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sábado, 25 de dezembro de 2021

Sistemas políticos liberais e i-liberais, segundo Augusto de Franco

 Uma abordagem inteligente dos sistemas e atores liberais ou i-liberais, a partir do modelo Variedades de Democracia da Universidade de Gotemburgo, aperfeiçoado e exemplificado por Augusto de Franco.

Paulo Roberto de Almeida 


Classificando as forças políticas sem usar as noções de esquerda e direita

Ensaiemos uma nova classificação dos atores políticos (inspirada na classificação do V-Dem dos quatro tipos de regimes políticos: democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada ou não-eleitoral). Claro que isso pode ser apenas uma inspiração: os critérios (ou indicadores) de democracia que permitem a classificação do V-Dem nos quatro tipos acima não se aplicam a atores políticos (ou forças políticas). Podemos ter autocratas eleitorais no governo (como Trump) em democracias liberais (como os EUA). Podemos ter autocratas eleitorais fora do governo (como Farage, Salvini e Le Pen) em democracias liberais (como Reino Unido, Itália e França). Podemos ter autocratas eleitorais no governo (como Bolsonaro e Duda) em democracias eleitorais (como Brasil e Polônia).

Feita a ressalva, vamos à classificação proposta:

Como mostra o diagrama acima, os democratas podem ser classificados em dois tipos: liberais e eleitorais.

Os autocratas também podem ser classificados em dois tipos: os eleitorais e os não-eleitorais.

Os democratas liberais, por sua vez, podem ser classificados em dois tipos: os radicais e os formais.

Exemplos de democratas eleitorais radicais: Efialtes, Péricles, Aspásia, Protágoras, Spinoza, Dewey, Arendt…

Exemplos de democratas liberais formais: Merkel e Scholz (na Alemanha), Quesada (na Costa Rica), Kishida (no Japão), Jacinda Ardern (na Nova Zelândia), Gahr Store (na Noruega).

Os democratas eleitorais podem, igualmente, ser classificados em dois tipos: os formais (ou não-populistas) e os neopopulistas.

Exemplos de democratas eleitorais formais: Antonio Costa (em Portugal), Milanovic (na Croácia), Saied (na Tunísia), Piñera (no Chile), Lacalle Pou (no Uruguai).

Exemplos de democratas eleitorais neopopulistas: Evo e Arce (na Bolívia), Correa (no Equador), Lugo (no Paraguai), Funes (em El Salvador), Lula (no Brasil), Castillo (no Peru) e Zelaya em famiglia (em Honduras).

Os autocratas eleitorais podem ser classificados em dois tipos: os neopopulistas e os populistas-autoritários (ou nacional-populistas).

Exemplos de autocratas eleitorais neopopulistas: Maduro (na Venezuela), Ortega (na Nicarágua), Lourenço (em Angola).

Exemplos de autocratas eleitorais populistas-autoritários: Orbán (na Hungria), Erdogan (na Turquia), Jarosław e Lech Kaczyński e Duda (na Polônia), Salvini (na Itália), Le Pen (na França), Farage (no Reino Unido), Trump (nos EUA), Modi (na Índia), Duterte (nas Filipinas), Bolsonaro (no Brasil).

Os autocratas não-eleitorais são os velhos ditadores já conhecidos (remanescentes do século 20).

Exemplos de autocratas não-eleitorais: Dias-Canel (em Cuba), Xi-Jinping (na China), Bin Salman (na Arábia Saudita), Bashar al-Assad (na Síria), Omar al-Bashir (no Sudão).

Os campos hachurados em cinza claro no diagrama são i-liberais.

Para que serve essa classificação?

Em primeiro lugar para escapar da categorização vazia, elaborada a partir da posição relativa no espectro político ou político-ideológico (levando em conta o conteúdo das ideias esposadas ou apresentadas): extrema-esquerda, esquerda, centro-esquerda, centro-direita, direita, extrema-direita – adotando agora como critério o comportamento político. Se alguém se perde nessas categorizações “tomográficas” descritivas das forças políticas não leva em conta as categorias analíticas capazes de explicar comportamentos políticos.

O problema não é se você pronuncia ou escreve as palavras ‘esquerda’ e ‘direita’ e sim se você usa essas categorias equívocas para analisar comportamentos políticos. Por exemplo, podemos encontrar comportamento político populista na esquerda e na direita: o peruano Castillo (de esquerda) e o americano Trump (de direita) são populistas. Outro exemplo: Antonio Costa em Portugal é considerado mais de esquerda e Sebastião Piñera no Chile é considerado de direita (ver imagem que ilustra este artigo), mas ambos são democratas eleitorais formais (não-populistas) e é isso que é fundamental para analisar o funcionamento dos regimes onde governam.

Voltando à inspiração da classificação do V-Dem. O que é relevante para a análise é se uma força política é democrático-liberal (radical ou formal), democrático-eleitoral (não-populista ou neopopulista), autocrático-eleitoral (neopopulista ou populista-autoritária) ou autocrático-fechada (não-eleitoral).

Todas as classificações que partem de uma posição relativa no espectro são equívocas: dependendo da configuração do ambiente político, alguém que é de direita pode ser encarado como extrema-direita, alguém que é de extrema-esquerda pode ser só de esquerda, alguém que é de esquerda pode ser tomado como de centro-esquerda… e por aí vai. Alguém achará uma direita e uma esquerda até no Vaticano e um democrata-liberal formal no PSTU será considerado como “de direita”. Isso não esclarece, confunde.

Caímos nesse “método” de interpretação da realidade a partir da revolução francesa, que não reinventou a democracia na época moderna, mas em compensação inventou de dividir o mundo em esquerda e direita. Na verdade, inventou a esquerda. E aí a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita. São conceitos de guerra, não de política. É sempre uma demarcação de campos para orientar ações de conquista ou destruição. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Em segundo lugar, a classificação aqui proposta serve para revelar que o comportamento político é função dos graus de liberalismo político (que vai, numa escala descendente, dos democratas liberais radicais aos autocratas não-eleitorais). Há uma mancha i-liberal cobrindo parte dos democratas e todos os autocratas. A ​presente classificação serve para mostrar que democratas eleitorais podem ser i-liberais (bastando, para tanto, que sejam populistas, no caso, neopopulistas – e a palavra ‘neopopulista’ é usada aqui para estabelecer uma diferença entre os velhos populismos, associados à demagogia, ao assistencialismo e clientelismo e à irresponsabilidade fiscal, e os novos populismos florescentes no século 21).

Em terceiro lugar a classificação serve para mostrar que, mesmo entre os democratas liberais, há uma distinção entre os radicais (ou inovadores – quer dizer dizer, entre os que apostam na continuidade do processo de democratização para alcançar as democracias que queremos) e os formais (que dão ênfase à manutenção do Estado democrático de direito ou à defesa da democracia que temos).

Quatro notas de rodapé para encerrar (ou começar):

1 – Na distinção entre democratas liberais radicais e formais, deve ficar claro que a defesa da democracia que temos é condição necessária para alcançarmos as democracias que queremos.

2 – A palavra ‘radical’ aqui não significa sectário, estreito ou extremista e sim, no seu sentido literal, ir à raiz da concepção democrática originária e aponta para uma conexão (ou fusão) entre o liberalismo antigo (dos democratas atenienses que tomavam a liberdade como sentido da política) e o liberalismo político dos modernos. É o imaginário lugar do pensamento onde Locke, Montesquieu, Tocqueville, Constant e Stuart Mill podem se encontrar com Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia, Antífon, Crátilo, Górgias, Hípias, Pródigos, Protágoras, Trasímaco, talvez Alcídamas, Licofronte e o Anônimo Jâmblico. Ou seja, o sentido da política não é a ordem, ainda quando seja uma nova ordem mais justa – e sim a liberdade.

3 – Democracias liberais também podem ser parasitadas por populismos, embora isso seja mais difícil de ocorrer do que numa democracia (apenas) eleitoral. As democracias liberais metabolizam as forças políticas populistas (sejam democráticas ou autocráticas) confinando-as mais facilmente nas margens do espectro político (ou impedindo que elas ocupem o centro de gravidade em torno do qual a política institucional vai orbitar). As democracias (apenas) eleitorais estão sempre em risco de decaírem para autocracias eleitorais e não têm proteção tão eficaz contra os populismos.

4 – Faltaram exemplos recentes de democratas liberais radicais? Pois é… No fundo, no fundo, foi isso que inspirou este artigo.

Uma prévia de meu próximo livro: Projetos para o Brasil: Os construtores da nação - Paulo Roberto de Almeida

 Projetos para o Brasil: Os construtores da nação 

Paulo Roberto de Almeida

Doutor em ciências sociais

Mestre em economia internacional

Diplomata

 



Índice 


Apresentação

Da construção do Estado à construção da Democracia

 

Primeira parte: a construção do Estado

     O Estado antes da Ordem e da própria Nação

1.  As vantagens comparativas de José da Silva Lisboa (Cairu)

2.  Por uma monarquia constitucional liberal: Hipólito da Costa 

3.  Civilizar os índios, eliminar o tráfico: José Bonifácio de Andrada e Silva

4.  Um Memorial para reformar a nação: Francisco Adolfo de Varnhagen

 

Segunda parte: a construção da Ordem

     Uma Ordem patrimonialista e oligárquica

5.  Os liberais conservadores: Bernardo, Paulino e Paranhos

6.  Um aristocrata radical: Joaquim Nabuco   

7.  Bases conceituais da diplomacia: o paradigma Rio Branco

8.  O defensor do Estado de Direito: Rui Barbosa 

 

Terceira parte: a construção do Progresso

     O Progresso pelo Estado, com o Estado, para o Estado

9.  Um empreendedor liberal numa terra de estatistas: Mauá 

10. Um inglês imaginário e o nacionalista do petróleo: Monteiro Lobato 

11. O revolucionário modernizador: Oswaldo Aranha

12. Duas almas pouco gêmeas: Roberto Simonsen e Eugenio Gudin

 

Quarta parte: a construção da Democracia

     A Democracia carente de união nacional

13. Em busca de uma esquerda democrática: San Tiago Dantas

14. O militante do parlamentarismo: Afonso Arinos de Melo Franco 

15. As oportunidades perdidas do Brasil: Roberto Campos

16. O liberalismo social de José Guilherme Merquior

 

A construção da Nação: um itinerário de 200 anos de história 

 

Referências Bibliográficas para os Construtores da Nação



Apresentação

Da construção do Estado à construção da Democracia

 

 

Obrigado de minha curiosidade fiz, por espaço de dezessete anos que residi no Estado do Brasil, muitas lembranças por escrito do que me pareceu digno de notar, as quais tirei a limpo nesta corte, enquanto a dilação de meus requerimentos me deu para isso lugar; ao que me dispus entendendo convir ao serviço de El Rei nosso Senhor, e compadecendo-me da pouca notícia que nestes reinos se tem das grandezas e estranhezas desta província, no que anteparei algumas vezes movido do conhecimento de mim mesmo, e entendendo que as obras que se escrevem têm mais valor que o da reputação dos autores delas.

Como minha intenção não foi escrever história que deleitasse com estilo e boa linguagem, não espero tirar louvor desta escritura e breve relação (em que se contém o que pude alcançar da cosmografia e descrição deste Estado), que a V.S. ofereço; e me fará mercê aceitá-la, como está merecendo a vontade com que a ofereço; passando pelos desconcertos dela, pois a confiança disso me fez suave o trabalho e o tempo que em a escrever gastei: de cuja substância se podem fazer muitas lembranças a S.M. para que folgue de as ter deste seu Estado, a que V.S. faça dar a valia que lhe é devida. 

 

Gabriel Soares de Souza, Tratado Descritivo do Brasil em 1587. “Edição castigada pelo estudo e exame de muitos códices manuscritos existentes no Brasil, em Portugal, Espanha e França, e acrescentada de alguns comentários à obra”, por Francisco Adolfo de Varnhagen, sob a responsabilidade do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1851, p. x-xi. 

 

 

Como se pode depreender pela descrição inicial que desta terra fez, para os seus soberanos, um dos primeiros habitantes do Estado do Brasil, os projetos para se construir uma nova nação, nesta parte do território da América do Sul, não são exatamente novos. Gabriel Soares de Souza foi um observador atento e perspicaz, que se empenhou em tomar da pluma para discorrer sobre tudo o que viu, o que ouviu e coletou ao longo dos 17 anos em que se exerceu, como senhor de engenho, nestas paragens ermas, ainda repletas de selvícolas, cujos hábitos ele procurou relatar com exatidão e até espanto (o canibalismo, por exemplo, e a “luxúria” de seus hábitos sexuais). A obra permaneceu praticamente incógnita dos habitantes do Estado do Brasil até meados do século XIX, quando o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen conseguiu retirá-la de um injusto anonimato para enfim divulgá-la a seus compatriotas. 

Exatos quarenta anos depois, Frei Vicente do Salvador terminava uma primeira História do Brasil (1627), que, como sua predecessora de 1587, permaneceu incógnita por 260 anos, tendo sido consultada por Varnhagen, na Biblioteca das Necessidades, em Lisboa, mas publicada apenas no final do século XIX, numa edição anotada por Capistrano de Abreu, pela Biblioteca Nacional (1889). Para José Honório Rodrigues, a História do Brasil “é um dos livros mais saborosos do Brasil seiscentista, pela simplicidade do estilo, natural, sem artifícios, pela ingenuidade da narrativa, entremeada de estórias populares e ditos pitorescos” (1979, p. 490).

Mas, Frei Vicente do Salvador – que recebeu a alcunha de “Heródoto brasileiro”, ou o “Pai da História” no Brasil – também reclama, logo no capítulo segundo do livro, da situação de abandono a que foi relegado o “Estado do Brasil”: 

... ao nome do Brasil ajuntaram o de Estado, e lhe chamam Estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoado alguns lugares, e sendo a terra tão grande, e fértil, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição. 

Disto dão alguns a culpa aos Reys de Portugal, outros aos povoadores; aos Reys pelo pouco caso que hão feito deste tão grande Estado, que nem o título quiseram dele; pois intitulando-se Senhores de Guiné por uma caravelinha que lá vai, e vem, como disse o rei do Congo, do Brasil não se quiseram intitular, nem depois da morte de El-Rey dom João terceiro, que o mandou povoar, e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos; e deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados que na terra estejam, e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal... (..) Porque tudo querem para lá, e isto não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da Terra não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e deixarem destruída. 

Donde nasce também, que nenhum homem nessa terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. (...)

Estas são as razões, porque alguns, como muito dizem, que nem permanece o Brasil nem vai em crescimento; e a estas se pode ajuntar a que atrás tocamos de lhe haverem chamado Estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz com que pudera ser Estado, e ter estabilidade e firmeza. (SALVADOR, 1889, p. 6-7).

 

Um novo relato sobre as riquezas da terra, Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas, feito quase um século depois por um outro observador atento, André João Antonil – pseudônimo do jesuíta italiano João Antonio Andreoni (1649-1716), trazido ao Brasil pelo padre Antonio Vieira em 1681 – foi retirado de circulação seis dias depois de aprovado para imprimir e distribuir pela própria censura do Reino, em 1711, e assim permaneceu desconhecido durante mais de um século, tendo sido redescoberto somente depois da independência (RODRIGUES, 1979, p. 403). Segundo relata uma estudiosa dessa obra: 

As razões para o confisco da obra... foram evitar exposição das riquezas da colônia à cobiça de outras nações, responsáveis por saques constantes na costa brasileira. Naquele momento, falar em açúcar, ouro e tabaco era inadequado e perigoso, podendo aguçar a cobiça da França, Holanda e Inglaterra, interessadas em participar do mercado internacional. (SILVA, 1999, p. 57)

 

Antonil defendia em sua obra (1982) a proposta de que seria justo, “tanto para Fazenda real quanto para o bem público, favorecer a conquista e o desenvolvimento econômico do Brasil” (SILVA, 1999, p. 73). Com isso, evidentemente, não concordaram os censores do Reino, numa atitude que, mutatis mutandis, continuou a ser imitada durante largo tempo, talvez ainda atualmente, quando se continua a falar das fabulosas riquezas do Brasil, sempre cobiçadas por potências estrangeiras. 

 

Ao revelar a riqueza potencial da nova terra, os cronistas dos primeiros tempos cumpriam, portanto, mesmo indiretamente, um papel de promotores da prosperidade da colônia, ainda que a exploração dos recursos estivesse mais destinada a enriquecer a própria metrópole. Os projetos tentativos de se fazer da terra uma nação próspera passaram a adquirir maior consistência a partir do desembarque da Corte dos Braganças na colônia que já era, no quadro do imenso império marítimo lusitano, a principal fonte de recursos para o Tesouro do Reino. Tem início, em 1808, a administração dos negócios desse império desde o Rio de Janeiro. 

Paradoxalmente, o ponto de partida dos projetos para se construir uma nova nação no imenso território da América portuguesa toma impulso, de fato, a partir de Londres, naquele mesmo ano, quando Hipólito José da Costa, refugiado ali desde 1805, para fugir da Inquisição portuguesa, toma a decisão de lançar um “armazém literário”, o Correio Braziliense. Alguns anos antes, entretanto, um compatriota da Bahia, José da Silva Lisboa, já tinha se lançado em reflexões com esse mesmo objetivo, mas os seus primeiros escritos estavam mais dedicados ao Direito Comercial e a noções de Economia Política, muitas das quais ele vai buscar em Adam Smith, embora inovando aqui e ali. Não faltaram, pois, pensadores engajados na tarefa de convencer os reais donos da terra – proprietários de engenhos, de fazendas de café e de escravos, comerciantes, muitos deles traficantes, magistrados, nobres da Corte – sobre o que se haveria de fazer para converter recursos naturais em riquezas da nação, em primeiro lugar do real Tesouro. Nem sempre tais promotores foram felizes em seus intentos, por mais que tentassem, num processo que se estende por toda a história do Estado independente. A questão principal que motivou a confecção deste ensaio foi a de saber se seria possível avaliar a qualidade de tais projetos, seja pelos testemunhos desses esforços, tal como descritos em obras próprias, seja por meio de relatos de terceiros sobre essas propostas. 

 

O Brasil, como foi dito muito depois, não é para principiantes. Vamos admitir que a frase expresse a realidade, ainda que ela seja mera banalidade conceitual. A verdade é que nenhuma sociedade complexa, como são praticamente todas elas, ainda que uma não urbanizada, industrializada ou conectada, é de fácil manejo para amadores da vida política ou para os iniciantes no campo da gestão econômica. Não deveria haver nada de surpreendente, portanto, em que o Brasil, de fato, não seja para principiantes, como dito nessa frase tão simpática e atraente, quanto sociologicamente desprovida de maior significado substantivo. A construção de uma nação próspera, de um país desenvolvido, nunca se faz a partir de uma folha em branco, sobre a qual seria possível desenhar e imprimir projetos idealmente concebidos por ideólogos das mais diversas correntes.

Mas atenção: a frase é, sim, relevante pelo lado do seu exato contrário. O mais surpreendente, no caso do Brasil, está em que o país não é de rápida explicação ou de fácil interpretação nem mesmo para pensadores distinguidos e intelectuais de primeira linha, como são alguns dos que aqui foram vistos através de seus projetos de construção da nação. O país tampouco parece ser de simples manejo, mesmo para estadistas da velha guarda, para políticos experientes, sem esquecer os empresários inovadores e economistas sensatos. O Brasil, com o seu jeito sui-generis de ser, já destruiu mais de uma reputação política, assim como ele continua desafiando as melhores vocações de “explicadores sociais”, inclusive entre os brasilianistas. 

Existe, por exemplo, alguma explicação sensata para o fato de que “o país do futuro”, o “gigante inzoneiro”, a terra dos recursos infinitos, seja ainda uma sociedade desigual, ricamente dotada pela natureza, mas com muitos pobres, milhões deles, uma nação até materialmente avançada, mas educacionalmente atrasada? O que é que nos retém na rota de um desenvolvimento social integrado? Quais seriam os formidáveis obstáculos ao progresso da nação, à sua inserção na economia global? Quantas e quais são as barreiras intransponíveis? E a quem imputar responsabilidades por tal situação?

 

Não foram poucos os espíritos corajosos que tentaram vencer essas dificuldades para colocar o país num itinerário de crescimento sustentado e de progresso efetivo. A maior parte deles acabou frustrada por um conjunto variado de circunstâncias, cuja identificação exata requereria um batalhão de sociólogos, dos melhores. A intenção do ensaio seria, assim, repassar, ainda que brevemente, o itinerário intelectual e prático de algumas personalidades que, em momentos decisivos da história do Brasil, viram suas propostas de reformas, ou de simples melhorias para o país, frustradas em função das condições ambientes. Algumas dessas “derrotas” podem ter sido devidas à oposição de outros personagens ou de grupos poderosos a esses projetos, ou pelo fato de que seus próprios autores não souberam, ou não puderam, obter apoios suficientes para que tais propostas de políticas públicas fossem, em primeiro lugar, aceitas pelos dirigentes, ou pela opinião pública, seguidas depois pela coalizão dirigente, para serem, finalmente, implementadas na forma por eles concebida inicialmente.

 

O presente ensaio não pretende ser apenas uma exposição sequencial, ainda que sintética, de diferentes projetos construtivos, ou reformistas, concebidos em função de um objetivo relativamente similar: o progresso do Brasil. A antiga colônia se conformou como Estado independente dois séculos atrás, mas ainda não logrou alcançar o estágio ideal concebido pelos autores das propostas, das ideias e das ações aqui examinadas. Todas tinham um objetivo comum e estavam focadas numa aspiração compartilhada: o estabelecimento de uma nação avançada, soberana, respeitada externamente, dotada, no plano interno, dos atributos indispensáveis a tal conformação, que seria o bem-estar do conjunto da sociedade, no quadro de um Estado de Direito democrático e pluralista. 

No plano metodológico, esta obra pretende ser um ensaio interpretativo sobre como os pensadores, agentes públicos, economistas e estadistas aqui selecionados – no total, quase duas dezenas, mas poderiam ser bem mais – conceberam os seus projetos de sociedade, todos eles voltados para a meta básica da construção da nação. O exame desses projetos, muitas vezes não apresentados explicitamente por seus autores, segue a sequência evidenciada em suas quatro partes. Elas estão organizadas em torno dos conceitos de Estado, de Ordem, de Progresso e de Democracia. Relembre-se que Ordem e Progresso fazem parte do ideário nacional a partir da República, um objetivo a ser atingido preferencialmente por meio de um Estado Democrático de Direito, embora tal conceito não tivesse muita vigência até o início do século XX, destacando-se os esforços de um Rui Barbosa para torná-lo realidade mais de um século atrás; ele está mais bem assentado na atualidade, após um longo percurso histórico feito de rupturas e quebras de institucionalidade, o que é confirmado pelas constituições alinhadas sucessivamente. 

O país possui, atualmente, um Estado relativamente bem estruturado, funcional para os padrões ainda em construção existentes nas formações saídas do colonialismo europeu dos últimos cinco séculos, uma categoria de nações às quais o antropólogo Darcy Ribeiro dava o nome de “povos novos” (1969), ou seja, nem originais, como as civilizações asiáticas, nem povos transmigrados, como os anglo-saxões (que são, aliás, as nações mais avançadas do planeta nos últimos dois séculos). O que o Brasil ainda não possui, em sua plenitude, é um Estado democrático de Direito, capaz de garantir uma ordem justa para todos os seus cidadãos e um grau de progresso social suficiente para incorporar a padrões adequados de bem-estar e de cultura todos os estratos da sua população, que ainda é marcada por desníveis de renda inaceitáveis do ponto de vista de uma nação integrada.

Os “propositores” aqui examinados e interpretados partiram da constatação de alguma insuficiência, ou mesmo de várias — de Estado, de Ordem, de Progresso ou de Democracia — para tentar construir estruturas políticas, materiais e culturais mais compatíveis com os seus ideais de uma nação avançada, ou então visando reformar as instituições já existentes para remediar as carências percebidas e alcançar os mesmos objetivos originais. Todos eles foram, em maior ou menor grau, construtores da nação.

Pelo exame de seus ideais e propósitos, percebe-se que praticamente a maioria deles logrou satisfação apenas parcial em seus projetos, o que nos deixa, no limiar do nosso terceiro centenário como Estado independente, com uma noção razoável do que foi concebido pelos ancestrais e do que já foi feito por esses predecessores — oito ou nove gerações de construtores da nação — e de quais são os desafios que ainda restam vencer para atingir os objetivos fundamentais dos “pais fundadores” da nação.

 

Este ensaio pretende oferecer uma espécie de balanço — ainda que modesto e um tanto subjetivo — do itinerário histórico da nação, por meio da exposição e discussão dos projetos de construção e de reforma de um Estado ainda relativamente jovem, em escala comparativa mundial, com o objetivo de sintetizar avanços e identificar carências em nosso processo civilizatório. Ele constitui uma contribuição de história intelectual a um esforço de avaliação sobre logros e fracassos de nosso itinerário, agora bicentenário. Há ainda muito a ser feito, muita coisa a ser alcançada. Uma forma de desenvolver esse trabalho seria, repetindo um velho refrão, apoiar-se nos “ombros de gigantes”, como podem ser classificados os construtores da nação aqui examinados. O ensaio também representa uma singela homenagem a todos esses idealistas, que, não satisfeitos com o “curso ordinário da vida”, se empenharam em pensar o Brasil e buscaram agigantar a nação, com o objetivo de melhorar a sorte do seu povo. 

A todos eles nosso sincero preito de gratidão, quando se completam os primeiros duzentos anos do Estado nacional independente.


 (...)


A construção da Nação: um itinerário de 200 anos de história


 

A construção deste longo ensaio historiográfico e interpretativo, sobre alguns dos projetos que se apresentaram ao longo dos últimos dois séculos para construir o Brasil como Estado autônomo e sociedade próspera, partiu da ideia de que, no limiar dos primeiros 200 anos de vida independente, a nação ainda não conseguiu realizar os muitos ideais e sonhos de alguns dos principais agentes dessa construção. Com poucas exceções – no caso de personagens que exerceram funções ministeriais durante certo tempo –, nenhum deles comandou verdadeiramente aos destinos do país, no sentido de serem os responsáveis últimos pelas grandes decisões que moldaram a vida da nação ao longo desse período bissecular. Mas todos eles foram agentes de transformação, no sentido de conceber e expor ideias sobre como desempenhar a missão: eles foram, em grande medida, conselheiros do príncipe, ou aspirantes a sê-lo, de maneira formal ou não, ou seja, voluntariamente ou no desempenho de funções oficiais; em todo caso, todos eles contribuíram com ideias e propostas para iluminar o caminho do progresso.

Ao ler, ao investigar e ao conhecer o que fizeram as diferentes personalidades que participaram dessa história, a constatação inicial foi a de que muito se fez, numa perspectiva comparativa mundial. Afinal de contas, o Brasil se apresenta, entre as nações originalmente colonizadas, sob a forma de um Estado soberano, relativamente organizado no plano institucional, ainda que apenas parcialmente desenvolvido no terreno material e, sobretudo, social. Poucas nações da assim chamada “periferia” lograram construir uma economia pujante, com muitas ilhas de excelência nos domínios cultural, científico e empresarial. 

Contudo, uma avaliação mais circunspecta revela, também, muito do que ainda falta fazer para completar os projetos que tinham sido concebidos por esses construtores da nação para colocar o país numa trilha de futuro. Trata-se, talvez, de um futuro que nunca chegou, a despeito de várias previsões otimistas ao longo dos anos, não limitadas às de alguns visitantes estrangeiros, a exemplo de Stefan Zweig.

Todas as personalidades sinteticamente estudadas aqui, não exatamente em suas trajetórias biográficas, mas em seus projetos para a nação, foram, em primeiro lugar, pensadores, intelectuais com distintas formações acadêmicas – ou mesmo como aprendizes na vida prática, como Irineu Evangelista de Souza, por exemplo – e com diferentes situações sociais, de atuação no setor público e de responsabilidade nos governos aos quais serviram ou com os quais trabalharam – o que pode ter ocorrido apenas sob a forma de embates, como nos casos de Hipólito José da Costa e de Monteiro Lobato. Vários deles conceberam planos mais ou menos arrojados para o futuro do Brasil, alguns com projetos ambiciosos de mudanças estruturais, outros – como José da Silva Lisboa ou Eugênio Gudin – com o cuidado mais prosaico de se lograr uma gestão simplesmente mais responsável da coisa pública. Todos eles preconizaram reformas corajosas para eliminar obstáculos e para enfrentar os problemas e desafios que constatavam existir no itinerário do desenvolvimento nacional, alguns deles em momentos muito difíceis da vida nacional, a exemplo de Oswaldo Aranha, chanceler de um país que passou da neutralidade à guerra, em meio a uma das maiores catástrofes enfrentadas pela humanidade. 

De certa forma, todos eles foram visionários, embora sensatos, no sentido em que nenhum deles concebeu algum projeto utópico de reforma integral, revolucionária, da sociedade brasileira. Nenhum deles foi um “engenheiro social”, no sentido tantas vezes criticado por um pensador liberal como Isaiah Berlin: todos eles preconizaram atuar nos quadros dos regimes constitucionais em vigor, respeitando as mais amplas liberdades – sobretudo a de empreender –, assim como princípios e valores dos regimes democráticos, mesmo se isso ainda não constasse das realidades existentes (como no início do século XIX). Não por acaso, as propostas por alguns deles formuladas se aproximavam do modelo constitucional e de governança de corte britânico, de amplo sucesso prático nos países institucionalmente e culturalmente pertencentes ao mesmo arco civilizatório e, num formato presidencialista, nos Estados Unidos. Aqueles que propunham um modelo mais americano de organização econômica – como a admiração entretida por Monteiro Lobato pelo “fordismo”– tinham perfeita consciência das limitações do país em que viviam, tanto é que o escritor de Taubaté escolheu um inglês imaginário para manter os seus “diálogos” a respeito dos problemas e desafios que o país enfrentava cerca de um século atrás.

Nenhum deles obteve sucesso pleno – no máximo parcial – nas reformas e nas medidas preconizadas para levar o Brasil a um patamar mais alto de progressos políticos, econômicos e sociais, inclusive porque – com a exceção circunstancial de Oswaldo Aranha – todos pretendiam atuar num processo de total respeito às regras elementares do jogo democrático, como diria Norberto Bobbio. Aliás, o jurista e filósofo italiano, a despeito de seu imenso sucesso intelectual e do prestígio cívico alcançado entre seus pares acadêmicos do mundo todo, não foi de todo exitoso a partir das recomendações feitas para o seu próprio país, por acaso caracterizado por uma governança quase tão disfuncional quanto a brasileira. Mas o fato é que conquistas materiais nem sempre se traduzem num desenvolvimento institucional e cultural garantido e estável, pois que exemplos de involução política, de recuos institucionais e de carências éticas, ou até morais, são registrados em algumas das sociedades mais avançadas do mundo.

Foi, portanto, um caminho árduo. José da Silva Lisboa, para começar, propunha o aproveitamento econômico integral das possibilidades existentes no país, com base numa avaliação realista das condições da nação naquele momento, como também faria Eugênio Gudin, mais de um século depois. Hipólito e Bonifácio aspiravam construir uma monarquia constitucional liberal, sem a mancha do tráfico e a nódoa da escravidão; esse duplo “pecado original” foi o problema mais grave do Brasil no século XIX, cuja solução, extremamente delongada, marcou indelevelmente o ambiente social e moral da nação, talvez ainda hoje, de uma forma que Nabuco tinha tentado evitar pela reforma agrária e pela educação de todos os pobres. Os “regressistas” das Regências e os conservadores do Império tinham a obsessão da ordem política e da unidade da nação, o que eles de fato conseguiram manter, mas a um custo social bastante significativo, pois que baseado no patrimonialismo renitente das oligarquias, persistente ainda hoje. 

Grandes estadistas, como os dois Paranhos, Oswaldo Aranha e San Tiago Dantas, tinham perfeita noção do papel do Brasil no contexto regional e internacional e também sobre a necessidade absoluta de se manter autonomia no processo decisório aplicado às interações externas, assim como Rui Barbosa, que foi, além do mais, um grande combatente pelo Estado de Direito e contra o militarismo embutido nas instituições republicanas. Pensadores práticos, mentes ecléticas, como Mauá, Lobato, Simonsen, Gudin e Roberto Campos, tentaram levar o Brasil a um ritmo sustentado de crescimento econômico, nos quadros de uma estrutura produtiva receptiva aos investimentos estrangeiros e à saudável concorrência dos sistemas de mercado. Finalmente, o mesmo San Tiago Dantas, mais Afonso Arinos e Merquior estavam, grosso modo, afinados com um modelo de organização política baseado no liberalismo social, provavelmente nos quadros de um sistema parlamentar moderno, dotado de um tipo de representação política condizente com as peculiaridades de uma nação-continente, regionalmente e socialmente muito desigual, como sempre foi o Brasil.

Os “construtores” da nação brasileira, aqui examinados sinteticamente, se tivessem logrado sucesso na implementação das medidas propostas – guindados, por acaso, a posições de mais alta responsabilidade governativa – teriam provavelmente mudado o Brasil de uma forma mais profunda, mais intensa, e mais positiva do que efetivamente ocorreu nos dois séculos que levam de Cairu e Hipólito da Costa a Roberto Campos e a José Guilherme Merquior. José Bonifácio e Oswaldo Aranha exerceram tais cargos de grande responsabilidade, mas ambos foram, de certa forma, “podados” pelos seus soberanos respectivos.

O último desta seleção necessariamente limitada aos já desaparecidos, José Guilherme Merquior, tinha chegado, ao termo de um percurso intelectual magnífico, a concepções de sociedade e de organização econômica e institucionalidade política não muito diferentes, em sua essência, àquelas exibidas pelos primeiros da lista: uma ordem política aberta e mantida dentro dos limites que Rui Barbosa chamaria de Estado de Direito, uma organização econômica baseada na iniciativa individual, como queriam Cairu e Roberto Campos, na liberdade de empreender e de usufruir dos frutos desse trabalho, como queria Gudin, enfim, oportunidades abertas a todos os nacionais e aos imigrantes, por meio de um sistema de educação pública de qualidade, capaz de oferecer oportunidades iguais e todos os habitantes, dos mais ricos aos mais humildes. 

Poucos se colocaram a favor do trabalho servil, num contexto em que esse “regime laboral” era relativamente disseminado ao redor do mundo, mas todos eles achavam que era preciso se libertar da nódoa infame que corrompia os poros da nação, como diria Joaquim Nabuco. Cairu e Varnhagen, assim como os “liberais conservadores” do Império, foram talvez os mais tolerantes nesse quesito, mas era muito difícil vencer a resistência dos grandes proprietários – que aliás, estavam, no Parlamento –, o que prolongou além da conta o nefando sistema, com efeitos que se estenderam a diversas esferas da vida pública já no século XX, provavelmente até hoje.

Num momento em que o Brasil enfrenta mais uma das recorrentes crises de sua história – certamente na esfera econômica, mas também, e sobretudo, no plano moral – parece útil refletir sobre as oportunidades perdidas de realizar projetos de construção da nação, a partir de propostas feitas por alguns desses visionários, projetos que foram muito parcialmente implementados. Mas eles deixaram sementes, várias embutidas em seus próprios escritos, aqui examinados, ou então registradas por contemporâneos e, também, pelos historiadores e biógrafos. Alguns dos projetos talvez tenham sido muito ambiciosos, no tempo em que foram propostos, ou colocados inicialmente em ação sem todas as garantias de que pudessem, de fato, ser implementados totalmente. Alguns deles nem mesmo apresentavam conexão com as necessidades do país, ainda que se situassem no Zeitgeist da época, a exemplo dos projetos políticos de cunho fascista da juventude de San Tiago Dantas, de Miguel Reale e de alguns dos seus companheiros dos anos 1930; pouco depois, eles tiveram amplas oportunidades de se corrigir, em vista dos desastres acarretados por essas ideologias, aderindo amplamente ao credo liberal.

Vários dos “construtores” aqui examinados podem ter sido “derrotados” na prática; ou melhor, tiveram seus projetos frustrados em sua execução, em virtude das circunstâncias existentes a cada momento. Mas todos eles podem ser considerados, de certa forma, como vitoriosos morais. Eles, e seus projetos, foram os gigantes intelectuais da construção de um processo de modernização e de progresso para o Brasil, ainda que, por um conjunto variado de limitações, não tenham podido conduzir suas propostas a bom termo. Em vários casos, não tiveram a oportunidade sequer de propô-las ou de vê-las discutidas concretamente num ambiente governamental, em virtude de um quadro político negativo para reformistas de algum quilate; em consequência, não puderam vê-las implementadas pelos tomadores de decisões em cada momento específico. 

A “agenda conjunta” de reformas modernizadoras e corretoras de nossas grandes lacunas sociais – o que todos eles preconizavam –, permanece inconclusa. Na verdade, em vários casos, ela só existe no papel, por exemplo, num exercício como este, de levantamento das nossas carências e omissões, uma vez que não pudemos contar, ainda, com estadistas que as implementassem efetivamente, com base num consenso político necessário e no pleno respeito das liberdades democráticas. 

Percorrendo as várias etapas, da construção do Estado, passando pela Ordem, entrando no progresso, finalmente chegamos a um tipo de democracia que não pode, ainda, equiparar-se à estabilidade e à qualidade funcional das grandes democracias de mercado, que funcionam geralmente no quadro de regime parlamentares, ou de um sistema presidencialista dotado de fortes tinturas congressuais. O parlamentarismo do Império perdeu-se nas brumas do passado, inclusive porque o nosso presidencialismo, fortemente marcado por incursões militares, sempre foi mais propenso a se dotar de cores bonapartistas.

A pergunta final é inevitável: quando poderemos contar com personalidades que se apoiem nas propostas desses gigantes intelectuais e que se disponham a envidar esforços para, finalmente “civilizar” o Brasil e os seus habitantes, como pretendiam os próceres da independência? Bonifácio e Varnhagen, por exemplo, tinham projetos para “civilizar os índios”, uma proposta que foi retomada por Rondon no pleno respeito das peculiaridades dos ancestrais nesta terra, como também propunha um idealista como Darcy Ribeiro. Não conseguimos sequer civilizar o Brasil, país de crimes e contravenções que seguem impunes. De fato, temos muito ainda a realizar para plena construção da nação, nos quadros de um regime democrático de alta qualidade, para o que devemos envidar esforços, às vésperas de encetar o terceiro centenário do Estado independente.

Talvez seja útil retomar, e repensar, cada uma das propostas dos pioneiros da construção da nação, com o objetivo de realizar uma espécie de diagnóstico da situação presente e ver o que ainda falta fazer no Brasil. A educação do seu povo parece a lacuna mais evidente e gritante. No itinerário percorrido até aqui, a construção do Estado veio em primeiro lugar, seguida dos demais “tijolos” da nação: a Ordem, certamente, uma obsessão pelo Progresso, evidentemente mais realizado pelo crescimento econômico do que pelo desenvolvimento social, para, finalmente, chegarmos a uma democracia que já reputamos como de baixa qualidade. Registre-se, ademais, que já estamos na sétima ou oitava carta constitucional, dependendo de como se considerem os muitos “atos adicionais” desde o Império, sem falar nas incontáveis emendas constitucionais, o que talvez também explique a fabulosa sucessão de moedas, talvez inédita na história monetária mundial, o que por si só já seria um indicativo de frustrações acumuladas. 

Uma pergunta se impõe: teria sido uma fatalidade esse percurso duramente conquistado em busca de um Estado organizado, de uma Ordem razoavelmente bem garantida – inclusive no plano externo –, de um Progresso insuficientemente alcançado, mas ainda assim visível, embora fragilizado por um sistema democrático carente de ajustes institucionais e de garantias reais quanto a princípios já estabelecidos há séculos em outros arranjos constitucionais? A referência mais evidente aqui é à Magna Carta, com seu princípio mais elementar possível: “ninguém está acima da lei, nem mesmo o rei”. Estaria esse princípio plenamente realizado no Brasil, mais de oitocentos anos de sua formulação original?

Mas onde ficam a igualdade e a justiça social, a distribuição de renda, a alta cultura, o bem-estar, a segurança civil? E os direitos dos indígenas, nossos ancestrais nesta terra, na qual muitos carregam consigo algo que vindo dos autóctones? E os negros, os mulatos, pardos, cafuzos, todos os mestiços, que estão sempre sendo olhados com suspeita pelos agentes da segurança, mesmo quando estes são tão negros quanto os suspeitos de um momento? Como assegurar a higidez das contas públicas, quando tantos penduricalhos se apegam aos orçamentos e concorrências públicas? O que dizer dos privilégios abusivos dos mandarins do Estado, transformados em novos aristocratas de um antigo regime desaparecido alhures?

A agenda de reformas é bastante extensa, com base em tudo aquilo que já tivemos a oportunidade de conhecer, através dos projetos e propostas apresentados pelos pioneiros da construção da nação e debatidos ao longo dos últimos dois séculos pelos intérpretes do pensamento social avançado. Os construtores da nação são em maior número do que o foi possível sintetizar neste breve ensaio interpretativo, e nele provavelmente caberiam também algumas construtoras. Caberia talvez examinar mais detidamente cada uma dessas proposta, discutir a viabilidade de algumas daquelas ideias, debater os meios de eventualmente implementar alguns dos projetos por eles formulados, para finalmente ultrapassar nossa condição de “meio-sucesso”, como definiu certa vez Roberto Campos. 

A meta é a de nos realizarmos como nação vencedora na escala civilizatória dos progressos humanos. É isso que os pioneiros focados aqui esperariam de nós, é isso que as gerações futuras gostariam de receber de nós. Se a agenda já existe, pelo menos potencialmente, caberia unir a nação num esforço conjunto – como eles pretendiam – e passar à execução das tarefas mais urgentes. Que tal começar por olhar o horizonte das possibilidades concretas subindo nos “ombros de gigantes”, como já se disse uma vez? As obras dos construtores da nação permanecem à disposição; temos de avançar na compreensão dos problemas e engendrar algumas das soluções que eles talvez já tenham proposto. Vale


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sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Mensagem de Natal de F. D. Roosevelt, 24/12/1943, EUA em meio à guerra mais terrível da história -

 

 

Meanwhile in America, CNN

Stephen Collinson and Shelby Rose

'Today, I express a certainty'

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Franklin D. Roosevelt delivers his national radio address on December 24, 1943, at his home in Hyde Park, New York.

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Two years in, the pandemic seems to have dragged on forever. And the end seems dispiritingly distant as the Omicron variant of the coronavirus rages and much of the world, outside of the richest nations, waits in vain for vaccines. 

 

The worst public health emergency in 100 years is an outlier among other crises that have stalked developed countries in modern times, including economic recessions, the HIV/AIDS pandemic, civil unrest, endemic poverty and national disasters. That’s because there’s probably not one human being who has not seen their freedom curtailed, health compromised, prospects dimmed or family ties interrupted owing to Covid-19. The closest equivalent of shared suffering may be World War II, when the dangers and deprivations of soldiers, sailors, Marines and airmen abroad were mirrored at home, with air raids in Europe and a mass civilian mobilization in the name of the war effort in the United States. Then, as now, memories of pre-crisis life were fading, and the end was over a horizon clouded by fear and tragedy. 

 

President Franklin Roosevelt set out in his Christmas address in 1943 to instill optimism and determination among his compatriots and to steel them for losses to come with a vision of life as it had once been known returning better than before. Predicting ultimate victory, he promised education, jobs and economic security to the millions of Americans fighting abroad when they came home. An early version, if you like, of President Joe Biden’s Build Back Better. Six months before the D-Day Normandy invasion, FDR drew the line under past reversals in the fight against “international gangsterism and brutal aggression in Europe and in Asia.” 

 

Recalling the previous two wartime festive seasons, he remarked, “We have said, ‘Merry Christmas—Happy New Year,’ but we have known in our hearts that the clouds which have hung over our world have prevented us from saying it with full sincerity and conviction.” From his home in Hyde Park, New York, he went on: “On Christmas Eve this year—I can say to you that at last we may look forward into the future with real, substantial confidence that, however great the cost, ‘peace on earth, good will toward men’ can be and will be realized and insured. This year I can say that. Last year I could not do more than express a hope. Today I express a certainty—though the cost may be high and the time may be long.” 

 

Roosevelt had spent a decade forging a relationship with Americans he addressed as “my friends” through his Fireside Chats on the radio. His tone was one of a benevolent but firm leader taking his fellow citizens into his confidence. On this occasion, he offered a sweeping survey of the war in the Pacific and Europe, after recently returning from strategy talks with leaders of Russia, China and Britain.  

 

Listening to FDR decades on, it’s hard to imagine an American leader ever again being able to co-opt such a sense of national unity in the face of a common crisis. The pandemic has shattered any such illusions that the national good could surmount the politics of a bitter, divided era. But his words are a reminder that however dark the present seems, hopes for the future can never be truly extinguished, and they underscore the power of strong, yet often elusive, political leadership. This is as welcome now, as America contemplates its third pandemic year, as it was after two years of an earlier national crisis, on Christmas Eve 78 years ago.