Gulag: anatomia da tragédia
Resenha de:
Anne Applebaum:
Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos
(Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, 744 p.; tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte; ISBN: 8500015403)
O terror moderno, isto é, o recurso à intimidação aberta e indiscriminada para alcançar fins especificamente políticos, não está ligado apenas aos exemplos cruéis do fundamentalismo de base islâmica. Ele nasceu na Revolução francesa e seu mais conhecido "teórico", Robespierre, o defendeu sem hesitação: "O atributo do governo popular na revolução é ao mesmo tempo virtude e terror, virtude sem a qual o terror é fatal, terror sem o qual a virtude é impotente. O terror nada mais é do que justiça imediata, severa, inflexível...".
Lênin, o inventor do terror moderno, apreciava Robespierre e sua "justiça expedita": desde os primeiros dias da revolução de 1917 ele ordenou à Cheka, a polícia política imediatamente criada para esmagar a ameaça "contra-revolucionária", que fuzilasse sem hesitação não só os opositores declarados do novo regime, mas também representantes da classe proprietária em geral, capitalistas, grandes comerciantes e latifundiários, religiosos, enfim, os potenciais "inimigos de classe". Criador do Gulag, em sua primeira emanação, ele justificava assim o trabalho da Cheka:
"A Cheka não é uma comissão de investigação nem um tribunal. É um órgão de luta atuando na frente de batalha de uma guerra civil. Não julga o inimigo: abate-o... Nós não estamos lutando contra indivíduos. Estamos exterminando a burguesia como uma classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o indivíduo pertence, quais são suas origens, criação, educação ou profissão? Estas perguntas definem o destino do acusado. Esta é a essência do Terror Vermelho" (citado por Paul Johnson em Tempos Modernos).
Stalin se encarregou de aplicar sistematicamente as recomendações de Lênin, e o fez de uma forma completa, terminando por incorporar como "clientes" da máquina de terror administrada por ele os seus próprios colegas de partido. A amplitude do Gulag, ampliado e desenvolvido no seu mais alto grau por Stalin, justifica que apliquemos a ele a categoria de genocídio, noção que costuma estar associada apenas aos terríveis experimentos raciais nazistas, antes e durante a Segunda Guerra Mundial.
O livro de Anne Applebaum não é, apenas, como seu subtítulo indica, "uma história" dos campos soviéticos, mas a mais completa e sinistra história de um fenômeno único na história da humanidade: uma instituição oficial (ainda que em muitos aspectos "clandestina"), montada e sustentada pelo poder central do Estado, para administrar pelo terror, por um tempo indefinido, uma população inteira de um dos países mais importantes do planeta. A historiadora americana, editorialista do Washington Post e colaboradora do Wall Street Journal, realizou uma pesquisa monumental, indo muito além dos primeiros levantamentos de Alexander Solzenitsyn em torno dos depoimentos dos sobreviventes do nefando sistema de escravização em massa criado pelo totalitarismo soviético.
Organizado em três partes, o livro documenta amplamente o que até aqui tinha sido divulgado de maneira dispersa em trabalhos de pesquisa histórica que não tinham ainda tido acesso aos principais arquivos soviéticos liberados no período recente. A primeira parte, "As origens do Gulag, 1917-1939", faz a reconstituição histórica dessa instituição singular, que unia a mais transparente crueldade no trato dos prisioneiros ao burocratismo metódico de uma moderna administração voltada para a exploração sistemática do trabalho escravo. Sim, não devemos esquecer que, independentemente de suas funções "didáticas", de intimidação direta e aberta contra a própria população da União Soviética, o Gulag teve um importante papel econômico na história do socialismo naquele país, chegando a representar, a produção de um terço do seu ouro, muito do carvão e da madeira e grandes quantidades de outras matérias-primas. Os prisioneiros passaram a trabalhar em todo e qualquer tipo de indústria, vivendo num país dentro de um outro país.
A segunda parte, "Vida e trabalho nos campos", mostra também como o sistema do Gulag, que chegou a reunir 476 campos no mais diferentes cantos da URSS, constituía um Estado dentro do Estado, regulando os mais diferentes aspectos de um universo concentracionário que não teve precedentes, teve poucos imitadores efetivos (a despeito da terrível eficácia mortífera dos campos de concentração nazistas) e um número ainda mais reduzido de seguidores (sendo os mais efetivos os sistemas "correcionais" da Coréia do Norte e de Cuba, já que o exemplo do Camboja foi o de uma simples máquina de matar, como de certo modo tinha sido o caso dos experimentos nazistas).
A terceira parte, "Ascensão e queda do complexo industrial dos campos, 1940-1986", segue o sistema no seu ápice, durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, até o seu desmantelamento gradual após a morte de Stalin (1953) e a disseminação do fenômeno dos "dissidentes": ele foi sendo erodido progressivamente em seu papel político (ainda que não o econômico), mas só teve seu final decretado depois do próprio fim do socialismo.
Um apêndice tenta quantificar a extensão do terror: de acordo com os próprios dados do sistema (estatísticas da NKVD, sucessora da Cheka e antecessora do KGB), o número de prisioneiros passou de cerca de 200 mil no início dos anos 1930 para 2,5 milhões no momento da morte de Stalin. O "turnover", obviamente, foi muito maior: muitos prisioneiros morreram, alguns escaparam (poucos), vários eram incorporados ao Exército Vermelho ou à própria administração dos campos (cruel ironia). As "taxas de desaparecimentos" refletiram também as terríveis condições de vida na URSS: passou-se de 4,8% de mortos em 1932 para 15,3% no ano seguinte, o que indica o impacto da epidemia de fome induzida pela coletivização stalinista da agricultura, que matou 6 ou 7 milhões de cidadãos "livres" igualmente. A "taxa" de mortos sobe para seu máximo de 25% em 1942, para declinar para menos de 1% nos anos 1950, quando o sistema "industrial" já tinha sido instalado em sua plenitude. No total, 2,7 milhões de cidadãos soviéticos podem ter morrido no sistema do Gulag, o que de todo modo representa apenas uma pequena parte dos desaparecidos durante todo o regime stalinista e uma parte ainda menor dos sacrificados pelo sistema soviético. Os autores franceses do Livre Noir du Communisme, por exemplo, estimam em 20 milhões as vítimas do regime soviético, o que pode ser uma indicação plausível (outros colocam entre 12 e 15 milhões de mortos). Vários historiadores se aproximam da cifra de 28 milhões de cidadãos soviéticos para o número total de “clientes” de todo o sistema concentracionário soviético em sua história de “terror vermelho”.
O Gulag foi a face mais visível da tragédia soviética, mas certamente não a única ou exclusiva. Este livro conta a história desse terrível legado do socialismo do século XX: esperemos que a história não se repita, sequer como farsa.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de dezembro de 2004
Publicada, em formato reduzido, na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: n. 5, jan. de 2005, p. 78; http://www.desafios.org.br/index.php?Edicao=6&pagina=canais&secao=estante&idCanal=117)