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sábado, 28 de maio de 2011

Irlanda e China em 2006 e agora...

Sempre na hora da saudade, e recuperando inéditos que tinham ficado para trás muito tempo.
Como antes, ver o que permanece válido e o que já se tornou perempto...

Irlanda e China como exemplos de desenvolvimento tecnológico
Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questões colocadas por jornalista em 4 dezembro 2006
Brasília, 5 dezembro 2006

PERGUNTAS
- Nome, função de quem responde e breve resume
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor universitário, doutor em ciências sociais e mestre em planejamento econômico. Ingressou na carreira diplomática em 1977 e exerceu funções em postos do exterior, como embaixadas em Washington e Paris e delegações em Genebra em Montevidéu.

- Desde quando esses países investem em inovação tecnológica?
China
A China tem uma longa tradição científica, que ficou em segundo plano na longa trajetória de declínio econômico a partir do século XVIII. Depois de dois séculos de conflitos internos e guerras contra inimigos regionais, ela voltou a se ocupar da capacitação de seus cientistas e engenheiros. Se o “grande salto para a frente”, dos anos 1958-1962, foi um desastre incomensurável em termos de avanço industrial – com milhões de mortos de fome, literalmente, devido à desorganização da produção agrícola e o desvio de recursos e energias humanas para a confeção de aço em siderúrgicas artesanais – os preparativos para a primeira explosão nuclear, ocorrida em 1964, revelam uma certa capacitação científica e tecnológica.
A despeito de atrasos enormes no desenvolvimento da tecnologia de aplicação industrial, devido à obsolescência do sistema comunista de incentivos, o regime chinês deu importância para a formação educacional do povo e para a formação de mão-de-obra especializada. Mas, o salto decisivo se dá mesmo a partir do abandono das “teorias” econômicas marxistas por Deng Xiao-ping, a partir do final dos anos 1970, e da reinserção da China na economia mundial, da qual ela ficou afastada durante boa parte do século XX. Essa reinserção se dá, numa primeira etapa através da delimitação de ZPEs, zonas de processamento de exportações, funcionando como enclaves e regimes tributário e fiscal privilegiados em algumas regiões da costa – sobretudo meridional – em favor de investimentos diretos estrangeiros. Numa segunda etapa, esse modelo se dissemina por várias regiões, com ampliação constante de seu escopo e abrangência geográfica.
O investimento em C&T torna-se sistemático e direcionado a partir daí, como necessidade de se alcançar os níveis ostentados pelos países mais avançados.

Irlanda
A Irlanda sempre foi um dos países mais atrasados da Europa, até meados do século XX, praticamente, quando ela começa a se inserir no “mainstream europeu”. Mas, mesmo tendo ingressado na então Comunidade Econômica Européia, no início dos anos 1970, a Irlanda continuou desfrutando de uma precária base educacional, científica e tecnológica. Foi necessário uma decisão nacional, consensual, em favor da educação e da reforma econômica para que a formação de quadros capacitados para a indústria moderna começasse realmente, no início e em meados dos anos 1980.

- Como esse processo começou?
Na China, a base dessa mudança foi o reconhecimento de que o país estava completamente defasado tecnologicamente em relação ao Ocidente e que ele deveria tentar colmatar a brecha abrindo-se a esses investimentos, inclusive da Hong-Kong capitalista. Na verdade, muito dos investimentos feitos eram da diáspora chinesa, classe empreendedora espalhada por todo o sudeste asiático, sendo que as multinacionais passaram a afluir com mais intensidade a partir do final dos anos 1980, quando as mudanças políticas na China confirmaram um novo padrão de relacionamento com o capital estrangeiro.
A inovação tecnológica na China é, assim, a combinação de IDE – que realiza transferências diretas e indiretas de tecnologia – e capacitação própria, sob a forma de engenheiros e técnicos formados pelas escolas médias e superiores e pelos laboratórios nacionais especializados. O grande esforço chinês foi o de aumentar gradativamente a qualidade do seu ensino em todos os níveis, enviando inclusive milhares de estudantes para pós-graduação no exterior.
Na Irlanda, houve uma espécie de “pacto nacional” a favor da educação, pari passu à introdução de importantes reformas macroeconômicas, sobretudo na área fiscal, tributária e setoriais (industrial e comercial). Basicamente o que se fez foi reduzir impostos sobre os lucros das empresas e sobre o trabalho, abaixar substancialmente todas as tarifas alfandegárias, logo equiparadas às da CEE-UE, e conceder tratamento fiscal privilegiado para o capital estrangeiro desejoso de trabalhar na Irlanda.

- Quais as estratégias usadas pelo governo desses 4 países para garantir o suprimento de engenheiros necessários para a modernização tecnológica no país?
China
Um aspecto relevante da modernização tecnológica da China tem a ver com os processo de cópia, imitação e adaptação (muitas vezes ilegais) de produtos e processos proprietários estrangeiros, como ocorre em todos os casos de modernização e de industrialização rápidos. A China copia todo e qualquer produto que tenha sucesso, e portanto mercado, que seja suscetível de produção em massa. Mas, para que isso ocorra, é preciso dispor de um número razoável de engenheiros capacitados, prontos a fazerem engenharia reversa, a fragmentar processos produtivos estrangeiros em tarefas suscetíveis de serem imitados com sucesso, e a introduzir pequenas inovações incrementais que garantam uma produtividade superior em relação ao estado da arte naquele setor ou ramo industrial.
Deve-se levar em conta, também, as vantagens comparativas da China em termos de mão-de-obra e seu custo de “produção”: um engenheiro chinês sempre será mais barato que seu contraparte ou equivalente no Ocidente desenvolvido, mas relativamente bem pago para os padrões locais, o que garantiu um suprimento adequado para as indústrias que estavam sendo criadas.

Irlanda
Com base em incentivos fiscais, para as empresas e para atividades inteiras – produção para exportação, por exemplo – a Irlanda conseguiu integrar a “produção” de engenheiros com os programas de treinamento das próprias empresas (nacionais e estrangeiras), que passaram a pagar pelo menos a metade dos impostos que elas eram obrigadas a pagar no resto da CEE-UE.

- Como foi feito o investimento para a promoção do ensino de ciências exatas nas escolas e universidades?
- Foram criados mais cursos de engenharia?
Desconheço detalhes desse processo, mas entendo que ele foi intenso e contínuo, tanto na China quanto na Irlanda. A Irlanda se abriu bem mais a técnicos estrangeiros, que passaram a trabalhar em seu próprio território – em especial a partir de investimentos feitos por irlandeses emigrados nos EUA décadas antes --, beneficiando-se, inclusive, da utilização da língua inglesa como base inquestionável de seu sucesso na integração com os mercados externos. A China passou a formar expressivo número de engenheiros e técnicos industriais nas suas escolas técnicas e universidades. Os laboratórios nacionais mobilizam números expressivos de trabalhadores especializados.

- Quais os resultados já obtidos nesses países ?
China
A China integrou-se definitivamente aos circuitos mundiais de produção manufatureira e integra-se também, cada vez mais, às correntes de produção científica e tecnológica. A partir das cópias não autorizadas, ela já está fabricando produtos inovadores dotados de suas próprias marcas, o que lhe permitirá evitar o pagamento de royalties pela cessão de know-how estrangeiro.

Irlanda
A Irlanda tornou-se um “tigre celta”, como muitas vezes se disse, na verdade uma plataforma de exportações extremamente competitiva, com base em isenções amplas de impostos e benefícios fiscais não contemplados pelos demais países membros da CEE-UE.

- Gostaria de acrescentar algo que não perguntamos?
Não creio que as experiências da Irlanda ou da China possam ser reproduzidas pelo Brasil, uma vez que elas se baseiam num coquetel único e historicamente original de transformações produtivas e inserção nas correntes de comércio internacional, mobilizado por cada um desses países segundo circunstâncias específicas a cada um deles.
Independentemente de outros aspectos, sobretudo os educacionais, a Irlanda poderia ser equiparada a uma imensa Suframa, isto é, um território aberto ao investimento estrangeiro, dispondo de um regime fiscal privilegiado, praticamente sem travas nas conexões comerciais externas. Esse modelo dificilmente poderia ser generalizado para o conjunto do Brasil.
Da mesma forma, a China representa um caso único de vantagens comparativas absolutas no terreno da mão-de-obra, o que atrai as companhias estrangeiras que necessitam obter maiores ganhos de competitividade com base nesse fator trabalho. Esse sistema tampouco pode ser reproduzido no Brasil, que dispõe de uma legislação trabalhista “francesa”, com inúmeras garantias aos trabalhadores e que seriam incompatíveis com o modelo chinês de “exploração” da mão-de-obra.
Mas, o que deve ser registrado como ensinamento para o Brasil é a importância de se ter a economia nacional intimamente conectada com os circuitos de bens, serviços, know-how e aportes tecnológicos estrangeiros, o que se obtém via comércio internacional. Abertura ao comércio e aos investimentos estrangeiros são essenciais para assegurar patamares mais elevados de capacitação tecnológica. Similarmente, uma boa base educacional é extremamente relevante na mobilização da mão-de-obra para servir a essas indústrias conectadas com o exterior.
Finalmente, regimes fiscais favoráveis, mas essencialmente carga tributária modesta, ademais de câmbio competitivo e estabilidade das regras macroeconômicas e setoriais ajudam enormemente na tarefa de atrair e reter investimentos estrangeiros. A Irlanda e a China foram muito mais dependentes do capital estrangeiro no passado do que elas o são atualmente, já tendo adquirido capacitação própria em vários setores, o que torna esses dois países em participantes plenos do jogo da interdependência capitalista que caracteriza atualmente a globalização.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 dezembro 2006

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