Muitos anos atrás, e mesmo alguns anos depois de quando tinha sido publicado o
Histoire de l'Avenir, de Georges Minois, começando a trabalhar em "prospectiva", eu escrevi uma longa resenha desse livro que me pareceu muito instrutivo, e didático.
Como só saiu publicado em versão resumida na revista do CGEE,
Parcerias Estratégicas, reproduzo abaixo a versão completa.
Agora que saiu a edição brasileira, pela Unesp, torna-se ainda mais pertinente conhecer a argumentação desabusada de George Minois, um francês que já fez muitas outras histórias sobre temas bizarros.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2/11/2016
História do porvir: uma aposta contra o passado
Paulo Roberto de
Almeida
Georges Minois
Histoire de l’Avenir: des Prophètes à la prospective
(Paris: Fayard, 1996, 680 p.; ISBN: 2-213-59759-6)
No
Brasil, costumava dizer o ministro Pedro Malan, não é só o futuro que é
imprevisível, mas até o passado é incerto – ele se referia aos muitos
“esqueletos” financeiros deixados pelas administrações anteriores –, o que nos
permitiria agregar que a previsão sobre o futuro, nessas condições, está de
antemão condenada ao fracasso. De fato, o processo histórico não é, como
gostaríamos, um itinerário linear, levando das dificuldades conhecidas do
passado às certezas do presente e a um cenário esperado no futuro. A vida é um
trajeto relativamente caótico, cheio de ruído e furor – full of sound and fury, como diria Shakespeare em Macbeth (V, 5) –,
conduzindo, por caminhos algo incertos e em companhias nem sempre escolhidas, a
cenários sempre inesperados ou mesmo, por vezes, a algumas surpresas
desagradáveis.
Prever
é próprio do homem, alerta o historiador francês Georges Minois, ao início
deste livro rico e saboroso, que nos leva dos velhos expedientes de adivinhação
empregados pelas sociedades do mundo antigo às modernas técnicas, pretensamente
“científicas”, utilizadas pelos prospectivistas ou “prospectólogos”
contemporâneos, com a intenção de prever o futuro. Registre-se, desde já, que o
livro não é uma “história do futuro”, o que o colocaria irremediavelmente no
terreno do profetismo, mas uma “histoire
de l’avenir”, isto é, um discurso erudito, centrado no conhecimento
histórico das técnicas, métodos e procedimentos utilizados em todas as épocas
para melhor conhecer, e se possível tentar dominar o futuro, isto é, os
acontecimentos de alguns dias, de poucos meses ou mesmo de anos à frente.
Das
pitonisas e sacerdotes do mundo antigo, dos falsos profetas da Idade Média, aos
astrólogos do Renascimento e às leitoras de cartas de todas as épocas
(inclusive e sobretudo na nossa), reis, príncipes ou simples mortais sempre
recorreram às técnicas de adivinhação para ter sucesso na guerra ou no amor, ou
em ambos. Mesmo os filósofos do Iluminismo não estiveram imunes ao apelo às
forças “incontroláveis” – magnetismo, sonambulismo e outras formas de recurso
ao oculto –, como maneira de evitar as desgraças e misérias da condição terrena
para construir um mundo melhor. Oráculos, profecias, predições, utopias e
outros modos de antecipação foram mobilizados pelos homens para evitar
desastres e garantir o sucesso, com resultados sempre decepcionantes.
No
início do século XX, os espíritos mais esclarecidos estavam fortemente
impregnados de otimismo racionalista: as conquistas da ciência e da técnica, o
domínio sobre a natureza iriam conduzir a civilização a patamares ainda mais
elevados de bem-estar material e de felicidade espiritual e, no entanto, o que
se viu foi um breve século XX cheio de ruído e furor, com milhões de mortos em
guerras e genocídios vergonhosos. O aborrecido da história, como relembra Georges
Minois, é que o futuro é desconhecido. As escolhas que fazemos, portanto, são
apostas ou estimativas e mais elas são exatas, mais nossa ação terá sido
eficaz. O ideal, assim, seria poder conhecer o futuro, o que nos permitiria
fazer exatamente o que convém ao nosso máximo bem-estar. A predição, assim, é
indissociável da ação, e ela pode ser tanto positiva, ou seja, tendencialmente
situada no caminho de um resultado esperado, como “negativa”, isto é,
permitindo antecipar e prevenir alguma catástrofe “prevista”. O importante,
nesse sentido, não seria tanto a exatidão da predição, mas o seu papel de
terapia social ou individual.
Minois
esclarece ainda, em sua introdução a um formidável estudo histórico de 650
páginas, que a predição “não é jamais neutra ou passiva. Ela corresponde sempre
a uma intenção, a um desejo ou a um temor; ela expressa um contexto e um estado
de espírito. A predição não nos esclarece sobre o futuro, mas reflete o
presente. Nisso, ela é reveladora das mentalidades, da cultura de uma sociedade
ou de uma civilização” (págs. 13-14). Ele não se propõe, em conseqüência,
realizar um catálogo das profecias passadas para atribuir um certificado de
clarividência ou distribuir censuras em função do seu grau de realização e, se
este fosse o caso, a história das predições seria a história dos fracassos.
Ninguém teve a capacidade de conhecer ou prever o futuro: nem os profetas, os
oráculos, as sibilas, os astrólogos, os cartomantes, os autores de ficção
científica, os utopistas, os filósofos ou os futurólogos. O interesse dessas
predições reside no que elas podem nos revelar sobre a época ou o meio nos
quais elas foram feitas. É nesse espírito que Minois concebeu o seu livro, que
é portanto um trabalho de história, não de antecipação.
Ele
começa seu racconto storico pela era
dos oráculos, ou seja, as adivinhações primitivas, bíblicas ou do período
greco-romano, quando estavam a serviço do destino individual e da política. A
predição, nos povos mais antigos, servia como uma espécie de seguro ou de garantia
divina, ambos ligados a uma concepção determinista do universo. A astrologia
também nasce nesse contexto, sobretudo nos povos do “crescente fértil” da
Mesopotâmia: ela se coloca a serviço dos reis e permitiria “determinar” as
épocas favoráveis às guerras e anunciar as grandes catástrofes, epidemias,
inundações, secas ou, ainda, as colheitas fartas e a prosperidade (págs.
22-23).
Existem
também os profetas, que falam em nome do próprio deus, mas eles freqüentemente
anunciam a volta a tempos imaginários do passado, o que dá início ao ciclo do
“eterno retorno”. Cedo se desenvolve uma luta, por vezes surda, outras vezes
aberta, entre profetas “verdadeiros” e “falsos profetas”, que são obviamente os
de “oposição”, agindo individualmente contra os profetas “oficiais”, ligados
aos reis e servos do poder: Jeremias acaba na prisão por ter previsto a ruína
de Jerusalém (pág. 33). O messianismo, também surgido nesse contexto,
desenvolve-se geralmente para restaurar uma antiga felicidade perdida ou
anunciar um futuro salvador, o que constitui o coração da própria Bíblia e o
sentido profundo do povo de Israel. Quando o messianismo toca de perto nas
questões político-sociais, ele pode chegar a contestar a ordem estabelecida,
com funestas conseqüências para os seus praticantes.
No
mundo grego se vai uma etapa adiante, passando da prática espontânea a uma
atividade refletida, pensada e até objeto de questionamentos intelectuais:
seria possível predizer o futuro? Os filósofos pensam sobre a natureza desse
conhecimento do futuro, mas os chefes da cidade-Estado se servem da adivinhação
para fins de manipulação política. “Tornar-se mestre do futuro para controlar o
presente: este será um dos legados essenciais da civilização grega” (pág. 51).
Os gregos aperfeiçoam os métodos e as diversas técnicas da adivinhação, que
passam a ser conhecidas pelos nomes gregos: a quiromancia (linhas da mão), a
hidromancia (pelas águas), a ictiomancia (peixes), a empiromancia (fogo), a
oniromancia (sonhos), a ornitomancia (pássaros), a necromancia (evocação dos
mortos) e muitas outras mais. Os gregos não negligenciam nenhuma forma de
conhecer o futuro e foram, provavelmente, “o povo mais bem informado sobre o
futuro de toda a Antiguidade” (pág. 57). Mesmo os romanos, mais céticos quanto
aos oráculos – dos quais o principal foi o de Delfos, uma bem orquestrada
figuração manipulada pelos sacerdotes do tempo de Apolo –, se deixarão levar
pelo colorido, diversidade e riqueza da “tecnologia grega de adivinhação”.
Minois
vê em Delfos o verdadeiro centro da diplomacia das cidades gregas. As
delegações vêm de todas as partes para consultar o oráculo sobre seus assuntos
correntes. “O santuário é uma espécie de Genebra do mundo mediterrâneo, onde se
está perfeitamente a par de todos os acontecimentos políticos dessa região,
graças às idas e vindas dos diplomatas, dos delegados, dos mercadores, dos
turistas e dos peregrinos. (…) Nós temos lá um caso único de ‘futurocracia’”
(pág. 61). Felipe da Macedônia e Alexandre visitam Delfos, menos para saber o
futuro do que para obter uma caução suplementar para a sorte dos seus
exércitos.
Isso
estimula a livre concorrência profética, pois outras cidades vão querer também
desenvolver seus próprios oráculos, com predições mais conformes aos seus
interesses. A astrologia também recebe um impulso fundamental nos trabalhos dos
sábios gregos, o que permite dar-lhe ares de predição “racional”, sobretudo a
partir de seu tratamento separado, mas potencialmente conjunto, com a
astronomia, na obra de Ptolomeu: “para ele a astronomia é apenas uma etapa
necessária em direção do objetivo essencial, o conhecimento do futuro pela
predição astrológica” (pág. 69). Segundo um dos comentaristas de Ptolomeu, um
certo tipo de cometa pode prever a queda dos tiranos e provocar mudanças nos países
para os quais aponta a sua cauda.
Já
Platão pertence a um outro gênero de “profetas do futuro”, os “utopistas”. Ele
concebe a cidade ideal, um projeto detalhado fundado sobre a análise do
comportamento humano. Os governantes serão sábios, os sacerdotes são afastados
e a predição é um monopólio do Estado, ao passo que o povo, considerado incapaz
de se organizar, deve ser enquadrado e submetido a vigilância constante:
“austeridade, simplicidade, racionalidade caracterizam a cidade platônica,
reflexo do sonho grego de harmonia e de permanência, de um porvir sem futuro”
(pág. 88).
Os
romanos vão recolher toda essa herança e levar a arte da predição do terreno do
conhecimento para o da prática, instaurando um monopólio de Estado sobre todas
essas técnicas, de forma a sempre colocar a vontade dos deuses a serviço de
Roma, garantindo assim o sucesso de seus empreendimentos militares e
econômicos: “uma vez o Império estabelecido, assiste-se a uma dominação do
Estado sobre o futuro, confiscado pelos novos mestres” (pág. 89). Tibério
proíbe a consulta privada aos adivinhos e Cláudio, em 47 d.C., decide
reagrupá-los “em uma ordem oficial, fazendo deles um órgão do Estado, uma
espécie de ministério do Futuro” (pág. 97). O historiador Tácito registra essa
passagem: “Cláudio propõe ao Senado a criação do Bureau dos adivinhos… [e] o
Senado decreta que os sacerdotes se encarregariam das instituições necessárias
à manutenção dos adivinhos” (pág. 97). Mas em Roma, a astrologia perde em parte
seu caráter científico para revestir-se de um aspecto religioso, ao passo que
um intelectual como Horácio prefere exaltar o presente, preconizando a política
do carpe diem.
Se
os jogos de adivinhação dos romanos eram modestos, geralmente relativos ao
futuro imediato, em especial político e militar, a profecia cristã, que ascende
de maneira irresistível a partir do século IV, apresenta uma dimensão bem mais
vasta: ela estende seu alcance de maneira ambiciosa, no tempo e no espaço, como
demonstra Georges Minois na segunda parte do seu livro, dedicada à “idade das
profecias”. Trata-se, no essencial, das promessas apocalípticas e milenaristas
da Idade Média, o que compreende uma vasta gama de predições e exegeses, das
interpretações mais ou menos livres dos profetas antigos (como Daniel), à
proliferação de “falsos profetas” e ao estatuto ambíguo da astrologia na Alta
Idade Média – Santo Agostinho diaboliza a adivinhação e a astrologia –, até a
verdadeira inflação, banalização e deriva ulterior das predições e profecias,
cuja regulamentação será tentada por São Tomás.
Alguns
eventos catastróficos são vistos como a própria antecipação do Anticristo, como
a peste negra, ao passo que as cruzadas podem ser consideradas como uma
materialização das profecias. Roger Bacon, que preconizou precocemente uma
união entre a religião e a ciência, tenta colocar a astrologia a serviço da
cristandade, mas os teólogos resistem e fazem condená-la em 1277 (o próprio
Bacon foi encarcerado). A Igreja tenta controlar o fluxo de predições,
inclusive para resistir à ascensão de movimentos heréticos que se multiplicam a
partir do século XII. O tema da pobreza é recorrente em alguns movimentos milenaristas,
abrindo assim o caminho a uma espécie de “comunismo da idade do ouro” que se
refletirá, no século XIX, nas correntes utópicas do socialismo. Pequenos
grupos, que se mantêm pacifistas, decidirão, mais adiante, construir
comunidades de puros no Novo Mundo, depois que Colombo deu início à etapa
moderna da globalização e da unificação planetária da economia.
A
terceira parte desta obra, dedicada à “idade da astrologia”, está concentrada
no Renascimento, entre os séculos XV e XVII, quando se pretendia que os astros
podiam reger a vida das pessoas e, portanto, o futuro. Ainda que a Igreja tenha
procurado refrear a demanda pelas predições astrológicas – diferentes concílios
entre meados do século XVI e a segunda metade do seguinte tentam condenar o uso
dos horóscopos e as predições a partir dos astros –, o charlatanismo
astrológico conheceu sua hora de glória no século XVI, com Nostradamus. Mas,
nem só de astrologia viveu essa época, pois que utopias e retomada do
profetismo religioso também ocupam a atenção de letrados e da arraia miúda, com
uma extraordinária difusão dos materiais impressos, a partir da invenção de
Gutenberg. A Utopia de Thomas Morus é
publicada em 1516 e, a despeito de guardar uma certa filiação intelectual com a
cidade ideal de Platão e a cidade de Deus de Santo Agostinho, ela talvez aponte
para a redenção dos homens em outro continente, nas novas terras descobertas
por Colombo, a partir de então conhecidas simplesmente como América (do nome de
outro navegador, o genovês Amerigo Vespucci). Tomaso Campanella publica a sua
“cidade do sol” um século mais tarde (1602) e Montaigne tenta desacreditar
essas “prognostications”, em nome do ceticismo racionalista, mas naquele
momento ele perde para os astrólogos da corte.
A
“idade das utopias” se dissemina mesmo entre os séculos XVII e XIX, objeto da
quarta parte deste livro, que vai das cidades radiosas clássicas até o otimismo
das utopias socialistas na transição para a sociedade industrial. As
adivinhações tradicionais tornam-se então marginais, submetidas que foram a uma
exploração “cética” dos mitos e das profecias religiosas pelos sábios
iluministas. Ironicamente, a decadência da astrologia vem na cauda de um
cometa, em 1680, cuja reputação catastrófica é ridicularizada por vários
sábios. O edifício termina de cair em 1758, quando o mesmo cometa retorna, como
havia previsto Halley: “a ciência astronômica se revela mais eficaz em seus
anúncios do que a astrologia” (pág. 400). O Dictionary
do doutor Samuel Johnson já traz, em 1775, esta qualificação da astrologia:
“arte doravante completamente desacreditada como irracional e falsa” (págs.
405-6). A ciência dos astros passa a servir não mais do que para previsões
meteorológicas, que são incorporadas a partir de então nos almanaques, úteis
sobretudo para os agricultores em sociedades ainda não industrializadas.
As
novas vias da predição, a partir do século XVIII, situam-se justamente na
história e nas ciências humanas, que não ficam entretanto imunes às utopias,
inevitáveis em sociedades em rápido processo de transformação, como foi o caso
desde o deslanchar da revolução industrial. A diferença em relação aos métodos tradicionais
de adivinhação, segundo Georges Minois, está no fato de que “enquanto as
primeiras se inspiram de informações exteriores, comunicados por Deus, pelo
diabo, por quaisquer espíritos, pela posição dos astros, as segundas são o
fruto exclusivo do raciocínio humano” (pág. 417). Esse modo de ver leva os
filósofos a se ocupar do passado, da história, segundo a regra ainda estipulada
pelo Big Brother em 1984: “Aquele que controla o passado,
controla o futuro”. O Discours sur
l’histoire universelle de Bossuet (1681) ainda se desenvolve segundo a
vontade de Deus, mas essa história providencialista começa a recuar em face dos
ataques cada vez mais intensos dos racionalistas (aliás, desde Jean Bodin, que
em 1566, expunha, em seu Méthode pour une
connaissance aisée de l’histoire, uma tentativa de racionalização do
processo histórico). A idéia de progresso e o conceito de “sentido da história”
fazem irrupção no debate intelectual, notadamente com Turgot e Condorcet, mas
também com Kant, que escreve, em 1784, a Idéia
de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. O “fim da
história” está próximo, com Hegel, cujos argumentos sobre o liberalismo
político e econômico serão retomados em pleno século XX por Alexandre Kojève e
Francis Fukuyama. Esse profetismo histórico, de base parcialmente científica,
também está presente em Fichte, que de certo modo “anuncia o messianismo
nacionalista do século XIX e mesmo o nacional-socialismo do século XX” (pág.
426).
Globalmente,
os filósofos iluministas são otimistas, vendo progresso e razão no futuro da
humanidade, mas o pessimismo, base das utopias, também tem um mercado aberto à
sua expansão. Lamartine arriscou que as “utopias são, freqüentemente, apenas
verdades prematuras” (pág. 427), mas o fim das ilusões e o desencantamento do
mundo ainda não tocaram o século XVIII, que encontra-se impregnado de utopias,
geralmente sob a forma de projetos de reforma social, de construção da
sociedade ideal, com fortes traços de “comunismo primitivo”. A Revolução
francesa vem, justamente, inaugurar a era das massas, que desejam um futuro sem
miséria. A condenação da propriedade privada, impulsionada pelo clima
revolucionário, vai desembocar nos milenarismos socialistas, de base
cooperativa ou coletivista, cujos profetas principais são Fourier (e os
“falanstérios”), Cabet (e a “Nova Icária”) e Robert Owen (o patrão da “Nova
Harmonia”). Os Estados Unidos recebem várias dezenas desses projetos de
“paraísos terrestres”, inclusive um experimento de Cabet no Illinois e uma
aldeia de Owen em Indiana. Mesmo o Brasil, no final do século XIX, acolherá a
comunidade libertária e anarquista de Giovanni Rossi, a “Cecília”, que
entretanto “não resiste quatro anos” (pág. 504).
Alguns
profetas da felicidade procuram dar uma base econômica credível a seus projetos
de bem-estar sem custos, como Jean-Baptiste Say que, em 1800, prevê, na obra Olbie ou essai sur les moyens d’améliorer
les moeurs d’une nation, uma economia de mercado funcionando sem crises e
com ganhos rápidos. Menos simplista, mas também otimista, John Stuart Mill
acredita, nos seus Princípios de Economia
Política (1848), que a sociedade passará de um “estado progressivo”, no
qual as forças econômicas estão em contínua expansão, para um “estado
estacionário”, que seria um estado ideal, antecipando assim as previsões do
Clube de Roma (págs. 509-510). O pastor Thomas Malthus é bem mais pessimista,
prevendo uma catástrofe se a forte natalidade não recuasse em face da oferta
insuficiente de alimentos, mas ele não foi confirmado pelos fatos ou pela
ciência.
Os
pensadores socialistas são todos mais ou menos profetas, como foi o caso com a
primeira geração de utopistas, mas o socialismo científico tampouco escapa à
regra. Proudhon achava o socialismo inelutável, da mesma forma que Marx, que
tinha ademais “descoberto” as leis de funcionamento da história, baseadas na
luta de classes. Marx também anunciou o fim da história, já que a futura
ditadura do proletariado aboliria a sociedade de classes e a necessidade de
acumulação privada, com o que o poder público perderia seu caráter político. O
milenarismo marxista se desenvolve a partir daí e, já em 1892, Kautsky, no
livro O Estado do Futuro, prevê o fim
do capitalismo pela crise de superprodução, tema igualmente presente em Lênin,
em Rosa Luxemburgo e nos demais seguidores do credo. Cruel ironia: o profetismo
leninista vê a verdadeira liberdade a partir da eliminação dos últimos
capitalistas e a abolição do Estado burguês.
Na
mesma época, favorecidos pelos progressos tecnológicos, tomam impulso os profetas
da ficção científica, com o anúncio do fim das guerras. As previsões terríveis
sobre a “guerra do futuro” (1897) por um banqueiro polonês, Ivan Bloch, teriam
incitado o czar russo a tomar a iniciativa de convocar uma conferência de paz,
realizada em Haia em 1899. Mesmo o cientista Alfred Nobel acreditava que a
iminência de uma destruição terrível, a partir da sua dinamite, levaria os
países a se desfazerem de seus exércitos.
O
autor mais conhecido no gênero, o inglês Herbert George Wells, dá o tom da nova
era com um livro, Anticipations
(1901), cujo subtítulo já indicava seu conteúdo: “a influência do progresso
mecânico e científico na vida e no pensamento humano”. Para Wells, como indica
Minois, “a predição é possível, à condição de empregar um método científico,
que se baseia na observação da história e das tendências do presente,
complementado pelo método indutivo” (pág. 523). Em um trecho de Anticipations, Wells esclarecia que a
“profecia moderna deve seguir exatamente o método científico” e ele acreditava
que “seria extremamente estimulante e benéfico para nossa vida intelectual
dirigir firmemente para o futuro os estudos históricos, econômicos e sociais e,
nas discussões morais e religiosas, preocupar-se ainda mais do porvir,
referir-se incessantemente a ele, deliberadamente e corajosamente”. O paradoxo,
entretanto, é que Wells faz previsões muito mais certeiras nos seus romances de
ficção – The Time Machine (1895), When the Sleeper wakes (1899) e A Modern Utopia (1905) – do que nas
obras ditas “sérias”: ele antecipa o transporte aéreo de massa (1899), a
eficácia do carro de combate ou tanque de guerra (1903) e as bombas atômicas
(1914), mas recusa, em seus trabalhos não-ficcionais, a possibilidade de que
essas máquinas venham a ser construídas (segundo comparação feita por Bernard
Cazes, no livro Histoire des Futurs;
Paris, 1986).
Com
o século XX, entretanto, já estamos na “era das predições científicas”, quinta
e última parte do livro de Georges Minois, que se ocupa agora do renascimento
do pessimismo, com os profetas de decadência e da contra-utopia, e da prudência
das teorias probabilísticas e dos métodos dos prospectivistas.
Na
primeira vertente, ocorre de fato uma ênfase nos problemas da humanidade,
confirmando, talvez, a previsão feita em 1790 por Edmund Burke, segundo a qual
depois da era dos cavaleiros, viria a dos economistas: depois do cavalheiro, o
banqueiro; depois da honra, a carteira; depois da Igreja, a Bolsa, em direção
de um mundo cinzento de proletários, burocratas, pequenos comerciantes e
grandes burgueses. Teorias darwinistas, eugenistas e racistas agregam ao
pessimismo reinante e mesmo a democracia começa a ser relegada a segundo plano
pelos novos arautos do Estado onipresente. O próprio Tocqueville pode ser
arrolado entre os pessimistas da democracia, que, segundo ele, gera frustrações
ao prometer uma igualdade ilusória, estimular o desejo de consumo e validar os
apelos demagógicos e as “tiranias legítimas”, desde que “em nome do povo” (pág.
536). Em outros termos, a democracia de massas poderia conduzir à
mediocrização, com o que certamente concordaria Nietzsche. Alguns preferem ver
no judeu a causa da “decadência do Ocidente”, com as conseqüências que se
conhece poucos anos mais à frente.
A
Grande Guerra de 1914-18 e seu imenso cortejo de hecatombes militares e os
primeiros genocídios reforçam ainda mais o pessimismo: Oswald Spengler termina
em 1918 seu cenário decadentista, O
Declínio do Ocidente, cujo sucesso é imediato. O raciocínio é biológico: as
civilizações nascem, desenvolvem-se, chegam à maturidade, entram em decadência
e depois morrem, segundo um ciclo de mil anos. O Ocidente, nascido no ano 1000,
estaria, portanto, próximo do fim. O historiador Arnold Toynbee, um “outro
profeta da decadência” (pág. 543), tem porém uma visão menos pessimista, feita
de ciclos civilizacionais que podem se regenerar.
A
própria ficção científica torna-se pessimista, num ciclo que começa com Eugene
Zamyatin (Nós, 1920), passa pelo
romance Brave New World (1932), de
Aldous Huxley, e avança para 1984 (1948),
de George Orwell: em todos eles, um mundo regulado e submetido a um poder
totalitário “produz felicidade humana”, ao preço da liberdade individual. Só a
literatura produzida sob o regime soviético foge a essa tendência, mas
“trata-se aqui da aplicação das recomendações oficiais, que marcam o setor da
cultura: um bom comunista é otimista, porque a classe trabalhadora, dirigida
pelo partido e guiada pelo genial pensamento marxista-leninista, vencerá todos
os obstáculos” (pág. 545).
A
contra-utopia da ficção científica do século XX é tanto mais pessimista quanto
os futuros previstos parecem possíveis. “Inspirando-se nas experiências do
século XX, que elas prolongam e amplificam pelo acréscimo dos progressos
tecnológicos, dos estudos sociológicos e psicológicos, esses futuros abrem
perspectivas que seria perigoso desdenhar” (pág. 552). Afinal de contas, como
Nicolas Berdiaev escreveu na apresentação do Brave New World, “o mundo caminha para as utopias”, o que parece
ser ilustrado pela previsão econômica, que tornou-se importante no século XX.
De
fato, a “ciência lúgubre” dos neoclássicos atravessa maus bocados em meados
desse século, com as crises surpreendentes, a perda de patrimônio, a depressão
e o desemprego. Keynes – que havia aliás “previsto” que os custos da política
de reparações imposta à Alemanha pelo tratado de Versalhes poderia provocar uma
crise e novas fontes de conflito – reconhecia que a confiança no futuro é um
elemento determinante do jogo econômico, razão pela qual o Estado deveria desempenhar
um papel importante na retomada do ciclo virtuoso, atuando sobre os juros, a
moeda e o emprego.
As
técnicas e instrumentos de previsão econômica se desenvolvem na primeira metade
do século, desde a teoria dos ciclos de Nicholas Kondratieff e Joseph
Schumpeter até os trabalhos econométricos e de modelagem insumo-produto de Wassily Leontief (estes não tratados por Minois). Isso não
impediu, obviamente, o deslanchar da crise de 1929 e o aprofundamento da
depressão na década seguinte. Schumpeter também era, de certa forma, um
“profeta da decadência”, já que em seu livro Capitalism, Socialism and Democracy (1942) ele chegou a duvidar,
por razões econômicas – concentração da produção, “financeirização” – da
capacidade de sobrevivência do capitalismo.
Previsões pessimistas ou otimistas não existem apenas em economia – como
o famoso Relatório Meadows (1971), do Clube de Roma, que antecipa uma crise
ecológica e o esgotamento dos recursos naturais no século XXI –, mas elas são
feitas igualmente no terreno da política. Henry Kissinger, considerado um dos
mais argutos dos conselheiros de segurança nacional dos Estados Unidos,
afirmava categoricamente em 1997 que “hoje, pela primeira vez em nossa
história, somos confrontados à dura realidade do desafio comunista que não se
extinguirá. Nós devemos aprender a conduzir a política externa como muitas
outras nações o fizeram durante séculos, sem escapatória e sem descanso. O
contexto será durável”. Dois anos depois, Jeanne Kirkpatrick reafirmava que “a
história deste século não traz nenhuma razão para crer que regimes totalitários
radicais podem se transformar por si mesmos” e Jean-François Revel temia, em
1983, que talvez fossem as democracias que desapareceriam (pág. 557). Nem
François Furet, que historiou o fim das ilusões comunistas, nem Francis
Fukuyama, que perguntou, em 1989, se não tínhamos chegado ao “fim da história”
– o ponto de interrogação do título do seu famoso trabalho é importante –, com
o triunfo das economias de mercado, não previram necessariamente o fim do
comunismo enquanto regime político totalitário ou o próprio desaparecimento da
União Soviética enquanto Estado.
Cenários
otimistas a partir do domínio sobre a energia nuclear nos anos 1950 eram muito
freqüentes, da mesma forma como o crescimento econômico ininterrupto dos países
recentemente independentes, até alcançar os patamares de desenvolvimento das
nações mais avançadas. As previsões econômicas contemporâneas tendem a ser mais
modestas e cautelosas, quase que incorporando os princípios de incerteza e de
improbabilidade da física quântica, que abandonou as certezas da mecânica
newtoniana para adentrar nos terrenos bem mais vagos da imprecisão e do acaso.
A
previsão ainda tem futuro?, pergunta Georges Minois em seu último capítulo, que
trata dos videntes, dos profetas do fim da história e dos prospectivistas. A
pergunta faz sentido, pois se começa a duvidar da capacidade do homem em fazer
previsões: o questionamento da razão, o hipercriticismo e o ceticismo,
agregados aos freqüentes erros de previsões passadas, levam a uma
reconsideração global da possibilidade de previsão. O contraste é evidente com
a multiplicação de antecipações que tinha marcado o ano de 1900: então, todas
as esperanças eram permitidas, mesmo se algumas já expressavam alguns temores.
O século XX frustrou todas as esperanças e terminou, em quase todas as áreas,
aquém do que se esperava há cem anos. Provavelmente, apenas a eletrônica
conseguiu superar as previsões.
Não
obstante o pessimismo, a predição popular e as “adivinhações” astrológicas – em
meio urbano, sobretudo – continuam a fazer sucesso: milhões são gastos com
dezenas de métodos diferentes para prever o futuro, evitar desgraças e
restabelecer a felicidade. Os jornais mais sérios trazem as previsões dos
astrólogos mais “reputados” e a consulta à distância se vê facilitada pelas
tecnologias de informação e de comunicação. As profecias religiosas também
continuam a mobilizar milhões de seguidores de diversas crenças, ao passo que
uma certa “teologia da prosperidade” arranca dinheiro de incontáveis crédulos
prometendo-lhes a felicidade garantida, ou pelo menos a salvação de um destino
terrível.
Mas,
o futuro não é mais o que ele costumava ser, já que as novas técnicas de
modelagem de cenários devem levar em conta o impacto do desenvolvimento
tecnológico e os efeitos paralelos ou em cadeia provocados por inovações
técnicas em áreas não necessariamente imaginadas por seus inventores. Como
argumenta Minois, “a previsão tecnológica se caracteriza sempre por resultados
em dentes de serrote, em relação às realizações concretas: os anúncios
prematuros convivem com as subestimações, os avanços com os atrasos. As
previsões globais são incapazes de levar em consideração as interações
múltiplas entre as diferentes áreas, variações de custos, influência de fatores
sociais, políticos ou culturais” (págs. 579-580).
As
disparidades entre a previsão tecnológica e a realização é explicada da
seguinte forma pelo conhecido filósofo da ciência Thomas Kuhn: “Tudo se passa
como se nós conseguíssemos reter, dos sinais que nos vêem do ambiente, apenas
aqueles que estão de acordo com os nossos conhecimentos, sustentam nossas
convicções, justificam nossas ações, vão ao encontro de nossos sonhos e nosso
imaginário” (pág. 581). No terreno das ciências humanas, o relativismo se
instala com a derrota das grandes teorias históricas e o combate ao
etnocentrismo e ao evolucionismo. Como escreveu o
historiador americano Carl Lotus Becker (1873–1945), numa transcrição sem fonte
de Minois, “cada século reinterpreta o passado de maneira a que este sirva a
seus próprios fins. O passado é uma espécie de tela sobre a qual cada geração
projeta a sua visão do futuro” (pág. 582). Minois completa o raciocínio
invertendo a frase de Becker, dizendo que “o futuro é uma tela sobre a qual
cada geração projeta a sua visão do passado, e, como este não para de mudar e
função das preocupações do presente, a previsão do futuro é apenas uma projeção
do presente” (idem).
Minois também sugere que, sem que sejamos organizados por algum serviço
especial, cumprimos inconscientemente o trabalho de revisão permanente do
passado que era efetuado no romance 1984 pelo
ministério da Verdade do Big Brother. Se o valor da história é contestada em
seu próprio objeto, ou seja, no conhecimento do passado, então todas as
tentativas de construir modelos explicativos estão condenadas ao fracasso:
“Ora, de Joaquim De Flore a Hegel e a Marx, foram esses os modelos que serviram
de instrumentos de previsão, colando no futuro as estruturas do passado. Se todos
os modelos são falsos, é evidente que a previsão não tem nenhum valor” (pág.
583). A previsão, sobretudo em matéria política, se limita a um catálogo de
potencialidades.
Alguns historiadores fazem dessa incapacidade de previsão a própria
força da história, que não precisa, como a sociologia, generalizar eventos ou
processos. Como diz o historiador britânico Hughes Trevor-Roper, “a
dificuldade, com todas as tentativas de profecia da sociologia, é que elas se
apóiam sobre hipóteses de continuidade que não estão sempre fundamentadas.
Quase todas as mudanças provêm da sociedade, mas elas provêm mais
freqüentemente de grupos que, na época que eles existem, são ignorados. Assim,
para o historiador só existe um método: o método empírico. Todo pensamento
histórico que não se vê golpeado imediatamente pela obsolescência, é fundado na
experiência. O sociólogo parte do dogma: ele elabora modelos, e o que prova a
qualidade do modelo é que ele funciona” (pág. 584).
O debate tantas vezes equivocado em torno do “fim da história” não
deveria, em princípio, considerar as imensas dificuldades para a realização
efetiva da tese principal de Fukuyama, qual seja, a hegemonia do sistema
liberal-democrático, mas sim o fato de se poder imaginar um mundo
substancialmente diferente desse, uma alternativa melhor para se organizar o
futuro. O próprio Fukuyama aponta alguns fatores limitativos da marcha
irresistível para a democracia liberal: a persistência, em alguns lugares, de
uma consciência racial e étnica bastante desenvolvida; correntes religiosas
totalitárias, em especial os fundamentalismos judeu e muçulmano, e talvez mesmo
católico; a resistência das estruturas sociais desiguais; e a organização
insuficiente da sociedade civil, que deixa o essencial do poder a um Estado
centralizador, enquanto a verdadeira sociedade liberal deveria apoiar-se sobre
a autonomia das associações de base. “Globalmente, é, portanto, a afirmação das
‘identidades culturais’ que retarda o movimento em direção da homogeneização
das formas de vida” (pág. 586).
Em outros termos, a luta contra essa homogeneização e a reafirmação, ao
nível infra-político, das identidades culturais reforçariam as barreiras entre
os povos e as nações, mas se trata de um combate de retaguarda e periférico.
Minois pergunta se o fato de não se imaginar nenhum sistema melhor do que a
liberal-democracia não seria uma simples falta de imaginação, como se não
houvesse, no século XVII, nenhuma alternativa ao absolutismo. E as
desigualdades de renda, pergunta ele, não poderiam ser fonte de futuros
conflitos? Os profetas do apocalipse ainda parecem ter trabalho pela frente.
Os dois métodos mais recentes de previsão são a futurologia e a
prospectiva, esta uma das grandes novidades da segunda metade do século XX.
“Ela se caracteriza por uma institucionalização e uma profissionalização da
atividade de previsão, com um objetivo de ação e de preparação da opinião. Na
sua concepção, portanto, ela retoma o papel que desempenhavam os oráculos
oficiais no mundo greco-romano, utilizando os meios modernos, estatísticas,
probabilidades, modelização, sondagens e outros. Trata-se na verdade de um
instrumento a serviço dos poderes políticos, econômicos, tecnocráticos. Mais do
que nunca, governar é prever, num mundo instável onde a tecnologia avança a uma
velocidade crescente. É preciso antecipar para ser eficaz. É preciso também
preparar os espíritos, e se retoma aqui a idéia de manipulação do futuro a
serviço do presente, tão comum na Antiguidade. Nada como uma pesquisa
prospectiva para justificar uma reforma desejada pelo poder” (pág. 589).
O vínculo com a Antiguidade se manifesta inclusive na escolha do nome de
um dos procedimentos, o método Delphi, processo estabelecido pela Rand
Corporation no início dos anos 1950. A prospectiva moderna nasceu antes, em
1929, quando o presidente Hoover cria uma comissão encarregada de estudar a
evolução no campo das reformas sociais. Depois, Roosevelt, em 1933, encarrega
W. F. Ogburn de redigir um relatório sobre as tendências tecnológicas e a
política governamental, mas os avanços mais importantes se dão no contexto
militar dos anos cruciais de 1944-48, com a tecnologia nuclear e a revolução
estratégica que significa a passagem à Guerra Fria. A criação da Rand (Research
and Development) Corporation se dá portanto nesse contexto. A partir de 1975, a
Câmara dos Representantes dos Estados Unidos obriga todas as comissões a
trabalhar de maneira prospectiva, o que a consagra como instituição. Mas, o
movimento já tinha sido ampliado a partir da criação da World Future Society,
em 1966, que democratiza o debate em torno de profissionais e mediante uma
revista, The Futurist.
Na Europa, a prospectiva está vinculada ao estabelecimento da
planificação econômico-social no pós-guerra, em diversos países de orientação
liberal. O caso da França é obviamente o mais evidente. O próprio nome
“prospectiva” foi inventado em 1957 pelo francês Gaston
Berger, como o simétrico de retrospectiva. Como indica Minois, “o termo
previsão não convém, de fato, a essa nova realidade, que não é simples conhecimento
do futuro, mas o resultado de uma ação concertada, levando em consideração as
tendências prováveis” (pág. 591). A imagem utilizada por Gaston Berger para
justificar essa atividade é a da estrada: a carroça, de noite, precisa apenas
de uma simples lanterna, mas o carro veloz necessita de faróis potentes. Em
1957, Gaston Berger cria o Centre d’Études Prospectives, que em 1960 se funde
com a associação Futuribles, criada por outro pioneiro da área, Bertrand de
Jouvenel. “A grande preocupação de Bertrand de Jouvenel”, diz Georges Minois,
“é a de evitar que a prospectiva se torne monopólio do poder, isolada da
sociedade, elaborada em segredo como um puro instrumento da tecnocracia” (pág.
591). O outro grande nome da prospectiva francesa é o de Jean Fourastié, cujo
cuidado reside na incorporação das estruturas duráveis e dos terrenos estáveis
na elaboração das previsões. A regra de ouro de Fourastié para o espírito
prospectivo, “é colocar o evento não apenas no quadro do passado recente, mas
no longo prazo, isto é, ao menos no século, e talvez mesmo no milenário” (pág.
592).
A prospectiva tornou-se, portanto, uma atividade profissional,
utilizando métodos científicos sempre refinados, apoiados na matemática, a
exemplo das “matrizes de interação”, estabelecidas nos anos 1960 por Gordon e
Helmer. Trata-se de uma tabela de dupla entrada, permitindo medir os resultados
de interações entre os eventos possíveis e as tendências prováveis. “Mais do
que uma previsão, é preciso falar de um leque apresentando cenários potenciais.
O método das extrapolações, por sua vez, apóia-se sobre a observação de uma
série de fenômenos passados para aplicar suas conclusões em um outro terreno. O
procedimento dos ‘modelos’ é definido como ‘um substituto da realidade, que ele
representa de uma maneira da qual se espera que seja apropriada ao problema a
ser tratado. Ele se compõe de fatores relativos a uma situação dada e de
relações entre eles. São colocadas questões e se espera que as respostas
obtidas forneçam um esclarecimento sobre a parte do mundo real ao qual ele
corresponde’” (pág. 592, citando E. S. Quade, Analysis for Public Decisions; Amsterdam, 1982, pág. 139).
Pode-se
distinguir modelos lineares gerais, de regressão, modelos estocásticos lineares
(ou multivariados), modelos econométricos e outros, todos apoiados em métodos
matemáticos bastante complexos, sem esquecer o método dos “cenários”, que
descreve antecipadamente as condições nas quais se desenvolverá tal ou qual
tipo de ação. A fiabilidade do método depende em grande medida da qualidade da
informação da qual se dispõe, o que é válido também para os métodos
probabilistas, mas não se pode resolver, obviamente, questões de natureza
metafísica colocadas pela realidade ou pelo acaso. A prudência, portanto, é de
rigor para todos esses métodos, que devem ser considerados mais como subsídios
à tomada de decisão do que como uma previsão certeira sobre o que vai ocorrer.
A finalidade seria não tanto prever, mas evitar, por meio de ações adequadas,
algumas orientações que poderiam ser consideradas nefastas.
Como
indica acertadamente Minois, “a prospectiva tem mais a ver com o terreno da
prática do que com o do conhecimento” (pág. 593). Avaliações conduzidas na
França, em relação a cenários traçados nos anos 1960, confirmaram uma boa
aproximação da realidade, em termos de evolução da mão-de-obra, da
produtividade, da duração do trabalho, do crescimento econômico, do papel do
nuclear, da revolução biológica e das tendências da urbanização, sendo que os
“erros” foram sobretudo constituídos de lacunas: a disparada do Japão, a
micro-informática, o trabalho feminino e o desemprego.
A
prudência dos futurólogos pode frustrar o público, que espera “certezas”: assim
pode-se contrastar a morna recepção de um livro cauteloso como The World in 2020 (1994), de Hamish
McRae, com o sucesso estrondoso do Future
Shock (1970), de Alvin Toffler, para quem a
humanidade chegou à “terceira onda”, depois da agricultura e da revolução
industrial. Por vezes, a previsão representa uma aposta contra o futuro, como o
trabalho de Herman Kahn e Anthony Wiener, Year
2000, que em 1972 listava cem inovações técnicas prováveis para o último
terço do século XX. O resultado pode ser pura futurologia, ou uma forma moderna
de utopia, fazendo extrapolações razoáveis mas extraídas de seu contexto. Os
dois métodos estavam presentes no famoso relatório Meadows de 1972, do Clube de
Roma, The Limits to Growth, que
previa uma catástrofe mundial em meados do século XXI em razão do prolongamento
das curvas de cinco dados fundamentais: demografia, produção industrial,
produção alimentar, poluição e esgotamento dos recursos naturais. “Os
resultados, calculados por computador, são espetaculares e formais, e conduzem
a uma conclusão lógica: é preciso parar o crescimento para chegar a uma
economia estacionária, do tipo da prevista por John Stuart Mill” (pág. 595). Da
mesma forma, o relatório encomendado pelo presidente Carter e publicado em
1980, Global 2000, também era
pessimista, prometendo excesso de população, de poluição e outros impactos
ecológicos nefastos.
Bernard
Cazes, em seu livro Histoire des Futurs
(1986), enquadra as preocupações dos prospectivistas em sete temas principais,
e, em cada um deles, a evolução é negativa: (1) meio ambiente: rápida
degradação; (2) contexto geopolítico: tendência à anarquia desde o fim dos
blocos; (3) crescimento econômico mundial: lento; (4) comportamentos
demográficos: natalidade em baixa, mas ainda preocupante, sobretudo nos países
em desenvolvimento; (5) emprego e trabalho: os números do desemprego estão
sempre em alta, a despeito das políticas mobilizadas; (6) Estado protetor: ele
não pára de se retirar, mesmo aumentando a carga fiscal; (7) mudanças
tecnológicas: o único setor positivo, mesmo se alguns, como Michel Moravick,
prevêem uma parada no desenvolvimento dos conhecimentos científicos, que se
traduziria por uma interrupção do progresso tecnológico, em virtude de três
fatores: (a) para progredir, a pesquisa científica exige um pessoal cada vez
mais numeroso e qualificado, que talvez não se renove rapidamente; (b)
necessidade de capitais cada vez mais amplos, que vão faltar; (c) chegará a um
tal nível de complexidade que as capacidades do cérebro humano serão superadas
(pág. 596, citando Moravick, “The ultimate scientific plateau”, The Futurist, outubro 1985).
As
previsões catastróficas teriam, assim, alguma razão de ser?: parada do
progresso científico e técnico, implosão do sistema bancário internacional,
provocando o retorno à autarquia, desurbanização e guerras civis, balcanização
da Europa, colonizada pelo Islã, emergência da China, para dominar o terceiro
milenário? Essas previsões, feitas mais de uma década atrás, parecem hoje
singularmente pessimistas, mas outros fatores de crise e de tensão no sistema
econômico e político internacional vieram acrescentar-se aos velhos problemas e
riscos existentes.
A
novidade talvez resida na ausência de previsão. Georges Minois precisa:
“ausência de previsões gerais de longo prazo, levadas a sério por um número
significativo de pessoas” (pág. 597). O fato é que sabemos fazer previsões de
curto prazo, com base nas estatísticas e nas técnicas de projeção, mas não há
mais crença nas previsões globais de longo prazo, o que pode ser um sintoma de
maturidade social: “a humanidade tornou-se adulta” (pág. 598). Ele termina esse
capítulo por uma nota de ceticismo sadio: “Desde a Antiguidade, o homem prediz
e profetiza, e a história das suas previsões é uma história dos seus erros e
das suas decepções. Devemos ficar tristes com o seu ceticismo crescente?” (idem).
As
conclusões deste livro são conformes ao seu espírito condutor. Depois de se
perguntar se um livro sobre a história das previsões deveria terminar por uma
previsão, Minois considera as lições da história. A divisão em cinco períodos –
oráculos, profecias, astrologia, utopia e métodos científicos – não
significa que ocorreu uma sucessão cronológica dos procedimentos de previsão,
mas sim um efeito de entrelaçamento e de acumulação. Os métodos antigos de
previsão ainda são utilizados, ao lado dos mais recentes, o que confirma que,
nesse terreno, não é o conteúdo que importa, mas o procedimento. “Não é o
futuro que está em jogo, mas o presente. Assim é que o método mais recente, a
prospectiva, encontra o mais antigo, os oráculos. Para os institutos de prospectiva,
como para os funcionários de Delfos, trata-se de fornecer aos dirigentes de
todos os tipos indicações de tendências, cenários possíveis para guiar sua
ação. Que esses cenários expressem a vontade dos deuses ou a evolução provável
das curvas sócioeconômicas, isto é secundário. O importante é que, num caso
como no outro, não haja nada de inelutável e que o futuro seja apresentado,
finalmente, como o resultado de uma ação voluntária em função de um certo
ambiente. Nos gregos, a forma enigmática do oráculo faz a solução depender da
habilidade do interessado em decifrá-lo; na prospectiva, a pluralidade de
modelos apresentados deixa ampla latitude à perspicácia dos decisores” (pág.
599).
“Em
última instância”, continua Minois, “não é o que é previsto que conta, é a
reação daquele para quem é feita a previsão, e não é a realização da previsão
que conta, mas sim a ação que ela vai provocar” (pág. 600). Minois considera
que a ecologia talvez seja a última utopia da era presente. As religiões eram
proféticas, mas ao tornarem-se instituições, encarregadas de administrar o
presente, elas tendem a ser conservadoras e a afastar as antigas profecias. A
astrologia continua popular, por aparentar alguma base científica. Mas os
tempos modernos também tiveram sua cota de previsões não realizadas: os
socialistas previram o igualitarismo, os economistas liberais o crescimento
contínuo, fonte de enriquecimento, e todos estão de acordo sobre o progresso
científico. Mas, no que se refere à “grande previsão, o futuro do mundo, da
sociedade, da economia, ela foi engolfada no naufrágio generalizado das
ideologias, das religiões estabelecidas e dos valores” (pág. 602).
Impossibilidade
de prever o futuro, portanto? Isso não importa, como reafirma Georges Minois:
“não é o conteúdo da previsão que conta, é o seu papel de guia para a ação; a
previsão é oferecida para justificar ou modificar um comportamento” (pág. 603).
O futuro se constrói agora e ele não está pré-determinado. “Ora, para construir
o futuro, é preciso primeiro construir uma imagem, mesmo falsa. É esta imagem
que falta, porque o presente parece ter alcançado o futuro e se confundido com
ele. O imediato absorveu o futuro como ele absorve o passado, reconstruindo-o”
(idem).
Minois
termina relembrando essas obras de ficção, esses filmes futuristas, nos quais
os heróis disparam raios-laser, mas levam uma couraça greco-romana e lutam de
espadas: “esses traços anedóticos são reveladores de uma época que busca a
saída, que não sabe mais prever porque ela não sabe mais onde está o futuro”
(pág. 603).
Uma
obra sem dúvida alguma rica em ensinamentos sobre nossas frustrações com o
passado, mas tranqüilizadora quanto a nossas possibilidades no futuro:
continuaremos a tentar adivinhar o curso futuro dos eventos, para melhor guiar
nossa ação no presente e revisar nossa visão do passado. Se ouso tirar uma
lição pessoal (e coletiva) da leitura destas páginas, seria esta aqui:
planejadores do futuro (entre os quais me incluo, momentaneamente), manejem com
cuidado os instrumentos de predição, sejam modestos nos objetivos a serem
alcançados, estejam prontos para ajustar a “mira” a cada curva do caminho,
guardem sempre um certo ceticismo sadio quanto às “soluções ideais” e mantenham
as possibilidades abertas para uma escolha entre vias alternativas, pois o
desenvolvimento social segue sempre uma via única e original, não havendo coisa
alguma no passado que nos condene a este ou aquele futuro. E, finalmente: boa
sorte na condução deste nosso bateau ivre,
lançado no oceano do espaço-tempo.
Paulo Roberto de
Almeida
Brasília, 1326b:
16 dezembro 2004
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