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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Política externa brasileira: da atual para uma necessária (2022, inédito) - Paulo Roberto de Almeida

 Política externa brasileira: da atual para uma necessária  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor;

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).

Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p. (inédito neste formato)

  

Retrocessos institucionais e diplomáticos no período recente

O Brasil conheceu, desde 2019, um processo de deterioração da qualidade de suas políticas públicas, a começar pelo fato de que, justamente, o país nunca exibiu, nesse período, um programa definido de políticas gerais ou setoriais em direção a metas ou objetivos claramente explicitados. O que tivemos, mais propriamente, foi uma ruptura com padrões usuais de governança, parcialmente na economia, enganosamente na política – que, a despeito dos anúncios iniciais, voltou ao velho padrão da “velha política” – e, bem mais nitidamente, em áreas setoriais, como meio ambiente, direitos humanos, cultura e educação e, sobretudo, nas relações exteriores, todas elas contribuindo para uma deterioração excepcional da credibilidade brasileira no plano internacional. Poucas dessas rupturas superam o desastre incomensurável que tem sido o rebaixamento da imagem do Brasil no ambiente externo e uma perda de qualidade notável da ação externa da diplomacia profissional, mas não obviamente por sua própria culpa.

A maior parte desses problemas deriva dramática incapacidade do presidente de não só não corrigir os problemas apontados por observadores isentos, mas de criar novos problemas e agravar os existentes, numa dramática demonstração de ausência de governança. Na área do meio ambiente, essa extraordinária capacidade de criar problemas para si próprio e para o país foi evidente, pois o que se registrou foram recordes seguidos de destruição ambiental, sobretudo na Amazônia, que estão justamente no cerne das críticas internacionais à atual postura do governante brasileira, ademais de seus reiterados ataques ao sistema democrático do Brasil, especialmente em relação ao seu fiabilíssimo sistema eleitoral. 

O próximo governo terá de efetuar uma revisão dos conceitos básicos da atual diplomacia, com a adoção de uma política externa que vise a recuperação da credibilidade externa do país. Os eixos principais são, na área política, um retorno ao multilateralismo com base no Direito Internacional e em princípios e valores tradicionais de nossa diplomacia; na área econômica, cabe perseguir a inserção do país na economia global, por meio da abertura econômica geral e da integração regional. Caberia, igualmente, proceder à revisão das atuais “alianças estratégicas” num sentido puramente pragmático, não mais ideológico.

 

A vertente econômica de uma nova postura internacional para o Brasil

A revisão dos conceitos básicos da política externa deve ter, portanto, o objetivo da plena inserção do Brasil na globalização. A incorporação do país aos padrões de governança econômica da OCDE pode ser um bom começo para a consecução de tal meta, no passado recusada pelos governos lulopetistas por puro preconceito contra o que se julgava ser, equivocadamente, um “clube de países ricos”, quando a organização de Paris é, desde muito tempo, um “clube das boas práticas”. A justificativa alegada para tal recusa era a defesa de espaços soberanos de políticas nacionais visando o desenvolvimento do país. Ora, a soberania sequer necessita ser objeto de retórica – como foi o caso dos governos de esquerda ou de direita –, pois ela se exerce, simplesmente, por meio de políticas conducentes justamente à prosperidade nacional, atualmente indissociáveis da interdependência global. 

A evolução das relações econômicas internacionais foi sensivelmente deteriorada pela política antimultilateralista do governo Trump, com a marginalização indesejável da OMC e uma postura defensiva em relação à ascensão da China nos circuitos da globalização, que foi parcialmente revertida (contra os interesses das próprias empresas americanas. Não existe espaço, no horizonte previsível, para grandes negociações no plano multilateral, sugerindo-se novos acordos bilaterais, que passam necessariamente por um novo perfil da política comercial do Brasil, com ou sem revisão do Mercosul em torno de seu eixo básico (que é, atualmente, o da união aduaneira, não o de uma zona de livre comércio). A exposição do setor produtivo à concorrência internacional – benéfica em si, para os próprios produtores e consumidores – requer a redução da carga tributária no plano interno, e uma reforma não pode ser feita sem a outra, sob risco de desmantelar ainda mais as empresas nacionais do setor manufatureiro. 

Um exercício positivo, nesse sentido, embora sem qualquer reforma tributária interna, foi a conclusão do acordo Mercosul-União Europeia, mas prejudicado em sua ratificação e entrada em vigor pelas políticas antiambientais do governo Bolsonaro. Cabe justamente não esquecer que o Mercosul, assim como a UE, é uma personalidade de direito internacional, como tal reconhecido no âmbito da governança econômica global, constituindo, assim, um patrimônio bastante útil no seu reforço institucional com vistas a criar um espaço econômico integrado em esfera continental (da América do Sul). 

O Mercosul – ademais de eventuais arranjos unilaterais que possam ser feitos em paralelo ao seu processo de revisão, como efetuado atualmente pelo Uruguai com seu objetivo de concluir um acordo de livre comércio com a China – não é, nunca foi, culpado pelo fechamento comercial do Brasil, ou por suas disfunções acumuladas ao longo dos anos, geralmente por distorções criadas em âmbito nacional e por descumprimentos das obrigações institucionais por parte de seus dois maiores países membros, o Brasil e a Argentina. Se e quando esses dois países resolverem cumprir os requerimentos estabelecidos no tratado original, ele voltará a ser uma base para a integração mundial das economias dos países membros. Um sólido diálogo entre os maiores países deveria permitir superar as dificuldades atuais e caminhar no sentido do reforço do Mercosul, não do seu desmantelamento.

Não obstante, caberia efetuar um exame profundo das opções estratégicas do Brasil em matéria de política comercial, para decidir, a partir daí, se cabe reformar o Mercosul, ou caminhar no sentido da independência total nesse terreno. Essa é uma agenda aberta, mas que ainda não recebeu a atenção devida, dada a descoordenação existente entre os diversos ministérios envolvidos nessa frente, mas sobretudo pela ausência de um diálogo consistente com os principais atores da economia nacional, os agentes privados conectados ao comércio exterior e a uma agenda de produtividade e de inserção do Brasil na economia global. 

 

A dimensão política universalista de uma nova política externa

A diplomacia do Brasil sempre foi universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional. O multilateralismo é uma de suas bases inquestionáveis, assim como a ausência de quaisquer limitações de ordem ideológica na definição dos grandes objetivos na frente externa. Tal postura foi sendo progressivamente construída, desde os tempos da ditadura militar, pela qualidade indiscutível de sua diplomacia profissional, mas se fortaleceu amplamente no período democrático, com o pleno engajamento do Brasil em vertentes anteriormente difíceis em sua agenda externa – como meio ambiente e direitos humanos, mas também integração regional –, o que, conjuntamente com a estabilização macroeconômica do Plano Real, permitiu que o Brasil ganhasse ampla credibilidade internacional nos anos 2000.

A política externa do lulopetismo, no entanto, conduziu o Brasil a coalizões político-diplomáticas definidas a partir de uma visão partidária deformada das relações internacionais do país, uma vez que baseada na miopia de um “Sul Global” que não existe, a não ser nas concepções ideológicas de seus promotores. O governo bolsonarista apenas desmantelou, parcial ou totalmente, os esquemas existentes, sem colocar absolutamente nada em seu lugar, a não ser uma política de aliança submissa em relação ao governo americano anterior (o de Donald Trump) e com regimes similares ou de orientação iliberal e direitista. 

A revisão dos padrões impostos à diplomacia profissional desde o início do século implica, em grande medida, uma revisão profunda das grandes escolhas estratégicas do Brasil na arena mundial. Mas um retorno, pelo provável próximo governo, às opções conhecidas em suas escolhas anteriores, pode redundar, no âmbito regional, no estreitamente de relações com governos de esquerda – em lugar do pragmatismo econômico –, assim como, no plano global, no reforço de uma aliança com a coalizão do BRICS, cuja vocação original para a cooperação econômica tem sido atualmente distorcida pela vontade das duas grandes potências não democráticas de reforçarem essa base organizacional – e até ampliá-la – para o objetivo duvidoso de se construir uma “ordem global” alternativa ao Ocidente, como se o distanciamento em relação às democracias de mercado fosse do interesse do Brasil. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia criou uma nova situação nas relações internacionais que precisa ser cuidadosamente examinada pelos novos planejadores diplomáticos, de maneira a não fazer do Brasil um mero pião de objetivos nacionais de certos membros do BRICS que não são, e não podem ser, os do Brasil, sobretudo tendo-se em conta a histórica e profunda adesão do país a princípios doutrinais que já tinham sido expostos por Rui Barbosa no início do século XX, depois reafirmados por estadistas do porte de Oswaldo Aranha, no fragor da Segunda Guerra Mundial, assim como por Afonso Arinos de Melo Franco e por San Tiago Dantas no início dos anos 1960. 

 

A circunstância externa do Brasil: uma geografia que precisa ser trabalhada

O filósofo espanhol Ortega y Gasset, escreveu, nas suas Meditaciones del Quijote (1914), uma frase constantemente repetida pelos admiradores: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, eu tampouco me salvo.” Cabe, com efeito, atribuir forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo – ou vários deles – num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional.

A circunstância geográfica do Brasil, a sua projeção estratégica – para usar um conceito dos geopolíticos – se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente, pois que existem as barreiras naturais da selva amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total ausência de facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Nessa região se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a província oriental, ou cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.

Como não se pode discutir com a geografia – pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Spykman –, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. Ou seja, construindo um espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.

Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e mais além, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” – as circunstâncias geográficas – e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança – como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU – e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.

A circunstância geográfica do Brasil recomendaria, portanto, uma dedicação especial de sua futura diplomacia no sentido de recompor as bases de uma liderança natural, que se exerceria a partir de um amplo projeto de abertura econômica – unilateral, se for o caso – em direção dos países vizinhos do continente sul-americano, como a base indispensável para sua projeção global. Mas, não contente de dispor dessas “vantagens comparativas regionais” no continente, a antiga diplomacia lulopetista decidiu empreender novos saltos extrarregionais de puro voluntarismo diplomático internacional, primeiro congregando dois outros sócios no projeto do IBAS, a Índia e a África do Sul, depois se lançando com a Rússia, na construção do BRICS, que incorporou a China – sempre propensa a se utilizar de novos tabuleiros para seu projeto de preeminência global –, ambos carentes de estudos técnicos compatíveis com as prioridades econômicas e diplomáticas do Brasil, apenas respondendo a aspirações grandiosas de projeção internacional do então chefe de Estado.

 

A questão mais crucial da agenda internacional e os desafios diplomáticos do Brasil

Depois da invasão e anexação ilegais da península da Criméia, juridicamente sob a soberania da Ucrânia, em 2014, pelo governo de Putin, a nova decisão do líder russo de empreender uma guerra de agressão contra o país vizinho, em fevereiro de 2022, acelerou alguns desenvolvimentos que já se processavam no ambiente internacional, mas sobretudo criou uma nova agenda nas relações internacionais que coloca o mundo ante uma nova divisão geopolítica que se pensava superada na década final do século XX. Depois de quase meio século de um cenário bipolar – confrontando dois sistemas políticos e econômicos antagônicos, o mundo parecia encaminhar-se para uma “nova ordem internacional”, de impulso à globalização sobre a base de sistemas de mercados razoavelmente ancorados na ordem econômica de Bretton Woods: o multilateralismo econômico fundado num consenso básico em torno dos intercâmbios abertos administrados pela tríade FMI-BM-OMC. 

No máximo, a antiga guerra fria geopolítica tinha dado lugar a uma nova guerra fria econômica, caracterizada pelo encolhimento geográfico e econômico da antiga União Soviética e pela irresistível e extraordinária ascensão econômica da China, impulsionada desde sua adesão ao GATT-OMC em 2001. Mas, o que foi chamado de “unilateralismo arrogante” por parte dos Estados Unidos, na última década do século XX, assim como sua postura paranoica de considerar a China um “adversário estratégico”, incitou esta última a rever sua posição mantida desde os anos 1970 (ou talvez até antes), de ver nos EUA um possível aliado na confrontação que ela mantinha com a União Soviética – por diversos motivos, inclusive territoriais – e de passar a reinserir o gigante americano no rol das antigas potências ocidentais que pretendiam manter o gigante asiático – quando este era o “homem doente” da Ásia – numa espécie de continuidade do “século de humilhações”. 

O que ocorreu a partir daí foi uma reaproximação entre as duas grandes autocracias socialistas do passado, mediante diversos mecanismos – entre eles o próprio BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai –, até resultar na “aliança sem limites” proclamada por Xi Jinping junto a Putin, menos de um mês antes da invasão selvagem das forças russas contra a Ucrânia. Essa quase repetição da invasão da Polônia por Hitler, em 1939, criou uma nova situação internacional que colocou o Brasil em face de dilemas que não tinham sido registrados desde aquela época da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, mesmo a ditadura do Estado Novo, depois do atropelo feito contra a Constituição de 1934, substituída pela “polaca” de novembro de 1937, não ousou contrariar a doutrina jurídica seguida sem hesitações pela diplomacia brasileira desde o Império: o Brasil não reconheceu a suserania nazista sobre a Polônia, assim como não reconheceu a incorporação dos três Estados bálticos ao império soviético em 1940, pois que tais usurpações do Direito Internacional tinham sido efetuadas por meio da força bruta, tal como se processou no caso da anexação russa da Crimeia, em 2014, e na subsequente invasão da Ucrânia oriental, assim como do resto do país, em 2022. 

Registre-se que, em 2014, o governo Dilma Rousseff, provavelmente em função do BRICS e mais especialmente pelas relações pessoais travadas entre Lula e Putin desde antes do início desse grupo, em 2009, jamais tomou a posição que seria de se esperar da adesão do Brasil e de sua diplomacia aos sagrados princípios do Direito Internacional ou, mais simplesmente, dos dispositivos da Carta das Nações Unidas que proíbem guerras de agressão. O mesmo pode ser dito do cenário atual, marcado por flagrantes violações da Carta da ONU e, mais ainda, por crimes de guerra, por crimes contra a paz e, possivelmente, até por crimes contra a humanidade, os mesmos que conduziram líderes civis e militares nazistas, em 1946, ao Tribunal de Nuremberg. O Brasil aderiu, formalmente, às resoluções do Conselho de Segurança, da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos da ONU, censurando a Rússia pela invasão, mas jamais a condenou diretamente pelas cruéis violações dos tratados internacionais, das leis da guerra e dos protocolos humanitários. 

Ainda que conclamando a uma “cessação das hostilidades” – como se estas fossem recíprocas –, ou apelando a uma solução pacífica do conflito, tendo em conta as “preocupações de segurança das partes” – como se a Ucrânia tivesse, em algum momento criado qualquer insegurança para o seu poderoso vizinho –, o Brasil se opôs terminantemente à imposição de sanções contra a Rússia, como adotadas pelos países aderentes aos artigos pertinentes da Carta da ONU – apenas que de forma unilateral, em vista do uso abusivo do direito de veto pela Rússia –, assim como também se opôs ao apoio militar à Ucrânia agredida, como se esta devesse simplesmente se render em face da maciça ofensiva militar decretada pelo líder saudosista do antigo império russo e soviético. 

Em outros termos, tanto a atual diplomacia bolsonarista, como a possível futura diplomacia lulopetista se colocam, objetivamente, numa posição “solidária” a Moscou, ainda que disfarçada por uma “neutralidade” hipócrita, ou mais exatamente por um “equilíbrio” deformado e enviesado, em nome de interesses oportunistas vinculados ao aprovisionamento em fertilizantes e combustíveis. Tais posturas, à luz de nossas tradições de respeito irrestrito ao Direito Internacional, ou às mais elementares regras de boa conduta nas relações externas, todas elas inseridas em dispositivos pertinentes da Carta da ONU e da Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas (entre outros instrumentos doutrinais e principiológicos do sistema internacional), chocam pela indiferença demonstrada em relação a esses antigos princípios e valores da diplomacia tradicional brasileira, pela atual e pela provável futura orientação de política externa no tocante ao mais grave problema da comunidade mundial na presente conjuntura. 

Se o atual governo permanece indiferente ao suplício de um povo e de uma nação, cabe esperar que um governo compatível com aquelas velhas tradições doutrinárias e universalistas da diplomacia brasileira revise tal posição, em nome do conceito e da imagem externa do Brasil, e que passe a restaurar o prestígio internacional do país, tão duramente conquistado ao longo de décadas, ou mesmo em dois séculos, de paciente construção de uma diplomacia caracterizada pela sua fidelidade aos grandes princípios do Direito Internacional, características que foram terrivelmente abaladas nos últimos quatro anos. Como se pode constatar, não é apenas a democracia que vem patinando no Brasil atual, mas também a sua política externa, para maior angústia da diplomacia profissional. Este é, provavelmente, o maior desafio que se apresenta a uma futura diplomacia compatível com nossas tradições.

 

Paulo Roberto de Almeida, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas e mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, é autor de diversos livros sobre a política externa e a história diplomática brasileira, entre eles Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império(3ª edição: Brasília, Funag, 2017), Apogeu e Demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira (Curitiba: Appris, 2021) e A Grande Ilusão do BRICS e o universo paralelo da diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, Kindle, 2022). 

 

[Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p.]

 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O renascimento da política externa (no governo de Michel Temer) (2016) - Paulo Roberto de Almeida (Revista Interesse Nacional)

 2983. “O renascimento da política externa”, Brasília, 25 maio 2016, 14 p. Artigo para a revista Interesse Nacional a pedido do Embaixador Rubens Antônio Barbosa. Publicado na revista Interesse Nacional (ano 9, n. 34, julho-setembro de 2016; link: https://interessenacional.com.br/o-renascimento-da-politica-externa/). Reproduzido no blog Diplomatizzando (3/08/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/o-renascimento-da-politica-externa.html). Relação de Publicados n. 1238.


 

    Chamada da revista: 

A política externa foi um dos temas mais polêmicos da era Lula e mereceu profunda análise crítica do diplomata de carreira Paulo Roberto de Almeida. Em seu artigo nesta edição, ele fala do “renascimento da política externa” sob o governo do presidente Michel Temer. “A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambas, a política e a instituição, foram bastante deformadas nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional”, afirma.

O renascimento da política externa

 

Paulo Roberto de Almeida *

Publicado na revista Interesse Nacional (ano 9, n. 34, julho-setembro de 2016, link: https://interessenacional.com.br/o-renascimento-da-politica-externa/). Divulgado no blog Diplomatizzando (3/08/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/o-renascimento-da-politica-externa.html) e disseminado no Facebook (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1208798299183618). Relação de Publicados n. 1238.

 

 

Um livro branco que desapareceu

 No primeiro trimestre de 2014, o então segundo chanceler do terceiro governo lulopetista anunciou, com grande transparência, o início dos chamados “Diálogos de Política Externa”, uma série de exercícios de reflexão a propósito de temas selecionados da diplomacia brasileira, para os quais foram convidados os próprios diplomatas (chefes das diversas áreas do Itamaraty), ademais de funcionários públicos, acadêmicos, líderes do mundo empresarial e representantes dessa vaga entidade chamada “sociedade civil” – na qual atuam, na verdade, entidades que costumam servir de correias de transmissão para determinados movimentos políticos – e que deveriam oferecer subsídios para integrar um “Livro Branco da Política Externa”, que deveria estar disponível até meados daquele ano. Os diálogos foram gravados, os vídeos colocados nos canais apropriados, mas o livro prometido não viu a luz do dia, em nenhum momento desde então. 

Muito provavelmente – mas isto é apenas especulação –, a síntese dos diálogos, efetuada por diplomatas profissionais, deve ter se chocado com alguns conceitos caros aos companheiros que comandaram aos destinos do Brasil desde janeiro de 2003 até o dia 12 de maio de 2016, quando eles foram desalojados do poder executivo e de outros órgãos estatais. No intervalo entre sua elaboração e nossos dias, o projeto de “livro branco” deve ter ficado dormindo em computadores do próprio Itamaraty e, mais precisamente, na gaveta de algum assessor dos preclaros promotores da “diplomacia ativa e altiva” – que, na verdade, deixou de sê-la há algum tempo – esperando, talvez, alguma correção nos seus termos, segundo os cânones da “novilíngua” companheira. 

Com a assunção de um novo governo, o mais provável é que o livro se torne ainda mais diáfano, até desaparecer em alguma estante do arquivo morto. Os diplomatas profissionais, que devem ter tomado cuidado ao tentar compatibilizar sua visão isenta, basicamente técnica da agenda internacional do Brasil, com a Weltanschauung petista – marcada pelos pré-conceitos mais cultivados nestes anos de bolivarianismo caboclo –, podem não ter mais vontade de mostrar o produto confeccionado em meados de 2014 ao novo titular da chancelaria, que poderá pedir, ou não, um outro livro branco, ou simplesmente deixar de lado esses exercícios de divertissement intelectual.

 

Alguma “herança maldita” na política externa? 

A despeito de sua pouca relevância no jogo político normal, existem diferenças naturais de visão no que se refere à agenda da política externa entre os partidos e os movimentos políticos que disputam espaços no cenário político-congressual de qualquer país. Em matéria de relações exteriores, o melhor a fazer é construir consensos em torno das melhores políticas para a interface externa do país do que ficar confrontando esta ou aquela questão, como se fossem propostas antagônicas, ou como se apenas uma servisse ao país e a outra fosse ser totalmente prejudicial. Diplomacia se faz pela criação de consensos, não pelo aprofundamento de divergências. O partido companheiro parece ter feito exatamente o inverso nos treze anos em que esteve à frente dos destinos do Brasil.

Segundo seus próprios promotores e condutores, a política externa do Brasil, assim como sua diplomacia profissional, sofreram profundas inflexões ao longo desse período, mais exatamente desde antes da inauguração dos governos do PT, a partir de 2003, prolongados por três mandatos e meio. Com efeito, ainda em dezembro de 2002, os companheiros se mobilizaram para salvar Hugo Chávez, então enredado por uma greve da PDVSA, que ameaçava paralisar o país: o governo FHC consentiu em enviar um navio da Petrobras repleto de combustíveis, num típico papel de “fura-greves” que não se sabia existir naquela administração em princípio comprometida com o princípio constitucional da não ingerência nos assuntos internos de outros países.

De modo geral, a “diplomacia ativa e altiva” dos companheiros – segundo o slogan cunhado pelo próprio (e principal) chanceler da era do Nunca Antes – contou com a aprovação inquestionada do amplo leque de militantes dos partidos de esquerda e do apoio crítico de larga fração da comunidade acadêmica, geralmente representada por universitários das Humanidades. Jornalistas experientes não deixaram, porém, de apontar o nítido caráter partidário dessa política externa, bem como a utilização do ferramental diplomático para a condução de determinadas iniciativas que se revelaram em contraste com tradições assentadas no Itamaraty, quando não em contradição com certo consenso nacional que tinha sido construído ao longo de décadas no que se refere às grandes linhas de atuação da política exterior do Brasil.

Dois grandes temas sobrelevam sobre os demais no conjunto de posturas no plano externo a que o Brasil foi levado nos anos da diplomacia do PT: o alinhamento geral da política externa brasileira a teses nitidamente caracterizadas como pertencentes ao espectro partidário da esquerda latino-americana, com a perda consequente de sua credibilidade, e o isolamento comercial do Brasil num momento de aceleração dos processos de globalização e de consolidação de grandes cadeias produtivas em escala regional ou mundial. Já efetuei breve análise dessas duas heranças da diplomacia companheira em artigo de jornal – “Epitáfio do lulopetismo diplomático”, O Estado de S. Paulo (17/05/2016; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,epitafio-do-lulopetismo-diplomatico,10000051687) – o que me permite, ainda que também de maneira sintética, passar diretamente à análise de alguns outros grandes temas da agenda internacional do Brasil que figuram na pauta do Itamaraty pós-lulopetismo. 

Antes, contudo, convém desmantelar o próprio símbolo, e o maniqueísmo a ele implícito, usado pelos companheiros para tentar classificar a sua diplomacia como a única possível para um Brasil “soberano” e supostamente “não submisso a interesses hegemônicos”, o que já é indicativo de uma fraude conceitual. A chamada diplomacia “ativa e altiva” nada mais foi do que um slogan, como muitos outros criados durante esses anos. O slogan nada diz sobre o conteúdo específico da política externa, mas deixa entrever que esta se opunha a supostas potências hegemônicas que estariam interessadas em manter o Brasil periférico ou subordinado. Como outros fantasmas do partido neobolchevique, essa é uma visão ingênua do mundo, como se o Brasil pudesse ser submetido por qualquer outro país. Traduz também um infantilismo confrontacionista ou até certa insegurança psicológica quanto ao que deveria ser feito. Soberania não se defende com retórica barata, com proclamações altissonantes, mas com atos concretos, sem bravatas, promovendo políticas consistentes com os interesses do país, sem qualquer alinhamento com grupos ou outros países, em total independência.

A acusação de má-fé de que se pretende agora inverter a política externa do Brasil, afastá-la da América Latina para alinhá-la com os Estados Unidos e a Europa é ridícula, se não fosse torpe, tão absurda que nem merece refutação, pois só expressa o desejo dos companheiros de justamente antagonizar, dividir, praticar o maniqueísmo habitual que os caracteriza. Tal visão de que existem dois modelos de política externa, e que só o da era Lula representava a soberania e a defesa do interesse nacional é falsa e apenas expressa o profundo simplismo que polui a mente dos companheiros. Que isso seja proclamado por militantes, pode-se entender; quando são acadêmicos que afirmam isso, só podemos lamentar que esses acadêmicos sejam tão simplórios ou desonestos intelectualmente. A noção de uma “diplomacia Sul-Sul”, por exemplo, é tremendamente redutora, pois apenas mentes fechadas, olhos tapados por viseiras ideológicas, podem conceber que o essencial das relações exteriores do Brasil passe por essa dimensão geográfica exclusivamente. O Brasil sempre se desenvolveu abrindo-se a todos os quadrantes do globo, recebendo aportes humanos, de conhecimento, investimentos de todas as partes; por que agora tentar reduzir essa riqueza a um novo determinismo geográfico? Por que o Brasil teria de reduzir o escopo de suas relações, restringir o amplo leque de relações? Vamos agora ao que interessa.

 

A política externa numa agenda nacional de desenvolvimento

A política externa tem, realisticamente, um papel secundário em face dos grandes problemas nacionais. A maior parte desses problemas são “made in Brazil”, e devem receber respostas e soluções puramente nacionais. O ambiente externo tem sido, na verdade, favorável ao crescimento dos países que souberam aproveitar os impulsos e as oportunidades externas para alavancar avanços internos. A política externa poderia ter um papel relevante na agenda nacional se o Brasil fosse mais aberto ao comércio internacional e bem mais receptivo aos investimentos estrangeiros e associações com os países mais avançados tecnologicamente, fatores relevantes para projetos nacionais de desenvolvimento. Uma comparação entre os países de mais alta renda per capita e seus respectivos coeficientes de abertura externa comprovam esta assertiva. Este deveria ser um argumento suficientemente convincente para justificar um processo de abertura comercial e de maior aproximação aos países líderes do desenvolvimento tecnológico e cultural no mundo. Uma política externa compatível com os interesses nacionais precisaria se concentrar numa agenda desse tipo, o resto sendo secundário, inclusive as alianças Sul-Sul, que só nos afastam desses objetivos prioritários.

Pode o Brasil encarar, internamente, a ampliação de facilidades no comércio exterior, com o desmantelamento de entraves administrativos e sistêmicos a uma elevação dos fluxos de exportações e de importações? Tal processo teria de ser paralelo e coincidente com um processo de diminuição da carga tributária sobre as empresas, insuportável sob qualquer critério que se examine. Paralelamente seria iniciado um esforço de revisão completa das bases de funcionamento da união aduaneira do Mercosul, a começar pela alternativa entre: (a) unificação de suas regras de aplicação; ou (b) negociação de um protocolo adicional ao Protocolo de Ouro Preto (POP), introduzindo a possibilidade de negociação externa individual de novos acordos de liberalização, com preservação da cláusula de nação-mais-favorecida para dentro. Sob a segunda hipótese, o Brasil poderia negociar acordos com a UE, a Aliança do Pacífico e até com os EUA, prevendo redução de tarifas, abertura a comércio de serviços, defesa de propriedade intelectual e regras estáveis para investimentos, abertos aos demais membros do Mercosul, se estes assim o desejassem.

Não há muito que o Brasil possa fazer no plano das negociações comerciais multilaterais, seja no âmbito da Rodada Doha (paralisada), seja no contexto da agenda de Bali, ou qualquer outra. O que cabe, sim, é examinar os demais acordos plurilaterais existentes no sistema multilateral de comércio, verificar a compatibilidade com o processo (a ser conduzido) de reforma na política comercial nacional, e considerar a hipótese de aderir a esses outros instrumentos de abertura e facilitação. No plano plurilateral, caberia examinar os acordos bilaterais de livre comércio, ou simplesmente de preferências tarifárias, que o Brasil poderia começar a negociar com os mais relevantes parceiros do comércio internacional, que não são exatamente os do antigo G20 comercial, onde estão os maiores obstrutores de uma agenda aberta, e aos quais estivemos vinculados por simples decisão política e ideológica tomada em 2003.

Na vertente da política industrial, os governos petistas promoveram cinco ou seis, todas fracassadas, e se dedicaram a improvisações e puxadinhos, que criam uma selva de regulações diferenciadas entre setores, com regimes fiscais diferentes, inclusive desrespeitando o princípio da isonomia tributária que deveria pautar as ações do governo, além das regras de não discriminação do Gatt-OMC. A política industrial está intimamente relacionada à política comercial, e, na sua vertente externa, deveria dedicar-se a atrair o máximo possível de investimentos estrangeiros e incentivar associações com o que há de mais tecnologicamente avançado no mundo. A política Sul-Sul nunca pôde, inquestionavelmente, cumprir esse papel. Independentemente de o Brasil ser ou não membro da OCDE, caberia associar-se ao Comitê de Indústria dessa organização e passar a examinar todos os protocolos, códigos e demais normas voluntárias estabelecidas naquele âmbito, de maneira a colocar a indústria brasileira num contexto de plena conformidade com os padrões internacionais nessa área.

Uma das primeiras tarefas internas seria retomar, reexaminar, eventualmente assinar ou renegociar todos os acordos bilaterais de proteção a investimentos, os APPIs, que foram sabotados pelos petistas antes mesmo de assumirem o governo em 2003. O Brasil descumpriu mais de uma dezena de acordos assinados com os mais importantes parceiros exportadores de capitais e de investimentos diretos. Deixou de oferecer um ambiente seguro e estável para esses investimentos, assim como deixa de oferecer um ambiente estável para os próprios empresários brasileiros do setor. Caberia trabalhar com a CNI e algumas federações estaduais mais ativas nessa área, com o objetivo de colocar o Brasil no mesmo patamar regulatório que os países mais avançados, deixando de lado o stalinismo industrial praticado pelo último governo petista. 

Estas áreas, comercial e industrial, são as mais relevantes na interface entre uma agenda interna de desenvolvimento e uma agenda diplomática na área econômica. Existem outras, por certo, relativas à tecnologia, à propriedade intelectual (na qual os governos lulopetistas também promoveram inacreditáveis retrocessos conceituais e práticos), à cooperação científica e educacional – durante muito tempo toldada pela distorção ideológica da diplomacia Sul-Sul – e até no terreno das políticas de segurança e de capacitação bélica, igualmente marcadas pelo anti-imperialismo infantil dos companheiros e por suas alianças espúrias nesse terreno. Todas elas possuem algum impacto econômico relevante para um projeto nacional de desenvolvimento, mas cabe insistir em que o ambiente internacional é bastante favorável ao crescimento do Brasil, à condição que este empreenda reformas internas capazes de potencializar a sua inserção na economia global.

 

O problema do Mercosul

O Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, mas também econômico-comercial. Desde 2003, ele deixou de ser uma ferramenta para a inserção internacional do Brasil, tal como tinha sido concebido no início dos anos 1990, e tornou-se um problema triplo: diplomático, econômico e de política comercial. Os desvios quanto aos objetivos do Tratado de Assunção (TA), detectados ainda na fase 1995-1999, foram ampliados depois da crise argentina, e potencializados pelo curso errático das políticas adotadas pelas administrações Kirchner e Lula desde 2003. O tripé essencial para a continuidade do bloco – liberalização comercial para dentro, política comercial unificada para fora e coordenação de políticas macro e setoriais – foi totalmente desvirtuado a partir de então, em favor de uma politização indevida das instituições próprias ao bloco, seguindo-se uma verdadeira anarquia institucional.

No campo das negociações externas, ocorreu um grande desastre, ao se adotar uma postura defensiva baseada no mínimo denominador comum, que passou a ser o protecionismo argentino. A implosão ideológica da Alca e a crença ingênua num acordo com a UE foram dois passos irrefletidos no caminho da insensatez. Nada avançou a partir de então, a não ser acordos ridículos na dimensão Sul-Sul, e um com Israel, apenas para compensação visual. Não estranha, assim, que vizinhos mais sensatos tenham procurado suas próprias soluções para comércio e investimentos, ao negociar acordos com os EUA, com a UE e outros parceiros, e ao adotar seus próprios esquemas de liberalização real dos fluxos comerciais (Aliança do Pacífico), já pensando na grande integração produtiva que terá seu centro na bacia do Pacífico e até no Índico, reunindo todos os grandes atores do comércio internacional (dos EUA à Austrália, e toda a Ásia Pacífico integrada na globalização). O Brasil e o Mercosul estão totalmente ausentes desse novo universo absolutamente central da atual e futura economia mundial.

Pior ainda foi a expansão indevida, totalmente política, do Mercosul em direção a vizinhos pouco propensos a adotar os mecanismos básicos da união aduaneira tal como definida em 1991 e supostamente implementada em 1995 pelo POP. O ingresso da Venezuela, a suspensão ilegal do Paraguai, a abertura apressada e injustificada a parceiros incapazes de cumprir os requisitos básicos do TA (como Bolívia, Equador, talvez Suriname) não apenas não retificam o que foi feito de errado no Mercosul, como acrescentam novos problemas ao edifício instável do bloco.

Existem problemas no Mercosul, mas poucos derivam de mecanismos e instituições do próprio bloco, vários resultando de políticas, atitudes e comportamentos das administrações nacionais, com destaque para a Argentina, mas contando ela com a conivência, complacência e cumplicidade dos governos petistas. Os problemas se situam na zona de livre comércio – e aqui o diálogo único a ser travado é com a Argentina – mas também na união aduaneira, o que envolve todos os parceiros, mas em especial a Argentina e o Paraguai. Nem se considera o problema da Venezuela, que deriva de seu próprio caos econômico: ela deveria ser, simplesmente, colocada em quarentena e isolada das negociações que precisam ser feitas com os sócios originais do bloco, para que se possa iniciar o processo de renegociação diplomática.

No plano do livre comércio, caberia fazer um mapeamento dos impedimentos práticos à sua total consecução, e isolar esses setores numa espécie de “caixa amarela”, para então começar a discussão sobre seu enquadramento ou dispensa semipermanente. No campo da união aduaneira, caberia, igualmente, contabilizar e identificar os fluxos que são levados ao abrigo e fora da TEC, para um diagnóstico mais detalhado da situação. O mais importante, porém, seria um exercício de exame das políticas comerciais dos quatro membros – ao estilo da OMC, adaptado às configurações do bloco – com vistas a ter um panorama real, e realista, sobre todas as políticas nacionais compatíveis e incompatíveis com os objetivos do bloco. Apenas a partir desse diagnóstico mais preciso se poderá partir para o terreno das prescrições de políticas, algumas simplesmente diplomáticas, mas a maior parte dependente de definições nas próprias políticas comerciais e industriais de todos os sócios. Em síntese, o Mercosul precisaria voltar a ser um componente da estratégia brasileira de inserção na economia mundial, tal como foi concebido originalmente.

 

O problema do Focem

Assim como o Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, o Fundo de Convergência Estrutural (Focem) do Mercosul é o mais importante problema político do bloco, pelo menos para o Brasil. Suas principais implicações não são nem de ordem econômico-comercial, ou de recursos orçamentários, mas basicamente de ordem política, e elas têm origem, como outros equívocos monumentais da gestão amadora dos companheiros na política externa, numa incompreensão flagrante das realidades do Mercosul, ou as do próprio Brasil. Mais uma vez, a ideologia, junto com a incultura econômica, prevaleceu sobre a simples racionalidade instrumental, mas nem todos os pecados são devidos aos companheiros, ainda que tenham sido eles que tomaram a decisão de implantar esse monstro bizarro no corpo do Mercosul: contribuiu para isso a obsessão do ex-SG-MRE, Samuel Pinheiro Guimarães, em querer converter o Mercosul numa obra de benemerência em favor dos sócios menores, em lugar de simplesmente atender ao que estava escrito no Tratado de Assunção. O fato é que o Brasil é a terceira renda per capita do bloco, e acabou assumindo quase quatro quintos do esquema de financiamento amador que acabou sendo criado sem qualquer estudo técnico.

O Focem parte de dois equívoco, ambos monumentais, mas que jamais tinham sido cometidos pelo Itamaraty ou pelos dirigentes econômicos brasileiros, nos primeiros doze anos do Mercosul: o de que os problemas da não integração acabada no bloco seriam devidos a supostas “assimetrias estruturais” entre os sócios, e o de que essas assimetrias poderiam ser corrigidas por ações pontuais dos Estados membros. Havia uma demanda dos outros sócios do Mercosul, quanto à redução das “assimetrias” dentro do bloco, para que ele pudesse avançar, argumento que o governo FHC e a diplomacia brasileira nunca aceitaram como válido para a implementação de medidas “corretoras”, obviamente a cargo do sócio maior, o Brasil. Os argentinos, em especial, já vinham reclamando há muito tempo dessas assimetrias, primeiro de ordem cambial – mas quem tinha fixado o câmbio ao dólar foram eles, não o Brasil –, depois de natureza financeira – a existência de um banco generoso, como o BNDES, que eles não tinham, como se fosse culpa nossa a inexistência de mecanismos similares na economia vizinha –, e finalmente o simples fato de o Brasil sozinho ser muito grande, o que é um fato, mais exatamente 60 a 70% do peso bruto da economia, do comércio, dos recursos, da amplitude do mercado interno – que permitiria “economias de escala” às indústrias brasileiras, como se o mercado interno não estivesse aberto às empresas dos demais também, permitindo-lhes as mesmas economias de escala.

O governo dos companheiros, vendo o bloco através de lentes equivocadamente comunitárias – em especial no tocante aos programas de reconversão setorial e de redução das desigualdades regionais existentes entre os países membros da UE – considerou que caberia ao Brasil assumir o papel da Alemanha, se apresentando, em 2004, como o provedor líquido de recursos num projeto de redução de “assimetrias estruturais” que supostamente estariam impedindo o Mercosul de se desenvolver de modo adequado. O Brasil propôs financiar o Focem, à razão de 70% dos montantes operacionais, que replica o que já está sendo feito, sem a expertise técnica, pelos organismos multilaterais e regionais de financiamento. O sistema é limitado – ainda que o Brasil tenha comprometido recursos bem mais amplos do que a sua parte de 70% nos muitos milhões oferecidos – e não reduzirá de modo significativo grandes assimetrias, que são de política econômica, não de natureza geográfica ou a dotação de fatores.

Essa incorporação acrítica de um modelo europeu, transpondo ao cenário do Mercosul um modelo que se acredita similar (ou funcionalmente equivalente) ao do conceito europeu de “coesão social”, foi feita sem que se aferisse economicamente sua necessidade ou sem que os fundamentos técnicos dessa posição fossem devidamente assentados. A “diplomacia da generosidade” dos companheiros simplesmente dobrou-se aos “argumentos” dos demais sócios de que o bloco não poderia avançar na presença das “profundas assimetrias” que supostamente separavam os países membros. O Focem acabou duplicando o trabalho de entidades multilaterais de financiamento, com base numa seleção basicamente política dos projetos.  Não existe nenhuma evidência de que o Focem conseguirá atenuar as “assimetrias estruturais” – que são o resultado de condições existentes nos mercados de forma quase permanente, ou de vetores ainda mais resistentes a ações governamentais de reduzido escopo transformador ou de impacto financeiro modesto – e pode, ao contrário, introduzir novas deformações nos sistemas de financiamento a projetos de desenvolvimento. 

O Focem, portanto, é um erro, que foi cometido voluntariamente pelo Brasil dos companheiros. Como os demais países se aproveitam disso para colocar seus projetos pouco vendáveis ao BID, ao BIRD, ou à CAF, é evidente que eles não vão querer se desfazer de tão generosa fonte de financiamento, além de pouco exigente, sem maior expertise técnica na análise de projetos ou sem uma rigorosa análise de custo-benefício. 

A Unasul, teoricamente sucessora da Iniciativa de Integração Regional Sul-Americano (sabotada pelos companheiros), deveria se ocupar de integração física, nas estruturas existentes ou em outras a serem propostas pelo Brasil, com o que se poderia encerrar mais um episódio de trapalhadas companheiras, com custos voluntariamente assumidos pelo Brasil. A rigor, se o Mercosul deixou de ser exclusivamente econômico e comercial, e também passou a ser político e social, cabe traduzir essa imensa revolução na prática e eliminar mais esse monstro metafísico que faz parte da herança maldita dos companheiros.

 

A integração regional na América do Sul

A América do Sul encontra-se hoje mais fragmentada do que em qualquer época anterior, quando os poucos esquemas existentes de integração estavam restritos aos esquemas de comércio preferencial no âmbito da Aladi, ou se pretendiam mais profundos, como o Grupo Andino e o próprio Mercosul, alegadamente tendentes ao mercado comum. O Grupo Andino (1969) se enquadrava no sistema multilateral de comércio regido pelo Gatt, em seu artigo 24 (para os esquemas de livre comércio), ao passo que a própria Aladi (1980) e o Mercosul (1991) têm sua cobertura legal dada pela cláusula de habilitação, instituída no âmbito da Rodada Tóquio do Gatt (1979). 

Não se pode dizer que a integração sul-americana tenha avançado ao longo dos anos; ao contrário, ela recuou, na prática, ainda que a retórica da integração tenha se disseminado em todos os países, com escassos resultados efetivos. Onde estão, por exemplo, os processos de desmantelamento de barreiras alfandegárias e de abertura econômica recíproca? A integração efetiva é inversamente proporcional à retórica da integração: se os países pagassem multas cada vez que se referissem indevidamente ao processo haveria, certamente, maior comedimento na sua reiteração vazia.

Com exceção da Aliança do Pacífico, que é integrada por um país da América do Norte, o México, e que conformou mecanismos automáticos de abertura recíproca, todos os demais países recuaram nos processos de abertura econômica e de liberalização comercial, inclusive o Brasil, que por sinal denunciou, poucos anos atrás, um acordo de livre comércio de automóveis com o México, pois os saldos bilaterais se tinham tornado negativos, num sinal preocupante de que acordos de liberalização comercial só podem ser justificados se eles se conformam ao velho padrão mercantilista.

Qualquer diagnóstico que indique que a integração na América do Sul avançou – simplesmente porque os discursos oficiais registram que se criou a Unasul, a Aliança do Pacífico, que o Mercosul incorporou, alegremente e sem pensar, todo e qualquer candidato que se apresentou, ou porque existem diversos organismos de coordenação regional (Calc, Celac e toda uma fauna de pretensos mecanismos de “integração”) – não reflete a realidade da região. E por que isso ocorreu? Porque a maior parte dos países empreende caminhos próprios em suas políticas econômicas sem qualquer atenção efetiva aos processos de integração, que de resto possuem baixa densidade política e econômica. Mesmo o grupo supostamente mais avançado em matéria de integração comercial – e praticamente apenas comercial –, a Aliança do Pacífico não pretende, de fato, realizar a integração entre eles: podem até eliminar completamente as barreiras tarifárias e não-tarifárias, que o comércio recíproco permanecerá limitado e parcial. Eles não se uniram para fazer isso e sim para dispor de uma plataforma de homogeneização de ofertas para se inserir na integração produtiva da bacia do Pacífico.

O Brasil, como maior economia da região, e a mais avançada, poderia ser o livre-cambista universal, ou seja, o país que se abre aos demais, sem exigir maiores contrapartidas. Com isso, ele estaria conformando um amplo espaço econômico integrado na região, oferecendo seu grande mercado aos vizinhos, e amarrando investimentos estrangeiros, da região e fora dela, à sua própria economia. 

A integração é feita, justamente, para estimular a competição e os ganhos de bem-estar. Se o Brasil deseja iniciar a construção de um espaço econômico integrado na América do Sul, ele deveria começar por um simples exemplo, abrindo-se aos demais. Apenas isso: ao abrir-se, ele deslancharia um processo de negociação aberto, com base em cláusulas NMF e suficientemente flexível para acomodar as sensibilidades setoriais dos demais países. Por ser o maior país, o Brasil não precisa ter, e não deve ter, nenhuma “sensibilidade”. A rigor, com isso, o Itamaraty nem precisaria convocar qualquer conferência diplomática, dessas intermináveis, para constituir uma zona de livre comércio na região: ela se faria praticamente sozinha. 

 

Relações com países mais avançados, não necessariamente todos da OCDE

Existem muitos desafios nas relações com os países desenvolvidos, quaisquer que sejam eles; mas as oportunidades são ainda maiores. Os companheiros passaram anos enfatizando a diplomacia Sul-Sul: os que escolhem usar tal viseira só podem fazê-lo por preconceito ideológico ou por discriminação política, ambas prejudiciais. Todo determinismo geográfico é, por natureza, contraproducente. Não se poderia esperar, por exemplo, obter o estado da arte em ciência e tecnologia quando se restringem as escolhas a determinados parceiros do globo, ainda que eles sejam “parceiros estratégicos”. Considerar que os países desenvolvidos só tenham interesse na “exploração” dos países menos desenvolvidos é de uma estupidez digna de um fundamentalista político, desses que ainda existem espalhados por aí, infelizmente dominantes em certos círculos acadêmicos e políticos.

A primeira estupidez é justamente a de dividir o mundo entre desenvolvidos e em desenvolvimento, como se duas únicas categorias mentais, dois universos puramente conceituais, fossem capazes de resumir e abranger toda a complexidade e multiplicidade das situações humanas e sociais, num planeta variado que exibe todos os tipos de avanços civilizatórios, um continuum histórico que vai de tribos primitivas a sociedades do conhecimento, baseadas em inteligência artificial. O capital humano nunca teve pátria, apenas os governos é que limitam a liberdade do capital humano. As grandes descobertas, as maiores invenções acabam beneficiando o conjunto da humanidade.

Mas alguns espíritos tacanhos consideram que, em virtude do fato estabelecido de que a maior parte das invenções, descobertas e inovações ocorrem bem mais nos países já avançados, isso consagraria algum monopólio natural, uma tendência à concentração do conhecimento, e do seu desfrute, e que os países menos avançados só poderiam ser “explorados” pelos primeiros. Assim, passam a recomendar esquemas de cooperação no âmbito Sul-Sul, como se duas ignorâncias pudessem ser substitutos a uma grande sabedoria. A Constituição brasileira já caiu nessa estupidez, ao consagrar no texto de 1988 a proibição de que universidades brasileiras contratassem docentes estrangeiros, boçalidade felizmente eliminada alguns anos depois. Mas, aparentemente continuamos a praticas outras discriminações, ao preferir fazer intercâmbios com alguns países, em lugar de se abrir a todos os demais, sem qualquer tipo de preconceito.

Não se pode dispor de nenhuma fórmula mágica para impulsionar o processo de desenvolvimento brasileiro contando apenas com a cooperação internacional, seja ela com países avançados ou com “parceiros estratégicos” do Sul maravilha. Os desafios principais estão mesmo no próprio país, pois as evidências relativas aos ganhos de escala permitidos por uma educação de qualidade são tão notórios que não seria preciso insistir neste ponto. O Brasil precisa empreender uma revolução educacional, em todos os níveis. De onde sairão os ensinamentos adequados para esse empreendimento monumental? Ora, as respostas são tão evidentes que sequer me concedo o direito de expressar qualquer preferência geográfica. Se alguém aí pensou em Xangai, não na China, mas Xangai, como exemplo e modelo de uma educação de qualidade, tal como refletido nos exames do PISA, estou inteiramente de acordo: façam como Xangai, que já é, para todos os efeitos práticos, mais avançada do que qualquer país desenvolvido em matéria de educação de qualidade. O resto é baboseira geográfica...

Xangai, atualmente, em matéria de performance educacional, é o mais perfeito exemplo da Finlândia educacional num país outrora atrasado educacionalmente, e que ainda permanece atrasado politicamente. Em todo caso, a China está, provavelmente, registrando mais patentes, sozinha, do que os outros quatro Brics conjuntamente. Talvez tenhamos de aprender algo com ela, o que será obviamente impossível. O Brasil não tem condições de imitar padrões educacionais finlandeses ou os de Xangai, como ele tampouco vai conseguir construir a boa escola republicana da hoje decadente França, mas que já foi exemplo de educação no mundo. Acho que se ele conseguir reproduzir a mediocridade da escola americana já terá sido um progresso. Esse é o grande símbolo que eu vejo da cooperação do Brasil com países desenvolvidos. Chegar perto da mediocridade educacional americana já terá sido um imenso progresso para o Brasil.

 

A extensa geografia do Itamaraty

A falta de medida sempre foi uma característica da diplomacia do Nunca Antes. Dominado pela obsessão de superar seu antecessor, e também pela ideia de conquistar para o Brasil uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, o demiurgo simplesmente ordenou ao seu chanceler que abrisse embaixadas em todos os países da América Latina e do Caribe e em quantos países fosse possível na África e na Ásia. Em consequência, de 2003 a 2009, dezenas de novas representações foram criadas nos lugares mais exóticos, acarretando enormes despesas e gerando ainda maior stress para a política de pessoal do Itamaraty, ao ter de gerir uma rede desmesurada, com gastos inúteis – uma vez que o retorno é insignificante – e efeitos políticos mínimos.

O Brasil exibe hoje uma rede de representações no exterior superior à de vários países desenvolvidos, inclusive ex-potências coloniais. Sem qualquer estudo técnico que precedesse a tal tomada de decisão, simplesmente baseado na vontade pessoal do ex-chefe de Estado, o Itamaraty se dobrou a essas pretensões megalomaníacas e passou a abrir postos sem qualquer reciprocidade, apenas baseado numa vontade ingênua de mostrar presença. Impossível estimar o impacto financeiro – e o custo-oportunidade – dessas iniciativas, mas ele é provavelmente muito maior do que a simples soma nominal dos valores envolvidos, pois significa uma extensão indevida de um orçamento que conheceu um aumento no divisor sem necessariamente a ampliação do numerador. Essa rede desvia não só dinheiro escasso, mas a atenção dos funcionários diplomáticos e de vários outros servidores em funções administrativas, sem qualquer correspondência quanto aos fins. Existem embaixadas em países de população inferior à do Lago Sul de Brasília, bem como consulados criados apenas para acomodar conveniências familiares de amigos do chanceler da era do Nunca Antes.

Nunca se ofereceu uma rationale para essa extensão desmesurada do serviço exterior brasileiro na era Lula. Segundo uma contagem não definitiva, foram quase cinquenta novos postos (entre embaixadas e consulados. Aparentemente, o ex-presidente contava com algum aporte adicional de votos em favor do Brasil no processo de criação de eventuais cadeiras adicionais no Conselho de Segurança da ONU, como se uma decisão desse porte pudesse ser tomada apenas pelo número de votos na AGNU.

 

Olhando para a frente

A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambos, a política e a instituição, foram bastante deformados nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional. O Itamaraty não terá nenhum problema em cumprir uma nova pauta na política externa, pois sempre foi muito disciplinado no cumprimento das diretrizes do chefe do executivo, mas ele necessita passar por reformas organizacionais, depois de mais de uma década de uma nefasta deformação em seus métodos de trabalho e de inversão vertical no processo decisório que sempre o caracterizou.

 

Brasília, 25 de maio de 2016

 

* Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, professor de Economia Política nos programas de mestrado e doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e autor, entre outros livros, de Nunca Antes na Diplomacia: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014). Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com.




A Miséria da Oposição no Brasil - Da Falta de um Projeto de Poder à Irrelevância Política? (2011) - Paulo Roberto de Almeida (Revista Interesse Nacional)

A Miséria da Oposição no Brasil 

Da Falta de um Projeto de Poder 

à Irrelevância Política?


Revista Interesse Nacional (n. 13, abril-junho 2011, p. 28-36).

2242. “Um projeto de Governo: sobre a volta ao poder da ‘oposição’” (título original), Brasília, 1 fevereiro 2011, 8 p. Análise crítica da realidade política das forças não pertencentes ao bloco de poder. Revisto em 09/03, sob o título de “Miséria da ‘oposição’ no Brasil: da falta de um projeto de poder à irrelevância política?” (13 p.); publicado na revista Interesse Nacional (n. 13, abril-junho 2011, p. 28-36; link: link: https://interessenacional.com.br/a-miseria-da-oposicao-no-brasil-da-falta-de-um-projeto-de-poder-a-irrelevancia-politica/). Transcrito no blog Diplomatizzando(13/07/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/07/miseria-da-oposicao-no-brasil-artigo.html). Relação de Publicados n. 1029. 




        Chamada da revista: 

Paulo Roberto de Almeida adota uma postura bastante crítica em seu artigo. Para ele, “o que surpreende no processo político brasileiro não é tanto a capacidade do governo de alinhar em torno de suas posições as forças políticas dos mais variados horizontes, sobretudo no Congresso; a surpresa é constituída, antes, pela debilidade da ‘oposição’, derrotada, mas ainda não destruída, e sua incapacidade de reorganizar suas tropas, de redefinir suas bandeiras de luta e de exercer sua função institucional de oferecer uma alternativa às políticas do bloco no poder”. Tudo leva a crer que uma nova oposição precisa ser construída, ou que a atual “oposição” deva ser praticamente reinventada, para, finalmente, começar a existir, afirma.

PAULO ALMEIDA

É diplomata de carreira, professor de Economia Política nos programas de mestrado e doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e autor, entre outros livros, de Nunca Antes na Diplomacia: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014). Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com. Os argumentos e opiniões expressas neste trabalho são exclusivamente os de seu autor, não representando políticas ou posturas do governo brasileiro ou do Ministério das Relações Exteriores.

A “oposição” brasileira sem projeto de poder

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orgpralmeida@me.com) 

 

Resumo: Ensaio analítico-opinativo sobre a inexistência de uma oposição no atual cenário político brasileiro, sobre as tarefas da oposição em um moderno sistema político democrático e sobre a eventual reconstrução de uma oposição digna desse nome no Brasil.

Palavras-chave: Brasil. Sistema político. Oposição. Manutenção do poder.

 

 

Este texto trata da trajetória recente da atual “oposição” ao governo do PT – no poder desde 2003 –, supostamente empenhada, desde então, em criar as condições para reconquistar seu eleitorado e se configurar como alternativa viável de governo, no seguimento de uma hipotética vitória eleitoral em 2014. O termo “oposição” figura entre aspas pois o que se apresenta hoje, fora do arco governamental, não merece, legitimamente, essa designação, seja por deficiências intrínsecas, seja por fatores objetivos vinculados ao quadro político-eleitoral do Brasil. O presente texto estabelece, primeiro, um diagnóstico da situação política na presente conjuntura, para examinar em seguida as tarefas da oposição num sistema político democrático. Ele passa, então, a analisar as principais deficiências da “oposição” brasileira, para depois formular considerações sobre uma possível estratégia de reconquista do poder pela “oposição”, concluindo, finalmente, que o eventual sucesso dessa estratégia depende, em grande medida, lideranças esclarecidas, o que atualmente não parece ser o caso com o simulacro de “oposição” existente no Brasil.

 

1. O diagnóstico da situação política na presente conjuntura

É evidente que o atual bloco no poder – dominado majoritariamente pelo PT – conquistou legitimamente sua hegemonia política com base em hábil propaganda política, na manipulação das comunicações e em boa organização partidária, ainda que recorrendo diligentemente à propaganda enganosa, eventualmente a fraudes processuais e, de forma muito explícita, apoiando-se essencialmente no carisma político-eleitoral de sua principal liderança e figura de grande relevo no cenário político do Brasil. É também evidente que a mesma personalidade e o seu partido domesticado – mesmo se fracionado internamente – pretendem preservar a atual hegemonia pelo futuro previsível, com base nos mesmos elementos políticos, aplicando de maneira diligente as mesmas receitas que os habilitaram a dirigir o país nos últimos oito anos.

Ainda mais evidente, e visível, nesse período, foi o desaparecimento gradual e a virtual inoperância daquilo que se poderia chamar, com extrema generosidade, de “oposição”, na verdade um conglomerado de tênues lideranças políticas, fragmentado em projetos pessoais ou regionais e totalmente incapaz de oferecer alternativas credíveis ao eleitorado que não comunga das mesmas concepções de política, de economia e de sociedade do bloco no poder. Nunca se percebeu, desde 2003, um discurso coerente da “oposição”, alternativo e em oposição ao do bloco no poder. Este tampouco tinha um discurso coerente, mas soube implementar medidas de clara receptividade popular, sobretudo nas áreas sociais, com um enorme reforço de propaganda nas supostas virtudes do governo e apoiado no evidente carisma do seu líder político. Com base em virtudes próprias e nesse grande empenho publicitário, o líder em questão praticamente deixou a condição de carisma para firmar-se como novo mito do cenário político brasileiro, provando, mais uma vez, que mentiras bem articuladas podem, sim, criar, fatos políticos dotados de boa impregnação popular. 

Caso a evolução dos próximos anos confirme esse mesmo cenário, pode-se ter o afastamento da “oposição” – ou o que passa por ela – do governo durante mais de duas décadas, frustrando possivelmente metade do eleitorado brasileiro – das regiões mais desenvolvidas e majoritariamente de estratos mais esclarecidos – que não se reconhece no, e até recusa o, projeto de poder do bloco petista atualmente hegemônico. A percepção que emerge da atual situação brasileira é a de que a maior parte da população – embora não suas correntes mais esclarecidas – partilha das concepções econômicas, políticas e culturais do atual bloco no poder, que demonstrou ter praticado um “gramscismo” adaptado às condições de educação política do Brasil, configurando um cenário político que apresenta desafios para a consolidação de um sistema democrático no país, na medida em que as práticas políticas mobilizadas por esse bloco representam de fato um atraso relativo do ponto de vista da ética cidadã.

 

2. As tarefas da oposição num sistema político democrático

Em situações democráticas “normais” – isto é, com possibilidades reais de alternância no poder entre duas, ou mais, correntes majoritárias, geralmente uma de tendências social-democrática, ou socialista, outra mais centrista ou reformista moderada, por vezes também um setor conservador –, o grupo que perdeu as eleições em um dado país se recompõe politicamente – eventualmente mudando seus líderes – e se dedica à uma séria preparação para os novos embates eleitorais mais à frente.

A primeira tarefa, quando na oposição, é a de elaborar um diagnóstico – se possível consensual no partido – sobre as razões da derrota, analisando os fatores principais do insucesso e daí retirar as lições que se impõem, no que pode ser um simples episódio eleitoral momentâneo. Se a derrota é, porém, recorrente, ou mesmo “estrondosa”, o diagnóstico teria de ser amplo, alcançando inclusive as bases programáticas do partido (sua “carta” aos eleitores); nos casos menos graves, se deve atuar sobre os fatores de oportunidade, de mensagem política e de apresentação de propostas ao público eleitor. Feito o diagnóstico, retiradas as lições, deve-se preparar o terreno para as novas etapas que se apresentarão inevitavelmente à oposição.

Normalmente, uma oposição organizada tem, entre seus membros mais distinguidos e também no staff partidário, especialistas nas diversas políticas macroeconômicas e setoriais que devem compor a mensagem do partido para o seu eleitorado, tradicional e flutuante (pois a intenção é sempre a de conquistar maior apoio entre os eleitores). Esses especialistas devem fazer o seguimento das políticas correspondentes do bloco no poder, discutir suas implicações para o país e tentar oferecer suas propostas alternativas de políticas, que contemplem as expectativas de seu eleitorado e de franjas mais amplas da população. 

Normalmente esse trabalho é conduzido no parlamento, mas o partido também pode ter apoios extensivos na sociedade, como são aqueles vinculados a movimentos sindicais e de interesses setoriais. Na tradição inglesa, se tem a prática do “shadow cabinet”, ou seja, um “ministério” alternativo que faz o acompanhamento das políticas em curso, elabora a crítica das medidas implementadas e faz um oferecimento público de suas próprias alternativas de políticas. Este é o principal dever da oposição. 

Na prática, as coisas são mais complicadas, pois mesmo nos partidos mais modernos e institucionalizados, muito depende dos líderes do momento, do carisma e atração que estes possam exercer sobre o eleitorado, e também das disputas entre as lideranças desse partido, que podem descambar para o regionalismo ou caciquismo, em ambos os casos com consequências nefastas para a imagem da oposição. Mais grave ainda é quando essa oposição perde o contato com a realidade e com as expectativas de seu próprio eleitorado, para não dizer da maioria da nação. Surgem nesse caso dissidências que vão para outros partidos ou constituem os seus próprios.

Em qualquer hipótese, qualquer governo – de esquerda, de direita ou de centro  – suporta o inevitável desgaste da governança, já que políticas “anti-populares” sempre precisam ser implementadas em algum momento, seja para corrigir exageros de tipo social-democrático (distributivismo fiscalmente irresponsável, déficits orçamentários, desalinhamentos cambiais, etc.), seja na vertente oposta (percepções de que os centristas ou conservadores se ocupam mais dos ricos do que dos pobres), ou por razões diversas (problemas de segurança, desemprego, etc.). A própria dinâmica econômica e conjunturas adversas impõem limites a quem exerce o poder. 

Assim, quando o eleitorado decide tentar outros remédios, outras soluções, a oposição, qualquer que seja ela, precisa estar pronta para implementar suas receitas, seus remédios. A oposição precisa ter um programa de governo. Para isso ela precisa ter um projeto de poder, ou seja, ter consciência do que precisa ser feito, dizer como pretende fazer, e demonstrar credibilidade nesse tipo de empreendimento.

 

3. A “oposição” brasileira e suas principais deficiências

Não é preciso ser um analista político de qualquer envergadura para constatar que a “oposição” brasileira – que, na verdade, vinha de oito anos, ou mais, de exercício do poder – falhou miseravelmente em sua missão oposicionista. Dizer que ela foi inepta, ineficiente, incompetente, no limite patética, seria até ser generoso com as principais forças que foram agrupadas nessa classificação de “oposição”. Basta dizer que simplesmente não existiu oposição durante todo o governo Lula: as forças que deveriam, até precisavam, ser oposição, simplesmente se auto-anularam para um exercício que é uma das tarefas mais legítimas em todos os regimes democráticos. 

Em sua defesa, pode-se dizer que os petistas, seu líder em especial, foram extremamente competentes – descontando-se, claro, as mistificações criadas para tal efeito – na construção de uma versão peculiar do processo político, da própria história recente do Brasil, o que deixou as forças potencialmente oposicionistas num estado psicologicamente defensivo, até de “vergonha assumida”, por supostos erros e injustiças cometidas ao longo do chamado neoliberalismo do tucanato. Poucas vezes, no cenário político brasileiro, a versão deformada da história, em vários aspectos até mentirosa, conseguiu tal impregnação no imaginário popular, a ponto de anular discursos e ações de cunho oposicionista.

Muito se deve, obviamente, às qualidades de “prestigitador” político do presidente popular, suas mistificações propagandistas, mas também às boas condições da economia internacional, durante a maior parte de seus dois mandatos, e a uma gestão razoavelmente responsável na frente econômica. Mas deve-se reconhecer, também, que a “oposição” se auto-anulou durante todo esse tempo, jamais tendo conseguido articular um discurso coerente, sequer esclarecedor, sobre o cenário de mentiras criado pelo bloco no poder. Quais as razões desse suicídio político?

Todo e qualquer ato político é encarnado por personagens políticos, príncipes e conselheiros do príncipe, que se conjugam na missão de conduzir homens e partidos ao pináculo do poder, ao comando do Estado. Devemos então concluir que à “oposição” brasileira faltaram as virtudes e qualidades que, segundo o florentino, devem estar presentes nas pessoas que pretendem deter esse comando. Não que o presidente do bloco no poder fosse um estadista, mas certamente se tratava de um “animal político” extremamente competente. Pode-se dizer, nesse sentido, que à “oposição” – ou o que passa por ela – faltaram “animais políticos” de verdade, pessoas que tivessem as virtudes ou a fortuna – para permanecer nos termos do florentino – para representar uma pequena chance de alternância na disputa de poder. 

Por certo que se trata de uma incapacidade de se organizar, com bases reais na sociedade, para, a partir daí, conceber e exibir um discurso coerente, compatível com as aspirações de largos estratos sociais, sobretudo nas classes médias. Mais grave ainda, pode-se dizer que à “oposição” brasileira faltaram sobretudo ideias claras sobre como apresentar e “vender” seu programa, se é presumível que, de fato, ela pudesse ter algo assimilável a um programa para oferecer à metade da população – na verdade estratos cambiantes – que não aceita e nunca aceitou a propaganda política que lhe foi servida sob disfarce de “política nacional” pelo bloco no poder. Sem conseguir ver claro no cenário político, dividida pelo caciquismo de seus líderes regionais, a “oposição” não soube sequer explorar as inconsistências e mazelas do bloco no poder, tão evidentes aos olhos de estratos médios de eleitores basicamente comprometidos com a ética e a moralidade no trato da coisa pública. 

Pode-se aventar a hipótese de que a qualidade dos homens públicos que se colocam numa oposição de princípio ao bloco no poder – não por razões puramente instrumentais, de conquista do poder pelo poder, mas quer se acreditar que por razões de filosofia política – precisaria melhorar dramaticamente para que eles possam integrar algo suscetível de ser chamado de oposição. Talvez seja inclusive necessário novas lideranças políticas, que obviamente tenham “princípios” compatíveis com uma oposição digna desse nome.  Tal “reinvenção” depende de vários fatores dentro os quais podem ser citados: a reeducação dos próprios integrantes do que é hoje uma oposição de araque; a reorganização de suas bases partidárias; a revisão do seu modo de “funcionamento” no Congresso; mudanças nos parâmetros mentais que orientam o discurso político e que comandam suas ações no plano prático; transparência aos olhos dos eleitores e, sobretudo, distinção clara com “tudo isso que está aí”, atualmente, e que visivelmente não agrada ao eleitorado instruído. Tudo leva a crer que uma nova oposição precisa ser construída, ou que a atual “oposição” deva ser praticamente reinventada, para, finalmente, começar a existir. Vejamos como.

 

4. Observações sobre uma possível estratégia de reconquista do poder

A oposição a ser construída – a verdadeira, não o simulacro que hoje existe –  já parte de uma formidável base real e potencial. Os dados eleitorais estão disponíveis no site do TSE, mas se podem extrair algumas conclusões adicionais a partir deles. A base total do eleitorado brasileiro situava-se, em 2010, em quase 136 milhões de pessoas, provavelmente atingindo 145 milhões em 2014. A abstenção em 2010 foi excepcional, alcançando quase 30 milhões de eleitores, aos quais se juntaram 4,6 milhões que anularam seus votos e 2,5 milhões que se abstiveram de qualquer escolha. Os “excluídos” representaram, portanto, um quarto do eleitorado; pode-se, em toda legitimidade, imaginar que eles possam ser reduzidos à metade, em condições normais de disputa política, o que, infelizmente, não ocorreu em 2010. 

Imaginamos, também, que os votos dados à “oposição”, em torno de 43 milhões, sejam realmente de oposição ao presente estado de coisas, especificamente ao “Estado do PT”. Pode-se razoavelmente conceber que uma oposição – qualquer oposição – no Brasil, possa reunir metade do eleitorado, admitindo-se, inclusive, que a educação política, de um lado, e o desgaste do poder petista, de outro, contribuam para uma pequena maioria potencial, numa situação em que o mito carismático ainda estará ativo e trabalhando para consolidar o poder petista. Não existe, portanto, numa abordagem prosaicamente matemática, garantia de vitória, ou certeza de derrota, para qualquer um dos lados, pois os “flutuantes”, os “indiferentes” e os “desalentados” são em número suficiente para alterar a balança para qualquer dos lados.

Números, porém, são um componente talvez objetivo, mas insuficiente para determinar resultados eleitorais. Mais importante é a predisposição do eleitorado para “acolher” uma definição clara quanto aos problemas mais angustiantes da conjuntura. A situação econômica pode até ser decisiva numa escolha eleitoral, mas as percepções sobre quem conduz a política econômica e sobre como ela é conduzida pelos responsáveis também são relevantes. Questões como emprego, segurança pessoal, disponibilidade de serviços públicos – saneamento, saúde e educação, etc. – e temas pontuais, de interesse setorial ou regional podem fazer pender a balança eleitoral.

Não importa quais sejam as alternativas de políticas oferecidas ao público eleitor por uma oposição efetiva e confiável, é preciso que esta seja precisamente isso: confiável. Ora, não é surpresa para nenhum eleitor medianamente bem informado que a classe política, de maneira geral, fez tudo o que era possível para se desqualificar moralmente, para se rebaixar no plano da ética, para deteriorar completamente a instituição parlamentar e outro tanto no plano dos executivos locais, estaduais e até o federal. Qualquer que seja a qualidade da nova mensagem política de oposição, se ela um dia existir, sua credibilidade, intrínseca e extrínseca, depende essencialmente da regeneração moral de suas lideranças, que deveriam operar aquilo que os italianos – escaldados por anos e anos de corrupção política – chamam de rientro morale, ou seja, uma profunda recomposição da ética na vida política do país. 

A julgar por exemplos recentes – e a questão das aposentadorias pornográficas dos governadores é mais um caso eloquente de completo descompasso entre as expectativas da população e a atitude das “oposições” – o Brasil não está sequer próximo de uma recomposição da classe política para fora da atual degradação das instituições de representação; nisso, a suposta “oposição” não se diferencia em nada das perversões morais alimentadas pelo próprio bloco no poder. Aparentemente, a “oposição” atual ainda não está pronta a empreender essa passagem; ela não quer enfrentar sua própria regeneração moral (talvez não possa, ou não tenha coragem). 

Uma vez aceita e internalizada essa decisão pela “moralização” da oposição – que se situa no centro de toda e qualquer regeneração oposicionista, cabe lembrar – começa então a tarefa de organizá-la em função do objetivo da reconquista do poder. Tal tarefa implica, em primeiro lugar, uma definição clara de um programa político de escopo nacional e setorial, ou seja, uma plataforma explícita tocando em todos e cada um dos principais problemas nacionais, sobretudo na esfera institucional, no terreno econômico e nas diversas áreas de maior impacto no plano das políticas públicas (social, cultural, regional, etc.). 

Não é simples montar um programa e uma plataforma de ação com tal amplitude, o que certamente exigirá seminários e grupos de trabalho em cada uma dessas vertentes abertas à ação partidária. Mas um partido, ou uma oposição, que pretenda aspirar a ser uma real alternativa de poder não pode ser econômico nem em definições programáticas, nem em propostas político-econômicas relativamente detalhadas. Basta arregaçar as mangas e colocar o cérebro para pensar.

 

5. Conclusões não definitivas: tudo depende de lideranças esclarecidas

Não parece haver dúvida, visto o panorama da planície – isto é, do ponto de vista dos cidadãos eleitores – de que o Brasil não conta com uma classe política à altura de suas novas responsabilidades enquanto potência emergente, desejosa de assumir um papel relevante na cena internacional. Mas nenhum dos problemas atuais enfrentados pelo Brasil tem a ver com impactos negativos do ambiente externo: o mundo tem sido muito “generoso” com o Brasil, oferecendo mercados e provendo investimentos de todos os tipos para sustentar seu crescimento do período recente.

Todos os problemas brasileiros, sem exceção, são “made in Brazil”, e devem receber aqui sua solução; seu equacionamento passa por um conjunto de reformas que deveria estar no centro de qualquer programa credível de proposta política geral de um movimento oposicionista aspirando legitimamente conquistar o poder para implementar, a partir daí, essas reformas. A oposição não conseguirá chegar a ocupar esse espaço alternativo de candidata ao poder se não trabalhar intensamente no diagnóstico dos problemas brasileiros, no oferecimento de respostas sólidas aos mesmos problemas, e na sua própria organização interna, colocando-se numa posição de governo “virtual”, ou potencial, com base em propostas aceitáveis para uma maioria de brasileiros, sem ceder a populismos ou à demagogia habitual nesses meios.

Uma das condições essenciais para que essa oposição seja construída parece ser a existência de lideranças dotadas de credibilidade intrínseca e de capacidade política para, em primeiro lugar, reformar profundamente a “oposição” atual e, num segundo momento, presidir à elaboração temática e organizacional de um “governo” alternativo ao atual bloco no poder. Não existe nenhum obstáculo “técnico”, nenhuma força externa à própria “oposição”, nenhum impedimento estrutural, ou nacional, de caráter político, a que essas tarefas sejam empreendidas.

Tudo depende da disposição de figuras políticas que pretendam aspirar ao papel de alternativa ao poder atual: a “fortuna” do quadro político pode ser favorável a uma oposição renovada, como parcialmente revelado nas eleições de 2010, mas o fator mais importante ainda é, sempre é, constituído pelas “virtudes” dos condutores de cidadãos.                                


  [2 de março de 2011]