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sexta-feira, 9 de julho de 2010
Politica Externa Brasileira: uma analise de janeiro de 2004
Política Externa Ativa e Altiva: algumas questões
Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questões colocadas por um jornalista
Brasília, 25 de janeiro de 2004
1) Quais os principais pontos que diferenciam a política externa atual da do governo anterior?
Sem dúvida alguma, do ponto de vista da forma, um ativismo exemplar, representado por um intenso programa de diplomacia presidencial, complementado por um ainda mais ativo circuito de contatos, encontros, viagens de trabalho e conversações a cargo do chanceler e, de maneira algo inédita para os padrões do Itamaraty, do próprio Secretário-Geral das Relações Exteriores, funcionário normalmente (e tradicionalmente) dedicado às lides administrativas e aos assuntos de “economia doméstica” da Casa. Tanto o ministro como seu principal auxiliar têm conduzido uma das fase mais dinâmicas da diplomacia brasileira em qualquer época histórica.
Do ponto de vista do conteúdo, uma postura mais assertiva, mais enfática em torno da chamada defesa da soberania nacional e dos interesses nacionais, assim como de busca de alianças privilegiadas no Sul, com ênfase especial no processo de integração da América do Sul e no reforço do Mercosul. Tudo isso não deveria surpreender, pois que figura nos documentos do partido hoje majoritário há praticamente vinte anos, por vezes nos mesmos termos e estilo, até na terminologia, coincidindo, portanto, com a política externa efetivamente praticada atualmente.
No que se refere à agenda diplomática propriamente dita, pode ser ressaltada a postura crítica em relação à globalização e à abertura comercial, com um maior empenho na reafirmação das posições tradicionais do Brasil em matéria de negociações comerciais (busca de acesso aos mercados desenvolvidos, com a manutenção dos mecanismos que favorecem países em desenvolvimento, não comprometimento com demandas de liberalização que possam representar comprometimento da capacidade nacional de estabelecer políticas nacionais e setoriais de desenvolvimento e de capacitação tecnológica), bem como uma definição contrária – também tradicional no partido agora no poder – à chamada “fragilidade financeira externa”, com a implementação consequente de políticas que reafirmem a necessidade de saldo comercial e a não dependência de capitais externos nas relações econômicas internacionais.
No plano político, é evidente o projeto de reforçar a capacidade de “intervenção” do Brasil no mundo, a assunção declarada do desejo de ocupar uma cadeira permanente num Conselho de Segurança reformado e a oposição aos unilateralismos ou unipolarismos, com a defesa ativa do multilateralismo e de um maior equilíbrio nas relações internacionais. No plano econômico, trata-se de buscar maior cooperação e integração com países similares (outras potências médias) e vizinhos regionais.
2) O que se pode esperar concretamente dessa mudança?
Ainda é prematuro para formular possíveis consequências dessas mudanças de estilo e mesmo de conteúdo na política externa governamental, mas a intenção proclamada é a de assegurar maior presença do Brasil no mundo, garantir-lhe uma cadeira permanente na ONU e tornar sua voz ouvida nos grandes problemas da comunidade internacional. Uma busca mais afirmada da liderança regional pode também resultar do ativismo regional, mas nesse particular a liderança não parte apenas do desejo que quem lidera, mas da aceitação consensual dos liderados presumidos. Este ponto ainda não ficou muito claro na relação com a Argentina, que sempre declarou e entendeu sua relação com o Brasil num plano igualitário, e não assimétrico.
3) Do ponto de vista regional, qual a principal mudança? O sr. acha que a integração sul-americana é um dos grandes diferenciais dessa política do governo Lula? Como vamos implementar a integração com tanta falta de recursos financeiros dos países sul-americanos?
O Mercosul passou a ser buscado talvez não mais como um meio para realizar objetivos mais gerais de política externa ou de “economia política”, mas aparentemente como um fim em si mesmo, dispondo-se o Brasil a assumir os custos e responsabilidades dessa ênfase acrescida no papel do Mercosul. A integração sul-americana já fazia parte da agenda diplomática anterior, mas ela agora foi particularmente reforçada, com o direto envolvimento de um de seus principais patrocinadores, o SG em pessoa. Passou-se também a dar importância aos aspectos não diretamente comerciais da integração, como a coordenação de políticas macroeconômicas (inclusive com o projeto de uma futura moeda comum) e as vertentes social e política (Parlamento comum, por voto direito), o que pode representar novos investimentos num edifício integracionista ainda carente de alguns alicerces comerciais.
A falta de recursos financeiros pode ser um impedimento para a realização de muitas iniciativas vinculadas à integração física, mas o mais importante parece ser a fragilidade econômica atual dos países membros, o que torna difícil a derrubada das últimas barreiras internas à consecução da zona de livre comércio, ao acabamento da união aduaneira e à implementação do mercado comum. As assimetrias internas teriam de ser superadas mediante programas compensatórios, o que também é difícil numa conjuntura de fragilidade econômica como a que vivem os países membros.
4) Em termos geoestratégicos, o que muda quando o Brasil se coloca, no cenário internacional, com pleitos de país que quer ocupar um lugar ao sol? (Isso em termos de ONU, OMC e também no conjunto das relações internacionais)
Se aceita e factível de ser implementada essa mudança de postura, o Brasil passa a ser mais ouvido, mas isto tem correspondência na necessidade de assunção de maiores responsabilidades, em termos de segurança, assistência e cooperação ao desenvolvimento, o que obviamente implica em custos financeiros e capacidade militar.
5) O estreitamento das relações com a África do Sul pode significar o que, em termos de Atlântico Sul (ponto de vista geoestratégico, incluindo questões no campo da defesa)) e da reaproximação Brasil-África?
Pode-se, a termo, pensar na conclusão de uma aliança mais estreita para a implementação da zona de paz e cooperação no Atlântico Sul, tanto pelo lado da defesa, como pelo lado da cooperação. Dificilmente, contudo, se logrará um acordo com as grandes potências para a renúncia de passagem, em águas tão importantes, de barcos e submarinos nuclearmente armados. De toda forma a cooperação estratégica faria com que os dois países (e outros da região) se tornassem menos dependentes, em termos de equipamentos e posicionamento estratégico, de uma das grandes potências.
6) E mais longe, o que se pode esperar do bloco Brasil, África do Sul e Índia (e, mais tarde, a possível incorporação de China e Rússia)?
Difícil dizer, pois estes países estão desigualmente inseridos no grande jogo estratégico internacional, com agendas regionais e mundiais próprias, que podem coincidir em alguns pontos com a do Brasil atual (o não-hegemonismo, por exemplo), mas não necessariamente em todos. Brasil e África do Sul não são potências nucleares e não têm, a rigor, pendências com vizinhos ou ameaças estratégicas perceptíveis, o que é diferente dos “perigos” (supostos ou reais) que ameaçam a segurança dos três outros. Não creio, assim, que se possa falar em “bloco”, mas tão simplesmente em diálogo e cooperação para a busca de objetivos comuns, o que se alcança em questões pontuais que não serão necessariamente as mesmas para todos ao mesmo tempo. De toda forma, fica difícil falar in abstracto, sem conhecer as conversações que vêm sendo mantidas com esses países, em torno, hipoteticamente, de alguma agenda comum. Se ela existe, não foi ainda explicitada, além de algumas questões gerais que foram destacadas no período recente: intensificação dos intercâmbios e da cooperação, acordos de liberalização comercial, apoio mútuo em alguns pontos da agenda multilateral, etc.
7) Nesse cenário, qual a força do Brasil e do Mercosul nas negociações da Alca? O que, de fato, mudou nas negociações hemisféricas a partir da ascensão do governo Lula?
A postura deixou o lado das negociações meramente “técnicas” para enfatizar o chamado interesse nacional, com uma visão mais crítica das vantagens e desvantagens da liberalização comercial numa situação relativamente assimétrica com o império. Mas também se deixou a defesa do multilateralismo e do “entendimento único”, que eram dois pontos enfatizados pelo Brasil anteriormente, para uma escolha pela geometria variável, pelo minilateralismo e pela liberalização à la carte, o que de certa forma é compreensível, tendo em vista a própria fragmentação e diferenciação das ofertas dos EUA no esquema da Alca. De certa forma, a Alca, devido à postura do Brasil, “aladizou-se”, com as vantagens e desvantagens desse tipo de arranjo ad hoc e parcial.
8) Cuba e Venezuela têm sido acusados pelos EUA de interferir no cenário regional e de tentar impulsionar movimentos de esquerda (casos da Bolívia, Peru e Equador) . O Brasil se alinha aos dois em vários campos mas tem outra visão dos problemas regionais. De que forma o Brasil pode conduzir a crise regional, conciliando suas relações com os EUA e com a Venezuela e Cuba?
O Brasil procura manter relações corretas com todos os países da região, inclusive com os EUA, busca a reintegração de Cuba ao concerto americano e gostaria de poder contibuir para a pacificação política e militar dos países vizinhos, sem dispor, por outro lado, de condições de intervenção (no bom sentido da palavra) para fazer com que tais objetivos se concretizem. Por outro lado, há uma desconfiança de princípio, em nossos meios militares, de que a atuação dos EUA busca assegurar a preservação de sua hegemonia e influência na região, o que de certa forma poderia limitar a capacidade de influência do Brasil. Não tenho condições de avaliar quais meios e instrumentos poderiam ser mobilizados pelo Brasil, ademais dos tradicionais da diplomacia, para “conduzir a crise regional”. Aliás, não existe “uma” crise regional, mas diversas crises, geralmente internas aos países, algumas remanescentes dos tempos de tratados de fronteiras, não necessariamente administráveis pelos mesmos métodos.
9) O sr. acha que o Brasil tem uma visão antiamericana ou está apenas defendendo seus interesses? Há casos concretos que demonstrem que o governo brasileiro não é antiamericano e implementa parceria com Washington?
O governo brasileiro não é anti-americano, embora haja uma nítida postura anti-americana em diversos, talvez em amplos, setores sociais da base política do partido atualmente no poder. Pesquisas de opinião revelam esse grau de desconfiança e de animosidade em certos meios, mesmo na ausência de qualquer ação “arrogante”, “prepotente” ou unilateralista por parte do império. Foi o que se viu, por exemplo, por ocasião dos ataques terroristas nos EUA, e mesmo atualmente, quando pessoas razoavelmente bem informadas, e supostamente capazes de emitir opiniões racionais em temas de política internacional, expressam a opinião de que os EUA de certa forma, pela sua política ou por atitudes, “fizeram por merecer” esses ataques, o que é obviamente inadmissível do ponto de vista dos direitos humanos e da ética.
O governo, por outro lado, deseja uma boa relação com os EUA, mas também busca uma política de afirmação concreta da defesa dos interesses nacionais, o que por vezes se manifesta de forma algo inusitada, como no caso do fichamento de turistas e visitantes americanos. Independentemente da legalidade da decisão, aliás questionável, de um juiz que manifestamente ultrapassou suas competências, pode-se interrogar sobre a base legal de uma determinação (a portaria do governo) não explícita, e não evidente, quanto à continuidade do fichamento de cidadãos dos EUA ingressando no território brasileiro, na ausência de uma norma administrativa a esse respeito – já que o princípio da reciprocidade requer um mínimo de formalidade jurídica para sua aplicação – e na ausência de uma finalidade expressa para tal tipo de medida.
Que a opinião pública seja majoritariamente a favor da medida, não implicaria, a rigor, que o governo adotasse medidas que apresentam ônus econômico real para as autoridades de fronteira, sem uma finalidade aparente, ou sem que o resultado seja incorporado a qualquer sistema legal de segurança nacional. Neste caso, o governo pode ter desejado atender mais à opinião pública do que alguma norma racional-legal, mas não o fez motivado por anti-americanismo, mas provavelmente pelo desejo de melhorar as condições de entrada e permanência de uma hoje imensa colônia brasileira nos EUA.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de janeiro de 2004
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