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terça-feira, 26 de maio de 2009

1119) De volta ao problema do Apartheid racial: mais um artigo

Eu sou, aparentemente, da fração majoritária e privilegiada da população brasileira. Branco, diplomata, enfim um membro da elite branca, como diriam os promotores atuais do Apartheid, disfarçados de justiceiros da discriminação racial que acreditam existir no Brasil, portanto requerendo políticas de ação afirmativa sob a forma de cotas raciais.
Acontece que sou neto de avós europeus, imigrantes pobres, analfabetos, que vieram para o Brasil substituir os escravos nas plantações de café. Esse é um fato, não uma declaração de auto-comiseração.
A história tem certamente muitas injustiças, mas não se corrigem injustiças passadas criando novas injustiças.
Minha avó analfabeta tinha um imenso orgulho de meus estudos, o que certamente foi um fator importante, de ordem familiar, para estimular minha passagem das chamadas classes subalternas para uma posição que alguns (equivocadamente) classificam como de elite. Admito apenas a elite do saber, do conhecimento, do esforço individual na busca do auto-aperfeiçoamento, o que obtive unicamente com base em meu empenho individual nos estudos e no trabalho.
Minha avó analfabeta certamente não concordaria em que eu alcançasse qualquer situação por uma política de favor. Ela morreu analfabeta, mas trabalhou até morrer, sempre com muito orgulho de meus estudos.
Infelizmente, outros brasileiros, brancos e negros pobres, não tiveram uma situação social, uma condição familia, um background cultural, que os incitassem aos estudos, nem as escolas ajudaram nesse sentido. Trata-se de uma falha coletiva que temos de corrigir, pois eu, felizmente, pude dispor de uma escola e ensino de qualidade, e de uma biblioteca pública onde passei a maior parte da minha infância e pré-adoslecência. Credito unicamente a esses fatores minha ascensão para a elite. Acredito que outros poderiam conseguir, também, com base em esforços individuais.
Enfim, isto, apenas para introduzir o artigo abaixo que me parece apropriado para os tempos que correm.
Paulo Roberto de Almeida (26.05.2009)


Estatuto da Diferença Racial
ALI KAMEL
O Globo, Quarta-feira, 20 de Maio de 2009

A Câmara está para votar uma lei cujos efeitos são os opostos do que anuncia seu nome: “Estatuto da Igualdade Racial”. O que seus autores estabelecem no projeto é um “Estatuto da Diferença Racial”, pois dividem, autocraticamente, os brasileiros em duas “raças” estanques: negros e brancos.

O estatuto, na sua essência, é muito similar às leis segregacionistas em vigor nos Estados Unidos antes da vitória da luta pelos direitos civis e às leis sul-africanas ao tempo do Apartheid.

Não importa que o objetivo explícito aqui seja “promover” a “raça” negra; importa que, para fazê-lo, o estatuto olha os brasileiros, vê dois grupos estanques, impõe-lhes a afiliação a uma de duas “raças”, separa-os, conta-os e concede privilégios a um e não ao outro. Não há igualdade nisso, apenas discriminação.

Os Estados Unidos sempre estiveram sob o comando da Constituição, e esta sempre declarou que todos os homens são iguais. Como explicar, então, que, por tantos anos, tenham estado em vigor leis segregacionistas? Porque, lá, construíram-se leis como as que querem construir aqui: cidadãos iguais, sim, mas separados, cada um do seu lado “para o seu próprio bem”. A mistura era vista com horror, como algo que enfraqueceria tanto os negros quanto os brancos, daí a segregação.

No Apartheid da África do Sul, o discurso era o mesmo. O mestiço era considerado um pária, algo que já começam a repetir no Brasil, segundo denúncia de Demétrio Magnoli aqui mesmo nesta página. Esse estatuto, em que pesem as intenções em direção oposta, tem exatamente a mesma essência. O resultado será sempre o pior possível.

Vou dar apenas dois, de muitos exemplos. O projeto determina que todas as informações do SUS sejam desagregadas por “raça, cor, etnia e gênero” (vejam a obsessão, “raça, cor e etnia”), para que as doenças da população negra sejam mais bem entendidas e combatidas. Ocorre que a ciência já provou que não existem doenças vinculadas à cor da pele da pessoa: não existe doença de branco, de negro, de moreno.

Existem doenças que, geneticamente, estão mais presentes em grupamentos humanos, especialmente entre aqueles que não se misturam. É só pensar na África: ali, a imensa maioria é negra, mas a incidência de certas doenças varia de região para região. Algumas tribos, que não se casam com gente de fora, perpetuam certa doença que não ocorre em outras tribos, igualmente negras. Da mesma forma e pelos mesmos motivos, num país onde a segregação foi muito severa, talvez seja possível encontrar incidência maior de uma doença entre negros. Mas, em países abençoadamente miscigenados, como o nosso, isso simplesmente não existe.

Como todos sabem, o SUS é procurado mais que preponderantemente por pessoas pobres, brancas ou negras ou morenas, ou amarelas. Qualquer estatística produzida pelo SUS, hoje, mostrará quais as doenças que afetam mais os pobres, e essa incidência será relacionada corretamente à pobreza. Se o estatuto for aprovado, haverá uma distorção enorme: como os negros são a maioria entre os pobres, as doenças que acometem mais os pobres em geral, pelas péssimas condições em que vivem, serão vistas como doenças dos negros, de qualquer renda. A crença dos que defendem o estatuto é que, com esse dado na mão, os negros poderão se beneficiar de políticas de prevenção.

Não tardarão a aparecer, contudo, racistas em algumas empresas evitando, disfarçadamente, a contratação de negros porque, supostamente, eles são mais vulneráveis a tais e tais doenças. Será o efeito oposto do que prevê o estatuto.

Outro exemplo: o projeto também impõe que toda criança declare a sua cor e a sua “raça” em todos os instrumentos de coleta do Censo Escolar (válido para escolas públicas e privadas). A ciência já mais do que provou que todos os seres humanos, independentemente da cor da pele, têm o mesmo potencial de aprendizado, ou, dito de uma maneira mais clara, são igualmente inteligentes.

Com essa medida, o que os proponentes do estatuto desejam é, ao final de um período, mostrar o desempenho de alunos negros e brancos.

Como, novamente, os negros são a maioria entre os pobres e como os pobres estudam nas piores escolas, é provável que os negros apresentem um desempenho pior, o que será exibido, não como resultado da penúria por que passam os pobres em geral (negros ou brancos), mas do racismo.

A crença dos proponentes é que os dados tornarão possível uma ajuda maior aos negros, mas o efeito prático é que os negros, de todas as faixas de renda, ganharão mais um rótulo, a ser explorado pelos racistas abjetos que existem em toda parte.

Estão criando um monstro.

Aos deputados que vão votar o projeto, especialmente àqueles que ainda não se decidiram, eu lembro: a ciência já provou que raças não existem, nós seres humanos somos incrivelmente iguais, apesar da diferença de nossos tons de pele; reforçar a noção de “raça” só aumenta o racismo; todas as políticas devem ser voltadas à promoção dos pobres em geral, negros, brancos, pardos, amarelos, qualquer um; nossa maior contribuição ao mundo, até aqui, foi a exaltação da nossa miscigenação, algo realmente inédito na história dos povos.

Mudar isso é mudar a essência de nossa nação. Para pior, muito pior.

No século XXI, nossa visão de mundo tem de ser pós-racial: lutar com todas as forças contra o racismo, não para enaltecer as “raças”, que não existem. Mas para que todos possam ser vistos apenas pelo que são: homens e mulheres. Alguém não deve ser ajudado porque é dessa ou daquela cor ou “raça”, mas simplesmente porque precisa.

Não há igualdade racial no estatuto proposto; apenas discriminação.

ALI KAMEL é jornalista. E-mail

2 comentários:

Fabricio De Souza disse...

Professor, o senhor descreve, através da história de vida dos seus avós, que só com esforço pessoal podemos mudar a situação. Não existe mágica ou outra forma de inclusão que assim o faça. Nós, me incluo pois meu bisavô era filho de escravos, devemos nos libertar dos grilhões e do pensamento retrógrado que nos golpeia e nos lança direto a casa grande. Estudar e perserverar ainda são os melhores ingredientes contra qualquer tipo de discriminação.

Anônimo disse...

Sou mais uma que se identifica com sua história de vida. Meses antes de falecer, minha avó, semianalfabeta me parabenizava por conseguir o conceito A ( o mais alto, no momento) para admissão na mesma UERJ que foi a primeira a adotar as cotas no ano seguinte ao meu ingresso na universidade. A branca bolsista, neta de portugueses pobres fugidos de Salazar não teve direito a cotas. Assim como os pardos e alunos de escola pública que entraram com ela na faculdade ou os agostinianos e beneditinos que fizeram parte da turma. Pena minha avó não ter visto minha formação e ver que sua luta neste país valeu a pena. Pena termos que ser penalizados por melhorar com méritos próprios nossa condição social.