeiro? Intervenções esporádicas do BC ou hands-off completamente? A verdade do câmbio será decidia em função das conveniências do Governo ou em função de um Comitê de Política Monetária com mandato específico e autonomia funcional? O insulamento do BC de eventuais riscos cambiais do setor privado é mais facilmente assegurado dando completa autonomia ao BC do que subordinando-o a outras autoridades do Governo.]
 
7.         Política industrial sem dirigismo.
- Formular políticas industriais entendidas como conjunto de formas de parceria descentralizada entre o governo e as empresas. (…) (c) insistência em ter como contrapartida da ajuda às empresas existentes a facilitação da entrada de novas empresas e novos agentes no mercado;

[PRA: Ter presente que toda forma de política industrial, por mais bem intencionada que ela seja, sempre tem como substrato algum tipo de contaminação das políticas e dos recursos públicos pelos chamados “interesses especiais”. O próprio fato de mencionar “ajuda às empresas existentes” implica que haverá seleção política dos “merecedores” de tal ajuda, à exclusão de outros setores e de todas as demais empresas. A administração da ajuda condicionada à entrada de novos concorrentes (sem ajuda?) parece difícil de obter numa situação, justamente, de desigualdade de situações. Toda política de ajuda introduz distorções no funcionamento do sistema de mercado, que as empresas não beneficiadas tentam compensar mediante a aplicação de outros mecanismo, como preços de transferência por exemplo.]

            - A política industrial será reforçada por política de comércio exterior… Dois critérios impessoais determinarão o nível de proteção tarifária ou de alívio tributário concedido às empresas de cada setor. (…)  Para restaurar as condições de concorrência, o produtor receberá um nível de proteção tarifária ou de benefício tributário correspondente aos custos adicionais que lhe sejam impostos pela política macroeconômica (…)  Lutaremos, porém, por aquelas revisões dos acordos bilaterais, regionais e mundiais que assegurem condições para uma concorrência mais equânime e mais aberta aos países e às empresas emergentes. (…)

            [PRA: Tarifa e subsídios não são mecanismos que o Brasil possa determinar a seu bel prazer, ignorando compromissos da TEC do Mercosul e de normas da OMC. A “luta” aqui significa que o Brasil vai denunciar os acordos do Mercosul e os compromissos na OMC? Nas propostas de política industrial, nada faz supor que seu autor tenha consciência desses acordos e de suas implicações para o Brasil.]

            (…)

8.         Política Agrícola e Reforma Agrária.
           
            (a) Desenvolver estoques estratégicos que viabilizem intervenções pontuais nos mercados "spot" (presente) e futuros e ajudem a assegurar a segurança alimentar. Um programa de segurança alimentar por meio da compra e distribuição onerosa ou gratuita de produtos agrícolas de primeira necessidade pelo governo federal. Terá dois objetivos: banir a fome e estabilizar os preços, sobretudo em proveito dos agricultores de porte familiar na safra e do consumidor em geral na entressafra.

            [PRA: O Brasil não tem nenhum problema de “insegurança” alimentar: ele tem um problema de renda e de pobreza, que não precisam de “estoques estratégicos” para ser resolvidos. Havendo renda, todos os brasileiros estarão alimentados de forma conveniente. Programas de “estabilização de preços” costumam redundar em gasto inútil do dinheiro público, necessário justamente para criar novas oportunidades de emprego (e portanto de renda) para a população.]

9.         A democratização do acesso ao crédito, à tecnologia e ao conhecimento.
            (…)

10.       Promoção de exportações e substituição de importações.
            - Desenvolver política de comércio internacional que rejeite solução única - seja Mercosul, Alca ou Comunidade Europeia - e que se alie aos outros grandes países continentais periféricos para reformar a ordem econômica internacional.

            [PRA: Não há solução única em comércio internacional, muito embora seja difícil inovar absolutamente nessa área. Existem basicamente dois processos de liberalização comercial e de acesso aos mercados: pela via multilateral da OMC e pela via dos acordos preferenciais regionais. As opções apontadas – Mercosul, Alca, UE – correspondem a uma delas, a da regionalização. Quaisquer acordos com os “grandes países continentais periféricos” não poderão escapar a essas características básicas e nada do que se fizer com eles poderá atingir compromissos acordados multilateralmente ou atingir preferências já concedidas no âmbito do Mercosul.]

            - Definir ajuda tributária ou tarifária a cada setor, sempre em prazo temporário e em escala declinante,…(…) E tratar as proteções tarifárias como instrumentos localizados e temporários…

            [PRA: Isso não pode ser feito em contradição com os compromissos já assinalados.]

11.       A recuperação da base de energia e transporte.
            EM ELABORAÇÃO.

12.       Uma vanguarda tecnológica e seus vínculos com o resto da economia.
            (…)

 

JUSTIÇA PARA OS BRASILEIROS

1.         Cobrança de ética dos governantes e responsabilização dos corruptos.
2.         Justiça rápida e acessível.
- Financiar grande expansão do Judiciário federal, em consulta com os juízes federais, e apoiar os Estados, sobretudo os mais pobres, no esforço de expandir seus judiciários.
            - Triplicar em quatro anos o quadro de efetivos da polícia federal. (Ver item 3 sobre “Os problemas do dia-a-dia”.)
            - Implantar, (…)  centros de assistência jurídica popular em todo o país,…

            [PRA: Certamente necessárias tais providências, mas e o orçamento?]

3.         A flexibilização do federalismo para garantir os mínimos sociais.
4.         A desigualdade dentro da Federação.
 (b) desenvolvimento de centros de pesquisa e tecnologia regionais, existentes ou novos, e adaptação de práticas e tecnologias apropriadas já iniciadas por outros países continentais em desenvolvimento, como a China e a Índia;

[PRA: O Brasil provavelmente está à frente desses países nessas áreas.]

- Dar papel decrescente aos subsídios e aos incentivos fiscais como instrumentos para a correção dos desequilíbrios regionais.

            [PRA: Esse tipo de “facilidade” regional constitui uma das principais fontes de distorção no uso do dinheiro público e contribui, de fato, para preservar essas desigualdades regionais.]

5.         Redução dos bolsões de pobreza.
            - Nos bairros pobres das grandes cidades, começar com a regularização da posse da terra, acompanhada da instalação de postos habitacionais que vendam material subsidiado de construção e orientem as populações nas técnicas populares de construção.

            [PRA: O “mito” da casa própria pode não ser a forma economicamente mais racional para resolver os problemas da habitação no Brasil. Num país dotado de contínuo deslocamento de atividades econômicas e de intensa mobilidade ascensional, a fixação de pessoas sem emprego em determinados lugares pode contribuir para agravar, em lugar de resolver, os problemas urbanos.]

6.         A população negra.
7.         A mulher.
8.         Serviço social.

A NATUREZA E A CULTURA BRASILEIRAS:

AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL

1. Proteção da Natureza (EM ELABORAÇÃO).
2. Cultura (EM ELABORAÇÃO).
            (…) 
            - Garantir a predominância da programação de conteúdo nacional nos meios de comunicação de massa, sobretudo na televisão.

            [PRA: Uma nova “reserva de mercado”? Isto será compatível com nossos compromissos no âmbito da OMC?]

REFORMA DA POLÍTICA:
APROFUNDAMENTO DA DEMOCRACIA
1.         Financiamento público das campanhas eleitorais.
2.         Construção de regime de partidos políticos fortes.
3.         Introduzir dentro da democracia representativa elementos cada vez mais fortes de democracia participativa e direta. (plebiscitos e referendos)
           
            [PRA: Esse tipo de consulta não se presta para questões complexas como o acordo da Alca, por exemplo, um dos que são geralmente apontados como suscetíveis de “consulta popular”. Em geral, consultas populares são mais indicadas nas questões em que as opções são claras e suscetíveis de terem uma resposta na base do sim ou não, o que obviamente não é o caso de questões constitucionais mais complexas ou, justamente, dos acordos de comércio.]

O BRASIL NO MUNDO:

INTEGRAÇÃO ATIVA

1.         A política externa e a democracia brasileira.
2.         A política de defesa.
- Reorganizar, requalificar e reaparelhar as Forças Armadas.

            [PRA: As FFAA deveriam ter basicamente duas funções externas: segurança no Atlântico Sul e na região amazônica, em coordenação com nossos parceiros hemisféricos; participação crescente nas forças de intervenção da ONU, tanto em “peace-making” quanto em peace-keeping”.]

            - A indústria de armamentos será integralmente estatizada e posta sob o controle das Forças Armadas.

            [PRA: Medida totalmente desnecessária e de alto custo econômico para o Brasil, cujo Governo será obrigado a manter instalações custosas para fornecimento esporádico.]

3.         A construção do multilateralismo.
- A política externa do Brasil não se reduzirá a negociações comerciais. Terá por objetivo central a construção de uma ordem multilateral no mundo (…)  e resistindo à divisão do mundo entre uma minoria de privilegiados e uma maioria de miseráveis.

[PRA: A política externa não se reduz ao comércio exterior. Construir uma “nova” ordem multilateral não é projeto que se faz por vontade própria, mas em todo caso não pode ter como pauta apenas uma recusa de um maniqueísmo que de fato não existe (“divisão do mundo entre privilegiados e miseráveis…”), uma vez que as gradações são infinitas.]

            - O Brasil proporá revigoramento e reorganização do sistema das Nações Unidas para refletir as realidades e as ansiedades atuais, inclusive por meio do redimensionamento do Conselho de Segurança.

            [PRA: Para quem não está informado, o Brasil já vem fazendo isso, sem qualquer ansiedade, mas com muito realismo…]

            - O Brasil trabalhará com os outros grandes países continentais marginalizados - a China, a Índia, a Rússia e a Indonésia - para reformar as organizações do sistema Bretton Woods (o FMI, O Banco Mundial e a Organização Internacional do Comércio). Atuará, junto com seus parceiros políticos e econômicos, para impedir que essas organizações sirvam de instrumentos para a imposição das políticas de desenvolvimento preferidas pelas potências dominantes e pelos países ricos. (Ver adiante.)

            [PRA: Há um certo equívoco na afirmação continuada de vínculos especiais com esses grandes países periféricos: não são exatamente eles que proverão o Brasil daquilo que ele mais necessita: capitais, know-how, tecnologia, acesso a mercados relevantes, apoio financeiro e, mais importante, diálogo político em função das grandes questões que estão no centro do processo decisório em nível mundial.
 Em geral, as “potências dominantes” não tem planos de desenvolvimento para “exportação”: elas têm uma preocupação básica com a segurança e a estabilidade da ordem mundial. Planos de desenvolvimento somos nós mesmos que fazemos, com eventual apoio financeiro de órgãos multilaterais, que por acaso são “dominados” por essas mesmas potências, não pelos grandes países periféricos. A Organização Internacional do Comércio é na verdade a OMC.]

            - O Brasil tomará a iniciativa da construção de uma aliança em prol do multilateralismo entre os grandes países continentais periféricos, a Comunidade Europeia e a corrente de opinião internacionalista e anti-hegemônica dentro dos Estados Unidos.

            [PRA: Ilusionismo retórico? Todos eles são, teoricamente, em favor do multilateralismo. As concordâncias e uma eventual agenda comum devem parar por aí mesmo. Nenhum deles deve estar esperando que o Brasil os convide para uma nova campanha nesse sentido.]

4.         Reforma da ordem econômica mundial.
- … o Brasil (…) Construirá, junto com seus vizinhos na América do Sul e com os outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, proposta abrangente de redirecionamento e reforma da globalização. E conduzirá as negociações específicas à luz dessa estratégia global.

[PRA: Redirecionar e reformar a globalização soa algo como modular tornados e orientar a direção dos tufões. Alguém possui o mapa, os caminhos e a estratégia da globalização, para que seja possível redirecioná-la? Sabe pelo menos em que porta bater?]

            - O princípio básico pelo qual se baterá o Brasil será que as regras da ordem econômica não devem tomar como objetivo a maximização do livre comércio, que é meio, não fim. O objetivo deve ser ajudar os países a desbravar e a trilhar seus próprios caminhos.

            [PRA: Certo. Fica faltando dizer quais são essas novas modalidades de ajuda para percorrer caminhos até aqui incógnitos. Se o livre comércio é apenas um meio, o autor das propostas deveria dizer quais são esses outros meios e quais seriam os outros objetivos para alcançar desenvolvimento e prosperidade em bases exclusivamente nacionais.]

            - Portanto, o Brasil atuará contra a tentativa de usar as condicionalidades do FMI como instrumento para suprimir a diversidade de estratégias de desenvolvimento e para sacrificar as exigências das economias reais aos interesses financeiros.

            [PRA: As famosas condicionalidades do FMI se dirigem a requisitos de desempenho muito específicos (geralmente de natureza fiscal e orçamentária) e normalmente não impedem que o País estabeleça sua própria “estratégia de desenvolvimento”. Uma das recomendações do FMI costuma ser desvalorização cambial, a outra, a renegociação das dívidas existentes…]

            - O Brasil lutará contra regras e práticas que, ao ampliar a liberdade do capital para correr mundo, negam às pessoas essa mesma liberdade. Defenderá regras e práticas que permitam ao capital e ao trabalhador ganharem juntos, em passos gradativos, o direito de atravessar fronteiras nacionais. Reconhecerá no direito de migração, devidamente regulado e dosado, grande fonte de igualdade e de inovação.

            [PRA: Correto. O Brasil poderia começar por abrir suas fronteiras aos candidatos à imigração vindos de outros países sul-americanos, ou africanos, por exemplo. E poderia começar perguntando ao Uruguai porque ele se opõe com tamanha pertinácia à livre circulação de trabalhadores no Mercosul…]

            - O Brasil resistirá a todas as tentativas de expandir a definição do direito de propriedade, como no campo da propriedade intelectual, que inibam o surgimento no mundo de novos polos de inovação.

            [PRA: O Brasil está lutando, por exemplo, para introduzir novas modalidades no direito de propriedade, como aquelas que se referem ao conhecimento tradicional indígena, aos recursos da biodiversidade, à proteção do folclore, etc. De fato, o Brasil tem muito a se beneficiar com a expansão do conceito de inovação.]

            - O Brasil atuará em conjunto com o grupo de Cairns (dos maiores países exportadores de produtos agrícolas) e com seus novos parceiros entre os países continentais periféricos para reduzir o protecionismo agrário que distorce o comércio mundial.

            [PRA: Trata-se justamente de uma das atividades mais constantes e mais vigorosas da atual política externa.]

5.         Negociações bilaterais e com multinacionais.
- Ao desenvolver, junto com seus parceiros políticos e econômicos, esse projeto para a reforma da ordem econômica mundial, o Brasil não descuidará da ampliação dos acordos bilaterais que potencializem a diversificação tradicional de suas relações comerciais. Nenhum acordo regional ou parceria estratégica será tratado como razão para atenuar ou abandonar outras opções de negociação bilateral.

[PRA: As negociações comerciais bilaterais sempre estão enquadradas nas normas da OMC e procuram preservar o patrimônio de acordos regionais existentes. Não há muito espaço para inovação neste particular.]

- A negociação bilateral com Estados estrangeiros será complementada por um esforço para negociar diretamente com empresas multinacionais a natureza de sua inserção no Brasil. A prioridade dessas negociações deve ser obter um reposicionamento de algumas dessas empresas na economia brasileira. Em vez de reproduzir ou apenas montar para o mercado interno bens padronizados de consumo, devem tornar-se centros irradiadores de tecnologia e aprendizagem dentro de cadeias produtivas orientadas inclusive para a exportação.

            [PRA: As empresas multinacionais geralmente não apreciam que os governos lhes digam o que devem ou não devem fazer; quando aceitam “conselhos”, geralmente estão barganhando favores muito concretos, que geralmente as coloca em melhor posição do que concorrentes, daí resultando distorções no mecanismo econômico e a busca de outras vantagens por empresas excluídas, que podem recorrer a “preços de transferência” para compensar a desvantagem.]

6.         Mercosul e América do Sul.
- O Brasil continuará sua política de "paciência estratégica" com a Argentina e com seus parceiros do Mercosul. Aceitará o revés momentâneo para poder novamente avançar em seguida.

            [PRA: Não deveria. Caberia estabelecer compromissos imediatos de respeito pelos compromissos já pactuados no âmbito do Mercosul, com algum “waiver” temporário negociado em função justamente da observância dos compromissos maiores.]

            - O Brasil verá o Mercosul como base regional para a definição e o aprofundamento de estratégia regional de desenvolvimento com características próprias. Dará, portanto, menos ênfase aos atributos rígidos de união aduaneira e mais ênfase à formação de políticas comuns e de instituições comuns, inclusive para a resolução de litígios. O Brasil proporá a multiplicação de empreendimentos comuns com parceiros públicos e privados de outros países do Mercosul.

            [PRA: Há aqui uma incompreensão do que sejam “políticas comuns”: no caso do Mercosul elas devem necessariamente passar pelo conceito de união aduaneira, e mais adiante de mercado comum, sem o que tais políticas não seriam simplesmente possíveis.]

            - Qualquer que seja o destino do Mercosul, o Brasil lutará pelo estreitamento de suas relações políticas e culturais com os outros países da América do Sul e pela construção de um mecanismo próprio de formação de estratégias compartilhadas.

            [PRA: O que significa, concretamente, “construção de um mecanismo próprio de formação de estratégias compartilhadas”? Algo tão importante que não possa ser explicitado num programa público? Significa coordenação de políticas governamentais ao mais alto nível, ou a existência de uma rede de acordos comerciais como a que vem sendo construída atualmente?]

7.         Alca e Estados Unidos.
- O Brasil entrará nas negociações da Alca sem medo e sem pressa. Através de negociações com a Comunidade Europeia, com a China e com a Índia, procurará fortalecer seu poder de barganha nessas negociações.

[PRA: Não há pressa, tanto porque o calendário já está definido desde a Costa Rica (1998), foi confirmado em Québec (2001) e deve estender-se até 2005. As negociações com a UE são conduzidas no âmbito do Mercosul, e não exclusivamente pelo Brasil, e China e Índia têm muito pouco a dizer no que se refere à Alca. Acordos de livre comércio com esses dois países são praticamente uma impossibilidade material.]

            - O prosseguimento das negociações será precedido por uma radiografia da nossa economia que revele o grau de pressão competitiva que, em cada setor, sirva para estimular e não para destruir.

            [PRA: Seria preciso pedir para interromper o exercício da Alca, um processo em curso ente 34 países, até que o Brasil conclua essa radiografia? Todos os outros países teriam o mesmo direito? Esse estudo pode ser feito em quanto tempo? E o que será feito daqueles setores nos quais se descobrir, como resultado dessa radiografia, que a “destruição criadora” será inevitável? Vamos pedir condições especiais para “estimulá-los”?]

            - O Brasil rejeitará a ideia da inevitabilidade da Alca e da necessidade de aceitar o desfecho das negociações, seja ele o que for. Repudiará qualquer resultado que deixe de assegurar abertura genuinamente recíproca ou que nos imponha regras que inibam a capacidade do nosso Estado de construir parcerias estratégicas com nossa iniciativa privada.

            [PRA: Não há nada de inevitável na ALCA, e nenhum acordo impedirá jamais o Brasil de “construir parcerias estratégicas com a iniciativa privada”.]

            - No curso das negociações, o Brasil procurará aliados do mundo empresarial, político e sindical dos Estados Unidos. Compreenderá as negociações como base para a formação de um espaço das Américas que transcenda, em seu significado, interesses apenas comerciais.

            [PRA: Os meios empresariais estão geralmente interessados na liberalização do comércio, com exceção, obviamente, daqueles não competitivos – siderúrgicos, têxteis, calçadistas, produtores de açúcar, suco de laranja, soja, etc. – que estão justamente pressionando os meios sindicais e políticos para manter a proteção e continuar uma política abusiva de subsídios e restrições de toda a ordem. O “espaço das Américas” não significa a mesma coisa para cada um desses possíveis interlocutores.]

            - Nesse mesmo espírito, o Brasil insistirá em condicionar a integração comercial a políticas igualizadoras, seguindo nisso o modelo da Comunidade Europeia e não o modelo do Tratado de Livre Comércio entre os Estados Unidos, o Canadá e o México. Pelas mesmas razões, o Brasil defenderá a ampliação gradativa do direito de trabalhar em outros países signatários do acordo, inclusive os Estados Unidos e o Canadá, como parte inseparável da abertura comercial.

            [PRA: Não se está discutindo, na Alca, nenhum acordo de integração comercial, mas pura e simplesmente um de “livre-comércio”, que não comporta, justamente, políticas igualizadoras, que não existem nem na UE, que apenas prevê fundos de compensação e de reconversão, que são justamente caracterizados por muitas distorções e alocação “política” dos recursos. O Brasil poderia propor a liberdade do deslocamento de mão-de-obra, desde que estivesse disposto a aceitar o mesmo princípio para si. Será isto aprovado no Congresso brasileiro?]

8.         Comunidade Europeia.
- Às negociações com a Comunidade Europeia será concedida importância igual às negociações com o Estados Unidos e outros parceiros de uma possível Alca. Nosso avanço relativo nas duas séries de negociações será determinado pelas circunstâncias.

[PRA: A Comunidade deixou de existir em 1993, tendo sido substituída pela União Europeia. O Brasil não negocia com esse bloco, pela simples razão que as negociações são conduzidas no âmbito do Mercosul, outro bloco comercial, caracterizado, como a UE, pela união aduaneira. Seria preciso indicar quais circunstâncias determinarão o avanço, ou não, dessas negociações.]

            - Os entendimentos com os europeus ultrapassarão o campo das negociações comerciais e abrangerão o esforço para envolvê-los, junto conosco, na construção do novo multilateralismo.

            [PRA: De acordo, mas nem os europeus estão de acordo entre si sobre o que significa esse novo multilateralismo, supondo-se que a agenda desse processo esteja clara para os diversos parceiros. Na questão da ampliação do Conselho de Segurança, por exemplo, eles estão bastante divididos.]

9.         África.
- O Brasil assumirá responsabilidade especial pela defesa dos interesses africanos. Procurará desenvolver na África um conjunto de trocas comerciais, parcerias produtivas e iniciativas humanitárias e pacificadoras. (…)
            - A política africana do Brasil será executada de maneira a fortalecer o reconhecimento do legado africano dentro do Brasil bem como a exemplificar e a promover nossa proposta de reforma da ordem mundial.

            [PRA: De acordo e totalmente meritório. Essa “responsabilidade especial” exige apenas duas coisas: soldados e talão de cheques. O Brasil dispõe de um e de outro em abundância?]

10.       Aproximação estratégica aos outros grandes países continentais periféricos.
- O Brasil se aproximará estrategicamente dos outros grandes países continentais periféricos: a China, a Índia, a Rússia e a Indonésia. Dará importância especial à construção de uma relação com a China e com Índia.

[PRA: Trata-se de mais um “mito” de nossa política externa. Em primeiro lugar porque essa aproximação já se faz. Em segundo lugar porque a possibilidade de retornos imediatos é bastante limitada. Em terceiro lugar, como já se disse, não são esses países que trarão ao Brasil aquilo que ele necessita em termos de comércio, capitais, tecnologia, know-how, finanças, mercados, enfim, aspectos essenciais de nossa balança externa, nos quais continuaremos como importadores líquidos nos próximos anos e que eles não podem prover facilmente.]

Essa aproximação estratégica se desenvolverá nos três planos seguintes.
            - Proposta da reforma das instituições políticas e econômicas da ordem mundial,…

            [PRA: Existe uma agenda comum para essa reforma? Quais seriam os pontos comuns?]

            - Negociações bilaterais específicas para aumentar  o poder de barganha dos parceiros diante de terceiros (como, no nosso caso, nas negociações da Alca).

            [PRA: Já se evidenciou o enquadramento necessário dessas negociações nas regras multilaterais existentes e no respeito aos compromisso regionais já concluídos. Não há muito que se possa fazer além disso, sobretudo no plano exclusivamente bilateral.]

            - Parcerias empresariais, tecnológicas e científicas para desenvolver polos de inovação que não estejam sob controle das empresas multinacionais e dos países ricos.

            [PRA: De acordo e esse objetivo pode ser buscado, mas o Brasil geralmente possui empresas mais “globalizadas” do que esses países, cuja empresas “globais” também estão buscando, como o Brasil, parcerias prioritárias com “empresas multinacionais e dos países ricos”, que são as que podem provê-las de tecnologia e de marketing avançado e acesso a certos mercados mais relevantes.]


Paulo Roberto de Almeida
870: 19/02/2002
Revisão: 26/02/2002

Politica externa do governo Geisel: rupturas e continuidades - Paulo Roberto de Almeida

Em meados de 2002, fui contatado por um grupo de alunos das Faculdades Casper Líbero que pretendiam fazer um "livro-reportagem" sobre temas de política internacional, e me pediram para que respondesse um conjunto de questões sobre a política externa do Governo Geisel. Nunca me deram retorno sobre o projeto, e é muito provável que, como muitos outros sonhos loucos de estudantes, ele nunca tenha sido levado a termo.
Mas, descubro agora, quando dou início a um novo exercício de avaliação do pensamento diplomático durante a era militar, que esse trabalho permaneceu inédito e não utilizado durante esses últimos 15 anos. Mesmo sem ler o texto, para saber o que exatamente eu escrevi, transcrevo-o agora, pois pode ter utilidade para alguém.
Sempre vale o registro de algo que nos custou tempo e trabalho durante pelo menos algumas noites...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de outubro de 2017


Política externa do governo Geisel
breves considerações sobre rupturas e continuidades

Paulo Roberto de Almeida
Depoimento prestado em 11 de Julho de 2002 para
Grupo de alunos da Faculdade Casper Líber,
na qualidade de colaborador intelectual do projeto de livro-reportagem:
“O Brasil diante das escolhas e os desafios da Multipolarização:
rupturas e continuidades do governo Geisel (1974-1979)”
(a ser publicado no final do ano de 2002)

Temática geral da obra: a influência da política externa desenvolvida pelo presidente Ernesto Geisel, nas relações regionais e multilaterais que o Brasil mantém hoje.


Perguntas formuladas a Paulo Roberto de Almeida (PRA):

1.   Podemos fazer uma relação entre a política externa desenvolvida por Geisel (diversificação de parcerias bilaterais, utilização da diplomacia presidencial para obtenção de novos investimentos e parceiros, dentre outras características) com a política de diversificação de parcerias bilaterais realizada hoje com o atual governo?

PRA: Existe uma certa convergência de orientações políticas, de ênfases bem como de métodos entre a política externa praticada durante o Governo Geisel (1975-1979) e aquela seguida durante as duas administrações FHC (1995-2002), muito embora elas pertençam a dois universos políticos distintos e respondam a preocupações diferentes quanto aos objetivos finais.
Comecemos pelas convergências. Em ambos os casos, houve forte ênfase na diplomacia presidencial, assim como no objetivo da diversificação de parcerias, na construção de certas alianças privilegiadas e na busca de um diálogo de qualidade com interlocutores importantes do cenário internacional, tanto no horizonte tradicional das potências ocidentais, quanto no cenário menos comum de parceiros do mundo dos países em desenvolvimento. Em ambos os casos, igualmente, se buscou valorizar os diversos planos de trabalho diplomático, tanto o cenário regional, estrito senso, como o âmbito dos esquemas plurilaterais e, sobretudo, o sistema multilateral. Existe convergência similar na busca de diálogo privilegiado com as grandes potências econômicas (EUA, Alemanha, Japão, uma tríade dominante no cenário financeiro), assim como na busca de parcerias tecnológicas e industriais que capacitassem o Brasil a elevar-se na escala de desenvolvimento tecnológico e e de equipamento militar.
No plano das divergências contudo, os elementos seguintes devem ser destacados. As condições econômicas, políticas, geopolíticas e de ordem doméstica nas quais foram exercidas as políticas externas respectivas de Geisel e de FHC foram sensivelmente diferentes, com ênfase nas condições domésticas, mas também no cenário internacional. Neste último plano, com efeito, vivia-se então, ainda, sob o impacto da Guerra Fria, muito embora a Administração Nixon (1968-1974) e seu Conselheiro de Segurança Nacional e depois Secretário de Estado, Henry Kissinger, tivessem se esforçado para ampliar os espaços de détente, com diversos acordos de redução de armas estratégicas negociados (SALT I, ABM), início das negociações para a conclusão da guerra do Vietnã (e do Camboja) e iniciativas nos planos multilateral e regional (confidence-building measures na Europa), por exemplo). Mas a União Soviética ainda mostrava uma face agressiva no cenário internacional, com um forte programa de armamentismo nuclear (mísseis, equipamentos convencionais e projeção naval) e um apoio incontido a diversos regimes “progressistas” em diversas partes do mundo em desenvolvimento (África, sobretudo, mas também América Latina e Ásia), ademais da preservação da chamada “Doutrina Brejnev” que “autorizava” intervenções unilaterais em países de sua órbita em caso de “ameaças” ao poder socialista (casos da Tchecoslováquia, Polônia, RDA).
No plano interno, mais espetacularmente, o País vivia uma situação ditatorial de repressão a grupos de oposição, censura prévia à imprensa e sentimentos anticomunistas fortemente disseminados em todo o establishment militar. O alinhamento ideológico com as teses mais conservadoras em política externa comandava ausência quase completa (ou apenas formais) de relações diplomáticas com países comunistas como China e Cuba e fortes restrições aos demais da órbita soviética. O Governo Geisel, precisamente, inovou tremendamente ao “normalizar” relações diplomáticas com vários desses países (como o reconhecimento da China comunista e de Angola “marxista”, mas não de Cuba), mesmo ao preço de fortes tensões com determinadas cúpulas do sistema militar (o próprio ministro do Exército, Silvio Frota, era virulentamente contrário a tal tipo de política). O chanceler escolhido por Geisel, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, vinha de uma tradição “desenvolvimentista” e nacionalista, no Itamaraty, além de ter assistido a diversos episódios de engajamento do Brasil em esforços de cooperação com outros países em desenvolvimento no quadro do Grupo dos 77, da UNCTAD, dos movimentos em prol da descolonização e do rompimento da dependência econômica desses países em relação às potências ocidentais (UNCTAD). Ele deu início a uma forte reorientação da política externa em direção do chamado “Terceiro Mundo” e das teses pregando o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional nos foros multilaterais.
O próprio Geisel envolveu-se diretamente na formulação e execução dessa nova diplomacia desenvolvimentista, assim como buscou parcerias privilegiadas entre os principais parceiros avançados, com o objetivo de obter financiamento e tecnologia (inclusive nuclear) para conformar o projeto do “Brasil grande potência” (política mais praticada do que verdadeiramente afirmada). Tendo encontrado fortes resistências nos EUA (que se preocupavam com a proliferação nuclear), Geisel busca uma aliança privilegiada com a Alemanha, de que resulta o acordo de cooperação nuclear (supostamente de orientação basicamente energética e com características apenas “civis”), implementado apenas parcialmente e a custos altíssimos para a sociedade.
O cenário externo não foi contudo favorável ao desenvolvimento dessas estratégias de atuação formuladas conjuntamente por Geisel e “Silveirinha”. Depois do primeiro choque do petróleo em 1974, o mundo viveu o recrudescimento da pressão inflacionária e o aumento das taxas de juros, até que o segundo choque do petróleo, em 1979, consumasse um cenário externo de “estagflação”. No plano regional, igualmente, os conflitos com a Argentina em torno do aproveitamento dos recursos hídricos da bacia do Paraná (depois do acordo concluído com o Paraguai, em 1975, para a construção de uma grande barragem hidroelétrica nas proximidades da fronteira tripartite de Iguaçu) recrudesceram ao ponto de se temer a ruptura em um conflito aberto, num cenário geopolítico já caracterizado pela competição militar entre os dois países e pela possível pressão para a aquisição da arma nuclear pelos establishments militares respectivos.
Na era FHC, esse cenário se encontra radicalmente transformado: fim do socialismo e da bipolaridade, pacificação, cooperação e integração nas relações com a Argentina e mudanças na matriz energética do País, com a diminuição da dependência em relação ao Oriente Médio. Mas, não resta dúvida que a orientação em prol da diversificação de parcerias, sobretudo no plano econômico e tecnológico, aproxima a administração atual da era Geisel, inclusive em seus aspectos eventualmente negativos, como seria a confiança exagerada no crescimento econômico do País e a dependência ampliada em relação aos capitais de empréstimo e ao financiamento externo de modo geral.
Também se repete a forte política de atração de investimentos diretos externos, mas neste caso cabe destacar a forte ênfase dada no Governo Geisel a grandes projetos nacionais (e sobretudo estatais) de infraestrutura e indústrias básicas, ao passo que FHC deu continuidade ao processo iniciado por Collor de privatizações e de desengajamento do estado das atividades diretamente produtivas na esfera econômica. Este encontrou um País basicamente industrializado (daí ter caracterizado o Brasil não como um país “subdesenvolvido”, mas como um país “injusto”), processo que tinha sido completado, justamente, na administração Geisel. Ambos deixaram dívidas interna e externa maiores do que as encontraram ao iniciar seus governos respectivos, muito embora tenham procurado controlar o processo inflacionário interno (com mais sucesso no caso FHC, mas descontando-se a pressão inflacionária representada pelo petróleo na era Geisel).
Em todo caso, há talvez semelhanças de forma, como de objetivos, entre as duas fases do Brasil contemporâneo, mas com cenários interno e externo bastante diverso e portanto com ênfases especiais no plano diplomático divergentes no que respeita objetivos básicos da construção do Brasil enquanto nação inserida no contexto mundial: Geisel gostaria de ver um Brasil menos dependente do exterior, totalmente autônomo tecnologicamente e capacitado militarmente, enquanto FHC trabalha basicamente nos quadros da interdependência, da globalização (que ele aceita como um dado da realidade) e da regionalização (conceitos de América do Sul e construção do Mercosul) e não tem a pretensão de construir uma potência militar, e sim uma nação econômica e socialmente desenvolvida (ou pelo menos mais “justa”), com aceitação das realidades geopolíticas atuais.

2.   Poderíamos dizer que o governo atual retomou esta política de diversificação de parcerias e a valorização da diplomacia presidencial exercida no governo Geisel (que representou o fim do alinhamento do governo militar aos EUA) depois de uma política de “alinhamento” aos EUA exercida também (de certa forma) pelo presidente Fernando Collor? Podemos dizer, então, que entre o governo Geisel e o governo FHC tivemos uma política externa “morna” sem grande valorização da diplomacia brasileira?

PRA: FHC praticou uma diplomacia presidencial em toda a sua extensão, inclusive porque não tinha os constrangimentos de Geisel (direitos humanos, ditadura, repressão política etc) e, de certa forma, ele foi o seu próprio “chanceler”, ao passo que o papel de Silveirinha na gestão Geisel foi bem mais destacado do que o de Lampreia na era FHC. A diversificação de parcerias era um método, não um fim em si mesmo, ainda que a busca de novos parceiros para compensar a presença predominante dos EUA tenha figurado como objetivo importante na era Geisel (que já tinha assistido a uma relativa deterioração das relações com os EUA na gestão anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto). O alinhamento com os EUA, na era militar, só existiu, de verdade, na primeira gestão dos generais, sob Castello Branco, por uma simples questão de “reconhecimento” pelo apoio dado na estabilização do novo regime e sua situação econômico-financeira.
Não se pode dizer, verdadeiramente, que tenha havido “alinhamento” com os EUA na gestão Collor, mas sim o rompimento de certos “tabus” que dificultavam as relações bilaterais, como na questão da informática, da proliferação nuclear e missilística, das patentes, da política comercial, do alegado “terceiro-mundismo” da política externa (e suas repercussões em termos de dívida externa, relações com os banqueiros privados e com o FMI, negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai) etc. Várias dessas “inovações” diplomáticas não representavam “alinhamento” estrito senso, mas a busca de uma modernização na forma de inserção do Brasil na economia internacional, como a redução tarifária e a adoção de um novo código de propriedade industrial reconhecendo patentes farmacêuticas, por exemplo. A chamada “política nuclear independente” não trouxe nem independência nem benefícios econômicos ou tecnológicos ao País, daí a decisão acertada (apoiada pelos EUA) de renunciar às armas de destruição em massa (possibilidade aliás negada pela Constituição) e de aderir aos principais instrumentos internacionais vinculantes nessa matéria.
De toda forma, em nenhuma das duas épocas, a política externa foi “morna” ou secundária, para os interesses internos e externos do Brasil. Em ambas, ela foi fundamental, estratégica mesma, para a consecução de determinados objetivos que poderiam ser, genericamente, classificados sob a rubrica “desenvolvimentista”.

3.   No que se refere a parcerias estratégicas que visavam fortalecer o projeto nacional do governo Geisel, poderíamos afirmar que ela foi retomada em algum momento posterior que não o do governo Fernando Henrique que é criticado por não ter um projeto nacional? Quais seriam os principais objetivos de uma política externa como a desenvolvida pelo atual governo? Que benefícios ela traz para o país?

PRA: O “projeto nacional” do Governo Geisel foi o do fortalecimento da base econômico-industrial do País, como grande ênfase na capacitação tecnológica nacional e na autonomia em matéria de insumos básicos (substituição de importações). O “projeto nacional” do governo FHC, mais praticado do que teorizado, é o da plena inserção do Brasil nas correntes dinâmicas da economia internacional, objetivo de certa forma oposto ao buscado por Geisel, mas não menos legítimo, uma vez que ambos buscavam fortalecer o País para competir no cenário externo. A visão “autárquica” de Geisel correspondia, mais bem, ao tipo de educação militar que ele recebeu (inclusive com fortes influências de um tipo de economia “nazista”, aquela que, nos anos 30 valorizava a “plena autonomia” do País em situação de ruptura do abastecimento externo), ao passo que a visão bem mais “interdependente” de FHC reflete sua educação cosmopolita e fortemente engajada na cooperação internacional, sem qualquer receio de “dependências nocivas” para o Brasil. São duas mentalidades opostas, mas ambas fortemente comprometidas com a plena valorização da capacitação tecnológica nacional (embora por métodos distintos).
Os benefícios supostos ou reais da atual política externa são os da plena valorização dessa inserção econômica internacional e, sobretudo, o caráter estratégico atribuído ao processo de integração regional e à cooperação com a Argentina, ao passo que Geisel não tinha nenhuma intenção de renunciar à “soberania” brasileira no quadro da integração regional (inclusive por desconfiar da Argentina enquanto “competidora estratégica). Essa opção tem um enorme custo para o País, uma vez que a enorme autonomia praticada (na verdade a busca da autarquia) não é economicamente racional, nem atende ao sistema produtivo como deveria. O Governo Figueiredo tentou retomar, ou continuar, o projeto de Geisel, mas a situação de deterioração financeira e de crise econômica então vivida, a forte pressão política interna em favor da redemocratização, bem como a incapacidade gerencial e a falta de gosto do presidente pela diplomacia (como pelo simples exercício da autoridade presidencial) inviabilizaram completamente tal continuidade. A era Sarney, ainda que inovadora em certos aspectos (como na integração com a Argentina) foi basicamente de transição e de má administração econômica, dificultando a continuidade desse tipo de projeto (que aliás não contava mais com condições financeiras ou externas para ser implementado). Faltou-lhe, também, um chanceler com visão estratégica, ainda que a máquina do Itamaraty tenha funcionado de maneira relativamente eficiente.
De todo modo, projetos econômicos não são implementados segundo a vontade dos dirigentes, mas também em função de um contexto interno e externo favoráveis. Ora, apenas nos anos 90, com o sucesso da estabilização no Brasil e o degelo da Guerra Fria, pode o Brasil retomar um projeto nacional dotado de certa continuidade. Ainda que a diplomacia da era FHC não tenha tido nenhum slogan (como a diplomacia “ecumênica” e o “pragmatismo responsável” da era militar), ela teve um sentido, uma clara direção e sobretudo uma implementação fortemente embasada no interesse nacional (ainda que levando em conta nossas limitações intrínsecas em termos de poder financeiro).

4.   Dentro de uma análise mais histórica, a diplomacia brasileira pode se considerada uma diplomacia voltada para atender os interesses econômicos do país?

PRA: Certamente que sim, desde a era Vargas, basicamente, a política externa está organizada para atender aos objetivos nacionais de desenvolvimento econômico. Ela é uma diplomacia “instrumental”, “oportunista”, ambos os conceitos no bom sentido da palavra, voltada para o aproveitamento de todas as chances de promoção dos interesses econômicos do País, seja no plano comercial, seja no tecnológico, seja ainda no financeiro.

5.   O governo Geisel, desta forma, representou um marco para a política externa do país quando atribui a política externa um caráter econômico?

PRA: Nisso ele não inovou essencialmente no que vinha sendo praticado desde os anos 50 e no que já vinha sendo feito na administração anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto (este um mero executor do que o Itamaraty formulava). Mas, certamente que a forte personalidade do presidente Geisel, seu envolvimento direto com os dossiê de política externa, seu conhecimento preciso e discussão minuciosa da agenda externa, em muito contribuíram para imprimir essa marca de forte ativismo presidencial no plano da política externa.

6.   E a política externa do governo atual, tem este caráter?

PRA: Provavelmente sim, ainda que com características particulares diferentes, como ressaltado nos parágrafos anteriores, especialmente, na questão dos cenários diferentes em cada época. Mas, se Geisel foi essencialmente “econômico” e “tecnológico”, FHC não se deixou prender por esse tipo de “restrição” setorial, inclusive porque ele nunca enfrentou os fortes constrangimentos políticos de seu antecessor militar, um autocrata administrando uma ditadura repressiva. FHC voltou-se para o debate dos grandes temas políticos e sociais do mundo contemporâneo, envolvendo-se diretamente no diálogo com dirigentes do G-7 na discussão dos problemas sociais acarretados pela globalização e pela volatilidade financeira, nas assimetrias da falta de desenvolvimento em várias regiões periféricas, no desenho (pelo menos tentativo) de uma “nova ordem política internacional”, com a forte expressão do desejo do Brasil de ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, candidatura impensável na era militar. Sobretudo, a decisão de romper o “tabu” da autonomia tecnológica no terreno nuclear e de assinar o TNP representa uma pequena (ou talvez grande) revolução nos próprios fundamentos da diplomacia brasileira. Essa agenda ultrapassa a mera questão do desenvolvimento econômico do País, mas certamente ela continua a ter a vocação do desenvolvimento no centro das preocupações nacionais.

7.   Apesar do Mercosul ter sido formado durante o governo Collor, ele não continua sendo um bloco inativo? O Brasil não continua atuando individualmente sem o respaldo do mesmo, principalmente no momento atual de crise da Argentina?

PRA: O Mercosul NÃO foi formado no governo Collor: ele deriva de decisões tomadas na administração Sarney, ainda que no âmbito estritamente bilateral, Brasil-Argentina. O que Collor e Menem fizeram foi mudar o caráter (de dirigido para livre-cambista) e acelerar o ritmo da desgravação tarifária bilateral em direção de um mercado comum (decisão que já tinha sido tomada em 1988, mediante o Tratado de Integração) e aceitando a incorporação de novos membros nesse processo (que diga-se de passagem não tinham sido excluídos anteriormente, mas que tinham preferido, no caso do Uruguai, ficar à margem das obrigações jurídicas de uma integração plena). Ele tampouco é um bloco inativo, e seus problemas atuais derivam de crises individuais dos países membros, que foram levados a adotar, voluntária (no caso do ministro Cavallo, na Argentina) ou involuntariamente, medidas anti-integracionistas, não de problemas estruturais ou institucionais da própria arquitetura integracionista.
O Brasil é o país que mais tem cumprido o espírito e a letra dos objetivos integracionistas, mas tem consciência que, por ser o país mais forte e economicamente mais poderoso em termos de PIB, população, indústria, comércio exterior, lhe cabe uma responsabilidade adicional na construção e manutenção do edifício integracionista.

8.   A cada momento que passa a realização de parcerias como a Alca, o Mercosul e, consequentemente, Mercosul x UE não ficam mais distantes devido aos subsídios e o protecionismo apresentado pelos países que representam estes blocos?

PRA: Não há esquemas excludentes em termos de liberalização de comércio e todos esses blocos podem ser inter-complementares nos processos de abertura comercial e de aumento da interdependência econômica. Não resta dúvida, porém, que os processos recentes de recrudescimento do protecionismo e das práticas anti-liberalizadoras (como o subvencionismo extremado, no plano interno e externo, em relação a determinadas atividades) pode atuar negativamente na consecução dos processo de liberalização comercial, quer no plano regional ou hemisfério, quer no âmbito multilateral ou ainda na esfera inter-regional (UE-Mercosul). São percalços que devem ser superados para atender aos objetivos proclamados pelos líderes desses blocos.

9.   Quais são as perspectivas que o País tem em termos de política externa com as próximas eleições?

PRA: Basicamente as mesmas da atual administração: continuar os processos negociadores em curso (Mercosul, América do Sul, Alca, OMC e UE, além de outros esquemas bilaterais ou plurilaterais), aumentar nossa participação no comércio  internacional e, de forma inédita talvez, diminuir a dependência financeira externa, mas essa não é uma tarefa basicamente ou essencialmente diplomática., uma vez que ela depende, sobretudo, de condições internas (aumento da poupança doméstica, continuidade do esforço de superávit fiscal, fortalecimento do processo de estabilização, melhoria da capacitação tecnológica nacional), que são administradas pela área econômica, não pelo setor diplomático.

10. De que forma a estabilidade econômica conseguida com o atual governo influencia ou influenciou nas relações externas mantidas pelo Brasil?

PRA: Foi de uma enorme “utilidade” na apresentação externa do País, mas sobretudo nos livra de certos constrangimentos externos a que estávamos antes expostos: alta inflação, corrosão do instrumento monetário, ausência de orçamento realista etc. Pode-se entretanto observar que a maior parte da administração FHC teve de conviver com fortes crises financeiras externas (começando pelo México, em 1994-95, passando pela Ásia, em 1997-98, atingindo a Rússia, em 1998, e chegando ao próprio Brasil nesse último ano), o que obrigou o País a retomar o caminho dos acordos com o FMI, para a sustentação financeira externa de nosso posição de balanço de pagamentos.

11. Como embaixador nos EUA, teria como nos informar de que forma o Brasil é visto por este país e em que escala a formação da ALCA interessa aos americanos?

PRA: Não sou “embaixador” nos EUA, mas ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington. O Brasil não é propriamente “visto” nos EUA, a não ser pela pequena fração da comunidade oficial (diplomatas, funcionários da área de segurança), acadêmica (scholars especializados dos centros de pesquisa voltados para a região, professores “brasilianistas) e, sobretudo, da área econômica (investidores diretos, analistas financeiros, banqueiros), que tem uma visão muito realista, por vezes algo imprecisa, das realidades do País. O conjunto da população ignora solenemente não só o Brasil como o resto do mundo: os americanos são profundamente ignorantes em relação ao que se passa no resto do mundo, este é um dado da realidade e do panorama social dos EUA. Mas, obviamente, eles entretêm uma “visão” do Brasil, como a de um país tropical, de natureza luxuriante, com um povo simpático e jogador de um esporte estranho conhecido como “soccer”, com grandes belezas naturais (Amazônia, Rio de Janeiro, Bahia, Pantanal), mas também com imensas desigualdades sociais e miséria amplamente disseminada, o que não está muito distante da realidade. Salvo problemas graves, o Brasil comparece muito pouco nas informações correntes disponíveis ao americano comum (ainda que os jornais de negócios tenham bastante matéria sobre o Brasil, sobretudo como “mercado emergente”).
Em relação à Alca, os EUA estão tão divididos quanto o Brasil nessa matéria: políticos e sindicatos preocupados, ecologistas e anti-globalizadores opostos, economistas favoráveis, acadêmicos céticos quanto às suas chances reais, industriais divididos quanto a suas vantagens e desvantagens (dependendo do setor), e diplomatas moderadamente favoráveis ao avanço do processo negociador, por perceberem as vantagens de longo prazo ou de caráter estrutural que adviriam desse imenso bloco liberalizador hemisférico.
De modo não surpreendente, as oposições localizadas coincidem com as ameaças percebidas ou supostas derivadas do processo de liberalização: assim como os nossos agricultores estão confiantes na capacidade de competição do Brasil na área dos produtos primários, os americanos temem a concorrência dos produtos brasileiros. Assim como os industriais e as empresas de alta tecnologia (inclusive na área de serviços e de lazer) dos EUA desejam ardentemente a Alca, os nossos industriais de eletrônicos e de bens de capital temem seu impacto em seus setores respectivos, por razões óbvias de diferenças de competitividade, de “custo Brasil” etc. Ou seja, o panorama é relativamente similar em ambos os países, com uma grande maioria indefinida ou incerta quanto às possibilidades reais de implantação do esquema liberalizador, tão complexo é o processo negociador.
Mas, a Alca é basicamente um projeto americano e atende a seus interesses fundamentais. Isso não quer dizer, contudo, que ela seja totalmente negativa para o Brasil ou que sua implantação redundará em “perdas” absolutas para o País. Provavelmente seus resultados de médio e longo prazo serão positivos para o Brasil em termos de comércio, investimentos e finanças, ainda que o impacto de curto prazo possa ser significativo (mas seu período de implantação pode ser delongado, pois tudo depende de negociação).

12. Na sua opinião, quais são os principais problemas apresentados pela diplomacia brasileira no contexto em que vivemos?

PRA: Não temos propriamente problemas “da” diplomacia brasileira, mas talvez problemas “instrumentais”: número relativamente pequenos de diplomatas para todas as frentes de negociação, recursos orçamentários extremamente reduzidos para viagens, estudos, promoção comercial, contratação de consultorias técnicas, ampliação da rede consular externa, reduzida capacidade das demais agências governamentais brasileiras em “abastecer” os diplomatas de “inputs” adequados a certas negociações, enfim, problemas típicos de um país em desenvolvimento, com um funcionamento deficiente das instituições públicas e uma baixa interação com o mundo.
Creio pessoalmente que o Itamaraty, ou os seus diplomatas, deveriam abrir-se mais às interações com a sociedade civil, dialogar mais intensamente no plano interno e externo e participar mais abertamente dos debates públicos em temas de relações internacionais e de política externa. Os constrangimentos criados pela existência de um instrumento de controle dessas manifestações públicas, mais vulgarmente conhecido como “lei da mordaça”, certamente não ajudam nessa abertura ampliada do Itamaraty à sociedade civil.

13. Para finalizar, o que explica o Brasil que é considerado um gigante em extensão e capacidade econômica, língua única, estabilidade, falta de conflitos e uma diplomacia tão elogiada ter uma participação tão pequena no comércio mundial (de cerca de 0,8% atualmente, não é isso?)

PRA: A participação do Brasil no comércio  internacional gira efetivamente em torno de 0,8 a 1% dos intercâmbios globais, o que é efetivamente pouco se pensarmos na dimensão global da economia (8º ou 10º PIB no mundo), mas relativamente compatível com o baixo grau de abertura econômica externa (coeficiente de 10% do PIB aproximadamente). Tal situação deriva de fatores histórico-estruturais que são muito lentos a serem transformados: fechamento da política econômica durante a fase de industrialização e o enorme grau de nacionalização do aparelho produtivo construído durante a fase de desenvolvimento econômico “autárquico” (era Vargas e regime militar), ademais de uma desconfiança “natural” do País em relação aos processos de liberalização comercial e de uma especialização exportadora em setores caracterizados por baixo dinamismo e elasticidade-renda (commodities agrícolas, por exemplo, onde estão nossas grandes vantagens comparativas). Mas, somos, em contrapartida, um grande “tomador” de recursos externos, seja sob a forma de investimentos direitos (voluntários), seja sob a forma (obrigada) de capitais de empréstimo e financiamentos diversos (em virtude de nosso crônico desequilíbrio das transações correntes e da necessidade de importar capitais para compensar essa defasagem).
Existem portanto diversos fatores que explicam essa baixa participação no comércio internacional, mas os mais importantes talvez sejam, não os “estruturais”, mas aqueles de ordem psicológica: somos introvertidos, pouco propensos a nos abrir ao mundo e temerosos de uma maior exposição (e fragilidade) externa, provavelmente por falta de confiança em nós mesmos e por medo de não poder (ou não sabermos) competir vantajosamente com a concorrência externa. Pouco a pouco o Brasil vai superando essa timidez, como se vê na nova confiança adquirida em termos de competitividade agrícola, nos esportes e na música, e gradualmente nos produtos de tecnologia mais avançada, como aviões ou mesmo manufaturados industriais.
O Brasil tem todas as condições de vencer esses constrangimentos e de se inserir mais ativamente nos circuitos da globalização e da economia internacional. Ele certamente o fará, com a ajuda de uma diplomacia competente e autoconfiante.

Washington, 924: 11 de julho de 2002

Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Publicou os seguintes livros: Mercosul: fundamentos e perspectivas (LTr, 1998), Relações internacionais e Política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (UFRGS, 1998), O Brasil e o multilateralismo econômico (Livraria do Advogado, 1999); Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000); Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (Senac, 2001); Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (Paz e Terra, 2002); Une Histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil Contemporain (Paris: L’Harmattan, 2002). Website: www.pralmeida.org.


==============

DOSSIÊ GEISEL
Celso Castro - Maria Celina D´Araujo (organizadores)
R$ 37,00 / 252 págs.

O LANÇAMENTO MAIS EXPLOSIVO DO ANO !
Uma Visão dos Bastidores do Governo Geisel
Arquivos Confidenciais Divulgados ao Público pela 1a.Vez !

Este livro examina importante acervo documental sobre a recente história do Brasil : o arquivo pessoal de Ernesto Geisel, doado por Amália Lucy Geisel , filha do ex-presidente , em 1998, ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil ( CPDOC) da Fundação Getulio Vargas .
Os textos foram produzidos no período em Geisel ocupou a presidência da República, consistindo, basicamente nos despachos diretos dos ministros com o presidente , abordando as principais questões nacionais do período que dependiam de decisão do presidente.
Os autores fazem uma avaliação dos dossiês dos ministérios da Justiça, Fazenda, Relações Exteriores, Educação, Previdência, Trabalho, Comunicações além de relatórios do SNI.
Sumário :
- Introdução.( Celso Castro e Maria Celina D ´Araujo)
- Ministério da Justiça , o lado duro da transição.( Maria Celina D´Araujo)
- As apreciações do SNI.( Celso Castro)
- O Dossiê Ministério da Fazenda do Arquivo Ernesto Geisel: fontes sobre a gestão de Mario Henrique Simonsen.( Carlos Eduardo Sarmento e Verena Alberti)
- O pragmatismo responsável no arquivo do presidente Geisel.( Letícia Pinheiro)
- Educação e cultura no Arquivo Geisel.( Helena Bomeny)
- Abertura política e controle sindical: trabalho e trabalhadores no Arquivo Ernesto Geisel.( Angela de Castro Gomes).
- O " Ministério da Revolução" de 1964: previdência e assistência sociais no Governo Geisel.( Angela de Castro Gomes).
- As telecomunicações no Brasil sob a  ótica do governo Geisel.( Alzira Alves de Abreu)
- O arquivo Geisel e os bastidores da fusão.(Marieta de Moraes Ferreira)
- Bibliografia.
- Sobre os autores.
- Anexos