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domingo, 13 de fevereiro de 2022

Visconde do Uruguai: o "pai fundador" da diplomacia brasileira livro de Paulo Fernando Pinheiro Machado, prefácio de Paulo Roberto de Almeida

Convido os interessados em história diplomática a conhecer o livro recém publicado sobre o Paulino José Soares de Souza, pois ali se situa, verdadeiramente, o nascimento da diplomacia brasileira. Como estimulante, ofereço meu prefácio ao livro.

Paulo Roberto de Almeida


A construção da diplomacia brasileira por um de seus pais fundadores

  

Paulino José Soares de Souza não figura entre os founding fathers da nação, inclusive porque, nascido em Paris, em 1807, só tinha 15 anos quando da declaração da autonomia, em 1822. Mas, ele foi, indiscutivelmente, um dos pais construtores do Estado brasileiro e um dos fundadores de sua diplomacia, tal como ela conseguiu se libertar de duas pesadas amarras da herança internacional portuguesa e passou a cuidar, verdadeiramente, dos interesses nacionais. Este livro, do eminente colega diplomata e distinto intelectual Paulo Fernando Pinheiro Machado, consolida toda a informação disponível sobre a atuação de Paulino como chanceler (duas vezes), tanto no plano conceitual, quanto no terreno da prática, tendo ele “encerrado” dois episódios que tinham ficado em aberto desde a independência, e dando a partida a uma política externa que será continuada por seus sucessores, com destaque para os dois Rio Branco, o visconde e o barão, cuja tradição de qualidade tornou-se um patrimônio da diplomacia republicana, prolongada até praticamente o período recente.

O Brasil nascente iniciou-se na vida internacional tendo de resolver três problemas herdados da política externa de Portugal, dos quais o primeiro foi contornado logo após a Restauração dos Bourbons na França pós-napoleônica e dois outros prolongados justamente até a atuação de Paulino, no começo dos anos 1850. Caiena, a futura Guiana francesa, que tinha sido ocupada por forças enviadas pelo príncipe regente D. João logo após a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro – uma forma de vingança contra Napoleão, que tinha mandado invadir Portugal em 1807 –, foi devolvida à França pelo tratado de Utrecht de 1817. Mas o problema do tráfico escravo, nas relações com a principal potência da época, a Grã-Bretanha, e a questão da Cisplatina – o futuro Uruguai, também invadido por forças portuguesas durante a presença da Corte no Brasil –, incorporada ao território do Império, e foco do nosso primeiro conflito com as Províncias “Desunidas” do Prata, permaneceram como dois focos imediatos de tensão nas relações exteriores da nova nação independente, ao lado e além do próprio reconhecimento diplomático do novo Estado pelas demais potências e vizinhos regionais, finalmente resolvido a partir de 1825. Essas duas questões só foram resolvidas, pelo menos nos seus aspectos mais cruciais, graças à atuação de Paulino na sua segunda encarnação como ministro dos Negócios Estrangeiros, antes mesmo que ele recebesse o título de Visconde do Uruguai, que só chegou em 1854, depois que ambos já tinha encontrado soluções satisfatórias, graças ao segundo melhor chanceler do novo Império do Brasil, depois do primeiro, José Bonifácio, um dos pais fundadores, também conhecido como o “patriarca da Independência”.

Este livro tem um título apropriado, “Ideias e diplomacia”, pois estes são os dois grandes conceitos em torno dos quais Paulo Fernando Pinheiro Machado organiza os seus argumentos substantivos, mas também traz, em seu subtítulo, uma afirmação mais do que apropriada: o “nascimento da política externa brasileira”. Com efeito, até o começo das Regências, a política externa do Brasil tinha sido quase “portuguesa”, e não só pelos problemas do Prata e do tráfico, mas também em função das tribulações de D. Pedro I com os assuntos da antiga metrópole: entre estas se incluem as desventuras de D. João VI de volta ao trono de Portugal, a ambição de D. Miguel, irmão de D. Pedro, este o herdeiro legítimo da coroa na morte (altamente suspeita) do pai em 1826, sua luta deste para fazer de sua filha, Maria da Glória, a legítima sucessora como futura D. Maria II, em benefício de quem abdicou da coroa portuguesa, o que só se efetivourealmente depois da verdadeira guerra civil que teve de travar contra o absolutista D. Miguel, já após sua própria abdicação como imperador do Brasil e volta definitiva a Portugal, em 1831. 

A política externa do primeiro Reinado foi, assim, “portuguesa”, pelo menos em certa medida, por causa dessas desventuras sucessórias, mas também tolhida pelos dois outros problemas que atazanaram a pequena Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros por mais de duas décadas numa delas. O problema da Cisplatina vinha da longeva tentativa lusitana de controlar pelo menos a margem superior do Rio da Prata – aliás, “descoberto” por um navegador português antes mesmo da passagem de Fernão de Magalhães, a quem se deve o nome da futura capital, Montevidéu, “monte vídeo” –, prolongada pela fundação e diversas ocupações da Colônia do Sacramento (onde nasceu Hipólito da Costa, que também pode ser considerado um dos “pais fundadores” da nação), até esta ser “devolvida” à Espanha pelo tratado de Madri de 1750, em troca das missões jesuíticas no Rio Grande do Sul. Foi um erro da administração do império português no Brasil ter ocupado um território visivelmente castelhano, antigamente pertencente ao Vice-Reinado do Rio da Prata (como também era o caso do Paraguai e do sul da futura Bolívia) e foi um erro ainda maior da constituição do nascente Império ter incorporado à jurisdição do novo Estado uma Província Cisplatina, à qual eram reconhecidos um sistema tributário diferente do resto do Império, ademais da própria língua espanhola. Depois da guerrilha contra os seguidores de Artigas, vencidos pelos “brasileiros” – o próprio D. Pedro chegou a se deslocar ao Uruguai –, a guerra aberta travada pelos “orientales” de Lavalleja, com o apoio aberto de Buenos Aires, constituiu o primeiro percalço infeliz da política externa “brasileira”, que teve ainda de enfrentar a hostilidade da França e da própria Grã-Bretanha, a quem coube impor um armistício, já em 1828, base da independência da futura República Oriental. Mas os “estancieros” gaúchos e o próprio Brasil continuaram a se imiscuir nos assuntos internos uruguaios, o que ainda provocaria os demais conflitos no Prata, que se prolongaram até o segundo Reinado.

No outro dossiê herdado de Portugal, mas assumido plenamente pelos novos “donos” do Império, a tensão bilateral com a Grã-Bretanha por causa do tráfico escravo, os irritantes já vinham desde os tratados desiguais de 1810, que Portugal teve de contrair, continuaram no Congresso de Viena (1815), foram objeto de vários acordos bilaterais “para inglês ver”, antes e depois da independência, e continuaram envenenando as relações bilaterais durante todo o período regencial e ao início do segundo Reinado, quando o Bill Aberdeen passa a ameaçar a própria soberania do Império. Todos esses problemas são detalhadamente tratados no livro agora publicado – derivado de uma tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco em 2010 –, mas não apenas em suas démarches propriamente diplomáticas, mas sobretudo no terreno da formulação política dos princípios e valores e dos fundamentos conceituais da diplomacia brasileira. 

Não cabe neste prefácio tratar de todas as questões práticas de diplomacia de que se ocupa Paulo Fernando Pinheiro Machado, com a minúcia de quem leu todos os relatórios, as obras do próprio Paulino e a literatura secundária, com foco centrado nesse “nascimento da política externa brasileira”, como evidenciado no subtítulo da obra. Mas, o seu texto é ainda mais precioso do ponto de vista intelectual, uma vez que ele se lança numa história das ideias, tanto as mais gerais – como as doutrinas políticas em voga em meados do século XIX –, como, principalmente, as do próprio Paulino, a quem ele trata pelo seu título nobiliárquico antes mesmo que ele adquirisse a distinção (Visconde “com grandeza”, como lhe atribuiu o imperador). Paulino não deixou memórias sequer um relato de sua imensa atividade à frente das diversas atribuições, diplomáticas ou outras, que recebeu desde a “correção” do Regresso, ainda no final das Regências, e durante o “tempo saquarema”, ao início do segundo Reinado. Mas ele deixou duas obras de “direito administrativo”, que são verdadeiros manuais de organização do Estado imperial, num momento em que este carecia de códigos, regulamentos e normas que pudessem guiar os dirigentes encarregados da gestão dos negócios internos e externos; Paulino foi um dos poucos a fazê-lo, com base numa leitura atenta da boa doutrina e dos estatutos em vigor nos principais países que moldavam o sistema internacional em sua época, tanto da tradição continental, quanto no âmbito anglo-saxão. 

Mais importante ainda, do ponto de vista da organização do corpo diplomático brasileiro e do próprio funcionamento da diplomacia do Império, que, naquela época, estava compartimentado em pelo menos três “carreiras” (o termo não se aplica inteiramente) distintas e separadas: os diplomatas propriamente ditos, que passavam a vida circulando entre os postos no exterior, as legações do Império na Europa, nas Américas e algumas na Ásia, os poucos funcionários da Secretaria de Estado no Rio de Janeiro, e os encarregados dos serviços consulares, geralmente dotados de menor consideração hierárquica e política, pois que se ocupando daqueles assuntos que eram desdenhosamente chamados de “secos e molhados”, ou seja, estampilhas cartoriais, vistos e rudimentos da promoção comercial. Foi Paulino que reformou o primeiro Regulamento da Secretaria de Estado – dado por Aureliano de Souza, em 1842 – e que produziu, de sua própria mão, uma sucessão de documentos que fundamentaram, organicamente, o funcionamento do antigo Ministério dos Negócios Estrangeiros, de uma forma que nunca tinha sido feita até então. A importância dessa obra administrativa, mais do que relevante, efetuada em sua segunda gestão como chanceler, merece que esses documentos de organização sejam mencionados por inteiro (e aqui eu recorro à excelente pesquisa feita pelo nosso colega Flávio Mendes de Oliveira Castro, na sua obra Itamaraty: dois séculos de história): 

1) a primeira organização do corpo diplomático brasileiro (Lei n. 614, de 22/08/1851);

2) o segundo regimento do corpo diplomático (Decreto n. 940, de 20/03/1852);

3) o decreto que fixou o número e as categorias das missões diplomáticas (1852);

4) o decreto que determinou uma inédita tabela de remuneração no exterior (1852).

 

Como explicitou Flávio Castro, esses quatro diplomas legais “vieram consolidar, em textos próprios, uma série de medidas administrativas, de disposições orgânicas e funcionais do Serviço Diplomático já capituladas, esparsamente, em administrações anteriores” (op. cit., Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, vol. I, p. 93). Mas Paulino fez ainda muito mais: ele se preocupou com a qualidade do capital humano com o qual deveria passar a trabalhar, doravante, a diplomacia brasileira. Como ainda relata Flávio Castro: 

Anexas ao Regulamento Paulino de Souza vieram à luz as

Instruções para o exame dos candidatos ao lugar de Adido de Legação, às quais se refere o Regulamento n. 940, de 20 de março de 1852

que acreditamos ser o primeiro programa oficial exigido para o ingresso na carreira diplomática. A Comissão Examinadora seria composta de três membros, presidida pelo Ministro de Estado. O exame deveria ser prestado publicamente, em sala da Secretaria de Estado, com a duração de duas horas, sendo 20 minutos dedicados a cada uma das seguintes matérias: 

1º. – Conhecimento das línguas modernas, especialmente da inglesa e francesa, devendo o candidato traduzir, escrever e falar esta última.

2º. – História Geral e Geografia Política, História Nacional, e notícia dos Tratados feitos entre o Brasil e as Potências estrangeiras.

3º. – Princípios gerais do Direito das Gentes, e do Direito Público nacional e das principais nações estrangeiras. 

4º. – Princípios gerais de economia política, e do sistema comercial dos principais Estados, e da produção, indústria, importação e exportação do Brasil.

5º. – A parte do Direito Civil relativa às pessoas e princípios fundamentais em matéria de sucessão.

6º. – Estilo diplomático, redação de despachos, notas, relatórios, etc.

O escalonamento da carreira foi assegurado pelo artigo 4º do Regulamento Paulino de Souza, que determinava o processo de ascensão ao cume da hierarquia. O funcionário progrediria ao cargo imediatamente superior, não dando mais margem às interpolações de adventícios. (...)

Os adventícios no Serviço Diplomático de então eram os Embaixadores de fora da carreira..., Chefes e Empregados de Missões Especiais, que poderiam ser também estranhos à carreira. Tais funcionários, se continuassem servindo ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, não teriam os benefícios e vantagens da estabilidade remunerada ou da aposentadoria...

No Regulamento Paulino de Souza não foram estabelecidas normas precisas sobre critérios a seguir para promoções. Há, porém, a referência de que o serviço em Legações de países americanos ou o exercício das funções de Secretário ou de Adido na Legação de Londres, além de outros, seriam motivos de preferências nas promoções... Segundo instruções especiais..., haveria uma revisão da lista de Adidos de 1ª. e 2ª. Classes, ‘a fim de serem eliminados aqueles que houverem dado provas de pouca capacidade, ou tiverem procedimento menos regular’. (Castro, 2009, p. 98-100; ênfases no original)

 

As reformas introduzidas por Paulino constituíram, sem dúvida alguma, a mais importante reforma estrutural jamais efetuada na carreira e no serviço diplomático até então, sendo que um novo Regulamento de organização só seria introduzido em 1859 pelo ministro José Maria da Silva Paranhos. Mas o Visconde do Rio Branco o fez sem tocar, por exemplo, nos requerimentos de seleção de adidos de 1ª. classe, porta obrigatória de ingresso na carreira, o que confirma que Paulino estabeleceu um padrão de qualidade no recrutamento dos servidores do quadro diplomático que seria invariavelmente seguindo, com as pequenas adaptações pertinentes, até os nossos dias. De fato, a aura de excelência do Itamaraty atual deita raízes nas reformas e nos estatutos concebidos, escritos e implementados por Paulino, antes até que ele recebesse a honra de ser elevado ao título de Visconde do Uruguai. 

Se examinarmos, por exemplo, a lista acima das matérias exigidas para a admissão de novos servidores constata-se que esse imenso conhecimento das mais diversas disciplinas continuou a ser exigido dos candidatos à carreira nos 170 anos seguintes, depois que Paulino traçou, pela primeira vez, essa amplitude de domínio de matérias afetas ao trabalho diplomático (e consular também, com variações apropriadas) que o aspirante precisaria ter antes de passar a integrar o reduzido, mas capacitado corpo diplomático brasileiro, uma obra magnífica de Paulino. Com efeito, no seu decreto 941, de 1852, ele também fixou o número e a categoria dos funcionários que caberia manter nas 21 missões diplomáticas que o Império passou a manter no exterior, integradas por 15 a 19 adidos, 7 secretários, 12 encarregados de negócios – no Paraguai, no Chile, conjuntamente na Venezuela, Nova Granada (Colômbia) e Equador, e em nove monarquias europeias –, 2 ministros residentes – na Bolívia e na Prússia e cidades hanseáticas – e 7 Enviados Extraordinários e Ministros Plenipotenciários (que são chamados atualmente de embaixadores), estes nas Américas (Estados Unidos, Confederação Argentina, Uruguai e Peru) e na Europa (Grã-Bretanha, França e Portugal). 

Em outros termos, Paulino conduziu, com maestria, não só a política externa do Império, como demonstra com total domínio de cada um dos assuntos substantivos Paulo Fernando Pinheiro Machado, como o estadista do Regresso também soube organizar, nos mínimos detalhes, toda a organização, o funcionamento e a seleção do pessoal diplomático. Ele estabeleceu um padrão de qualidade que, se foi modificado ao sabor da evolução natural da política regional e internacional do Brasil, jamais deixou de se pautar pelo espírito das normas e requerimentos exigentes que Paulino traçou em matéria de desempenho funcional e de rigor intelectual dos diplomatas recrutados para serviço exterior do país. 

Ao lado de outros grandes nomes vindos da Regência, liberais ou conservadores, como Bernardo de Vasconcelos, Honório Hermeto, Eusébio de Queirós Mattoso, Alves Branco e Paranhos, o Visconde do Uruguai foi um dos grandes estadistas e agentes políticos do Império, atuando tanto na esfera política, constitucional, administrativa, quando, principalmente, no nascimento e na consolidação de uma política externa propriamente brasileira, e não mais “portuguesa”, como ele ainda encontrou ao assumir pela primeira vez a chancelaria (em 1843). De 1849 a 1853, ele foi o mestre absoluto do todos os atos na frente externa, mesmo numa agenda tão pouco favorável à imagem do Brasil no exterior, como era a infeliz defesa do tráfico. Paranhos, que o seguiu mais adiante, também teve de se ocupar do dossiê da escravidão, o que ele fez pela Lei do Ventre Livre, em 1871. 

Esta obra primorosa – inclusive e principalmente pelo seu lado de “história das ideias” – rende homenagem à figura humana, ao homem político, ao pensador insigne e ao estadista excepcional que foi o Visconde do Uruguai, um formulador consistente das bases institucionais de funcionamento do Estado imperial, um leitor de Burke, de Guizot, de Tocqueville, mas que sabia adaptar doutrinas e regulamentos estrangeiros às condições materiais e sociais de uma nação ainda em formação como era o Brasil em meados do século XIX. Ele debateu com outros tribunos do Império, como Tavares Bastos ou Zacarias de Góis e Vasconcelos, sobre os temas mais candentes de nossa organização política, defendendo o modelo de Estado que ele julgava ser o mais conforme às possibilidades concretas de um país ainda atrasado em quase todos os quesitos civilizatórios, mas que ele pretendia ter uma estrutura administrativa e um corpo de funcionários similares, se não semelhantes, aos dos Estados mais avançados da Europa. 

Como escreveu sobre ele uma das principais estudiosas de sua obra e pensamento: 

No Brasil o mundo da política era, segundo Uruguai, desvirtuado e perigoso, sujeito às paixões e aos interesses mesquinhos nascidos nas localidades – onde faltavam homens talhados para agir visando ao interesse público. O maior dique contra esse mundo era a administração. Em toda a obra do visconde transparece a valorização da administração, terreno da neutralidade e da eficácia, em contraposição à esfera da política, presa fácil das facções. (Gabriela Nunes Ferreira, “Visconde do Uruguai: teoria e prática do Estado brasileiro”, in: André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz (orgs.), Um enigma chamado Brasil: 20 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 18-31, cf. p. 26)

 

Senador do Império, ministro de Estado por duas vezes na Justiça e por três vezes na pasta dos Negócios Estrangeiros, embaixador em missão especial na França, para tratar do caso da Guiana – que só seria resolvido na República, pelo barão do Rio Branco –, Paulino José Soares de Souza não deixou um registro circunstanciado de seu imenso trabalho de gestor, de político, de chefe fundador de uma diplomacia verdadeiramente brasileira, mas ofereceu sua contribuição de estadista como autor de duas obras de direito administrativo. Seu neto, José Antonio Soares de Souza, deixou sobre ele um relato encomiástico, mas honesto, na obra A vida do visconde do Uruguai (1944), com ampla informação sobre cada uma de suas múltiplas atividades nos diversos cargos em que se desempenhou sempre de forma brilhante. Outros estudiosos importantes, como José Murilo de Carvalho, que organizou a reedição de suas principais obras (2002), ou Ilmar Mattos (1999), examinaram o seu trabalho como construtor do Estado imperial. Esta obra, de meu colega Paulo Fernando Pinheiro Machado, completa agora, pelo estudo de suas ideias e pelo acompanhamento de sua ação na diplomacia, o panorama virtualmente completo desse grande formador do Brasil na primeira fase de sua existência como nação independente.  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata e professor

Brasília, dezembro de 2021

 

Minha homenagem à Semana de Arte Moderna: O “modernismo” brasileiro chegando aos 100 anos - Paulo Roberto de Almeida (Estado da Arte)

 Um texto e dois anos atrás, mas ainda válido: 

3774. “O ‘modernismo’ brasileiro aos 100 anos”, Brasília, 20 outubro 2020, 5 p. Notas para um futuro trabalho reflexivo. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/10/o-modernismo-brasileiro-aos-100-anos.html). Revisto e ampliado em 11/11/2020. Publicado no Estado da Arte (17/11/2020, link: https://estadodaarte.estadao.com.br/modernismo-100-anos-pra/); disponível no blog Diplomatizzando (17/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/de-volta-para-o-futuro-nossas.html). Relação de Publicados n. 1473. 

Transcrevo novamente aqui: 


O “modernismo” brasileiro chegando aos 100 anos

por Paulo Roberto de Almeida……

Ideias movem o mundo?

Certamente! O historiador Felipe Fernandez-Armesto dedicou um livro inteiro — Idéias que mudaram o mundo (São Paulo: Arx, 2004) — às grandes ideias que mudaram o mundo, desde a mais remota Antiguidade até a mais recente modernidade.

Uma delas foi o “modernismo”, movimento cultural e artístico que emergiu lentamente a partir da belle époque, mas que se consolidou no imediato seguimento da Grande Guerra, a partir das novas formas de organização econômica e política que foram sendo moldadas com a industrialização e a urbanização das sociedades ocidentais. A Grande Guerra foi o evento cataclísmico e seminal que mudou irreversivelmente a face do mundo, mas que só foi chamada de Primeira retrospectivamente, depois que os desastres incomensuravelmente maiores do grande conflito de 1939-45 se acumularam justamente por causa das heranças não resolvidas daquele primeiro grande conflito global.

Modernismo foi também a designação que se convencionou atribuir ao movimento de ideias que realmente “movimentou” o Brasil desde essa época, tendo sido simbolizado, e consagrado, na Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, o ano em que o Brasil estava se preparando para comemorar, alguns meses à frente o primeiro centenário da independência (o que realmente foi feito, por meio de uma exposição internacional). Esse “modernismo” brasileiro tomou impulso a partir de algumas ideias que já vinham sendo expostas desde mais de uma década antes pelo “futurismo” de Marinetti, um conjunto perfeitamente contraditório de ideias, pretensamente de avant-garde, que começou cultuando o industrialismo, a rapidez e a automação da segunda revolução industrial, mas que também se posicionou a favor das “virtudes eugênicas” das guerras. O manifesto de Marinetti, lançado em fevereiro de 1909, proclamava de modo provocador:

Non v’è più bellezza se non nella lotta . . . Noi vogliamo glorificare la guerra — sola igiene del mondo — il militarismo, il patriottismo, il gesto distruttore dei libertari, le belle idee per cui si muore… (Filippo Marinetti: Manifesto del Futurismo)………………………..

‘Vive la France’, Filippo Marinetti, 1914–15 (Reprodução: MoMA)

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Se essa era a intenção, ele foi amplamente contemplado pela carnificina dos campos de batalha do norte da França, nos quais milhares de soldados morriam inutilmente em busca da conquista de algumas polegadas de terreno, se tanto. Várias dessas ideias acabaram desembocando no militarismo e no fascismo de Mussolini, com todos os horrores que daí decorreram para a Itália burguesa e parlamentarista que se tinha dificilmente construída a partir do “transformismo” dos líderes políticos da unificação de algumas décadas antes. Olhando da perspectiva dos horrores ainda maiores da Segunda Guerra — que vitimou o dobro dos 20 milhões de mortos da Primeira —, o fascismo de Mussolini constituiu uma espécie de bolchevismo elitista, mas que também se refletiria, poucos anos mais tarde, no nazi-fascismo de Hitler, que foi o suprassumo dos instintos mais primitivos de destruição de tudo o que não se enquadrasse nos moldes eugênicos da raça pura.

Cabe não esquecer que o eugenismo e a busca insana da raça pura do nazi-fascismo tomaram impulso em tendências que já estavam em evidência no pensamento dos racistas europeus do final do século XIX e início do XX, mas que assumiram importância igualmente nos Estados Unidos desde o pós-guerra civil, quando o racismo e o Apartheid segregacionista em prática nos estados do Sul (mas igualmente partilhado ao Norte) acabaram sendo confirmados pela Suprema Corte e “federalizados” pelo presidente Woodrow Wilson, considerado um idealista internacionalista, mas que que era também um notório racista da Virgínia. Tais concepções racistas foram, durante largo período da transição entre os dois séculos, consideradas perfeitamente adequadas ao conceito de superioridade ariana de Rosenberg, que por sua vez foi o influenciador de Hitler, nas suas “ reflexões de cadeia” que resultaram no Mein Kampf. O tema das ideologias racistas nos Estados Unidos já tinha sido abordado, muitos anos atrás, no livro do paleontologista Stephen Jay Gould, The Mismeasure of Man (New York: Norton, 1981), mas foi abordado de forma mais incisiva na obra mais recente de James Q. Whitman: Hitler’s American Model: The United States and the Making of the Nazi Race Law (Princeton: Princeton University Press, 2017).

Muitas dessas ideias, por sinal, se originaram em reflexões preliminares formuladas no Brasil por Gobineau, um “inimigo cordial do Brasil” segundo George Raeders (Le comte de Gobineau au Brésil, 1934). Este ministro de Napoleão III no Rio de Janeiro, amigo de Pedro II, tinha verdadeiro horror à degenerescência da raça exemplificada pelos mestiços brasileiros, que levariam o Brasil a ser um completo desastre no contexto das nações civilizadas (todas elas supostamente de loiros dolicocéfalos). Tais ideias, numa época de darwinismo social e de teorias eugênicas, acabaram desembocando nas teorias do “branqueamento da raça”, que tiveram muito sucesso no Brasil, dos anos 1870 até praticamente o final da Segunda Guerra, tal como analisado por Thomas Skidmore em Preto no Branco (Black into White: race and nationality in Brazilian Thought, 1974).

Esse encadeamento de ideias e de formulações “civilizatórias”, que partem de pressupostos ingênuos, aparentemente tendentes a “melhorar” a humanidade e as sociedades, geralmente redundam em verdadeiros desastres para povos antigos e civilizações inteiras. Os liberais ingleses do século XIX, por exemplo, não acreditavam que a democracia fosse “fitted for touaregs and bedouins”, justificando-se portanto o grande empreendimento imperialista e colonizador, à la Kipling, que levou o Reino Unido da era vitoriana a adquirir toda a Índia da Companhia das Índias Orientais britânica, e a conquistar metade da África, do Cairo ao Cabo.

Pouco depois, nesse mesmo impulso, o vigoroso novo presidente americano Theodore Roosevelt, proclamando o “Corolário Roosevelt” à doutrina Monroe, recomendava que se falasse macio, mas que se carregasse um “grande porrete”, supostamente para enquadrar povos recalcitrantes que ainda não estavam à altura das maneiras civilizadas dos anglo-saxões (esses “lazy” latinos e caribenhos, por exemplo).

Cabe não esquecer que mesmo um grande conhecedor do imperialismo britânico, como era o Barão do Rio Branco, não demorou muito para reconhecer a “independência” do Panamá, uma “costela” arrancada da Colômbia pelos novos imperialistas americanos, com vistas a apressar a construção do novo canal interoceânico, um pouco atrasada desde o desastre fraudulento da nova aventura de Lesseps, o construtor de Suez, que por sua vez havia entusiasmado Verdi na produção de Aída. As nações mais avançadas, e modernas, podem exibir os comportamentos mais bárbaros, em nome da disseminação do progresso e da defesa da civilização, nos recantos mais recuados do planeta. Ideias podem ser perfeitamente contraditórias e levar a resultados surpreendentes na segunda ou terceira geração desde a sua origem, e não apenas em nações aparentemente pouco propensas ao exercício da soberania.

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“British India”, 1909

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O grande movimento romântico alemão, que desempenhou um papel importante na conformação da luta pela unificação da Vaterland, conduzida por essa entidade mítica conhecida como das Volk, acabaria redundando na “metapolítica” dos wagnerianos que, fortalecida na música patriótica do grande mestre, e nos seus sentimentos perfeitamente antissemitas, se enquadraria, por sua vez, no caudal racista e supremacista do nazismo. O itinerário histórico dessa ideia apresentada por Peter Viereck em sua tese de doutoramento de 1941, transformada em livro sob o título de Metapolitics: from Wagner and the German Romantics to Hitler (edição ampliada: 2004). O termo metapolítica, tal como criado e usado pelos círculos wagnerianos que seriam mais tarde recuperados pelos seguidores de Hitler, denotava uma ideologia baseada na pseudociência da raça, na devoção ao Fuehrer e na força inconsciente do povo, entre vários outros elementos, inclusive o antissemitismo, muito disseminado na Alemanha desde Lutero até os românticos do século XIX.

Por acaso, o mesmo termo “metapolítica” foi usado para designar um blog de combates políticos numa recente campanha presidencial, recheado de diversas outras inovações conceituais, como, por exemplo, a hipótese (ou seria uma “invenção) do nazismo como sendo um movimento “de esquerda”, o ataque furioso ao “globalismo”, essa trouvaille do “comunavirus” e outras bizarrices. Esses e outros exemplos de um tipo de pensamento, que possui incômodas relações com uma extrema direita bem mais violenta e exterminadora, podem ser encontrados aquiMais, passons

Vamos voltar ao nosso modernismo de 100 anos atrás. Ele parecia prometer um futuro de vanguarda, mas por razões desconhecidas ele não parece ter refletido os horrores que tinham sido registrados poucos anos antes pela carnificina da Grande Guerra, que vitimou entre 15 e 20 milhões de vítimas, talvez pelo fato de que o Brasil praticamente não participou do teatro de guerra europeu. Quando os primeiros contingentes se aproximavam do velho continente o armistício de novembro de 1918 já estava sendo assinado. Mas o Brasil foi, sim, atingido pela pandemia universal da “gripe espanhola”, na verdade americana, que causou a morte de 50 a 100 milhões de pessoas, algumas dezenas de milhares no Brasil.

O modernismo no Brasil foi muito mais risonho e franco do que o furor belicista, militarista, expansionista, do pré-fascista Marinetti, a despeito de algumas críticas acerbas de um outro modernista instintivo como foi Monteiro Lobato, considerado por muitos, mas equivocadamente, como um “inimigo” da Semana de Arte Moderna.

Nosso modernismo não foi só antropofagia cultural, aquela herança de canibais autóctones deglutindo o infeliz bispo Sardinha, mas também tentando romper os cânones dos mais contemporâneos europeus. Ele também resultou na consciência do nosso atraso, agitou os jovens tenentes na luta contra a corrupção política e congregou os primeiros reformistas consequentes a se unirem em associações pela melhoria da educação de massas que, dez anos mais tarde, resultou no Manifesto dos Pioneiros da Educação, a primeira grande revolução das elites do Brasil pós-Abolição (que, aliás, permaneceu inacabada).

A Semana de Arte Moderna foi uma espécie de frenesi transformador, que agitou momentaneamente os corações e mentes da nossa République des Lettres, mas que depois hibernou na mesmice de Artur Bernardes e de Washington Luís, exasperando os jovens paulistas afoitos do novo partido “democrata”. Tudo bem: acabou confluindo para a Aliança Liberal que resolveu passar às vias de fato para liquidar de vez com a política “carcomida” da primeira República, nossa esperança jacobina, mas frustrada, de Revolução Burguesa que se transformou rapidamente em Ancien Régime.

Como se vê mais uma vez, ideias e movimentos são surpreendentes e contraditórios, podendo conduzir a resultados inesperados. Que algumas ideias estejam ou não em seu lugar, elas podem chegar ao Brasil com certo atraso, ou então sofrem de inadequação funcional. No ano do primeiro centenário da independência, a “república das letras e artes” queria fazer do Brasil um país moderno, embora sem dispor do apoio necessário entre os dirigentes políticos e, mais importante, dos donos do capital (rural e urbano, agrário e industrial), para levar a cabo aquele impulso decisivo para um futuro efetivamente moderno.

A Semana de Arte Moderna causou aquele “agito” temporário, coloriu telas provocadoras, inovou na composição visual e gráfica da nova literatura, na prosa e na poesia, mas parece ter feito “chabu” em pouco tempo mais. Tanto é assim que um dos seus patrocinadores mais exaltados, Mario de Andrade, reconhecia, alguns anos depois, no provocador poema “O Poeta Come Amendoim”, e de forma algo frustrada, que “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”.

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Mario de Andrade

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A fatalidade, talvez não da forma esperada, acabou atingindo o Brasil alguns anos depois, sob as patas dos “cavalos castilhistas”, importados do Rio Grande do Sul e apeados no Obelisco do Rio de Janeiro”. O castilhismo é aquele movimento supostamente positivista do Homem que Inventou a Ditadura no Brasil (Decio Freitas, 1998), que fez com que um de seus discípulos, o timorato, mas maquiavélico Vargas, desse início a um “breve período de 15 anos”, que realmente transformou o Brasil (para o bem e para o mal). Os militares que se acomodaram no poder em 1964, para um “breve período de 21 anos”, todos eles se formaram nas academias militares da “era Vargas”, com algumas concepções “prussianas” de “ciência bélica” e várias outras concepções quase “nazistas” de “ciência econômica” (autarquia, nacionalização vertical) e até algumas pontas de “stalinismo industrial” (mas para os ricos tão somente).

O Brasil, como se vê, sempre foi fértil de ideias, e continua sendo, ainda que com aplicações nem sempre exitosas. Temos a capacidade de importas as ideias mais generosas, e as mais malucas, misturar tudo no liquidificador da academia e da política, e depois servir para o povo, como grandes símbolos da renovação do país. O humorista Millôr Fernandes, conhecido por muitas outras frases ferinas, dizia que quando as ideias ficavam muito velhas em outros lugares, elas se mudavam para o Brasil, o que é certamente uma injustiça (com as ideias, pois eles estão permanentemente em viagem).

A Semana de Arte Moderna de 1922 foi assim como uma Nova República avant la lettre, um grande impulso renovador que acaba sendo absorvido pelo realismo (e esperteza) da velha política corruptora (mas travestida de moderninha). Ela talvez tenha sido novamente ensaiada no Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, em 1945, patrocinado pelo mesmo Mário de Andrade, no mesmo Teatro Municipal de São Paulo; seus resultados podem ter sido igualmente decepcionantes, uma vez que a República de 1946 oscilou continuamente entre o conservadorismo dos coronéis do PSD e o progressismo sindicalista (mas oficial) do PTB, ambos espicaçados pelo “modernismo golpista” da UDN. O mesmo ocorreu, sob outra roupagem, na Nova República de 1985, cujo entusiasmo renovador da “Constituição cidadã” foi oportunamente recuperada pela mão de ferro conservadora do Centrão, uma inovação na época, mas que se repetiu indefinidamente pelas três décadas seguintes. Foi assim que caímos no novo coronelismo eletrônico de um “curral eleitoral” perfeitamente retrógrado (porque populista e assistencialista), mas que está sempre sendo renovado sob rótulos pouco originais, mas atrativos (como, por exemplo, “Renda Brasil”, “Renda Cidadã”, whatever…).

Cem anos depois, o que restou da Semana de Arte Moderna, do modernismo brasileiro, da angústia então ressentida pelos modernistas quanto à necessidade de “jogar” definitivamente o país no futuro?

Por acaso, a consciência de que deveríamos estar comemorando o bicentenário da independência com um pouco mais de engajamento nas grandes reformas estruturais, como jamais o fizemos, mais de 130 anos depois da Abolição? Talvez engajando, finalmente, a revolução educacional prometida pelos “pioneiros” dos anos 1930, tentativamente retomada por alguns dos mesmos batalhadores no início dos anos 1960 — entre eles Anísio Teixeira e, sobretudo, Fernando Azevedo, mais Florestan Fernandes e outros —, mas frustrada de novo pelo movimento militar de abril de 1964, que cuidou bem mais da superestrutura da formação do que da educação de base, como deveria ser a prioridade? A “substituição de importação” operada no ensino superior, com a pós-graduação finalmente consolidada no país, conseguiu romper as deficiências de formação de professores de primeiro e segundo grau?

Todos os impulsos de crescimento levados a efeito desde um século atrás — na era Vargas, no otimismo dos “50 anos em 5” dos anos JK, no Brasil Grande Potência da era militar, no brevíssimo interlúdio modernizante dos regimes “liberais” de Collor e FHC, na retomada do crescimento empurrada pela demanda chinesa na primeira fase dos mandatos petistas — não lograram, ao fim e ao cabo, retirar o Brasil das misérias da pobreza, da concentração de renda, do racismo sub-reptício, da injustiça social, da má educação de massa, que sempre foram os objetivos mais ou menos explícitos de nossos “modernistas” de todos os tempos e matizes, de José Bonifácio a Hipólito, passando por Mauá e Nabuco, continuando com Rui Barbosa, e depois com Lobato, Roberto Simonsen, Roberto Campos, Celso Furtado e vários outros. Todos eles clamaram por reformas, e todos se chocaram contra o muro do imobilismo. Enquanto essa pequena tribo de sonhadores lutava pelo desenvolvimento do país, o que faziam suas classes dominantes e suas elites dirigentes? Certamente os aplaudiam, mas não se decidiam pelo difícil caminho das reformas, talvez com medo daquele sentimento de que uma vez empreendido esse itinerário, as “coisas” — isto é, os sindicatos anarquistas, o partido comunista, os inimigos da lei e da ordem — se precipitassem fora do seu controle.

Esta talvez seja uma das poucas certezas da história política e social do Brasil: entre o tráfico e trabalhadores livres, as elites ficaram com o primeiro, enquanto foi possível; entre a abolição do regime escravocrata e o livre acesso de imigrantes a terras do Estado, elas se mantiveram o mais possível no nefando sistema. Não estranha, assim que o sentimento de angustiante e prematuro “reformismo” da pequena tribo de “modernistas” avant la lettre não fosse unanimemente partilhado por todas as elites brasileiras, os grupos economicamente dominantes e os estratos politicamente dirigentes.

Ele não o foi desde a independência, quando Hipólito da Costa e José Bonifácio, nossos primeiros (dentre os pouquíssimos) estadistas, preconizavam a extinção imediata do tráfico negreiro e a eliminação gradual da escravidão africana. Mas essa história começou bem antes, continuou no Estado independente e se prolongou na República. O reformismo foi derrotado em 1789-92, na revolta dos alfaiates uma década depois, na segunda tentativa independentista em 1817, no próprio movimento “autonomista com continuidade”, em 1822-23, novamente em 1824, numa versão federalista e republicana, outra vez em 1842, em torno de alguns princípios liberais, e em várias outras oportunidades, inclusive em 1888, em 1889 e, finalmente, em 1922, mas apenas como ensaio de preparação. A Semana elitista foi seguida pelo início do movimento dos tenentes, na praia de Copacabana, prosseguiu nas revoltas de 1924 em diante, até culminar na “revolução burguesa” de 1930.

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José Bonifácio

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O Brasil oferece fartos exemplos de eventos, processos e movimentos que se enquadrariam perfeitamente nesses exercícios historiográficos do tipo do What If? (o que teria acontecido se…) Mas, curiosamente, a maior parte, ou a quase totalidade, é constituída por agitações elitistas, não exatamente movimentos de massa. Nem uma verdadeira revolução burguesa conseguimos ter, a despeito do esforço de Florestan Fernandes em tentar provar que ela só poderia assumir uma feição autocrática e subordinada ao latifúndio e ao imperialismo.

Antonio Paim, um dos nossos grandes pensadores, que começou na vida como marxista e que acabou se convertendo a um liberalismo lúcido (e, portanto, saudavelmente cético), já tentou um exercício passavelmente similar no seu livro sobre alguns do momentos decisivos na história do Brasil, mas não tenho certeza de que os momentos tenham sido aqueles ou de que as “escolhas” se apresentassem da maneira como ele o fez nessa obra e numa outra imediatamente seguinte, sobre as dificuldades de se reformar o Brasil (Momentos Decisivos da História do Brasil, 2000; O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação, 2000).

Resumindo: cem anos depois da Semana “fatídica” de 1922, continuamos com o mesmo sentimento que tiveram os dois grandes estadistas de um século antes, que é o de oportunidades perdidas. Talvez será o mesmo sentimento a aflorar dentro em pouco, no bicentenário da independência: os “modernistas” sempre sonham um pouco mais alto do que a realidade das classes dominantes e das elites dirigentes o permite: as grandes reformas modernizantes tardam a se concretizar.

Esse sentimento deve ser similar ao dos abolicionistas frustrados de 132 anos atrás, ao dos jacobinos republicanos decepcionados com a primeira década de desastres a partir da inauguração do novo regime, ao dos idealistas do Diretas Já e das promessas não realizadas da Nova República, estes igualmente descontentes e provavelmente deprimidos pela voragem inflacionária e pelas revelações da gigantesca corrupção política que tivemos na maior parte do período recente. Quem sabe são os mesmos sentimentos que hoje continuam a angustiar os diversos movimentos que lutaram pelo mais recente impeachment — já tivemos vários, alguns disfarçados de outra coisa — e que mobilizaram muitos que foram às ruas por uma “nova política”, aquela que já deveria ter sido “ética”, segundo nos prometiam, mas que não foi, nem antes, nem depois, e muito menos agora.

Esse sentimento é uma mistura de déjà vu e de desesperança, quase uma desistência: o que exatamente teremos a comemorar em 2022? Pouco, muito pouco, quase nada. Será que vale a pena fazer uma Comissão Nacional para ouvir os mesmos discursos do poder?

Em 1922 havia certa sensação de que algo poderia ser feito, a despeito das frustrações com as primeiras três décadas da República: valia a pena tentar sermos “modernos”; era o que o mundo também tentava, apesar do terrível legado da Grande Guerra, com a Liga das Nações, o pacto de 1928 para evitar novas guerras, todas as conferências econômicas para tentar voltar ao padrão ouro da Belle Époque. Tudo se esvaneceu a partir de 1929, e sobretudo a partir de 1931, e só saímos do túnel quinze anos depois.

O que teremos em 2022, 37 anos após a inauguração de uma “Nova República” que já tinha envelhecido menos de dez anos depois de seu início? Existe algo a ser comemorado num bicentenário de retrocessos, de ignorância e de obscurantismo? De elogios a torturadores e de destruição do patrimônio natural? De subserviência a uma potência estrangeira, ou a um dirigente ainda mais ignaro e preconceituoso do que os velhacos arrogantes do passado?

Em 2020, ainda não temos respostas a essas perguntas, a essas dúvidas.

Por enquanto, só nos cabe retirar o ponto de interrogação do título de uma bela, mas triste conferência feita pelo embaixador Rubens Ricupero na Academia Brasileira de Letras: “Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da Independência” (29/08/2019; disponível em formato de vídeo aqui). Foi uma grande e profunda reflexão sobre o modernismo que poderíamos ter tido, mas que não conseguimos mais ter, desde 1922, ou talvez desde o primeiro 22. No terceiro 22 será uma nova tentativa de avançar, ou teremos de nos conformar com mais um terrível retrocesso, antes de uma possível, mas incerta, “volta para o futuro”? Temos menos de dois anos para inverter essa nova marcha da insensatez.

Conseguiremos?……………….

A lua de Tarsila do Amaral

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Paulo R. de Almeida

Paulo R. de Almeida é Doutor em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984), Mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), Licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). É diplomata de carreira, por concurso direto, desde 1977; serviu em diversos postos no exterior e exerceu funções na Secretaria de Estado, geralmente nas áreas de comércio, integração, finanças e investimentos. Foi professor de Sociologia Política no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (1986-87) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

Sobre os mitos que mobilizam a corporação diplomática - Paulo Roberto de Almeida

Sobre os mitos que mobilizam a corporação diplomática

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

 

 

Toda sociedade tem os seus mitos fundadores, verdadeiros ou falsos, não importa, eles mobilizam a sociedade num conjunto de crenças que se incorporam aos demais elementos que compõem a identidade nacional: língua, religião, cultura, história comum, território identificado ao povo que o habita, etc.

Corporações dentro de uma sociedade também podem ter os seus mitos fundadores, e as mais importantes são as corporações de Estado, pois este é o núcleo organizador da vida em sociedade e o agente comum para o relacionamento com outras sociedades, nações, Estados. 

Dentre as mais importantes corporações de Estado estão os soldados, garantidores da ordem interna e da defesa externa, e os diplomatas, representantes da nação e do Estado na interface com o vasto mundo que cerca toda e qualquer sociedade.

O Brasil, manifestamente, não é um império, ou seja, um agregado de nações e sociedades submetidas a uma ordem comum. O Brasil é um Estado-nação como são dezenas, duas centenas de outros Estados nacionais que foram se constituindo, nascendo e aparecendo no contexto mundial nos últimos quatro séculos, e que hoje constitui a forma predominante da comunidade internacional organizada em torno de certos princípios comuns, que são os da Carta da ONU. 

Isso não impede a existência continuada, mesmo informal, de impérios, de fato ou de direito, sabendo que os impérios foram uma forma comum de organização, até predominante, das muitas sociedades que existiram e ainda existem ao longo do tempo. Mas hoje o que temos são Estados-nacionais convivendo pacificamente entre si ou de forma mais conflituosa, o que de certa forma reflete o caráter imperial de alguns deles.

 

Um parêntese sobre a corporação militar

Não vou me ocupar disso agora, mas tentar voltar aos mitos fundadores de nossas corporações de Estado. Da corporação militar não preciso falar muito, senão de dois mitos fundadores que estão no âmago de seu papel legitimador na história nacional. Primeiro, a tal ideia de que as FFAA, o Exército em especial, se forjou nas lutas contra os invasores holandeses no século XVII, em especial na batalha de Guararapes, onde estariam as três principais vertentes do povo brasileiro: o colonizador branco português, os indígenas, autóctones no território, e os africanos importados, que lutaram livremente em prol da nova nação que surgia. É um mito e uma mentira, mas o Exército faz questão de manter. 

A outra fabulação em torno da corporação militar é o seu papel contemporizador em momentos de crise na sociedade, assumindo pretensamente o papel de Poder Moderador que terminou com o desaparecimento da ordem monárquica (que eles mesmos liquidaram, de forma bastante atabalhoada por sinal). As FFAA, o Exército especialmente, foram militaristas (o que é até “normal”, em função da sua natureza intrínseca), mas sobretudo intervencionistas e autoritários ao longo de toda a nossa história republicana (pois praticamente não tínhamos FFAA antes da Guerra do Paraguai). Nem sempre foi para um saudável debate democrático em torno de nossa organização política, e sim para impor certa concepção do mundo, de forma improvisada nos anos 1920, quando começaram suas intervenções, de forma mais deliberada a partir dos anos 1930; daí resultaram as duas ditaduras que modernizaram e que também infelicitaram a nação duas vezes no século XX: o Estado Novo (1937-45) e o regime militar (1964-85). Duas experiências autocráticas de fato modernizadoras, mas também deformadoras de uma boa organização política com uma economia livremente empreendedora, o que de fato nunca tivemos. Mas deixemos isso de lado.

 

Os mitos fundadores da corporação diplomática

Deixando de lado o mito fundador sobre a excelência de nossa primeira diplomacia — a do Império, relativamente de boa qualidade, nem sempre para boas causas, como a defesa do tráfico e da escravidão — e, sobretudo, o mito do Barão, pai fundador e paradigma insuperável para todo o sempre, vamos aos mitos mais recentes, na verdade balizas fundamentais da postura da corporação no período contemporâneo: a Política Externa Independente, a tese sobre o “congelamento do poder mundial” e a ideologia do desenvolvimento, que combina elementos das teorias cepalianas e da teoria da dependência.

A Política Externa Independente é uma tautologia, só “justificada” pela conjuntura da Guerra Fria e pela adesão incontida de nossas lideranças políticas e militares ao “império Ocidental”, com os EUA à frente. Parece ter sido uma grande invenção, mas mobilizou os corações e mentes dos jovens diplomatas que estiveram na condução da diplomacia e de boa parte da política externa nos 30 anos seguintes. Não vou comentar mais sobre isso devido à clara obviedade do slogan: como ou porque uma boa política externa não haveria de ser “independente”. Passons, donc.

A tal “tese” sobre o “congelamento do poder mundial” surgiu mais ou menos na mesma época e denota uma constatação evidente — aliás em todas as épocas e lugares —, a de que grandes potências exercem preeminência sobre outras nações e sobre o “sistema” mundial, mas também é de uma evidente falsidade: em nenhum momento os impérios conseguem “congelar” todas as possibilidades de crescimento ou de desenvolvimento autônomo de sociedades ou nações normalmente constituídas: mesmo entre eles, os mais poderosos, o poder nunca está congelado, menos ainda no que concerne Estados-nacionais formalmente independentes (ainda que teoricamente “dependentes” de um império predominante em sua região).

A famosa “teoria da dependência” também é de uma platitude exemplar, e derivada em parte da “tese” do congelamento, e por outro lado das doutrinas cepalianas sobre o desenvolvimento econômico, uma espécie de keynesianismo adaptado às necessidades de países “dependentes”, como os da América Latina. O que ela diz, em sua essência? Que mesmo na situação de dependência existem espaços ou interstícios que possibilitam o progresso, a industrialização e os avanços. Nada mais do que um marxismo light acoplado às noções cepalianas então em voga.

O mito fundador mais consistente na corporação diplomática é obviamente a do seu papel eminentemente mobilizador do desenvolvimento econômico da nação pela via da autonomia na política externa — o que é, como já dissemos, uma obviedade e uma tautologia — e pela possibilidade de se ter espaços de políticas públicas para a formulação de programas e projetos nacionais de desenvolvimento (que por acaso se confundem com as determinações das classes dominante e das elites dirigentes na formulação e execução das principais políticas públicas, especialmente na área econômica e na política externa). Essa é a história da ideologia do desenvolvimento nacional dos últimos 80 anos, tanto mais forte na consciência nacional quanto mais incapaz ela foi de realmente construir o desenvolvimento nacional.

Mas eu vou discutir essa nossa obsessão frustrada — pois é evidente que o Brasil falhou nesse projeto— numa próxima oportunidade. Acredito que um bom começo de enveredar numa nova fase do desenvolvimento nacional começa pelo esclarecimento — talvez desmantelamento— de alguns dos mitos do nosso passado.

Não tenho certeza de que uma nova “doutrina” para esse tal desenvolvimento sairá das próprias hostes da corporação diplomática, e isto por uma razão muito simples: ao lado, e acima, dos dois “valores” básicos impostos e entranhados nessa corporação desde o início da carreira, as famosas consignas de “hierarquia e disciplina”, está uma característica também presente nessa corporação: o CONFORMISMO. Mas disso, eu também tratarei oportunamente.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4080: 13 fevereiro 2022, 4 p.