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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Livro (1): como nos tempos antigos (um romance)
ACIDENTE EM MATACAVALLOS e outros faits divers
Mateus Kacowicz
Grupo Editorial Record/Editora Record
320 páginas
Preço: R$ 44,90
ISBN: 8501088749
ISBN-13: 9788501088741
1ª Edição – 2010
‘Acidente em Matacavallos e outros faits divers’, notas de uma leitura ininterrupta
Marcio Silveira
3/06/2010
O romance começa com uma notícia de jornal, de um jornal de 1921.
A primeira impressão de leitura de “Acidente em Matacavallos e outros faits divers”, de Mateus Kacowicz, é de surpresa diante da linguagem: ela brota límpida, aos borbotões, retomando um prazer de ler do qual eu estava saudoso. O romance começa com uma notícia de jornal, de um jornal de 1921, naquela linguagem antiga e aparentemente ingênua dos jornais da época:
“Quasi dávamos á estampa a presente edição quando fomos informados de que mais uma familia foi enluctada por um bonde n’esta cidade. D’esta feita o infausto se deu a Matacavallos. A portugueza Maria Couceiro, lavadeira, cuja edade nos é desconhecida, foi colhida pelo carro-motor Nº 8, conduzido pelo nacional Clemente Euphrasio…”
Uma viagem no tempo: bondes, lavadeiras, “dar á estampa”, “faits divers” (=“fatos diversos”, nome em francês que, nos jornais, se dava à seção onde se publicavam as notícias de menor importância). Pois bem, a aparente inocência desta notícia inaugura uma trama que irá mostrar muito das relações de poder e influência na capital.
Fui fisgado pela leitura desde a primeira página. A narrativa transcorre fluida, os fatos se encadeiam, volta e meia surge um anúncio (que o autor chama de “reclame”, como na época) ou noticiário que pontuam os fatos e mantêm o sabor do tempo. As ruas da cidade se renovam, esperando as festividades que comemorarão o Centenário da Independência, os cavalheiros encontram-se nos bordéis de luxo, as senhoras tomam sorvetes nas confeitarias da rua do Ouvidor.
Surgem na narrativa dois irmãos, imigrantes da Rússia, escapados das matanças religiosas antissemitas. Um deles já havia chegado por aqui e iniciado sua vida de mascate pelos subúrbios. O Romance o encontra esperando o irmão mais jovem no cais do porto. Esses dois irmãos irão, a partir dessa reunião, se ligar e se separar.
Mas se “Acidente em Matacavallos e outros faits divers” acompanha as andanças e progressos desses irmãos, também trata das tribulações de um Ministro da República, que se perde de amores por uma francesa recém-chegada.
A partir daí, já comecei a sentir uma certa dormência nas pernas, pois estava lendo de pé na livraria. Sentei-me num tamborete que estava por ali e avancei livro adentro. A linguagem, a literatura, cada vez mais precisa, o tratamento sempre por “tu”, a intimidade dos jantares familiares, a vida flanante dos bon-vivants, dos almofadinhas, dos felizes dessa terra, a cozinha do jornal, o chumbo, as máquinas, o noticiário, a ética, as mentiras, as verdades, as meias-verdades. As meias-mentiras.
Meu escritório me liga para me informar que as pessoas com as quais eu havia marcado uma reunião estão à minha espera há 15 minutos. Informo que ocorreu um imprevisto, que peço desculpas, e que não me telefonem mais.
Agora uma cena de carnaval. Uma marchinha que fala em um beliscão “só pra saber se tu gostas de mim, ou não”. Que tempos devem ter sido. O carnaval descrito por um menino russo, ainda meio adolescente, enlouquecido com o que via, multidões em fantasias improvisadas, automóveis sem capota com a fina flor da burguesia local se atirando papeis e se gritando uns aos outros, bondes apinhados de foliões.
Dei-me conta que havia marcado a página com a passagem do carnaval, pensando em mostrá-la mais tarde à minha mulher e que esse gesto me comprometia a comprar o livro. Ainda lendo fui ao caixa, que me perguntou se era para presente. Eu disse que nem precisava embrulhar, pois continuaria a lê-lo ali mesmo. Ela cobrou e simplesmente deu-me a sacola da livraria à qual eu tinha direito. Sentei-me em um café do shopping center onde eu estava e tentei me transportar para um café na Avenida Central, voando no tapete mágico que o autor me oferecia.
Ali mesmo comi um sanduíche e tomei diversos cafés. A leitura avançava em meio ao velório de um escritor, quando o telefone me avisou, em maus bofes, de que eu tinha de ir para casa. mas, para isso, teria que parar de ler e dirigir meu carro. Minha mulher estava ressabiada, em meio a perguntas do tipo “onde” e “com quem” eu havia passado parte da manhã e a tarde, resolvi apaziguá-la lendo o trecho da página que havia marcado e que tinha uma passagem assim:
“… Viajantes desembarcados de uma saturnal da noite dos tempos, que ora paravam e cantavam algo ritmado e incompreensível, ora saíam aos pinotes repicando os tamancos, obedecendo à mesma lógica de uma revoada, jogando-se águas e bulindo com quem estava por perto…”
Ela me pediu que lesse mais e, como prova de profundo amor, dei a ela o livro para que ela pudesse folheá-lo à vontade. E é neste intervalo de leitura que escrevo estas notas.
Não percam o livro.
(Não vou perder, mas agora não posso comprar, aqui na China; aguardo uma próxima viagem ao Brasil, para começar a ler na livraria...)
Um comentário:
Li este "Acidente em Matacavallos" que de acidental não tem nada. Tudo é pensado e a trama se tece com precisão e maestria. E isso em meio a um padrão literário que não tenho visto há muitos anos. O autor é um craque. Vi pela foto da orelha que ele não é nenhum garoto. Onde estava ele esses anos todos que eu nunca ouvi falar?
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