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sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Fábio Giambiagi publicou um livro que precisa ser lido pelo Paulo Guedes, o inimigo do IBGE - prefácio de Felipe Salto

Tudo Sobre O Déficit Público: Um Guia Sobre o Maior Desafio do País Para a Década de 2020

Estatísticas: longa viagem

Há 24 anos não conseguíamos entender o que acontecera com a despesa; hoje tudo pode ser escrutinado.

FABIO GIAMBIAGI

O Estado de S. Paulo, 27/08/2021

Corria o ano de 1997, e o gasto público estava "correndo solto". A despesa do governo federal, excluídas as transferências a Estados e municípios, tem três grandes rubricas: gasto com pessoal, benefícios do INSS e as "outras despesas". Naquele ano, este terceiro grande agregado passou de 3,6% para 4,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Um plus de 1,2% do PIB... em apenas um ano! Um salto triplo, na linguagem do atletismo. Eu conversava muito com jornalistas na época, e aqueles que cobriam a parte fiscal me ligavam para saber o que estava acontecendo. "Não sei", era o que eu respondia. Meu papel é analisar números. E os números â desagregados â na época não existiam...

Temos certa mania nacional de achar que tudo, no Brasil, é de "Terceiro Mundo". Não é. A rigor, temos algumas coisas de excelência. Uma delas â espantosamente, sob críticas â é a urna eletrônica, uma maravilha autenticamente brasileira, que permite saber o resultado da eleição, de um país de mais de 210 milhões de habitantes, em poucas horas. Outra é representada pelas nossas estatísticas fiscais. As atuais, não as de 1997...

Eu me formei em Economia em 1983 e, no começo de 1987, comecei a trabalhar com temas de política fiscal. Sou testemunha dos avanços que o País fez na matéria. A caminho do final de 2021, considerando, então, a totalidade dos anos extremos deste período 1987/2021, terão sido 35 anos de "militância" no tema. Alguns dos colegas que conheci neste longo percurso já se foram, e outros estão aposentados. Decidi, então, compartilhar com os leitores o que eu aprendi na matéria, no livro Tudo sobre o déficit público â O Brasil na encruzilhada fiscal, que acaba de ser lançado pela Editora Alta Books.

Ali o leitor interessado encontrará um exame detalhado das contas públicas desde 1991, quando passamos a ter estatísticas mais ou menos compatíveis com as atuais.

Olhando as tabelas que acompanham o livro, o leitor poderá ver uma "granularização" cada vez maior das estatísticas da despesa. Aquela conta de 1997 da qual, na época, só se sabia o valor do grande agregado foi sendo sucessivamente aberta, e hoje se conhece com luxo de detalhes cada abertura e decomposição de cada uma das contas e subcontas que compõem essa rubrica: seguro-desemprego; gastos com Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública; Loas; subsídios; Fundeb; sentenças judiciais; créditos extraordinários; financiamento de campanhas eleitorais; Fies; Bolsa Família; despesas por Ministério, etc.

É uma miríade de itens, todos religiosamente divulgados com o valor da despesa, mês após mês, nas fontes oficiais. Vinte e quatro anos atrás, não conseguíamos entender o que acontecera com a despesa. Hoje, 30 dias depois de o gasto ser feito, sabemos que item pressionou as contas e em que valor. Tudo pode ser escrutinado com lupa, mês a mês.

Infelizmente, houve também, durante o período, uma degradação fenomenal da qualidade da nossa liderança.

Na década de 1990, os debates sobre o Orçamento eram feitos no Congresso Nacional por políticos do quilate de um Roberto Campos, Francisco Dornelles, Delfim Netto, César Maia, José Serra, etc. O contraste com o panorama atual é devastador. Se a liderança política deste nosso (cada vez mais) triste país estivesse à altura da qualidade de nossas estatísticas, porém, o Brasil poderia ser outro.

O livro é dedicado a um conjunto de pessoas que, desde os já longínquos anos 1980, participaram da construção deste robusto arsenal de informações fiscais. Esta coluna é dedicada ao grupo de funcionários anônimos que, ao longo de mais de três décadas, nos permitiu sair da idade da pedra em matéria de estatísticas fiscais e termos o sistema confiável de dados que temos hoje, passando pelos mais diferentes governos.

Definitivamente, num contexto em que a institucionalidade é abalroada a cada dia, o Banco Central e a Secretaria do Tesouro Nacional são dois dos bons órgãos de Estado com os quais o País conta.

 ECONOMISTA

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Prefácio para o livro 

Tudo sobre o déficit público: o Brasil na encruzilhada 
fiscal

de Fabio Giambiagi 

(Editora Alta Books. 2021)1 

Felipe Salto, economista, diretor IFI (Senado Federal) 

Mário Covas governou São Paulo de 1995 a 2001. Político experiente, executou um dos programas de ajuste fiscal mais expressivos de que se tem notícia. Recebeu o estado quebrado e, por meio de medidas supostamente impopulares, o reergueu. Covas, que foi reeleito, costumava dizer: “O povo nunca erra. Ele apenas precisa ter todas as informações.” 

A “tarefa pendente” apresentada no primeiro capítulo deste livro — fio condutor de todo o volume — requer convencimento. Só se faz ajuste fiscal, isto é, corte de gastos, aumento de impostos, redução de benefícios e incentivos fiscais, mobilizando, informando e educando. É muito mais fácil e sedutor prometer aumento de despesas públicas, daí a importância de disseminar informação de boa qualidade. 

É preciso forjar lideranças pelo “lado da demanda”, por assim dizer. A conscientização da população a respeito do descalabro fiscal é o primeiro passo. É necessário esclarecer os riscos e as vicissitudes de se ter dívida pública elevada, sistema tributário regressivo e complexo, orçamento engessado e inercial e gastos mal-ajambrados. Além disso, deve-se mostrar o que virá depois. Ajuste fiscal não é um fim em si mesmo, mas o meio para se alcançar um crescimento econômico perene, mantendo a dívida pública em trajetória sustentável. 

No livro Austerity, Alberto Alesina, Carlo Favero e Francesco Giavazzi mostram que o corte de despesas é o caminho menos custoso para conter o aumento da dívida pública. Em um contexto de crise pandêmica, o desafio é muito maior. 

O Brasil, corretamente, respondeu à crise da covid-19 com um forte aumento de despesas, tanto na área da saúde como na forma de auxílio às empresas, transferências diretas de renda e destinação de recursos para os governos estaduais e municipais. No pós-crise, será preciso retomar uma agenda de austeridade, respeitando-se o princípio da responsabilidade fiscal: só se pode criar gasto novo com indicação de fonte de financiamento ou corte de outras despesas. 

Como o país tem um teto de gastos a ser observado, essa equação torna-se ainda mais intrincada. Eis o contexto em que se apresenta este livro. Escrito por um dos maiores conhecedores das entranhas das finanças públicas brasileiras — o economista Fabio Giambiagi —, trata-se de um trabalho seminal. Sim, porque dará frutos não apenas entre especialistas — já naturalmente motivados —, mas também entre jornalistas, formadores de opinião, políticos e cidadãos em geral. 
Giambiagi tempera a apresentação limpa e direta do vasto conjunto de dados fiscais e econômicos — preparados por ele a partir das principais bases disponíveis e de estudos próprios — com história, política e literatura. A leitura é escorreita, agradável e, por isso, cativante. O leitor perceberá, da apresentação até o último capítulo, que o livro está organizado de uma maneira lógica e didática. 

A meta do livro não é apenas dar suporte técnico ao ajuste fiscal. Ao contrário, o autor amplia o escopo dessa batalha ao compartilhar seu conhecimento sobre o assunto de maneira generosa. É pouco dizer que se tornará leitura referencial obrigatória para o público em geral e para aqueles que estão na vida pública. Analisam-se as receitas e as despesas públicas federais e suas principais segregações, a dívida pública, o deficit primário e a conta de juros. Todos os indicadores fiscais são explorados no livro, mas sob um fio condutor: o de convencer o maior número de pessoas a respeito da importância de se ter contas públicas equilibradas para alcançar melhores níveis de desenvolvimento econômico e social. 

No Capítulo 2, o leitor aprenderá que não importa apenas o tamanho da dívida, mas seu movimento no tempo, denominado pelos economistas de “dinâmica da dívida pública”. As condições de sustentabilidade fiscal estão diretamente atreladas ao tamanho e ao crescimento da economia e à taxa de juros. Entenderá, a propósito, no Capítulo 3, que as despesas com juros não são fruto do desejo do governante, do Congresso ou do Banco Central. Esse gasto é muito peculiar, justamente por ser uma espécie de efeito colateral da política monetária. É arguta a forma como o autor derruba a tese simplista do chamado “rentismo”. 

A situação econômica do país requer “agir com mais sabedoria e dar conta dos desafios sociais de forma compatível com a sustentabilidade fiscal”, nas palavras do autor. Os objetivos fiscais, econômicos e sociais têm de estar intimamente relacionados e devem ser planejados e executados com habilidade política e capacidade técnica. 
No Capítulo 5, Fabio Giambiagi mostra que o gasto cresce, continuamente, desde meados dos anos 1980. Contudo, a qualidade e a quantidade de bens e serviços públicos ofertados não evoluiu de acordo — ao menos não no ritmo desejado pela sociedade. A verdade é que as políticas públicas precisam estar alicerçadas naquilo que a literatura internacional convencionou chamar de “medium term expenditure framework” ou, simplesmente plano fiscal de médio prazo. É preciso, ainda, avaliar os programas orçamentários para poder cortá-los, mantê-los ou ampliá-los, na linha das chamadas “spending reviews”. Só assim se abrirá espaço para uma atuação mais arrojada do Estado. 

A beleza do presente trabalho está em juntar diagnóstico e propostas concretas de solução, que poderiam compor um verdadeiro plano de voo na área fiscal. Nos Capítulos 6 e 14, por exemplo, discutem-se meios muito concretos para executar a “tarefa pendente” do ajuste fiscal. Todas, é claro, com custo político. E é aí que reside a diferença entre o “ajuste em tese” e o “ajuste na prática”. Não basta defender que se diminuam os gastos. É preciso mostrar como, em que proporções, quais as rubricas a serem cortadas e em que prazo. 

Destaco algumas: a) criar novos planos de carreira no serviço público, com salários iniciais mais baixos; b) reduzir as chamadas desonerações tributárias; c) cortar gastos classificados como “passíveis de eliminação” ou de “redução”, a exemplo da compensação ao INSS pela desoneração da folha; d) aumentar as faixas do imposto de renda; e e) reajustar os salários dos servidores abaixo da inflação. 

O livro ainda discute as razões pelas quais será preciso revisitar o tema da previdência em alguns poucos anos — provavelmente, em 2027. O fato é que a idade média da população está aumentando. As políticas públicas de previdência e de saúde sofrerão as consequências. Resta preparar as contas e a economia para isso. Por exemplo, a reforma de 2019 terá de ser revista para que se mantenha o mesmo efeito fiscal no longo prazo. 

A descrição detida de todas as rubricas do gasto federal é espantosa. O leitor tem em mãos um guia prático, além de tudo, cujo título não poderia ser mais fiel ao conteúdo: Tudo sobre o déficit público

Há diversos capítulos dedicados a explicar, uma a uma, as despesas que compõem o orçamento público federal. Sem um diagnóstico como esse, vale dizer, será impossível programar e executar um programa sério de ajuste fiscal. E o ajuste tem de ser pensado à luz das regras fiscais — instituições, normas e leis que balizam o comportamento das contas públicas. A propósito, o capítulo sobre o teto de gastos públicos é realista a respeito das limitações dessa regra constitucional criada em 2016, mas aponta saídas. Como costumo dizer, o teto foi uma espécie de “tapa na mesa” para sinalizar com clareza ao mercado e à sociedade uma nova prioridade: a contenção do gasto público. 

A importância de amainar a alta do gasto não mudou de lá para cá. A essência do teto, se abandonada, levaria o país a amargar uma piora das avaliações de risco, com apreensão do mercado e precificação, nos juros da dívida, de todo esse receio e incerteza. Nas palavras do autor deste livro: “No Brasil, tudo acaba na Constituição.” Ela é tão detalhada e abrangente, que o teto de gastos precisou também se encaixar ali. Giambiagi argumenta que será difícil manter o teto até o décimo ano, como previsto na Emenda Constitucional nº 95, de 2016, porque as despesas discricionárias estão caindo rapidamente — notadamente os investimentos. Os subsídios também diminuíram muito no último triênio até 2019, mas daqui em diante há pouco espaço fiscal para ajustar a despesa sem mexer no grupo de gastos obrigatórios. 

Assim, o livro nos leva à reflexão de que o teto deverá ser aprimorado. Ainda, há que evitar o “teto fake”, como classifica Giambiagi. Isto é, a exclusão arbitrária de itens da despesa sujeita ao teto, a criação de subterfúgios e a adoção de regras ad hoc para atender a anseios por gastos maiores. Seria uma nova versão do velho expediente da contabilidade criativa, que tanto mal fez ao país no período de 2009 a 2014, distorcendo a lógica das metas de superavit primário. 

Não bastasse essa análise completa do âmbito federal, o livro ainda avança sobre as finanças dos governos subnacionais, fonte de grande preocupação, sobretudo no pós-crise da covid-19. Os estados e municípios têm despesas de pessoal (com ativos e inativos) altas e crescentes. Muitos já romperam os limites legais e não adotaram medidas suficientes para amenizar ou resolver o problema. A recomendação de Guilherme Tinoco, especialista que participa do livro no Capítulo 13, é o bom e velho “feijão com arroz”. Tão distante da realidade de muitos municípios e alguns estados, consiste em: a) controlar salários e quantitativo de servidores; b) melhorar a arrecadação; e c) atrair investimento privado, já que haverá pouco (ou nenhum) espaço para aumento de investimento público. 

Por fim, executar a “tarefa pendente” do ajuste fiscal, como indicam os Capítulos 14 e 15, requererá a eleição de governantes eficientes e ciosos da responsabilidade fiscal. Por isso, é preciso franquear aos eleitores informações fidedignas sobre o quadro das contas públicas. Esclarecida, a população cobrará mais e não será enlevada por propostas populistas, que ignorem a restrição orçamentária. É preciso ter claro: a lassidão fiscal é tóxica para o desenvolvimento econômico e social. 

Tudo sobre o déficit público é um livro que deveria estar nas cabeceiras de todas as famílias do país, nas escolas e nas universidades. É escrito por quem tem espírito público e conhecimento prático e teórico profundos. Fabio Giambiagi já é uma referência maior no tema. Com este livro, coroa uma carreira inigualável no escrutínio cuidadoso das contas do país. Chegou a hora de mudar. E, sob a democracia, a mudança é um processo incremental, fruto de trabalho educativo permanente. 

Boa leitura! 

 

Felipe Salto 

 

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Renata Lo Prete, Âncora do Jornal da Globo.

No site da Amazon: 


Este livro defende o equilíbrio orçamentário como condição indispensável ao crescimento econômico e à justiça social. Fabio Giambiagi, um dos principais economistas dedicados às finanças públicas, descreve de maneira simples as receitas e as despesas governamentais e a forma como estas têm se comportado no Brasil. A evolução de nossas contas públicas não é matéria exclusiva dos economistas. Ao contrário, reflete escolhas políticas e hábitos culturais. Fabio lembra que é a sociedade quem sempre paga a conta das ilusões geradas por despesas descontroladas, seja na precarização dos serviços públicos, seja na falta de dinamismo econômico – problemas que afetam, em maior intensidade, as camadas mais pobres. Nossa dívida pública, após a pandemia, precisará ser administrada com rígido controle das despesas com pessoal e avaliação da eficácia das políticas, com vistas a recuperar a confiança nos governos. Sem dúvida, essa estratégia é a melhor alternativa para proporcionar a atração de investimentos privados e a abertura de espaço para a simplificação da tributação. Comunicar com clareza e transparência é tarefa fundamental nessa luta pela conciliação dos objetivos fiscais, econômicos e sociais ― e essa é a principal contribuição deste livro. De um lado, instrumentaliza os cidadãos com informações que lhes permitem cobrar dos governantes as diretrizes do equilíbrio fiscal. De outro, inspira líderes políticos com capacidade de articulação a enfrentar os desgastes em nome de um futuro melhor para todos. Por conta do ofício, o jornalista transita por uma gama variada de temas. Para compreender cada um deles a ponto de informar com propriedade, ele recorre a quem se dedica a um assunto pela vida inteira: o especialista. O jornalista precisa fazer as perguntas certas, o que é meio caminho andado. A outra metade depende de quem responde. Ouvir quem domina um tema é um prazer, que se duplica quando a pessoa tem a capacidade de comunicar o que sabe de maneira acessível. Assim é com Giambiagi. Estudioso das finanças públicas há mais de três décadas, ele sempre demonstrou disposição para dialogar e convencer pelo argumento. Mais especificamente, convencer acerca do imperativo de controlar a trajetória da dívida pública. As duas características ― riqueza de informação e capacidade de persuasão ― estão presentes neste livro. Para quem foi exposto ao tema em termos binários ― furar ou não o teto de gastos, estabelecer se é ou não sustentável ―, eis uma oportunidade de entender como se formou essa dívida. Oportunidade também para descartar a ideia de que estaríamos fadados ao fracasso na matéria. Entre 1985 e 2010, o Brasil foi capaz de restabelecer a democracia, controlar a inflação e obter avanços sociais. Equacionar a dívida ― defende o autor ― é a “tarefa pendente” do país. Porque, sem isso, não haverá crescimento, emprego e distribuição de renda. A discussão sobre a saída da crise é algo valioso quando se sabe da aversão dos Poderes ao desafio fiscal e quando muitos atores se empenham em interditar debates de substância. O autor não tem problema em remar contra a maré. Seu livro traz diagnóstico e carta de navegação. Foi feito para iluminar lideranças ― legisladores, técnicos da máquina, pesquisadores ― e convidar a refletir sobre um assunto que nada tem de etéreo, pois afeta a vida de todos. ― Renata Lo Prete, Âncora do Jornal da Globo.


A demolição do Direito Internacional sob o bolsolavismo diplomático, 2018-2021 - Paulo Roberto de Almeida, Matheus Atalanio

 Nesta sexta-feira, 27/08/2021, participo, com o advogado Matheus Atalanio, do 19. Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Escolhi falar sobre o tema título, mas ainda não terminamos de escrever o paper, que na verdade só vai ser publicado mais tarde. Mas antes de abordar o tema principal, resolvi fazer uma longa digressão sobre o papel do Direito Internacional na diplomacia brasileira, que transcrevo abaixo. A segunda parte virá oportunamente.


A demolição do Direito Internacional sob o bolsolavismo diplomático, 2018-2021

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor

Matheus Atalanio; advogado, membro da Comissão de Direito Internacional da OAB

Notas para palestra no 19º. Congresso da ABDI (27/08/2021; 16:00, sala: 3)

Primeiro rascunho de artigo para publicação nos anais do Congresso

 

 

A tradição brasileira em direito internacional em perspectiva histórica

A América Latina tem, reconhecidamente, uma longa tradição em matéria de Direito Internacional. Mesmo os não especialistas saberiam reconhecer a importância da contribuição continental nesse terreno bastando, por exemplo, fazer referência ao princípio do uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago, ao instituto do asilo diplomático ou ao conceito de mar patrimonial. O Brasil, por sua vez, possui longa prática diplomática, alicerçada em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua política externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais membros do sistema interestatal contemporâneo. 

Muitos dos “pais fundadores” da nação, antes, durante e no processo de construção do Estado independente, tinham formação jurídica, a maior parte realizada em Coimbra, sendo que no decorrer do Império dezenas de dirigentes, ademais obviamente dos magistrados, frequentaram os dois principais cursos jurídicos criados no país em 1827, em São Paulo e no Recife. Um dos líderes dos Conservadores, ou do chamado Regresso, Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, ministro dos negócios estrangeiros em duas ocasiões, deixou sua marca na literatura, com obras dedicadas à organização do Estado e ao funcionamento da administração pública: Ensaio sobre o Direito Administrativo(1862) e Estudos práticos sobre a administração das províncias (1865). 

José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, a despeito de não ter formação na área – era matemático e professor na Escola de Guerra Naval –, também se exerceu como chanceler, tendo criado, em 1859, o cargo de Consultor Jurídico na Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, função que ele próprio exerceu durante certo tempo. O cargo foi depois extinto, mas recriado por seu filho Paranhos Jr., o Barão do Rio Branco, quando ocupou por sua vez o Itamaraty na República. Muitas das negociações diplomáticas conduzidas pela chancelaria, pelo Barão do Rio Branco pessoalmente, em especial nas questões de fronteiras e na construção das posições do Brasil no campo das relações exteriores estavam solidamente ancoradas no respeito ao direito internacional, a marca do país na sua ação diplomática. Rio Branco proclamou uma vez que “o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar acima de tudo na força do Direito”, e de fato essa postura foi rigorosamente seguida em todas as demais gestões.

Essas características foram ainda mais reforçadas por ocasião da Segunda Conferência Internacional da Paz, realizada na Haia, em 1907, na qual Rui Barbosa foi o chefe da delegação brasileira. Os temas da agenda eram os mais vastos possíveis, compreendendo a humanização da guerra (como um primeiro passo para a manutenção da paz), o primado da juridicidade nas relações internacionais, a revitalização do Direito das Gentes, o reexame dos conceitos de soberania, o arbitramento obrigatório em litígios pendentes, um tribunal de apelação em matéria de presas, a cobrança de dívidas, o estabelecimento de uma Corte Permanente de Arbitragem, assim como a composição de um Tribunal de Presas. Rui foi um resoluto defensor da igualdade soberana de todos os Estados, independentemente de seu tamanho ou poder militar, esforçando-se por estabelecer uma conceituação da soberania política em bases claras. Na conceituação de um diplomata, Rui foi um dos pioneiros na formulação doutrinária que conduziu à aceitação universal do princípio da igualdade jurídica dos Estados, pedra basilar do multilateralismo contemporâneo.[1]

Desde essa época, a construção dos valores e princípios da diplomacia brasileira sempre se fez pela via da adesão irrestrita às grandes cláusulas do direito internacional, o que aliás vinha reforçado pela presença de grandes juristas em sua Consultoria Jurídica. Segundo a definição constante do antigo Regimento da chancelaria do Império, a Consultoria Jurídica estava encarregada de “dar parecer sobre as negociações de quaisquer ajustes internacionais, os atos internacionais submetidos à aprovação ou ratificação, a inteligência e execução de quaisquer obrigações internacionais, as indenizações reclamadas por via diplomática, as contestações de Direito Internacional Público ou Privado e as propostas legislativas e regulamentos apresentados ou expedidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros”.[2]

Renovada pelo Barão, a Consultoria Jurídica foi imediatamente ocupada por Carlos Augusto de Carvalho, ex-chanceler na década anterior (presidência Floriano Peixoto), mas ele não ocupou o cargo senão por dois meses. O segundo Consultor Jurídico do Itamaraty foi Amaro Cavalcanti Soares de Brito, fundador e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, que também permaneceu pouco tempo no cargo por ter sido nomeado para o Supremo Tribunal Federal em maio de 1906. O terceiro, e provavelmente mais longevo, consultor jurídico do Itamaraty foi Clóvis Beviláqua que, nomeado em 1906, permaneceu no cargo até 1934, quando foi aposentado compulsoriamente, por disposição constitucional, tendo sido sucedido pelo jurista Gilberto Amado. Beviláqua é talvez mais conhecido como o autor, em 1916, do Código Civil brasileiro, que na verdade tinha sido iniciado por Epitácio Pessoa. 

Quase dez anos depois de ter defendido, em nome do Brasil, a igualdade soberana das nações na conferência da paz da Haia, Rui Barbosa, designado embaixador especial do Brasil nas comemorações do primeiro centenário da independência da Argentina, pronunciou, em 14 de julho de 1916, na Faculdade de Direito e Ciências Sociais, na qual recebeu o título de Doutor Honoris Causa, um longo discurso entremeando história argentina e os problemas do momento, vale dizer, a Grande Guerra. Sua conferência, “Los Conceptos Modernos del Derecho Internacional”, abordou não apenas o patrimônio jurídico e político do país platino, mas também os problemas causados pela invasão da Bélgica pela Alemanha, em total desrespeito aos princípios da neutralidade. A conferência – que ficou mais conhecida como “O dever dos neutros” – teve enorme impacto, tanto na Argentina quanto no Brasil, e os “conceitos modernos” enunciados por Rui também conheceram repercussão fora dos dois países, alcançando prestígio internacional, e passando, de certa forma, a integrar o patrimônio jurídico e doutrinário da diplomacia brasileira.[3]

Esse exato discurso de Rui Barbosa em Buenos Aires foi relembrado pelo chanceler Oswaldo Aranha, em 1942, quando o Brasil se viu confrontado à extensão da guerra europeia ao continente americano, instando, então, o Brasil, a assumir suas responsabilidades no plano dos princípios do direito internacional e dos valores da solidariedade hemisférica. A Alemanha tinha, mais uma vez, violado a neutralidade da Bélgica, para invadir a França. A postura de Aranha – que havia recepcionado Rui, quando jovem estudante no Rio de Janeiro, no memento em que o jurista desembarcava triunfalmente na volta ao Brasil –, foi decisiva para que, ao contrário da vizinha Argentina, então controlada pelo Grupo de Oficiais Unidos, de orientação simpática ao Eixo, o Brasil adotasse uma postura compatível com a construção doutrinal iniciada por Rui e de acordo a seus interesses nacionais, nos contextos hemisférico e global, em face do desrespeito brutal ao direito internacional cometido pelas potências nazifascistas na Europa e fora dela.

O Brasil foi a princípio neutro no conflito, sendo que o Consultor Jurídico nessa época, James Darcy, usou argumentos de seu antecessor Clóvis Beviláqua para examinar princípios e regras da guerra no direito público internacional, aplicáveis em caso de beligerância: bloqueio, busca e captura, respeito aos territórios e águas neutros. Depois de relembrar que o Brasil já era parte da Convenção relativa ao rompimento de hostilidades, aprovada na conferência da Haia de 1907, na qual se previa a notificação da beligerância às “potências neutras”, o Consultor recomendava, para o caso de guerra internacional envolvendo o Brasil, a adoção dos princípios formulados no Projeto de Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa.[4]

No imediato pós-guerra, assume a Consultoria Jurídica Levi Carneiro, que assina inúmeros pareceres nos quais ainda dominam vários problemas decorrentes da guerra. Um dos seus últimos pareceres, assinado em 5/12/1951, já tratava da criação de uma Corte Criminal Internacional: uma comissão de 15 países reuniu-se em Genebra, em agosto desse ano, sendo o Brasil representado por Gilberto Amado, antigo Consultor do Itamaraty em meados dos anos 1930, depois membro da Comissão de Direito Internacional. Amado dedicou-se, segundo ele, a fazer prevalecer o “bom senso”, eliminando, por exemplo, a competência da proposta corte para julgar “criminosos internacionais”.[5]

A década de 1950 pertence inteiramente, por assim dizer, ao eminente jurista Hildebrando Accioly, autor de um alentado Tratado de Direito Internacional Público que serviu a diversas gerações de diplomatas, e candidatos a tal, e não só no Brasil. Accioly, que ingressou na carreira diplomática em 1916, assinou, com o também diplomata e historiador Heitor Lyra, textos introdutórios aos Arquivos Diplomáticos da Independência, publicados por ocasião do primeiro centenário da autonomia nacional.[6] Tendo chegado a embaixador em 1938, exerceu diversos cargos no Itamaraty, entre eles Secretário-Geral, Ministro de Estado interino e dirigiu o Instituto Rio Branco nos seus primeiros dois anos de existência. 

Os inúmeros pareceres de Hildebrando Accioly cobrem todos os temas de que se ocupou a chancelaria brasileira nos anos 1950 e 60: declaração sobre direitos e deveres dos Estados, reservas a tratados internacionais (1952), projeto de Convenção da ONU sobre nacionalidade (1953), fundamentos jurídicos da extradição, projeto da Comissão de Direito Internacional sobre processo arbitral, convenção internacional sobre um estatuto para os apátridas, Corte Interamericana para a proteção de direitos humanos (1954), problemas jurídicos da aplicação do Tratado Interamericano de 1947 de Assistência Recíproca (TIAR), projeto de convenção sobre execução de sentenças arbitrais internacionais (1955), asilo diplomático, acordo de assistência militar Brasil-Estados Unidos (1956), disposições da Constituição sobre atos internacionais, refugiados políticos de países vizinhos, projeto de acordo com a Bolívia sobre exploração de petróleo (1957), problemas do espaço exterior, protocolos de emenda ao Gatt (1958), projetos da Comissão de Direito Internacional sobre relações e imunidades diplomáticas (1959), acordo de comércio e pagamentos com a União Soviética e inviolabilidade do domínio reservado dos Estados (1960).

Vinte anos depois que Oswaldo Aranha recorreu ao memorável discurso de Rui em Buenos Aires para sustentar a postura do Brasil em face da guerra europeia, quando se discutia na conferência interamericana de Punta Del Este (1962) a dimensão jurídica da opção de Cuba pela sua opção de sua adesão a um regime comunista, o então chanceler San Tiago Dantas soube preservar o patrimônio jurídico da diplomacia brasileira ao defender, de maneira clara, o respeito ao princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados. Outros juristas e diplomatas brasileiros, ao longo do século, a exemplo de Raul Fernandes, Afrânio de Melo Franco, Afonso Arinos de Melo Franco, pouco depois Araújo Castro e mais adiante Celso Lafer, participaram dessa construção doutrinal e pragmática dos valores e princípios da diplomacia brasileira. Há que reconhecer, no entanto, que Rui Barbosa foi o pioneiro na defesa do direito internacional, ou foi, pelo menos, um dos grandes iniciadores e batalhadores pela afirmação dessas grandes diretrizes políticas que hoje integram plenamente o patrimônio consolidado da diplomacia brasileira.

O início dos anos 1960 foi especialmente turbulento na esfera internacional e no terreno doméstico, um momento em que a Guerra Fria chegou ao seu auge, inclusive no hemisfério, com o problema dos mísseis soviéticos em Cuba. Além desse problema, San Tiago Santas se ocupou igualmente do reatamento de relações diplomáticas com a União Soviética e de outros grandes temas do momento, como a questão do desarmamento nuclear, da descolonização, das relações com os países vizinhos e com os Estados Unidos, potência com a qual ele tentaria, já como ministro da Fazenda, encontrar um alívio para a difícil situação do endividamento externo do Brasil.

Na sequência do grande teste para a diplomacia brasileira que foi o problema de Cuba, ao sustentar posturas contrárias à diplomacia truculenta dos Estados Unidos, o Itamaraty voltou a contar com grandes juristas a serviço de uma fidelidade consagrada ao Direito Internacional. Os anos 1961-71 estão identificados com o trabalho de Haroldo Valladão, professor catedrático de Direito Internacional Privado da antiga Universidade do Brasil (depois UFRJ) e que tinha como divisa, estampada em todos os seus escritos, a frase em latim: nulla dies sine linea nec schola (nenhum dia sem escrever ou lecionar), o que parece representar um magnífico programa de vida. Antes de se tornar consultor do Itamaraty, já tinha sido Consultor Geral da República (1947-50) e professor no Instituto Rio Branco. Muitos dos seus pareceres atenderam às necessidades do Itamaraty dessa época, como a adesão de novas partes contratantes ao Gatt, o estabelecimento tácito de relações diplomáticas (1961), a pesca da lagosta por barcos franceses (1962), recursos naturais da plataforma continental, entre eles a lagosta (1963), acordo de comércio e pagamentos com a Polônia (1964), mar territorial e direito de pesca, modificações constitucionais de interesse do Itamaraty (1966), Convenção da ONU sobre Direito dos Tratados (1968), projeto da convenção interamericana de direitos humanos (1969), e vários outros temas da agenda internacional daquela época. Um outro jurista, colega de carreira, Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, fez uma advertência quanto à efetividade desse trabalho, no sentido de que nem sempre os argumentos e propostas formulados pelo consultor eram necessariamente seguidos pela Casa na implementação efetiva de uma dada política (dados outros elementos diplomáticos em jogo).

Em todo caso, muitos diplomatas, assim como juristas que desempenharam funções diplomáticas nessa época, entre eles San Tiago Dantas e Afonso Arinos, nunca deixaram de reconhecer, desde a famosa conferência de Rui Barbosa em Buenos Aires, a poderosa influência de seus argumentos para apoiar posições diplomáticas do Brasil nos contextos regional e internacional. Nos anos 1970, o Itamaraty se serviu de seus consultores para orientar suas posturas em relação a diferentes temas dessa época: aspectos jurídico-internacionais da demarcação do Salto de Sete Quedas e da delimitação dos rios internacionais (que depois desembocariam na solução diplomática aplicada ao caso de Itaipu, com o Paraguai), a crise entre a Argentina e o Reino Unido em torno das ilhas Malvinas e a necessidade de prévia autorização legislativa para a participação das Forças Armadas em operações militares no exterior.[7]

O primeiro Consultor Jurídico do Itamaraty na redemocratização foi o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, já autor, a despeito de relativamente jovem, de vasta obra no campo do direito internacional. Ele foi um dos mais dinâmicos, produtivos e eficientes consultores com que o Itamaraty contou, sendo, praticamente sozinho, responsável por uma impressionante coleção de mais de duzentos circunstanciados pareceres. Sua gestão coincidiu também com o processo de reconstitucionalização do Brasil, por meio do Congresso constituinte de 1987-88, o que determinou que ele fosse ouvido nas comissões que se ocuparam dos princípios que regem as relações internacionais do país e o processo de celebração de tratados. 

Entre 1985 e 1990, Cançado Trindade assinou alentados pareceres, praticamente todos recheados de notas de rodapé, milhares delas, referenciando obras relevantes de cada uma das áreas examinadas especificamente, o que praticamente nunca tinha sido visto nos textos dos antigos consultores, que se contentavam em citar, no corpo do texto, um ou outro tratadista mais conhecido. Em outros termos, Cançado Trindade elevou a arte da consultoria jurídica à condição de scholarly work, de trabalho científico no pleno conceito da expressão, representando assim, uma acumulação inédita de citações eruditas nos trabalhos da chancelaria brasileira, sem esquecer suas reflexões de alto conteúdo intelectual, que honram não só a inteligência da Consultoria Jurídica como também ajudaram a construir, ou a reforçar, a própria credibilidade e reconhecida excelência do Itamaraty.

Seguiram-se a Cançado Trindade, outros eminentes juristas, como Vicente Marotta Rangel – eminente professor da Faculdade de Direito da USP, depois juiz do Tribunal Internacional sobre Direito do Mar (Hamburgo) –, João Grandino Rodas – também oriundo da São Francisco, posteriormente Diretor da Faculdade e Reitor da USP –, e imediatamente após, o professor Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, que se desempenhou no Itamaraty desde 1998 até 2015, sucedendo a Marotta no Tribunal de Hamburgo (onde veio infelizmente a falecer precocemente). Pode-se dizer, de maneira geral, que os juristas a serviço da diplomacia brasileira construíram boa parte das doutrinas e das posições nacionais em matéria de política exterior, colaborando assim, de modo significativo, para o reforço da credibilidade, seriedade e da reputação de excelência que caracterizam, desde muito tempo, o serviço exterior brasileiro. 

As posições doutrinais e práticas da diplomacia brasileira foram sendo elaboradas progressivamente ao longo de mais de um século de construção do Estado nacional, de consolidação de sua diplomacia profissional e da lenta acumulação de valores e princípios que passaram a guiar sua política externa e sua diplomacia, sobretudo a partir do regime republicano. Desde meados do século XIX, a formulação desses princípios e valores contou com a inteligência e a ação de grandes homens públicos, diplomatas, juristas, tribunos e intelectuais de diversas orientações políticas, mas concordantes no essencial: a preservação da soberania nacional, o respeito ao direito internacional, a solução de controvérsias internacionais por meios pacíficos, a não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, a defesa intransigente do caráter nacional, sobretudo apartidário da política externa (como alertou Rio Branco, logo ao início de sua gestão), a assunção de responsabilidades internacionais quanto a conflitos interestatais que possam ter repercussões globais (como no caso dos dois conflitos mundiais) e diversos outros elementos que podem ser identificados numa análise mesmo perfunctória desse processo de construção de valores e princípios da diplomacia brasileira.

Ao longo de sua história, o Brasil teve de apelar para todos os recursos do direito internacional, para as suas capacidades próprias e, algumas vezes, até para a força das suas armas, para fazer valer a sua integridade territorial, sua soberania nacional, a honra e a defesa da pátria, quando ameaçadas por algum contendor regional ou fora dela. Para tanto apoiou-se naquelas ideias, naquele conjunto de valores e princípios, eventualmente adaptados às suas necessidades específicas e às circunstâncias que presidiram a cada tomada de decisão em relação ao desafio em causa. Os desafios estiveram geralmente ligados à definição dos limites do “corpo da pátria” – sempre pelas negociações, desde a independência –, ao equilíbrio de poderes e à liberdade de acesso nas fronteiras platinas, às relações com as grandes potências europeias e, depois, com o grande poder hemisférico, à abertura de mercados para os seus produtos e o acesso às fontes de financiamento para seu desenvolvimento, à participação, em bases equitativas, nas grandes definições relativas à ordem mundial, sua manutenção e funcionamento em bases adequadas à cooperação multilateral.

As ideias e as ações foram as de seus líderes políticos, seus dirigentes estatais, seu corpo de profissionais da diplomacia, seus intelectuais e os membros da elite, de forma geral. Essas ideias e essas ações não existem, portanto, em abstrato, mas sim conectadas a pessoas que a elas aderem e que as fazem movimentar-se, em função de seu próprio substrato intelectual, de seu envolvimento com os assuntos públicos, de sua iniciativa e mobilização numa causa que ultrapassa a dimensão específica das vidas privadas e das atividades profissionais: as pessoas passam a encarnar os interesses do Estado. Os juristas a serviço do Itamaraty foram justamente alguns desses pensadores e agentes de uma diplomacia reconhecidamente competente e absolutamente sintonizada com a agenda internacional e preparada para enfrentar os desafios nela colocados.

 

A violação da tradição brasileira em direito internacional sob o governo Bolsonaro

A despeito dessa brilhante tradição jurídica acumulada ao longo do tempo, uma das maiores rupturas dos valores e princípios da diplomacia brasileira veio a ocorrer justamente no terreno do Direito, cuja responsabilidade incumbe única e exclusivamente aos amadores ineptos que passaram a guiar a política externa, e por conseguinte a diplomacia, de janeiro de 2019 até março de 2021. A rigor, os descompassos, inconsequências, desrespeito e atentados àquela tradição tiveram início ainda antes, tanto na fase da campanha presidencial de 2018, quanto imediatamente após a vitória do candidato em outubro desse ano, com os anúncios das novas orientações que seriam impostas às relações exteriores do Brasil.

(...)

[Falta completar...]


[1] Ver GARCIA, E. V. (1996). Aspectos da vertente internacional do pensamento político de Rui Barbosa. Textos de História, revista do programa de pós-graduação em História da UnB, vo. 4, n. 1, p. 103-124, cf. p. 122.

[2] Cf. CASTRO, F. M. O., História da Organização do Ministério das Relações Exteriores. Brasília: Editora da UnB, 1983, p. 105.

[3] BARBOSA, Rui, Os Conceitos Modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Babosa, 1983.

[4] Ver Cachapuz de Medeiros, Antonio Paulo (org.), Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty, vol. III (1935-1945). Edição Fac-similar [à edição de 1961 da Imprensa Nacional]; Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000, p. 218.

[5] Cachapuz de Medeiros, op. cit., p. 590.

[6] Os Arquivos Diplomáticos da Independência foram publicados pela Imprensa Nacional, em seis volumes, entre 1922 e 1925; eles foram novamente publicados pelo Itamaraty em 1972, quando do sesquicentenário da independência, tendo sido, recentemente, objeto de republicação fac-similar da primeira edição, pela Funag, na coleção do Bicentenário da Independência.

[7] Ver AMEIDA, P. R. “A construção do direito internacional do Brasil a partir dos pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty: do Império à República”, Cadernos de Política Exterior, ano II, n. 4, 2016, p. 241-298.



quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A política externa dos EUA em luta contra moinhos de vento - Fu Ying (South China Morning Post)

 South China Morning Post, Hong Kong – 26.8.2021

America’s China policy is based on an imaginary enemy

The US Congress is now on the front line of formulating China containment policies, but its efforts are misguided. The recent Innovation and Competition Act of 2021 is typical in containing policy suggestions that are based on wrong or outdated information about China

Fu Ying

 

More legislative documents concerning China have passed through Capitol Hill offices in recent months than ever before, mostly suggesting countering or restrictive policies on China and the Chinese people.

On June 9, the US Senate passed the Innovation and Competition Act of 2021. A combination of several China-related bills – including the Endless Frontier Act, the Strategic Competition Act of 2021, and the Meeting the China Challenge Act of 2021 – the Innovation and Competition Act covers a wide swathe of issues and demonstrates a bipartisan consensus for the US to engage in long-term strategic competition with China.

Capitol Hill is now on the front line of formulating US containment strategy against China. But its credibility is in serious doubt, as its policy suggestions in the act are drawn from conclusions based on misinformation and personal imagination.

There is nothing wrong with the act’s purpose, which is to stimulate American rejuvenation, as any country may choose to motivate itself through external competition. However, it’s irresponsible or even dangerous to make China an imaginary enemy, even a science and technology bogeyman, which will only rouse antagonism between the two peoples.

Here are some of the flaws in the act. Sections 3002 and 3401 claim that China lacks intellectual property (IP) protectionYet China has made rapid improvement over the past decade in IP protection for the sake of innovation.

One notable legislative move, among many, is the Foreign Investment Law of 2020 that safeguards the legitimate rights and interests of foreign investment against IP infringement. The law also prohibits using administrative means to force the transfer of technology.

Further, several IP-related laws are being amended, with punitive compensation for wrongdoing raised fivefold. Major cities including Beijing, Shanghai and Guangzhou have established special IP courts and, in 2020, there were 3,176 technology-related IP cases reported, with 2,787 of them concluded.

The American Chamber of Commerce in China, in the 2021 edition of its white paperon China’s business environment, also acknowledged China’s improvement on IP protection. Capitol Hill needs to be reminded that its so-called new findings are outdated.

Section 3252 holds that the Chinese government intends to strengthen its control by collecting citizens’ private data via technology companies. This claim cannot be supported by reality in China, either.

China’s civil codeand e-commerce law both prohibit the over-collection of individual data and require the relevant authorities to take the necessary measures to protect the security of the data and information provided by e-commerce businesses.

Chinese men use their smartphones on the streets of Beijing on August 22. China’s legislature has recently passed the Personal Information Protection Law, placing legal restrictions on how personal data can be collected, used and managed after it comes into effect on November 1. Photo: AP

Section 3252 further claims that China is exporting a governance model based on a data monitoring system. On the political front, it has been China’s consistent policy not to impose its ideology and political system on other countries, just as it would not accept having one imposed on it. The US can learn from China and stop interfering in other countries’ internal affairs and imposing its own model and values.

Sections 3002 and 3401 of the act accuse the Chinese government of encouraging and empowering the theft of critical technologies and trade secrets from foreign enterprises. However, cyberattacks are prohibited in China.

Chinal launched the Global Initiative on Data Security last September calling on nations to oppose surveillance, cyberattacks and information theft against other countries. China itself has been a victim of hacking attacks.

According to the National Computer Network Emergency Response Technical Team/Coordination Centre of China, a total of 5.31 million attacks against Chinese hosts from 52,000 foreign programs was recorded in the first half of 2020. As indicated, among the foreign malware capture, the number of foreign distributed denial of service (DDoS) attacks, and back doors implanted into Chinese websites, the US was actually the most common source.

Data and internet security is a global challenge and both China and the US are fighting cybercrime. The two countries should exchange information and work together to crack down on these crimes instead of making enemies of each other, which will only exacerbate the problem.

Why China is tightening control over cybersecurity

On China’s Belt and Road Initiative, Sections 3235 (a) and 3401 (11) of the act claim it “expands the power projection capabilities for the People’s Liberation Army” and threatens the security of the US and its strategic partners. They also claim the initiative excludes US and European participation.

This view counters the reality. The belt and road features infrastructure projects with no military component whatsoever. For every infrastructure project, security matters are the responsibility of the sovereign states concerned.

China has only one foreign military base, in Djibouti, the role of which is to supply the Chinese navy on UN missions in the Gulf of Aden and Somalia waters.

The belt and road incorporates some 140 countries and over 30 international organisations. Some US companies have also joined to provide equipment, management experience and financial services. Though the US-led Build Back Better World initiative is seen as a rival to the Belt and Road Initiative by some media, if set in motion, the two could complement rather than undermine each other.

Generally, the act is riddled with unreliable and unverified information regarding China which cannot serve as a sound policy foundation. As the new Chinese ambassador to the US Qin Gang told the press, China hopes for a “rational, stable, manageable and constructive” relationship with the US.

To achieve such an objective, the two countries first need to take a cool-headed and realistic measure of each other and avoid being misguided by unreliable stories and information. On China’s part, it should make a greater effort to communicate with the world, including with American society, to reduce misunderstanding.

It’s also important that China and the US act as examples and cooperate to address global challenges, including those mentioned in the act, to benefit the people of both countries and the world.

If we are to compete, it is necessary to steer the competition in a fair and positive direction. As noted by China’s President Xi Jinping, US-China competition should be more like a race on the track and less like a fight in the wrestling arena.

 

Fu Ying is the chair of the Centre for International Security and Strategy (CISS) at Tsinghua University and former vice-foreign minister of China

Como liquidar com os capitalistas nacionais, na Argentina… - Ricardo Esteves (Clarin)

 Clarín, Buenos Aires – 26.8.2021

La decapitación del empresariado

En tiempos feudales el tributo se concebía como una parte de la cosecha, pero nunca toda la cosecha.

Ricardo Esteves

 

Comienzan a escucharse nuevamente expresiones propiciando la prórroga de las abusivas tasas de Bienes Personales o la implantación de un nuevo impuesto a la riqueza, ambos hechos tributarios que han provocado un daño irreparable al país: la perdida de buena parte del empresariado nacional.

Como si los empresarios argentinos no hubieran padecido las consecuencias negativas de la pandemia al igual que otros sectores del país, o como si operaran en campo propicio y no en arenas movedizas, lo que es tener que producir con alta inflación, con uno de los niveles impositivos más asfixiantes del mundo, o expuestos a la extorsión sindical -empresas que son bloqueadas mientras el poder mira para otro lado-, para que encima de eso tuvieran que padecer los zarpazos de la suba de la alícuota en Bienes Personales y el impuesto a la riqueza aplicados desde finales del 2020 a la fecha.

Esas dos movidas implicaron la decapitación de buena parte de lo más representativo del empresariado nacional, que emigró, y que contrarresta los efectos recaudatorios en un país con tanto despilfarro público.

Llama la atención la saña con que se actuó sobre los patrimonios atesorados en el exterior, que es la forma en que los argentinos buscan proteger su capital de los cíclicos saqueos que se producen en el país,como sucedió al inicio del gobierno de Menem con el Plan Bonex (canje compulsivo de los depósitos bancarios en pesos por bonos a largo plazo), o en el 2002, cuando los que tenían depositados dólares en los bancos recibieron pesos.

En general, la esencia de un sistema impositivo es que debe afectar a una parte de la renta de las personas o las empresas, pero no a toda su renta -¿para qué producir entonces si el Estado se queda con todo?-.

Mucho menos si el impuesto incauta toda la renta y parte del patrimonio, como sucedió con la alícuota de Bienes Personales, que superó la tasa que pagaban los bancos internacionales en el exterior a los depósitos en dólares.

En tiempos feudales el tributo se concebía como una parte de la cosecha, pero nunca toda la cosecha, y muchísimo menos aspiraba a quedarse con parte de las herramientas o la vivienda de los agricultores. Hubiera significado romper el equilibrio productivo.

El sistema impositivo argentino es un engendro que ha ido acumulando gravámenes absurdos, promulgados por única vez y que han quedado enquistados en el sistema, como el impuesto al cheque o las retenciones o el referido Bienes Personales, implantado como excepción por un año y luego prorrogado.

Este gravamen no debería existir estando ya Ganancias: o se gravan las utilidades o el capital, nunca ambos.

Si bien las tasas a que se han aplicado estos nuevos impuestos pueden parecer no elevadas, al computarse sobre los activos (o sea, sobre todos los bienes) y no sobre el patrimonio (los activos menos las deudas) en muchísimos casos resultaron confiscatorios y provocaron la estampida migratoria de destacados empresarios de los más variados rubros. A su vez, estos grandes contribuyentes del fisco argentino no solamente dejan de tributar al erario nacional, sino que dejarán de invertir, de emplear, de consumir y de soñar en la Argentina. Fue la ventaja circunstancial de un año -el de la recaudación de los impuestos- contra un daño permanente.

¿Qué negocio hizo la Argentina al forzar la salida de Galperin y tantos otros emprendedores jóvenes y talentosos que podrían haber seguido generando iniciativas en el país? Cuando más que nunca son necesarias la inversión y el empleo, saltan voces a la palestra que intentan volver a aplicar esos funestos gravámenes contra el único sector que puede sacar al país del estancamiento.

Daría la impresión que estamos ante un acto supremo de mezquindad, para que un miembro del gobierno pueda “zafar” de una situación judicial complicada y asegurarse luego que no haya un cambio de autoridades que pueda modificar el “salvoconducto” que hubiera alcanzado. Para evitarlo y garantizarse la sucesión a perpetuidad, se pretendería llevar a la Argentina hacia un modelo hegemónico del tipo venezolano, con la colosal destrucción de valor y recursos productivos y aumento de la pobreza que un régimen de esas características provocaría.

Resulta inexplicable que el peronismo tradicional acompañe semejante plan demencial. En aras a ese objetivo se inscribe el desquicio de las cuentas públicas tras el reparto de planes y subsidios por doquier, las alianzas internacionales que nada tienen que ver con los intereses del país y el resucitar de una ideología obsoleta para enmascarar y darle sentido épico a esa macabra jugada.

Para consumar ese plan es necesario decapitar al empresariado nacional como un pre-requisito. En ese siniestro proyecto se inscriben esas embestidas impositivas como el aumento de las tasas en Bienes Personales y el impuesto a la riqueza. Y así los que se queden estarán sumisos al servicio del poder. Mientras, resuena el hipócrita discurso exhortando al empresariado a que invierta en el país cuando en simultaneo se lo está decapitando.

 

Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira, livro quase pronto de Paulo Roberto de Almeida

 Acabo de enviar para a Editora Appris os últimos ajustes de capa e de conteúdo deste meu livro, que será publicado assim que estiver finalizado: 


Apresento as páginas de sumário do livro:








Itamaraty: Cota racial acaba sendo resolvidas na Justiça: o tribunal racial falhou?

 Após ser eliminado por fraude nas cotas raciais, candidato ganha causa e é nomeado diplomata em vaga para negros


Lucas Nogueira Siqueira foi nomeado terceiro-secretário da carreira de diplomata, do quadro permanente do Ministério das Relações Exteriores, nesta segunda-feira (23). G1 tenta contato com a defesa do aprovado.

Por Brenda Ortiz, G1 DF
25/08/2021 18h44  Atualizado há 13 horas

Após ser barrado em uma comissão, por não apresentar características físicas de um indivíduo negro, um candidato que se inscreveu no concurso para carreira diplomática, em 2015, nas vagas destinadas às cotas raciais, conseguiu ser nomeado. O nome de Lucas Nogueira Siqueira foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) desta segunda-feira (23), como terceiro-secretário da carreira de diplomata do quadro permanente do Ministério das Relações Exteriores.

Lucas Nogueira Siqueira conseguiu a aprovação na primeira fase do certame, em 2015, com 45,5 pontos. A nota de corte para os os candidatos da concorrência ampla era de 47.

Ele se autodeclarou pardo no ato da inscrição e, por isso, foi inserido na lista de vagas reservadas para negros ou pardos, e avançou para as etapas seguintes do concurso. No entanto, uma comissão de diplomatas rejeitou a auto declaração racial de Lucas, e ele foi eliminado do concurso.

A defesa do candidato conseguiu uma liminar permitindo que ele frequentasse as aulas do curso de formação do Instituto Rio Branco. A decisão, porém, não garantia sua entrada na carreira diplomática, mesmo se aprovado no curso. Nesta quarta-feira (25), o G1 não conseguiu falar com a defesa de Lucas.

Apesar de ter passado como cotista na primeira fase do concurso, na fase final, Lucas obteve pontuação para se classificar entre os não cotistas – e foi aprovado nesse grupo. A concorrência entre cotistas era de 111,8 por vaga, e, entre os não cotistas, 239,6 por vaga.

Fraudes nas cotas raciais
No concurso de 2015 para o Itamaraty, também houve registro de outros candidatos suspeitos de terem fraudado a auto declaração racial, o que fez o Ministério Público Federal (MPF) apresentar uma ação civil pública contra esses concorrentes.

Por meio de fotografias, obtidas diretamente de bancos de dados oficiais, e também por meio das redes sociais, o MPF identificou os candidatos. Os procuradores concluíram que eles não tinham a aparência física de pessoas negras.

Em um processo que correu na 5ª Vara Federal do Distrito Federal, desde 2016, a defesa de Lucas Nogueira apresentou laudos de sete dermatologistas identificando o candidato como pardo. Os laudos foram baseados na escala de Fitzpatrick, que estabelece seis categorias de pele em razão de sua resposta à radiação ultravioleta. O jovem foi classificado no nível 4, equivalente a pele morena moderada, segundo os dermatologistas.

Por conta de uma recomendação do MPF, o Itamaraty estabeleceu, em dezembro de 2015, que os cotistas aprovados deveriam ser avaliados "perante sete diplomatas integrantes do Comitê Gestor de Gênero e Raça (CGGR)" do ministério, para "esclarecer eventuais dúvidas" sobre sua "condição de preto ou pardo".

A defesa de Lucas contestou a convocação dessa etapa, não prevista no edital de abertura do concurso. A comissão formada por diplomatas rejeitou a auto declaração dele e de mais três candidatos.

Uma liminar, expedida em julho de 2016, permitiu que Lucas Nogueira frequentasse as aulas.

https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/08/25/apos-ser-eliminado-por-fraude-nas-cotas-raciais-candidato-branco-ganha-causa-e-e-nomeado-diplomata-em-vaga-para-negros.ghtml

Itamaraty cumprindo o seu papel na diplomacia da saúde, vacinas da Índia a preços reduzidos, sem o Min. Saúde

 Em voo secreto, Itamaraty buscou vacinas da Índia por 10% do valor pago pelo Ministério da Saúde


Após dois fretamentos fracassados e prejuízo de US$ 500 mil para Fiocruz, diplomatas fizeram operação por US$ 55 mil sem conhecimento da pasta

26.ago.2021 às 4h00
Patrícia Campos Mello

Após as tentativas frustradas de buscar 2 milhões de doses de vacina na Índia em janeiro deste ano, que geraram um prejuízo de US$ 500 mil (R$ 2,6 milhões na cotação atual) para a Fiocruz, o Itamaraty negociou secretamente com o governo indiano e conseguiu transportar as mesmas doses por US$ 55 mil (R$ 288 mil na cotação atual), cerca de 10% do valor pago pela fundação.

Toda a operação foi feita em sigilo, e o Ministério da Saúde só soube quando a carga de vacinas já estava prestes a embarcar no avião da companhia aérea Emirates no aeroporto de Mumbai.

O afobamento e as trapalhadas do governo Jair Bolsonaro, principalmente da pasta da Saúde, já tinham produzido dois fiascos na busca de vacinas.

O ministério, na época sob o comando do general Eduardo Pazuello, havia determinado à Fiocruz que fretasse um avião para buscar as vacinas na Índia no dia 16 de janeiro. Ao mesmo tempo, negociou com companhia aérea Azul um outro voo para buscar as mesmas vacinas.

Bolsonaro havia determinado que as vacinas tinham que chegar, de qualquer jeito, antes do dia 20 de janeiro —data em que o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), iniciaria a vacinação com a Coronavac.

Telegrama diplomático mostra que, em 9 de janeiro, foi enviada uma carta de Bolsonaro ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, “recordando a importância do prazo do dia 20”, e o ministério indiano teria reiterado “não poder comprometer-se ainda com datas”.

Doria acabou começando a vacinação em 17 de janeiro. As vacinas da Coronavac, produzida pelo Instituo Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, foram transportadas ao Brasil em voo comercial da companhia turca Turkish Airlines.

A Fiocruz assinou em 13 de janeiro um contrato de fretamento de um avião para Mumbai com a DMS Agenciamento de Cargas e Logística, conforme instrução do Ministério da Saúde, para buscar as doses no dia 16.

Naquele momento, no entanto, não havia garantia de que o governo indiano fosse liberar as cargas dentro do período proposto. No dia 14, um porta-voz da chancelaria indiana, em briefing semanal à imprensa, disse ser "cedo demais" para o envio de vacinas a terceiros países naquela semana.

Um dia depois, segundo telegrama do Itamaraty, o embaixador da Índia no Brasil, Suresh Reddy, reiterou pedido para que não fosse enviado “o voo especial para transporte das vacinas até que sejam concluídas as autorizações formais pelo lado indiano".

A fundação teve de pagar antecipadamente o valor de US$ 500 mil, estipulado no contrato com a empresa de logística, conforme a Folha revelou em maio.

“O Ministério da Saúde solicitou à Fiocruz a contratação de voo fretado para a realização da operação”, disse a Fiocruz em nota. “Posteriormente a todos os procedimentos para a realização da operação de transporte, o Instituto Serum comunicou em 15.01.2021 à Bio-Manguinhos/Fiocruz que a data de 16.01.2021 programada para o recolhimento e transporte ao Brasil não seria mais factível e a carga não estaria mais disponível, e que a continuidade da operação dependeria de uma nova data a ser anunciada pelo Instituto.”

Segundo a Fiocruz, o contrato não previa reembolso. "Todos os contratos de fretamento no mercado estabelecem pagamento adiantado e reserva prévia, sem possibilidade de reembolso. Portanto, o valor investido nessa operação, de US$ 500 mil, não pode ser recuperado", disse o instituto em nota, em maio.

Ao mesmo tempo, e sem o conhecimento da Fiocruz, o Ministério da Saúde também contratou um avião da Azul para realizar o mesmo serviço.

No dia 13 de janeiro, o ministério divulgou uma nota afirmando: “Um avião da empresa aérea Azul sairá do Brasil na noite desta quinta-feira (14 de janeiro) com destino a Mumbai, na Índia, para buscar 2 milhões de doses da vacina contra a Covid-19 da AstraZeneca/Oxford, adquiridas pelo Ministério da Saúde para garantir o início da imunização dos brasileiros. O Airbus A330neo —maior aeronave da frota da companhia— decolará do Aeroporto de Recife (PE) às 23h. A previsão de retorno é no próximo sábado, dia 16.”

Na nota, havia também uma declaração do então ministro Pazuello: “É o tempo de viajar, apanhar e trazer. Já estamos com todos os documentos de exportações prontos".

No dia 14, a aeronave saiu de Viracopos, em Campinas (SP), para o Recife, de onde seguiria viagem. Chegou a ser adesivada com o slogan “Brasil imunizado: somos uma só nação” e exibida nas redes sociais do ministério. Os indianos foram pegos de surpresa. Logo depois, o governo anunciou que o transporte das vacinas teria de ser adiado.

Depois do fracasso na operação, o Ministério da Saúde anunciou que iria usar a aeronave na distribuição de cilindros de oxigênio. Indagada, a assessoria da pasta não especificou quanto foi gasto na operação com o voo da Azul, nem o motivo pelo qual foram contratados dois fretamentos ao mesmo tempo, sem garantia de que as vacinas estariam disponíveis na Índia.

A precipitação do governo brasileiro ao anunciar a chegada das vacinas causara saia justa para o primeiro-ministro Modi. O Brasil nem avisou aos indianos que iria anunciar a chegada das vacinas. O governo da Índia, por conta da pressão política interna, não podia anunciar exportação de vacinas antes de iniciar a vacinação no país, e antes de doar para países vizinhos.

Na terceira tentativa de buscar as vacinas, o Itamaraty e o Ministério das Relações Exteriores indiano resolveram fazer tudo em sigilo, sem o envolvimento da Saúde, para que não houvesse risco de vazar a informação ou de haver pressão do Palácio do Planalto para alguma divulgação.

Foi só no dia 19 de janeiro que o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, comunicou que a carga de vacinas seria liberada no dia 21. Ele solicitou “reserva e discrição”, e as duas chancelarias acordaram a divulgação conjunta da informação somente às 6h do dia 22 de janeiro.

O Ministério da Saúde não participou das deliberações, e o Itamaraty atuou em paralelo.

“Tão logo recebida a decisão do governo indiano de autorizar a exportação de 2 milhões de doses da vacina Covishield para o Brasil, o Posto buscou assegurar que seu transporte fosse efetuado o mais rapidamente possível. Nesse contexto, chegou ao entendimento com a empresa Serum (SII) que a forma mais rápida e eficiente seria a opção de transporte por avião comercial de carga, conforme a prática usual do fabricante, que é o maior exportador de vacinas do mundo”, diz um segundo telegrama enviado pela Embaixada do Brasil em Déli, no dia 22 de janeiro.

O mesmo telegrama relata que o custo do transporte seria US$ 55 mil e pergunta de que forma o governo brasileiro iria fazer o pagamento

Pazuello só soube do voo na última hora, quando as vacinas já estavam no aeroporto de Mumbai.

A Folha questionou a Fiocruz sobre o motivo de o valor do contrato fechado com a empresa de logística ser quase dez vezes maior do que o pago para a Emirates fazer o mesmo serviço.

“O Ministério da Saúde solicitou à Fiocruz a contratação de fretamento para essas vacinas. O transporte não poderia ser realizado apenas mediante o fretamento de um voo comercial, uma vez que o transporte de imunobiológicos envolve um conjunto de serviços complexos que exigem a contratação de uma empresa especializada em serviços dessa natureza", respondeu a Fiocruz, em nota.

"No caso da operação para o fretamento das vacinas da Índia, os serviços contratados da empresa DMS Agenciamento de Cargas e Logística consideravam não apenas o fretamento do voo, mas toda a operação, ou seja, a cadeia logística desse transporte, desde a retirada da carga da farmacêutica na Índia até a sua chegada na Fiocruz, incluindo ainda o aluguel de equipamentos especiais para a manutenção de temperatura da carga durante todo o trajeto e a tramitação aduaneira", acrescentou.

Procurado diversas vezes por telefone e email, o Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem.

O Itamaraty afirmou que os custos da operação de importação foram cobertos pela Fiocruz. “A atuação do Itamaraty no enfrentamento da atual crise sanitária é coordenada com os órgãos do governo federal responsáveis pelo tema.”

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/08/em-voo-secreto-itamaraty-buscou-vacinas-da-india-por-10-do-valor-pago-pelo-ministerio-da-saude.shtml