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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

60 Anos da RBPI (1): preparando o seminario de 7/11 - Paulo Roberto de Almeida

Pouco mais de 2 anos atrás, no quadro das comemorações dos 60 anos do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, fundado no Rio de Janeiro em 1954, eu comecei a elaborar uma série de textos sobre esse mais de meio século decorrido desde sua criação e os tempos atuais, passando pela criação da Revista Brasileira de Política Internacional, em 1958, com vistas a comemorar devidamente esses dois empreendimentos meritórios tanto no plano puramente acadêmico, quanto no profissional, uma vez que eles engajaram diplomatas e outros personagens públicos no debate e publicações em temas de relações internacionais e política externa do Brasil.
Este trabalho, que transcrevo abaixo, foi o primeiro da série, que ficou inédito na forma em que está, embora tenha sido aproveitado nos trabalhos subsequentes. Nas postagens seguintes vou reproduzir os três outros trabalhos preparados para a ocasião.
Como estamos organizando um seminário sobre esses eventos, no IRel-UnB, sob a coordenação do Professor Antonio Carlos Lessa, achei pertinente reproduzir o que fiz dois anos atrás, pois pode sempre servir de informação a muitos interessados na temática.


2722. “O Brasil e suas relações internacionais de 1954 a 2014: O que mudou em 60 anos? O que ficou? O papel do IBRI”, Hartford, 30 novembro 2014, 16 p. Nota sobre o Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e as relações internacionais do Brasil, entre 1954 e 2014: para (a) pequeno artigo para o Mundorama, (b) grande artigo para o Meridiano 47, e (c) uma gravação audiovisual sobre a transferência do IBRI do Rio de Janeiro para Brasília, e o salvamento da RBPI. Desmembrado para fins de publicação como artigo comemorativo dos 60 anos do IBRI; parte relativa ao IBRI e à RBPI integrada ao trabalho 2724; outras partes para reelaboração.



O Brasil e suas relações internacionais de 1954 a 2014:

O que mudou em 60 anos? O que ficou? O papel do IBRI

Paulo Roberto de Almeida
Artigo comemorativo dos 60 anos do IBRI

Sumário:
1. Introdução: a ordem mundial, tal como realmente existente
2. O Brasil e a América Latina em 1954: atrasados e dependentes da ajuda externa
3. O Brasil e a América do Sul em 2014: de fora dos circuitos internacionais?
4. O papel do IBRI e da RBPI: pioneiros no debate da política externa brasileira

1. Introdução: a ordem mundial, tal como realmente existente
Em 27 de janeiro de 1954, um pequeno grupo de intelectuais, de funcionários públicos e de profissionais liberais se reuniu no Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro, sede do Ministério das Relações Exteriores desde o início da República, e tomou a decisão de criar a primeira instituição brasileira especificamente dedicada ao estudo da política internacional e de questões atinentes às relações exteriores do Brasil: o Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI). Ele foi definido, nos seus estatutos, como uma sociedade civil com finalidades culturais, com o objetivo de “realizar, promover e incentivar estudos sobre problemas internacionais, especialmente os de interesse para o Brasil”. Condizente com a sede que abrigava o conclave, o IBRI congregaria, ao longo de sua existência continuada, vários diplomatas engajados em suas atividades, assim como devotaria parte de seus esforços analíticos e das iniciativas empreendidas nos anos e décadas seguintes ao registro, à exposição, para um público mais vasto, e à discussão dos mais diversos temas vinculados à relações internacionais, bem como ao pensamento e à ação da diplomacia brasileira.
Uma dessas iniciativas concretizou-se quatro anos depois, sob a forma de uma publicação periódica, a Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI), a mais antiga e a mais prestigiosa dos veículos especializados em temas internacionais no Brasil (n. 1: http://cafemundorama.files.wordpress.com/2013/10/rbpi_1958_1.pdf). Ambos, o IBRI e a RBPI, passaram por diferentes etapas em seus itinerários respectivos de mais de meio século, em duas fases bem caracterizadas: a do Rio de Janeiro, de 1954-58 até 1992, e a de Brasília, a partir de 1993 aos nossos dias. Um pouco de sua história, ao completar o IBRI seus primeiros 50 anos de vida, foi recapitulada por este mesmo autor na nota comemorativa “Instituto Brasileiro de Relações Internacionais: 50 anos de um grande empreendimento intelectual” (Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 47, n. 2, julho-dezembro de 2004, p. 223-226; link: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v47n2/v47n2a08.pdf ).
Este pequeno ensaio não tem a intenção de refazer a história da instituição e a de seu principal veículo de divulgação nas mais de seis décadas decorridas desde as iniciativas pioneiras, mas buscará, preferencialmente, oferecer um panorama do Brasil e de suas relações internacionais nos dois anos extremos do período. Um sobrevoo geral permite constatar certas constâncias, ou seja, o a recorrência das mesmas questões ao longo desse itinerário, mas também muitas transformações, como parece inevitável, tanto no plano propriamente doméstico, quanto no da política internacional e da economia mundial. O Brasil e a América do Sul não parecem ter mudado significativamente de posição no contexto dos cenários geopolíticos que se sucederam historicamente: Guerra Fria, distensão global, crises e derrocada do comunismo, emergência de novos equilíbrios nos planos regional e mundial; a despeito dessas grandes alterações da ordem mundial, o Brasil, a América Latina, e a do Sul talvez não tenham um peso maior, atualmente, do que tinham no início do período em exame.
Não obstante, algumas estruturas econômicas e as formas de participação do país e da região nos assuntos da política mundial podem ter sido substancialmente alteradas, em alguns casos para um melhor posicionamento, em outros casos apenas confirmando o papel excêntrico, relativamente secundário, para não dizer marginal, assumido pelo Brasil e pela região no contexto mais vasto das relações internacionais e, sobretudo, no quadro dos grandes equilíbrios geopolíticos entre os atores determinantes da politica e da economia mundiais. Em termos mais exatos, o Brasil e a América do Sul contam pouco nos cenários decisivos da paz e da segurança internacionais, mas também no das grandes dinâmicas econômicas – tecnológicas e financeiras, sobretudo – que movimentam a interdependência global (e, na verdade, podem até ter perdido terreno para a Ásia nessa segunda área, já sendo pouco influente na primeira).
Esta última afirmação pode parecer depreciativa do papel ou da importância que se costuma emprestar – no mais da vezes auto-atribuída – ao Brasil nesses contextos, uma vez que tanto as elites políticas, quanto o establishment diplomático e a corporação militar têm por hábito ressaltar a relevância da participação do Brasil nesses cenários de variada significação para os grandes objetivos multilaterais da preservação da paz e da segurança internacionais, e para a promoção dos objetivos ainda mais decisivos relativos ao desenvolvimento econômico e ao progresso social dos povos e dos Estados membros da comunidade internacional. Se formos compulsar, porém, a obra mais recente que trata justamente dos grandes equilíbrios mundiais e dos problemas remanescentes para a consolidação de uma ordem internacional estável, pacífica e promotora dos direitos humanos, da segurança e da paz, escrita por um especialista reconhecido, teremos exatamente a confirmação do argumento defendido neste ensaio.
Com efeito, Henry Kissinger, em seu livro mais recente, World Order – (New York: Penguin Press, 2014), provavelmente o último, de tipo conceitual, de uma das mais longas carreiras de acadêmico, de conselheiro de segurança nacional, de diplomata e de ator de primeiro plano das relações exteriores dos Estados Unidos e das próprias relações internacionais, consultor de quase todos os presidentes americanos desde os anos 1950 –, não devota nem mesmo um capítulo, sequer uma mísera seção, à América Latina ou ao Brasil, nas dez grandes unidades da obra, todas elas dedicadas aos grandes atores ou aos problemas percebidos como relevantes para o estabelecimento ou a preservação de uma ordem que de fato não existe. Após uma introdução de tratamento conceitual da questão título, ele dedica dois capítulos à ordem europeia surgida com a paz de Westfália e o sistema de balanço de poder daí resultante, um ao mundo islâmico e às desordens do Oriente Próximo, outro voltado exclusivamente para as relações entre os Estados Unidos e o Irã, dois outros sobre a Ásia (sua multiplicidade e a emergência de uma ordem “asiática”), dois capítulos inteiros sobre a diplomacia dos Estados Unidos (a ideia de uma ordem internacional na tradição wilsoniana e o seu papel atual como “superpotência ambivalente”) e, finalmente, dois capítulos finais voltados para questões tecnológicas e de informação e de proliferação, e sobre a evolução provável de uma ordem mundial ainda largamente indefinida.
Para ser mais preciso, a América Latina não aparece sequer no índice remissivo do livro, embora nele exista a entrada western hemisphere. O Brasil só é mencionado duas vezes, ambas en passant e de maneira irrelevante: a primeira para falar sobre o impacto mundial das revoluções europeias de 1848, a segunda na companhia da Índia (que recebe tratamento mais amplo nos capítulos asiáticos da obra) como exemplo de nações emergentes. Esta é, portanto, uma abordagem realista, a despeito de negativa para a autoestima de alguns, do cenário mundial e das relações internacionais nos últimos cinco séculos, registrando apenas os atores que contam nos grandes equilíbrios mundiais. Não obstante a marginalidade relativa do Brasil e do continente para essa ordem mundial, cabe examinar, para fins deste pequeno ensaio rememorativo, o que era o Brasil e sua posição no sistema internacional em 1954, como foi evoluindo sua presença e participação nas seis décadas decorridas desde então, e de como se apresenta hoje o país e sua região no cenário econômico e político mundiais.

2. O Brasil e a América Latina em 1954: atrasados e dependentes da ajuda externa
O conceito de América do Sul, embora fosse geograficamente válido para essa época, não tinha maior significado geopolítico e não constituía um espaço próprio de reflexão para o Brasil ou sua diplomacia no início dos anos 1950, embora o continente já fosse, em especial o Cone Sul, o foco principal de preocupações de segurança e, paradoxalmente, um espaço privilegiado de intercâmbios econômicos e de possível cooperação regional. A Argentina era, obviamente, o principal competidor nos exercícios – em geral, apenas virtuais – de equilíbrio de poder, assim como o principal parceiro nos intercâmbios comerciais regionais, desde o Império aliás. Os Estados Unidos já eram, desde essa época, o principal comprador do primeiro produto brasileiro de exportação, o café, mas a Argentina despontava como um importante fornecedor de trigo, assim como constituía uma absorvedora natural das exportações brasileiras de baixo valor agregado. Em contrapartida, o conceito de América Latina experimentava um renascimento significativo – desde seu uso inicial no bojo das aventuras francesas no México – a partir da constituição da Comissão das Nações Unidas para a região, a Cepal, em 1948. É portanto com base nesse conceito que se pode examinar o contexto regional e internacional de seis décadas atrás.
Na primeira metade dos anos 1950, o clima vigente na região era de bastante frustração com o pouco empenho dos Estados Unidos nos projetos e aspirações latino-americanas de desenvolvimento econômico. No imediato pós-guerra, desde o encontro interamericano de Chapultepec – em janeiro de 1945, no México, à qual a Argentina não tinha sido convidada, em vista de sua neutralidade pró-nazista durante a guerra – até as conferências diplomáticas do Rio de Janeiro-Petrópolis e de Bogotá – que assistiram ao nascimento do TIAR, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, pai espiritual da OTAN, e da OEA, que substituiu a antiga União Pan-Americana – os latino-americanos ainda mantinham alguma esperança de que os EUA, findo o conflito mundial em duas grandes frentes, pudessem finalmente se voltar para o hemisfério de maneira mais atenciosa do que tinha sido o caso até então. Alguns países, não excluindo o Brasil, até pensaram que pudesse ser reproduzido deste lado do Atlântico o grande experimento europeu do Plano Marshall, no que eles confundiam inteiramente projetos articulados de reconstrução e de recuperação de economias destruídas pela guerra com programas de desenvolvimento para nações dotadas de baixa capacitação técnica até para formular programas articulados de desenvolvimento econômico e social.
Na verdade, o que os países do sul desejavam, o Brasil inclusive, era a cessão facilitada de grandes montantes de capitais oficiais para que os países pudessem aplicá-los em projetos de sua própria escolha, geralmente ligados à industrialização e infraestrutura (numa fase em que o Banco Mundial ainda não dispunha de muitos recursos, ou quando os existentes estavam já comprometidos com projetos na Europa e na Ásia). Nada disso ocorreu, obviamente, e os americanos formularam suas recomendações habituais: que os países da região reformassem suas estruturas de acolhimento de capitais privados e que suas políticas industriais e comerciais fossem moldadas de acordo com um ambiente de negócios suscetível de investimentos diretos estrangeiros. A Cepal ainda não tinha adquirido peso intelectual suficiente para oferecer o novo evangelho econômico da industrialização substitutiva de importações, mas já formulava suas primeiras críticas às doutrinas em vigor nas instituições de Bretton Woods, que iam mais na linha da ortodoxia mainstream do que da heterodoxia prebischiana que passou a influenciar as políticas econômicas nos países da região.
O Brasil também continuava a ser uma economia relativamente atrasada, embora tivesse começado a impulsionar vigorosamente seu processo de industrialização: depois de Volta Redonda (1942) e em razão das próprias restrições durante o período bélico, uma série de novas indústrias de transformação foram estabelecidas ou começaram a ser implantadas no país, com investimentos feitos pelo próprio Estado, desde o Plano Salte (no governo Dutra) e a partir da criação da Petrobras e do BNDE (no governo Vargas), ou pelo capital estrangeiro, sobretudo no período seguinte, a partir do Plano de Metas de JK. Em 1953 – coroando a fase de cooperação iniciada durante a guerra sob os acordos de Lend-Lease (empréstimo e arrendamento), o Plano Cooke (1942), e continuada com a Comissão Mista de Desenvolvimento no governo Dutra – foi assinado um acordo de assistência militar, que consolidava a inserção securitária do Brasil no campo americano e ocidental, na fase clássica da Guerra Fria, quando manuais do National War College eram traduzidos e utilizados na formação dos oficiais das Forças Armadas, e muitos deles seguiam para cursos em instituições de formação militar dos EUA.
A cooperação com o gigante do norte teria o seu desenvolvimento máximo entre meados dos anos 1950 e a década seguinte, culminando na “aliança não escrita” (mas documentada) do golpe militar de 1964, para deteriorar-se sensivelmente a partir daí, em vista de alguns projetos dos militares – a capacitação nuclear bélica, em primeiro lugar – que terminaram colocando os dois governos em campos opostos, até a ruptura registrada no governo Geisel (denúncia, em 1977, do acordo de assistência militar), por causa das pressões exercidas pelos EUA a propósito do acordo de cooperação nuclear Brasil-Alemanha e de direitos humanos. A despeito da continuidade da cooperação na área militar, na Guerra Fria ou depois dela, as relações nunca mais seriam as mesmas.
O Itamaraty também se colocava, talvez com menor entusiasmo, no mesmo universo mental e político do anticomunismo oficial – doutrina de Estado desde 1935, pelo menos – e no da solidariedade interamericana liderada pela grande potência do norte, com a qual a cooperação era suposta integrar os fundamentos mesmos da política externa daquela fase. Esse elemento constituía um dos grandes desafios da diplomacia profissional, uma vez que era preciso conciliar impulsos hemisféricos vindos da América do Norte com os apelos por uma “terceira posição”, patrocinados pelo caudilho argentino Juan Domingo Perón. No início dos anos 1950, a postura do Brasil era claramente pan-americana e pró-americana; militares e diplomatas não simpatizavam com o caudilho, menos ainda com sua “república sindical”, o que de certa afetava tanto os apelos de Perón por uma terceira via, mas contrários à visão dos Estados Unidos para a “solidariedade hemisférica”, quanto projetos iniciais da Cepal em prol da integração regional, tema que ainda não era prioritário para o Brasil.
Cabe não olvidar que, no mesmo momento em que estavam sendo feitos os preparativos iniciais para a criação do IBRI, um pedido de impeachment contra Getúlio Vargas, envolvendo inclusive seu ministro do Trabalho João Goulart, tinha sido introduzido na Câmara dos Deputados pelo seu ex-chanceler, tornado inimigo político, João Neves da Fontoura, por motivo de financiamento peronista (ilegal, portanto) em favor da máquina partidária e de candidatos do Partido Trabalhista Brasileiro. Submetido a votação, o processo falhou em ser levado adiante no Senado, mas ele integrou, junto com os demais dramas políticos (e até criminosos) envolvendo Carlos Lacerda e vários militares, a sucessão de crises que culminaram no suicídio de Vargas, em agosto de 1954 (ver o artigo “Brasil: a denúncia João Neves”, em Cadernos do Nosso Tempo: nº 2, 1954). A cooperação regional teve chance de avançar depois da queda de Perón, patrocinada pelos militares argentinos, e quando o Brasil se aproximou mais positivamente da Argentina, sob o governo Kubitschek, quando foi assinado um acordo de cooperação bilateral entre os chanceleres Lafer e Taboada. Dois anos depois se decidia a criação da Alalc e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, duas iniciativas às quais responsáveis do IBRI, já escrevendo para a RBPI, estiveram intimamente associados, inclusive como delegados brasileiros nas conferências diplomáticas de adoção dos convênios constitutivos, como foi o caso do diretor do IBRI, e editor “eterno” da RBPI, Cleantho de Paiva Leite.
Em síntese, o que se pode dizer do Brasil e da América Latina, na conjuntura de 1954 a 1958, os anos que vão da fundação do IRBI à criação da RBPI, é que se tratava de um país e de uma região excêntricos aos grandes equilíbrios internacionais, embora solidamente ancorados na esfera de influência dos Estados Unidos, com os quais cada um dos países da região mantinha relações de dependência econômica, financeira e tecnológica, ademais de vínculos políticos e diplomáticos bastante evidentes, a despeito de ensaios tentativos de autonomia e até de contestação (como a breve experiência da “terceira via” proposta no início da década pelo caudilho argentino Juan Perón).
O Brasil, que recém inaugurava o seu primeiro reator experimental para a produção de materiais nucleares (na USP), entretinha a aspiração de intercambiar seus “minerais atômicos” contra tecnologia nuclear a ser fornecida pelos EUA, tema que iria converter-se em contencioso diplomático pouco menos de uma década à frente. Mas era também, no bojo dos “cinquenta anos em cinco” do presidente Kubitschek, um país essencialmente otimista, tendo recém ganho sua primeira copa do mundo de futebol (na Suécia) e inaugurado o Palácio da Alvorada, no quadro da construção da nova capital (vide a tabela cronológica ao final deste ensaio); no plano diplomático, ele pretendia secundar os esforços dos EUA para melhorar suas relações com o “resto do hemisfério” – o conceito não era usado, obviamente – por meio da Operação Pan-Americana, uma tentativa de obter uma espécie de “Plano Marshall” para a América Latina, depois dos primeiros ensaios, frustrados, no momento da criação da OEA e das primeiras reuniões em âmbito regional, da OEA ou da Cepal.
Mas era também o país que recebia uma primeira missão de analistas do FMI, convidados para examinar as condições para a concessão de um empréstimo temporário, em vista das dificuldades de balanço de pagamentos – queda nos preços do café – e das dificuldades de honrar compromissos externos, a despeito (ou por causa) dos enormes gastos extra-orçamentários com a construção de Brasília. Juscelino Kubitscheck rejeitou, como se sabe, as sugestões de maior rigor fiscal dos técnicos do FMI, dando início à demonização do organismo no Brasil, com as acusações infundadas de que ele estivesse querendo impedir o desenvolvimento do país. A despeito da demagogia política, ele acolhia com entusiasmo os investimentos diretos que estavam sendo feitos por americanos e europeus na indústria brasileira nessa mesma época.
O lado econômico das relações entre as duas partes do hemisfério suscita a questão do desenvolvimento comparado dos principais países, a partir do estágio em que se encontram em 1954. Nesse ano, os EUA dispunham de um PIB global de quase 2 trilhões de dólares (deflacionados em dólares de 2008, segundo o Bureau of Economic Analysis), valor superior ao de todos os demais países combinados, o que representava uma renda per capita média de 12 mil dólares para os 163 milhões de americanos, perto de cinco vezes acima da renda média dos habitantes da América Latina no mesmo ano.
Os dados são obviamente bastante diferenciados entre os países. Angus Maddison, um economista-historiador de renome e autor de diversos trabalhos de consolidação de dados estatísticos homogêneos sobre demografia e crescimento em âmbito global, fornece dados diferentes para esse ano: segundo as “Statistics on World Population, GDP and per capita GDP” (disponível na página de seu projeto: http://www.ggdc.net/maddison/maddison-project/home.htm), a renda per capita dos americanos em 1954 era de US$ 10.300 (em dólares Geary-Khamis de 1990), podendo-se confrontar este valor com os US$ 2.702 da renda média para a América Latina, embora poderosamente puxada para cima pelos US$ 8,400 dos venezuelanos e de US$ 4.980 para os argentinos, mas também para baixo, como a própria renda per capital dos brasileiros, de apenas US$ 1.848 nesse ano (vide “Table 3: Per Capita GDP Levels, 1AD - 2008 AD”; link: www.ggdc.net/maddison/Historical.../horizontal-file_02-2010.xls; acesso em 28/11/2014).
Em outros termos, o Brasil possuía menos de um quinto da renda per capita dos EUA, o que já era um notável progresso em relação ao início do século, quando a distância era muito maior, na faixa de apenas um décimo da maior renda per capita do hemisfério e do mundo. O ponto mais alto a que o Brasil chegou, em relação à renda média dos EUA foi durante o regime militar, quando a relação ultrapassou um quarto do valor de referência, para novamente baixar nas décadas seguintes, sob o impacto das crises inflacionárias no Brasil e o lento crescimento observado desde então. Em 2014, a distância ainda era superior a cinco vezes, como uma breve consulta a estatísticas atuais pode confirmar. Segundo o FMI, a renda per capita nos EUA, situado em nono lugar no mundo, era de US$ 53,101 em 2013; o Brasil, situado no 61o. lugar, exibia um renda de US$ 11.310 (em termos PPP, registre-se), ou de apenas 18% da renda dos EUA. A Argentina, que sempre esteve muito acima do Brasil desde o início do século 20 (quando ela exibia mais de dois terços da renda per capita dos EUA, mas diminuindo gradualmente ao longo do período, pela sua própria estagnação secular), situou-se em 2013 imediatamente acima do Brasil, em 60o. lugar, com apenas US$ 11.766.
Mais importante do que flutuações conjunturais da renda nominal – que podem ser influenciadas por taxas de câmbio não exatamente determinadas por movimentos do próprio mercado – são as tendências estruturais de longo prazo, que indicam a trajetória de países individuais no contexto da economia mundial, uma poderosa alavanca de sua participação nas dinâmicas internacionais e de possível influência na composição da agenda diplomática multilateral e nas decisões que lhe são associadas. A esse título, o Brasil e a América do Sul aparecem como claramente perdedores, no confronto com a região da Ásia Pacífico, por exemplo. Isso não tem a ver unicamente com o fato de que a aproximação ao PIB per capita americano pode exigir mais de um século de esforços contínuos – o que também seria o caso, comparativamente, da população chinesa, a despeito de o PIB da China ultrapassar o dos EUA em mais alguns anos – mas envolve basicamente a inserção de casa país nos circuitos produtivos da moderna globalização.

3. O Brasil e a América do Sul em 2014: de fora dos circuitos internacionais?
Quando se observa o Brasil e a América do Sul com mais de meio século de distância, torna-se inevitável constatar o imenso progresso material e humano realizado desde meados dos anos 1950: estradas, indústrias, comunicações, escolas, hospitais, participação política, melhoria dos indicadores demográficos (esperança de vida) e sociais (educação e cultura, produção científica, universidades vibrantes). Também se registraram melhores indicadores econômicos – menos inflação (com falhas em transgressores impenitentes aqui e ali), talvez menos fuga de capitais – e, sobretudo, alguns avanços políticos: já não sobrevivem as ditaduras militares, embora caudilhos e populistas demagógicos ainda pontilhem em alguns países.
O que não mudou, basicamente, foi a miséria e a exclusão, sempre presentes, ainda que o peso relativo dos pobres e miseráveis tenha diminuído no conjunto da população. A má educação também se traduz em poucos ganhos de produtividade, e a produção de patentes e a oferta de inovações exibem número ridiculamente baixos em comparação com países que também eram pobres nos anos 1950 (vários da Ásia Pacífico, por exemplo). A governança deficiente, o mau funcionamento da justiça e a sombra da corrupção continuam em ritmo e intensidade provavelmente similares aos de meio século atrás, embora as modalidades e os mecanismos possam ter se alterado um pouco, por vezes até de maneira significativa, com o desenvolvimento da cobertura bancária e as facilidades de comunicações e de deslocamentos para o exterior. O grau de concentração de renda – medida pelo índice de Gini – e parte apropriada pela pequena fração dos muito ricos da riqueza criada a cada ano não parecem ter recuado de forma substancial. Governos tiveram de atender novas demandas, o que redundou em maiores avanços do aparelho impositivo sobre os rendimentos e as transações dos cidadãos, nem sempre de maneira progressiva, em alguns países até de forma injustamente regressiva.
Na virada dos anos 1960, no entanto, a América Latina parecia ter todas as condições para o famoso take-off previsto no manifesto não-comunista de Walt Rostow, sobre os estágios do desenvolvimento econômico. Mesmo se economistas mais céticos, ou mais versados em outras ciências humanas – como Albert Hirschman, por exemplo – alertassem para a inevitabilidade de desequilíbrios e estrangulamentos nos processos de crescimento, que não eram necessariamente sustentados ou contínuos, ainda menos isentos de crises e retrocessos, os técnicos do Tesouro, do Departamento de Estado, e os funcionários dos bancos multilaterais – BIRD, BID – acreditavam que seria possível conceber e implementar bons projetos de desenvolvimento, com algumas reformas domésticas e um pouco de assistência externa. Um famoso economista pioneiro das teorias de desenvolvimento econômico, o sueco Gunnar Myrdal, chegou a prever que os únicos países do Terceiro-Mundo a realizar o famoso e esperado catch-up em relação aos avançados industrialmente seriam, justamente, os latino-americanos, contrariamente aos asiáticos, estes condenados à miséria extrema por décadas à frente (a previsão foi feita nos três volumes de Asian Drama).
Não é que tudo ocorreu ao inverso do afirmado por Myrdall? A Ásia Pacífico e a maior parte da América Latina parecem ter trocado de lugares na escala do progresso material e dos avanços educacionais e tecnológicos, numa espécie de Trading Places (o filme americano) até aqui sem retorno aparente. As posições respectivas em comércio internacional, em ritmo de crescimento, em atração de investimentos e na absorção de inovações tecnológicas forma invertidas ou levadas a itinerários diferentes em cada uma das regiões. Foram confirmadas, no caso da América Latina, a baixa qualidade da maior parte das políticas públicas, em especial de caráter macroeconômico e várias setoriais, e no caso da Ásia a importância da educação e da inserção nos circuitos mais dinâmicos do comércio internacional e dos investimentos diretos estrangeiros. Poucos países da Ásia trocaram tantas vezes de moedas – se alguma – ou foram levados a moratórias com tanta frequência quanto vários latino-americanos o fizeram.
O Brasil, justamente, relativamente aberto – ainda que abertamente protecionista – ao comércio internacional até as crises do entre-guerras, continuou sendo o mesmo país deliberadamente protecionista no pós-guerra, mas ele se desprende dos mercados externos para voltar-se ao seu próprio no processo de substituição de importações que o caracterizou de maneira provavelmente mais completa do que em qualquer outro país latino-americano: ao final do regime militar, a oferta interna era praticamente ocupada, à razão de 90% – em certos casos até mais –, pela produção orgulhosamente doméstica. Poucos países no mundo, se algum, trocaram oito vezes de moeda no espaço de duas gerações, sendo seis vezes em menos de dez anos, com abatimentos de três zeros quase todas as vezes. Em compensação, talvez se possa arguir quanto à estabilidade de sua diplomacia, gerida por um corpo respeitado e bem treinado de profissionais, atuando quase sem interferência de políticos ou de lobbies claramente caracterizados, em todo caso até a segunda gestão Fernando Henrique Cardoso, concluída em 2002.
Mas é exatamente na política externa que as mudanças forma mais importantes desde os anos 1950 aos nossos dias, e com ainda mais intensidade nos últimos doze anos. Em 2014, a principal diferença em relação ao cenário de seis décadas atrás parece ser o fato de que o conceito de América do Sul está solidamente entranhado nas opções e prioridades da diplomacia brasileira e, a partir desta última, na da maior parte dos países da região. Com efeito, tomando início na gestão Fernando Henrique Cardoso à frente da chancelaria brasileira, em 1992, e consolidando-se gradativamente em seus dois mandatos, uma moldura especificamente continental para os esforços brasileiros de coordenação da cooperação regional emergiu na primeira cúpula de chefes de Estado e de governo da América do Sul, a seu convite, realizada em Brasília em agosto-setembro de 2000, no bojo das comemorações dos 500 anos do descobrimento português.
Mesmo se o esforço concertado na ocasião – simbolizado pela Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA) – foi claramente sabotado pelas administrações posteriores sob o comando do Partido dos Trabalhadores, em benefício de projetos políticos de claro sabor antiamericano (como a Unasul, por exemplo), o conceito de América do Sul perdurou e se firmou na diplomacia brasileira como confirmando o espaço privilegiado de atuação do Brasil nos diversos planos de projeção externa: econômica, política e em diversas outras áreas setoriais de cooperação (inclusive educacional e militar). A própria recuperação, mais recente, do conceito de América Latina (e Caribe) no âmbito diplomático não diminuiu a concentração de esforços e o foco prioritário na América do Sul, que adquiriu identidade própria e vem sendo confirmado, a despeito das peculiaridades de certas escolhas regionais sob o predomínio do Partido dos Trabalhadores (ver o livro de Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos: A América do Sul no discurso diplomático brasileiro; Brasília: Funag, 2014).
A antiga dependência econômica, financeira, e até militar, do gigante do norte se esvaiu no grande desenvolvimento material registrado desde então, num processo de duro aprendizado que passou por várias crises econômico-financeiras e negociações, por vezes humilhantes, com países credores e com entidades multilaterais ou plurilaterais (Clube de Paris, por exemplo) de assistência financeira. A absorção, na área industrial, de tecnologia estrangeira – inclusive na área militar – continua com intensidade similar, embora alternativas venham se desenhando, sobretudo no bojo de novas iniciativas diplomáticas, algumas até impulsionadas de maneira pouco realista nos últimos anos. A ideia, por exemplo, de que o Brics venha a oferecer novas condições de autonomia tecnológica e alternativas de financiamento e/ou de investimento, em substituição ao bloco mais tradicional de economias capitalistas avançados pode revelar-se otimista em demasia para abrir um cenário efetivamente novo no plano do relacionamento externo. E várias das iniciativas tomadas mais recentemente no sentido de consolidar uma nova situação de não dependência da grande potência hemisférica o foram deliberadamente, mais por anti-imperialismo e antiamericanismo do partido no poder – e que forjou uma diplomacia partidária – do que propriamente como resultado de estudos técnicos que concluíssem pela inconveniência da relação outrora privilegiada. Ao contrário, o reforço da “parceira estratégica” com a China, buscada expressamente pelos mesmos dirigentes, resultou numa dependência de tipo assimétrico que se traduz em padrões de comércio tipicamente coloniais, com dominância de matérias primas nas exportações brasileiras e de produtos manufaturados provenientes da China.
Essa mesma evolução, combinada a erros de política econômica e a opções claramente regressistas nos campos das políticas industrial e comercial – dirigismo exacerbado na primeira, insistência num protecionismo ultrapassado na segunda – fizeram o Brasil recuar nos indicadores de competitividade externa, redundando no fenômeno precoce da desindustrialização e da reconcentração da pauta do comércio exterior numa pequena lista de commodities agrícolas e minerais que se considerava superada em favor de maior diversificação da oferta externa desde os esforços de promoção comercial do governo e do Itamaraty a partir dos anos 1970. A tábua de salvação, no grande recuo brasileiro no comércio exterior – senão em quantidade, onde o reina é a estagnação, teimosamente estacionada em pouco mais de 1% de participação brasileira nos intercâmbios globais de bens, pelo menos em qualidade – tem sido o processo de integração regional – representado pelo Mercosul e por poucos outros acordos parciais de liberalização – ainda assim ameaçado este pela voracidade dos exportadores chineses sobre mercados supostamente destinados a ofertantes brasileiros.

Uma história intelectual das relações exteriores e da diplomacia brasileira nas últimas seis décadas seria incompleta se deixasse de mencionar o papel relevante desempenhado pelo Instituto, desde sua fundação, e sobretudo pela revista, a partir de 1958. Uma distinção quanto à natureza dessa influência ao longo do tempo deve ser feita no que respeita o IBRI e no tocante à revista. A associação de muitos diplomatas lotados no Rio de Janeiro, em meados dos anos 1950, à fundação e funcionamento do IBRI nos primeiros anos permite estabelecer uma clara vinculação conceitual entre os temas discutidos nas reuniões do IBRI e transplantados para a revista desde seu aparecimento e publicação trimestral e a agenda do Itamaraty nos anos imediatamente anteriores ao regime militar. Pode-se dizer, sem hesitação, que os membros civis e os diplomatas ativos no IBRI, e os focos de discussão e análise na RBPI exibem uma espécie de osmose intelectual com os grandes temas da política externa brasileira e seu tratamento pelo Itamaraty e pela própria presidência da República.
Esses grandes temas referem-se ao relacionamento bilateral Brasil-Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria, aos primeiros passos da integração regional, o lançamento da Operação Pan-Americana pelo governo Kubitschek, a criação do BID e da Alalc, o problema de Cuba e seu encaminhamento na OEA, a emergência e afirmação da chamada “política externa independente” – presente, implicitamente, desde o início na revista, antes mesmo de se tornar explícita nos governos Jânio e Goulart – e a mobilização ativa do Brasil e dos países em desenvolvimento em torno da problemática do desenvolvimento, primeiro tratada no âmbito da Cepal, depois transplantada – inclusive porque o diretor, Raul Prebisch, era o mesmo – no quadro da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, cujo primeiro encontro se deu, aliás, ao mesmo momento em que caia o governo Goulart e tinha início o governo militar. Todas essas questões figuram nas páginas da revista, como uma consulta sumária aos índices dos números relativos a esses anos iniciais pode revelar (ver a coleção completa neste link: http://mundorama.net/category/2-biblioteca/rbpi/).
Qualquer pesquisa sobre a diplomacia brasileira no período não pode, assim, dispensar esse recurso, muitas vezes até como fonte primária. Numa época em que o Itamaraty publicava, se tanto, burocráticos relatórios anuais de suas atividades – e estes não eram tão detalhados, mas ao contrário, bem menos copiosos do que os antigos relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, sob a monarquia – e algumas poucas publicações avulsas, a seção documental da RBPI invariavelmente fazia a transcrição dos principais expedientes da diplomacia oficial: discursos, documentos de posição, atas de reuniões, textos de tratados e de outros atos internacionais, geralmente traduzidos pelos próprios diplomatas que colaboravam com a revista. No início do governo militar, por sinal, os relatórios de atividades do Ministério se rarefizeram, o que tornam ainda mais úteis esses números trimestrais da RBPI, a despeito do eventual retraimento de alguns diplomatas ante a nova situação política e suas orientações mais alinhadas à diplomacia tradicional da era da Guerra Fria.
Embora tenham ocorrido poucos episódios de enquadramento da corporação ao novo Zeitgeist, e até algumas baixas entre os opositores identificados – foi o caso, por exemplo, do embaixador Jayme Rodrigues, segundo na delegação brasileira à Unctad –, a revista continuou a dar ênfase aos seus temas habituais. O novo editor, o historiador e ex-professor do Instituto Rio Branco José Honório Rodrigues – que deu início a uma revista “concorrente”, a Política Externa Independente, que sobreviveu a três corajosos números entre 1964 e 1966 – preparou números temáticos sobre os temas econômicos do momento, a dependência do Brasil das exportações de commodities e a reforma do sistema multilateral de comércio; as questões da política nuclear, do direito do mar e vários outros que estavam ativamente presentes na agenda de trabalho da diplomacia brasileira também comparecem nas páginas da RBPI com muita frequência (ver o número especial sobre os 40 anos da revista, em 1998, bem como o editorial assinado por Antônio Carlos Lessa e Paulo Roberto de Almeida, no vol. 47-1, junho de 2004, por ocasião dos cinquenta anos do Instituto, ambos disponíveis na plataforma Scielo).
É provavelmente esse espírito da revista, e do próprio Instituto, que explica a relativamente rápida retomada das posições da “política externa independente” já no segundo governo do regime militar, a despeito das limitações políticas da época e de alguns cânones ideológicos identificados com o espírito de caserna dos dirigentes. A sua influência foi, no entanto, sendo progressivamente diminuída depois que o ministério e todo o corpo diplomático presente no Rio de Janeiro tiveram de operar a mudança para a nova capital, no início dos anos 1970, o que culminou com a transferência do próprio Instituto Rio Branco, em 1975. O IBRI e a RBPI foram perdendo realce e prestígio nos meios que eles mais influenciavam: a própria corporação profissional do Itamaraty, o corpo diplomático e os muitos acadêmicos e altos funcionários que sempre gravitaram em torno desse antigo empreendimento na capital cultural do país. Seguiu-se uma trajetória de declínio, quando o IBRI já era praticamente virtual e a revista continuava a ser mantida – financiada, editada e distribuída – graças aos esforços solitários de Cleantho de Paiva Leite, sem grande promotor e animador nas duas décadas restantes de sua fase carioca. Sua morte, em outubro de 1992, sinalizou o fim de uma época e o início de outra, tanto para o IBRI quanto para a RBPI, que se tornaram menos policy-oriented, e mais deliberadamente voltados para o mundo acadêmico.
Essa orientação, adotada a partir da transferência – de fato a recriação, tanto no que concerne o IBRI, fundado novamente, quanto a revista – para Brasília representou na verdade uma dinamização e uma potencialização das possibilidades intelectuais e de disseminação para um público mais vasto de ambos instrumentos. O IBRI passou a organizar seminários e outros eventos tipicamente acadêmicos, firmou convênios com outras instituições, a começar com a Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, publicou muitos livros – geralmente em coedição com editoras comerciais ou da área acadêmica e diplomática – e adquiriu um novo prestígio, graças à sua íntima associação com o Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, que fornece a quase totalidade dos recursos humanos, e muitos dos recursos materiais, necessários às suas atividades. O Professor José Carlos Brandi Aleixo, seu primeiro diretor na fase de Brasília, permanece como presidente de honra, em vista de seu trabalho meritório nos primeiros esforços de soerguimento da antiga instituição inaugurada em 1954.
Quanto à revista, ela não apenas recuperou suas excelentes qualidades analíticas dos anos do Rio de Janeiro, quanto cresceu exponencialmente em prestígio e audiência internacionais, o que é confirmado pela ampla gama de instrumentos de citação e de indexação de âmbito mundial. Dois nomes foram essenciais para essa feliz evolução institucional e intelectual: o professor emérito Amado Luiz Cervo, seu primeiro editor durante os primeiros dez anos da fase de Brasília, e desde 2004 o professor Antônio Carlos Lessa, que imprimiu notável modernização editorial e gráfica à revista, bem como atuou de forma decisiva para inculcar-lhe os mais rigorosos padrões de qualidade propriamente acadêmica (ver a coleção: http://ibri-rbpi.org/category/edicoes-da-rbpi/).
Ela é parte de um esforço mais amplo que também vem acompanhado de outros veículos e instrumentos de pesquisa e publicação, como a antiga plataforma Relnet e, desde muitos anos, a plataforma Mundorama. Por iniciativa do professor Lessa, foi criado o Boletim Meridiano 47, cujo significado foi explicando em seu primeiro número nestes termos: “Meridiano 47 é uma homenagem que o IBRI faz a Brasília (cidade cortada por aquela linha), onde está funcionando desde 1993, com o que renova o seu compromisso permanente com a análise de alto nível na área de relações internacionais, há muito firmado com a publicação ininterrupta da Revista Brasileira de Política Internacional - RBPI, que desde 1958 é testemunha e muitas vezes veículo preferencial  dos movimentos intelectuais e políticos que renovaram a ação internacional do Brasil, assumindo desde logo um papel de relevo na cultura política e acadêmica do país.” (n. 1, neste link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4774/4007)
O longo quadro analítico, de 1954 a 2014, que se segue a este ensaio tenta realizar uma síntese do contexto internacional, regional e nacional sob os quais se desenvolveram a reflexão, a produção intelectual e a própria ação da diplomacia brasileira, tal como repercutida numa produção de obras – por acadêmicos, por diplomatas e alguns analistas estrangeiros – relevantes para enquadrar essa rica evolução intelectual e prática das relações internacionais e da política externa do Brasil. Ele fornece um rápido instrumento de consulta sobre os trabalhos mais importantes publicados no Brasil nas últimas seis décadas, com destaque para a própria RBPI, ademais de uma seleção dos livros já integrados à literatura desses campos, e que marcaram cada um desses anos de aprofundamento analítico e de crescimento intelectual. O IBRI e a RBPI são peças destacadas, e certamente meritórias, desse cenário de realizações intelectuais, como tais destinados a perdurar no futuro previsível, num ambiente certamente mais competitivo do que o das primeiras décadas, e por isso mesmo mais estimulante em termos de rigor analítico e de preservação dos padrões de qualidade que sempre foram os seus. 
Paulo Roberto de Almeida
[Hartford, 2722: 2 de dezembro de 2014]

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