Pouco mais de 2 anos atrás, no quadro das comemorações dos 60 anos do
Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, fundado no Rio de Janeiro em 1954, eu comecei a elaborar uma série de textos sobre esse mais de meio século decorrido desde sua criação e os tempos atuais, passando pela criação da
Revista Brasileira de Política Internacional, em 1958, com vistas a comemorar devidamente esses dois empreendimentos meritórios tanto no plano puramente acadêmico, quanto no profissional, uma vez que eles engajaram diplomatas e outros personagens públicos no debate e publicações em temas de relações internacionais e política externa do Brasil.
Este trabalho, que transcrevo abaixo, foi o primeiro da série, que ficou inédito na forma em que está, embora tenha sido aproveitado nos trabalhos subsequentes. Nas postagens seguintes vou reproduzir os três outros trabalhos preparados para a ocasião.
Como estamos organizando um
seminário sobre esses eventos, no IRel-UnB, sob a coordenação do Professor Antonio Carlos Lessa, achei pertinente reproduzir o que fiz dois anos atrás, pois pode sempre servir de informação a muitos interessados na temática.
2722. “O Brasil e
suas relações internacionais de 1954 a 2014: O que mudou em 60 anos? O que
ficou? O papel do IBRI”, Hartford, 30 novembro 2014, 16 p. Nota sobre o
Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e as relações
internacionais do Brasil, entre 1954 e 2014: para (a) pequeno artigo para o
Mundorama, (b) grande artigo para o Meridiano
47, e (c) uma gravação audiovisual sobre a transferência do IBRI do Rio de
Janeiro para Brasília, e o salvamento da RBPI. Desmembrado para fins de
publicação como artigo comemorativo dos 60 anos do IBRI; parte relativa ao IBRI
e à RBPI integrada ao trabalho 2724; outras partes para reelaboração.
O Brasil e suas relações
internacionais de 1954 a 2014:
O que mudou em 60 anos? O que
ficou? O papel do IBRI
Paulo Roberto de Almeida
Artigo comemorativo dos 60 anos do IBRI
Sumário:
1. Introdução: a
ordem mundial, tal como realmente existente
2. O Brasil e a
América Latina em 1954: atrasados e dependentes da ajuda externa
3. O Brasil e a América
do Sul em 2014: de fora dos circuitos internacionais?
4. O papel do IBRI
e da RBPI: pioneiros no debate da
política externa brasileira
1.
Introdução: a ordem mundial, tal como realmente existente
Em 27 de janeiro de 1954,
um pequeno grupo de intelectuais, de funcionários públicos e de profissionais
liberais se reuniu no Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro, sede do Ministério
das Relações Exteriores desde o início da República, e tomou a decisão de criar
a primeira instituição brasileira especificamente dedicada ao estudo da
política internacional e de questões atinentes às relações exteriores do
Brasil: o Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI). Ele foi
definido, nos seus estatutos, como uma sociedade civil com finalidades
culturais, com o objetivo de “realizar, promover e incentivar estudos sobre
problemas internacionais, especialmente os de interesse para o Brasil”.
Condizente com a sede que abrigava o conclave, o IBRI congregaria, ao longo de
sua existência continuada, vários diplomatas engajados em suas atividades, assim
como devotaria parte de seus esforços analíticos e das iniciativas empreendidas
nos anos e décadas seguintes ao registro, à exposição, para um público mais
vasto, e à discussão dos mais diversos temas vinculados à relações
internacionais, bem como ao pensamento e à ação da diplomacia brasileira.
Uma dessas iniciativas
concretizou-se quatro anos depois, sob a forma de uma publicação periódica, a Revista Brasileira de Política Internacional
(RBPI), a mais antiga e a mais
prestigiosa dos veículos especializados em temas internacionais no Brasil (n. 1:
http://cafemundorama.files.wordpress.com/2013/10/rbpi_1958_1.pdf). Ambos, o IBRI e a RBPI, passaram por diferentes etapas em
seus itinerários respectivos de mais de meio século, em duas fases bem
caracterizadas: a do Rio de Janeiro, de 1954-58 até 1992, e a de Brasília, a
partir de 1993 aos nossos dias. Um pouco de sua história, ao completar o IBRI
seus primeiros 50 anos de vida, foi recapitulada por este mesmo autor na nota
comemorativa “Instituto Brasileiro de Relações Internacionais: 50 anos de um
grande empreendimento intelectual” (Revista
Brasileira de Política Internacional, vol. 47, n. 2, julho-dezembro de 2004,
p. 223-226; link: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v47n2/v47n2a08.pdf ).
Este pequeno ensaio não
tem a intenção de refazer a história da instituição e a de seu principal
veículo de divulgação nas mais de seis décadas decorridas desde as iniciativas
pioneiras, mas buscará, preferencialmente, oferecer um panorama do Brasil e de
suas relações internacionais nos dois anos extremos do período. Um sobrevoo
geral permite constatar certas constâncias, ou seja, o a recorrência das mesmas
questões ao longo desse itinerário, mas também muitas transformações, como
parece inevitável, tanto no plano propriamente doméstico, quanto no da política
internacional e da economia mundial. O Brasil e a América do Sul não parecem
ter mudado significativamente de posição no contexto dos cenários geopolíticos
que se sucederam historicamente: Guerra Fria, distensão global, crises e
derrocada do comunismo, emergência de novos equilíbrios nos planos regional e mundial;
a despeito dessas grandes alterações da ordem mundial, o Brasil, a América
Latina, e a do Sul talvez não tenham um peso maior, atualmente, do que tinham
no início do período em exame.
Não obstante, algumas estruturas
econômicas e as formas de participação do país e da região nos assuntos da
política mundial podem ter sido substancialmente alteradas, em alguns casos
para um melhor posicionamento, em outros casos apenas confirmando o papel
excêntrico, relativamente secundário, para não dizer marginal, assumido pelo
Brasil e pela região no contexto mais vasto das relações internacionais e,
sobretudo, no quadro dos grandes equilíbrios geopolíticos entre os atores
determinantes da politica e da economia mundiais. Em termos mais exatos, o
Brasil e a América do Sul contam pouco nos cenários decisivos da paz e da
segurança internacionais, mas também no das grandes dinâmicas econômicas –
tecnológicas e financeiras, sobretudo – que movimentam a interdependência
global (e, na verdade, podem até ter perdido terreno para a Ásia nessa segunda
área, já sendo pouco influente na primeira).
Esta última afirmação pode
parecer depreciativa do papel ou da importância que se costuma emprestar – no
mais da vezes auto-atribuída – ao Brasil nesses contextos, uma vez que tanto as
elites políticas, quanto o establishment diplomático e a corporação militar têm
por hábito ressaltar a relevância da participação do Brasil nesses cenários de
variada significação para os grandes objetivos multilaterais da preservação da
paz e da segurança internacionais, e para a promoção dos objetivos ainda mais
decisivos relativos ao desenvolvimento econômico e ao progresso social dos
povos e dos Estados membros da comunidade internacional. Se formos compulsar,
porém, a obra mais recente que trata justamente dos grandes equilíbrios
mundiais e dos problemas remanescentes para a consolidação de uma ordem
internacional estável, pacífica e promotora dos direitos humanos, da segurança
e da paz, escrita por um especialista reconhecido, teremos exatamente a
confirmação do argumento defendido neste ensaio.
Com efeito, Henry
Kissinger, em seu livro mais recente, World
Order – (New York: Penguin Press, 2014), provavelmente o último, de tipo conceitual,
de uma das mais longas carreiras de acadêmico, de conselheiro de segurança
nacional, de diplomata e de ator de primeiro plano das relações exteriores dos
Estados Unidos e das próprias relações internacionais, consultor de quase todos
os presidentes americanos desde os anos 1950 –, não devota nem mesmo um
capítulo, sequer uma mísera seção, à América Latina ou ao Brasil, nas dez
grandes unidades da obra, todas elas dedicadas aos grandes atores ou aos
problemas percebidos como relevantes para o estabelecimento ou a preservação de
uma ordem que de fato não existe. Após uma introdução de tratamento conceitual
da questão título, ele dedica dois capítulos à ordem europeia surgida com a paz
de Westfália e o sistema de balanço de poder daí resultante, um ao mundo
islâmico e às desordens do Oriente Próximo, outro voltado exclusivamente para
as relações entre os Estados Unidos e o Irã, dois outros sobre a Ásia (sua
multiplicidade e a emergência de uma ordem “asiática”), dois capítulos inteiros
sobre a diplomacia dos Estados Unidos (a ideia de uma ordem internacional na
tradição wilsoniana e o seu papel atual como “superpotência ambivalente”) e,
finalmente, dois capítulos finais voltados para questões tecnológicas e de
informação e de proliferação, e sobre a evolução provável de uma ordem mundial
ainda largamente indefinida.
Para ser mais preciso, a
América Latina não aparece sequer no índice remissivo do livro, embora nele exista
a entrada western hemisphere. O
Brasil só é mencionado duas vezes, ambas en
passant e de maneira irrelevante: a primeira para falar sobre o impacto
mundial das revoluções europeias de 1848, a segunda na companhia da Índia (que
recebe tratamento mais amplo nos capítulos asiáticos da obra) como exemplo de
nações emergentes. Esta é, portanto, uma abordagem realista, a despeito de
negativa para a autoestima de alguns, do cenário mundial e das relações
internacionais nos últimos cinco séculos, registrando apenas os atores que
contam nos grandes equilíbrios mundiais. Não obstante a marginalidade relativa
do Brasil e do continente para essa ordem mundial, cabe examinar, para fins
deste pequeno ensaio rememorativo, o que era o Brasil e sua posição no sistema
internacional em 1954, como foi evoluindo sua presença e participação nas seis
décadas decorridas desde então, e de como se apresenta hoje o país e sua região
no cenário econômico e político mundiais.
2. O Brasil
e a América Latina em 1954: atrasados e dependentes da ajuda externa
O conceito de América do
Sul, embora fosse geograficamente válido para essa época, não tinha maior
significado geopolítico e não constituía um espaço próprio de reflexão para o
Brasil ou sua diplomacia no início dos anos 1950, embora o continente já fosse,
em especial o Cone Sul, o foco principal de preocupações de segurança e,
paradoxalmente, um espaço privilegiado de intercâmbios econômicos e de possível
cooperação regional. A Argentina era, obviamente, o principal competidor nos
exercícios – em geral, apenas virtuais – de equilíbrio de poder, assim como o
principal parceiro nos intercâmbios comerciais regionais, desde o Império
aliás. Os Estados Unidos já eram, desde essa época, o principal comprador do
primeiro produto brasileiro de exportação, o café, mas a Argentina despontava
como um importante fornecedor de trigo, assim como constituía uma absorvedora
natural das exportações brasileiras de baixo valor agregado. Em contrapartida,
o conceito de América Latina experimentava um renascimento significativo –
desde seu uso inicial no bojo das aventuras francesas no México – a partir da
constituição da Comissão das Nações Unidas para a região, a Cepal, em 1948. É
portanto com base nesse conceito que se pode examinar o contexto regional e
internacional de seis décadas atrás.
Na primeira metade dos
anos 1950, o clima vigente na região era de bastante frustração com o pouco
empenho dos Estados Unidos nos projetos e aspirações latino-americanas de
desenvolvimento econômico. No imediato pós-guerra, desde o encontro interamericano
de Chapultepec – em janeiro de 1945, no México, à qual a Argentina não tinha
sido convidada, em vista de sua neutralidade pró-nazista durante a guerra – até
as conferências diplomáticas do Rio de Janeiro-Petrópolis e de Bogotá – que
assistiram ao nascimento do TIAR, o Tratado Interamericano de Assistência
Recíproca, pai espiritual da OTAN, e da OEA, que substituiu a antiga União
Pan-Americana – os latino-americanos ainda mantinham alguma esperança de que os
EUA, findo o conflito mundial em duas grandes frentes, pudessem finalmente se voltar
para o hemisfério de maneira mais atenciosa do que tinha sido o caso até então.
Alguns países, não excluindo o Brasil, até pensaram que pudesse ser reproduzido
deste lado do Atlântico o grande experimento europeu do Plano Marshall, no que
eles confundiam inteiramente projetos articulados de reconstrução e de
recuperação de economias destruídas pela guerra com programas de
desenvolvimento para nações dotadas de baixa capacitação técnica até para
formular programas articulados de desenvolvimento econômico e social.
Na verdade, o que os
países do sul desejavam, o Brasil inclusive, era a cessão facilitada de grandes
montantes de capitais oficiais para que os países pudessem aplicá-los em
projetos de sua própria escolha, geralmente ligados à industrialização e
infraestrutura (numa fase em que o Banco Mundial ainda não dispunha de muitos
recursos, ou quando os existentes estavam já comprometidos com projetos na
Europa e na Ásia). Nada disso ocorreu, obviamente, e os americanos formularam
suas recomendações habituais: que os países da região reformassem suas
estruturas de acolhimento de capitais privados e que suas políticas industriais
e comerciais fossem moldadas de acordo com um ambiente de negócios suscetível
de investimentos diretos estrangeiros. A Cepal ainda não tinha adquirido peso
intelectual suficiente para oferecer o novo evangelho econômico da
industrialização substitutiva de importações, mas já formulava suas primeiras
críticas às doutrinas em vigor nas instituições de Bretton Woods, que iam mais na
linha da ortodoxia mainstream do que
da heterodoxia prebischiana que passou a influenciar as políticas econômicas
nos países da região.
O Brasil também continuava
a ser uma economia relativamente atrasada, embora tivesse começado a
impulsionar vigorosamente seu processo de industrialização: depois de Volta
Redonda (1942) e em razão das próprias restrições durante o período bélico, uma
série de novas indústrias de transformação foram estabelecidas ou começaram a
ser implantadas no país, com investimentos feitos pelo próprio Estado, desde o
Plano Salte (no governo Dutra) e a partir da criação da Petrobras e do BNDE (no
governo Vargas), ou pelo capital estrangeiro, sobretudo no período seguinte, a
partir do Plano de Metas de JK. Em 1953 – coroando a fase de cooperação
iniciada durante a guerra sob os acordos de Lend-Lease (empréstimo e
arrendamento), o Plano Cooke (1942), e continuada com a Comissão Mista de
Desenvolvimento no governo Dutra – foi assinado um acordo de assistência
militar, que consolidava a inserção securitária do Brasil no campo americano e
ocidental, na fase clássica da Guerra Fria, quando manuais do National War
College eram traduzidos e utilizados na formação dos oficiais das Forças
Armadas, e muitos deles seguiam para cursos em instituições de formação militar
dos EUA.
A cooperação com o gigante
do norte teria o seu desenvolvimento máximo entre meados dos anos 1950 e a década
seguinte, culminando na “aliança não escrita” (mas documentada) do golpe
militar de 1964, para deteriorar-se sensivelmente a partir daí, em vista de
alguns projetos dos militares – a capacitação nuclear bélica, em primeiro lugar
– que terminaram colocando os dois governos em campos opostos, até a ruptura
registrada no governo Geisel (denúncia, em 1977, do acordo de assistência
militar), por causa das pressões exercidas pelos EUA a propósito do acordo de
cooperação nuclear Brasil-Alemanha e de direitos humanos. A despeito da
continuidade da cooperação na área militar, na Guerra Fria ou depois dela, as
relações nunca mais seriam as mesmas.
O Itamaraty também se
colocava, talvez com menor entusiasmo, no mesmo universo mental e político do
anticomunismo oficial – doutrina de Estado desde 1935, pelo menos – e no da solidariedade
interamericana liderada pela grande potência do norte, com a qual a cooperação
era suposta integrar os fundamentos mesmos da política externa daquela fase. Esse
elemento constituía um dos grandes desafios da diplomacia profissional, uma vez
que era preciso conciliar impulsos hemisféricos vindos da América do Norte com
os apelos por uma “terceira posição”, patrocinados pelo caudilho argentino Juan
Domingo Perón. No início dos anos 1950, a postura do Brasil era claramente
pan-americana e pró-americana; militares e diplomatas não simpatizavam com o caudilho,
menos ainda com sua “república sindical”, o que de certa afetava tanto os
apelos de Perón por uma terceira via, mas contrários à visão dos Estados Unidos
para a “solidariedade hemisférica”, quanto projetos iniciais da Cepal em prol
da integração regional, tema que ainda não era prioritário para o Brasil.
Cabe não olvidar que, no
mesmo momento em que estavam sendo feitos os preparativos iniciais para a
criação do IBRI, um pedido de impeachment contra Getúlio Vargas, envolvendo
inclusive seu ministro do Trabalho João Goulart, tinha sido introduzido na
Câmara dos Deputados pelo seu ex-chanceler, tornado inimigo político, João
Neves da Fontoura, por motivo de financiamento peronista (ilegal, portanto) em
favor da máquina partidária e de candidatos do Partido Trabalhista Brasileiro.
Submetido a votação, o processo falhou em ser levado adiante no Senado, mas ele
integrou, junto com os demais dramas políticos (e até criminosos) envolvendo
Carlos Lacerda e vários militares, a sucessão de crises que culminaram no
suicídio de Vargas, em agosto de 1954 (ver o artigo “Brasil: a denúncia João
Neves”, em Cadernos do Nosso Tempo:
nº 2, 1954). A cooperação regional teve chance de avançar depois da queda de
Perón, patrocinada pelos militares argentinos, e quando o Brasil se aproximou
mais positivamente da Argentina, sob o governo Kubitschek, quando foi assinado
um acordo de cooperação bilateral entre os chanceleres Lafer e Taboada. Dois
anos depois se decidia a criação da Alalc e do Banco Interamericano de
Desenvolvimento, duas iniciativas às quais responsáveis do IBRI, já escrevendo
para a RBPI, estiveram intimamente
associados, inclusive como delegados brasileiros nas conferências diplomáticas
de adoção dos convênios constitutivos, como foi o caso do diretor do IBRI, e
editor “eterno” da RBPI, Cleantho de
Paiva Leite.
Em síntese, o que se pode
dizer do Brasil e da América Latina, na conjuntura de 1954 a 1958, os anos que
vão da fundação do IRBI à criação da RBPI,
é que se tratava de um país e de uma região excêntricos aos grandes equilíbrios
internacionais, embora solidamente ancorados na esfera de influência dos
Estados Unidos, com os quais cada um dos países da região mantinha relações de
dependência econômica, financeira e tecnológica, ademais de vínculos políticos
e diplomáticos bastante evidentes, a despeito de ensaios tentativos de
autonomia e até de contestação (como a breve experiência da “terceira via”
proposta no início da década pelo caudilho argentino Juan Perón).
O Brasil, que recém
inaugurava o seu primeiro reator experimental para a produção de materiais
nucleares (na USP), entretinha a aspiração de intercambiar seus “minerais
atômicos” contra tecnologia nuclear a ser fornecida pelos EUA, tema que iria
converter-se em contencioso diplomático pouco menos de uma década à frente. Mas
era também, no bojo dos “cinquenta anos em cinco” do presidente Kubitschek, um
país essencialmente otimista, tendo recém ganho sua primeira copa do mundo de
futebol (na Suécia) e inaugurado o Palácio da Alvorada, no quadro da construção
da nova capital (vide a tabela cronológica ao final deste ensaio); no plano
diplomático, ele pretendia secundar os esforços dos EUA para melhorar suas
relações com o “resto do hemisfério” – o conceito não era usado, obviamente –
por meio da Operação Pan-Americana, uma tentativa de obter uma espécie de
“Plano Marshall” para a América Latina, depois dos primeiros ensaios,
frustrados, no momento da criação da OEA e das primeiras reuniões em âmbito
regional, da OEA ou da Cepal.
Mas era também o país que
recebia uma primeira missão de analistas do FMI, convidados para examinar as
condições para a concessão de um empréstimo temporário, em vista das
dificuldades de balanço de pagamentos – queda nos preços do café – e das
dificuldades de honrar compromissos externos, a despeito (ou por causa) dos
enormes gastos extra-orçamentários com a construção de Brasília. Juscelino
Kubitscheck rejeitou, como se sabe, as sugestões de maior rigor fiscal dos
técnicos do FMI, dando início à demonização do organismo no Brasil, com as
acusações infundadas de que ele estivesse querendo impedir o desenvolvimento do
país. A despeito da demagogia política, ele acolhia com entusiasmo os
investimentos diretos que estavam sendo feitos por americanos e europeus na
indústria brasileira nessa mesma época.
O lado econômico das
relações entre as duas partes do hemisfério suscita a questão do
desenvolvimento comparado dos principais países, a partir do estágio em que se
encontram em 1954. Nesse ano, os EUA dispunham de um PIB global de quase 2
trilhões de dólares (deflacionados em dólares de 2008, segundo o Bureau of
Economic Analysis), valor superior ao de todos os demais países combinados, o
que representava uma renda per capita média de 12 mil dólares para os 163
milhões de americanos, perto de cinco vezes acima da renda média dos habitantes
da América Latina no mesmo ano.
Os dados são obviamente
bastante diferenciados entre os países. Angus Maddison, um economista-historiador
de renome e autor de diversos trabalhos de consolidação de dados estatísticos
homogêneos sobre demografia e crescimento em âmbito global, fornece dados
diferentes para esse ano: segundo as “Statistics on World Population, GDP and
per capita GDP” (disponível na página de seu projeto: http://www.ggdc.net/maddison/maddison-project/home.htm), a renda per capita dos
americanos em 1954 era de US$ 10.300 (em dólares Geary-Khamis de 1990),
podendo-se confrontar este valor com os US$ 2.702 da renda média para a América
Latina, embora poderosamente puxada para cima pelos US$ 8,400 dos venezuelanos
e de US$ 4.980 para os argentinos, mas também para baixo, como a própria renda
per capital dos brasileiros, de apenas US$ 1.848 nesse ano (vide “Table 3: Per Capita GDP Levels, 1AD - 2008 AD”; link:
www.ggdc.net/maddison/Historical.../horizontal-file_02-2010.xls; acesso em 28/11/2014).
Em outros termos, o Brasil
possuía menos de um quinto da renda per capita dos EUA, o que já era um notável
progresso em relação ao início do século, quando a distância era muito maior,
na faixa de apenas um décimo da maior renda per capita do hemisfério e do
mundo. O ponto mais alto a que o Brasil chegou, em relação à renda média dos
EUA foi durante o regime militar, quando a relação ultrapassou um quarto do
valor de referência, para novamente baixar nas décadas seguintes, sob o impacto
das crises inflacionárias no Brasil e o lento crescimento observado desde
então. Em 2014, a distância ainda era superior a cinco vezes, como uma breve
consulta a estatísticas atuais pode confirmar. Segundo o FMI, a renda per
capita nos EUA, situado em nono lugar no mundo, era de US$ 53,101 em 2013; o Brasil,
situado no 61o. lugar, exibia um renda de US$ 11.310 (em termos PPP,
registre-se), ou de apenas 18% da renda dos EUA. A Argentina, que sempre esteve
muito acima do Brasil desde o início do século 20 (quando ela exibia mais de
dois terços da renda per capita dos EUA, mas diminuindo gradualmente ao longo do
período, pela sua própria estagnação secular), situou-se em 2013 imediatamente
acima do Brasil, em 60o. lugar, com apenas US$ 11.766.
Mais importante do que
flutuações conjunturais da renda nominal – que podem ser influenciadas por
taxas de câmbio não exatamente determinadas por movimentos do próprio mercado –
são as tendências estruturais de longo prazo, que indicam a trajetória de
países individuais no contexto da economia mundial, uma poderosa alavanca de
sua participação nas dinâmicas internacionais e de possível influência na
composição da agenda diplomática multilateral e nas decisões que lhe são
associadas. A esse título, o Brasil e a América do Sul aparecem como claramente
perdedores, no confronto com a região da Ásia Pacífico, por exemplo. Isso não
tem a ver unicamente com o fato de que a aproximação ao PIB per capita
americano pode exigir mais de um século de esforços contínuos – o que também
seria o caso, comparativamente, da população chinesa, a despeito de o PIB da
China ultrapassar o dos EUA em mais alguns anos – mas envolve basicamente a
inserção de casa país nos circuitos produtivos da moderna globalização.
3. O Brasil
e a América do Sul em 2014: de fora dos circuitos
internacionais?
Quando se observa o Brasil
e a América do Sul com mais de meio século de distância, torna-se inevitável
constatar o imenso progresso material e humano realizado desde meados dos anos
1950: estradas, indústrias, comunicações, escolas, hospitais, participação
política, melhoria dos indicadores demográficos (esperança de vida) e sociais
(educação e cultura, produção científica, universidades vibrantes). Também se
registraram melhores indicadores econômicos – menos inflação (com falhas em
transgressores impenitentes aqui e ali), talvez menos fuga de capitais – e, sobretudo,
alguns avanços políticos: já não sobrevivem as ditaduras militares, embora
caudilhos e populistas demagógicos ainda pontilhem em alguns países.
O que não mudou,
basicamente, foi a miséria e a exclusão, sempre presentes, ainda que o peso
relativo dos pobres e miseráveis tenha diminuído no conjunto da população. A má
educação também se traduz em poucos ganhos de produtividade, e a produção de
patentes e a oferta de inovações exibem número ridiculamente baixos em
comparação com países que também eram pobres nos anos 1950 (vários da Ásia
Pacífico, por exemplo). A governança deficiente, o mau funcionamento da justiça
e a sombra da corrupção continuam em ritmo e intensidade provavelmente
similares aos de meio século atrás, embora as modalidades e os mecanismos
possam ter se alterado um pouco, por vezes até de maneira significativa, com o
desenvolvimento da cobertura bancária e as facilidades de comunicações e de
deslocamentos para o exterior. O grau de concentração de renda – medida pelo
índice de Gini – e parte apropriada pela pequena fração dos muito ricos da
riqueza criada a cada ano não parecem ter recuado de forma substancial. Governos
tiveram de atender novas demandas, o que redundou em maiores avanços do
aparelho impositivo sobre os rendimentos e as transações dos cidadãos, nem
sempre de maneira progressiva, em alguns países até de forma injustamente
regressiva.
Na virada dos anos 1960,
no entanto, a América Latina parecia ter todas as condições para o famoso take-off previsto no manifesto
não-comunista de Walt Rostow, sobre os estágios do desenvolvimento econômico. Mesmo
se economistas mais céticos, ou mais versados em outras ciências humanas – como
Albert Hirschman, por exemplo – alertassem para a inevitabilidade de
desequilíbrios e estrangulamentos nos processos de crescimento, que não eram
necessariamente sustentados ou contínuos, ainda menos isentos de crises e
retrocessos, os técnicos do Tesouro, do Departamento de Estado, e os
funcionários dos bancos multilaterais – BIRD, BID – acreditavam que seria
possível conceber e implementar bons projetos de desenvolvimento, com algumas
reformas domésticas e um pouco de assistência externa. Um famoso economista
pioneiro das teorias de desenvolvimento econômico, o sueco Gunnar Myrdal,
chegou a prever que os únicos países do Terceiro-Mundo a realizar o famoso e
esperado catch-up em relação aos
avançados industrialmente seriam, justamente, os latino-americanos,
contrariamente aos asiáticos, estes condenados à miséria extrema por décadas à
frente (a previsão foi feita nos três volumes de Asian Drama).
Não é que tudo ocorreu ao
inverso do afirmado por Myrdall? A Ásia Pacífico e a maior parte da América
Latina parecem ter trocado de lugares na escala do progresso material e dos
avanços educacionais e tecnológicos, numa espécie de Trading Places (o filme americano) até aqui sem retorno aparente.
As posições respectivas em comércio internacional, em ritmo de crescimento, em
atração de investimentos e na absorção de inovações tecnológicas forma
invertidas ou levadas a itinerários diferentes em cada uma das regiões. Foram
confirmadas, no caso da América Latina, a baixa qualidade da maior parte das
políticas públicas, em especial de caráter macroeconômico e várias setoriais, e
no caso da Ásia a importância da educação e da inserção nos circuitos mais
dinâmicos do comércio internacional e dos investimentos diretos estrangeiros. Poucos
países da Ásia trocaram tantas vezes de moedas – se alguma – ou foram levados a
moratórias com tanta frequência quanto vários latino-americanos o fizeram.
O Brasil, justamente,
relativamente aberto – ainda que abertamente protecionista – ao comércio
internacional até as crises do entre-guerras, continuou sendo o mesmo país deliberadamente
protecionista no pós-guerra, mas ele se desprende dos mercados externos para
voltar-se ao seu próprio no processo de substituição de importações que o
caracterizou de maneira provavelmente mais completa do que em qualquer outro
país latino-americano: ao final do regime militar, a oferta interna era
praticamente ocupada, à razão de 90% – em certos casos até mais –, pela
produção orgulhosamente doméstica. Poucos países no mundo, se algum, trocaram
oito vezes de moeda no espaço de duas gerações, sendo seis vezes em menos de
dez anos, com abatimentos de três zeros quase todas as vezes. Em compensação,
talvez se possa arguir quanto à estabilidade de sua diplomacia, gerida por um
corpo respeitado e bem treinado de profissionais, atuando quase sem
interferência de políticos ou de lobbies claramente caracterizados, em todo
caso até a segunda gestão Fernando Henrique Cardoso, concluída em 2002.
Mas é exatamente na
política externa que as mudanças forma mais importantes desde os anos 1950 aos
nossos dias, e com ainda mais intensidade nos últimos doze anos. Em 2014, a principal
diferença em relação ao cenário de seis décadas atrás parece ser o fato de que
o conceito de América do Sul está solidamente entranhado nas opções e
prioridades da diplomacia brasileira e, a partir desta última, na da maior
parte dos países da região. Com efeito, tomando início na gestão Fernando
Henrique Cardoso à frente da chancelaria brasileira, em 1992, e consolidando-se
gradativamente em seus dois mandatos, uma moldura especificamente continental
para os esforços brasileiros de coordenação da cooperação regional emergiu na
primeira cúpula de chefes de Estado e de governo da América do Sul, a seu
convite, realizada em Brasília em agosto-setembro de 2000, no bojo das
comemorações dos 500 anos do descobrimento português.
Mesmo se o esforço
concertado na ocasião – simbolizado pela Iniciativa de Integração Regional
Sul-Americana (IIRSA) – foi claramente sabotado pelas administrações
posteriores sob o comando do Partido dos Trabalhadores, em benefício de
projetos políticos de claro sabor antiamericano (como a Unasul, por exemplo), o
conceito de América do Sul perdurou e se firmou na diplomacia brasileira como
confirmando o espaço privilegiado de atuação do Brasil nos diversos planos de
projeção externa: econômica, política e em diversas outras áreas setoriais de
cooperação (inclusive educacional e militar). A própria recuperação, mais
recente, do conceito de América Latina (e Caribe) no âmbito diplomático não
diminuiu a concentração de esforços e o foco prioritário na América do Sul, que
adquiriu identidade própria e vem sendo confirmado, a despeito das
peculiaridades de certas escolhas regionais sob o predomínio do Partido dos
Trabalhadores (ver o livro de Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos: A América do Sul no discurso diplomático
brasileiro; Brasília: Funag, 2014).
A antiga dependência
econômica, financeira, e até militar, do gigante do norte se esvaiu no grande
desenvolvimento material registrado desde então, num processo de duro
aprendizado que passou por várias crises econômico-financeiras e negociações,
por vezes humilhantes, com países credores e com entidades multilaterais ou
plurilaterais (Clube de Paris, por exemplo) de assistência financeira. A
absorção, na área industrial, de tecnologia estrangeira – inclusive na área
militar – continua com intensidade similar, embora alternativas venham se
desenhando, sobretudo no bojo de novas iniciativas diplomáticas, algumas até
impulsionadas de maneira pouco realista nos últimos anos. A ideia, por exemplo,
de que o Brics venha a oferecer novas condições de autonomia tecnológica e
alternativas de financiamento e/ou de investimento, em substituição ao bloco
mais tradicional de economias capitalistas avançados pode revelar-se otimista
em demasia para abrir um cenário efetivamente novo no plano do relacionamento
externo. E várias das iniciativas tomadas mais recentemente no sentido de consolidar
uma nova situação de não dependência da grande potência hemisférica o foram
deliberadamente, mais por anti-imperialismo e antiamericanismo do partido no
poder – e que forjou uma diplomacia partidária – do que propriamente como
resultado de estudos técnicos que concluíssem pela inconveniência da relação
outrora privilegiada. Ao contrário, o reforço da “parceira estratégica” com a
China, buscada expressamente pelos mesmos dirigentes, resultou numa dependência
de tipo assimétrico que se traduz em padrões de comércio tipicamente coloniais,
com dominância de matérias primas nas exportações brasileiras e de produtos
manufaturados provenientes da China.
Essa mesma evolução,
combinada a erros de política econômica e a opções claramente regressistas nos
campos das políticas industrial e comercial – dirigismo exacerbado na primeira,
insistência num protecionismo ultrapassado na segunda – fizeram o Brasil recuar
nos indicadores de competitividade externa, redundando no fenômeno precoce da
desindustrialização e da reconcentração da pauta do comércio exterior numa
pequena lista de commodities agrícolas e minerais que se considerava superada
em favor de maior diversificação da oferta externa desde os esforços de
promoção comercial do governo e do Itamaraty a partir dos anos 1970. A tábua de
salvação, no grande recuo brasileiro no comércio exterior – senão em
quantidade, onde o reina é a estagnação, teimosamente estacionada em pouco mais
de 1% de participação brasileira nos intercâmbios globais de bens, pelo menos
em qualidade – tem sido o processo de integração regional – representado pelo
Mercosul e por poucos outros acordos parciais de liberalização – ainda assim
ameaçado este pela voracidade dos exportadores chineses sobre mercados
supostamente destinados a ofertantes brasileiros.
Uma história intelectual
das relações exteriores e da diplomacia brasileira nas últimas seis décadas
seria incompleta se deixasse de mencionar o papel relevante desempenhado pelo
Instituto, desde sua fundação, e sobretudo pela revista, a partir de 1958. Uma
distinção quanto à natureza dessa influência ao longo do tempo deve ser feita
no que respeita o IBRI e no tocante à revista. A associação de muitos
diplomatas lotados no Rio de Janeiro, em meados dos anos 1950, à fundação e
funcionamento do IBRI nos primeiros anos permite estabelecer uma clara
vinculação conceitual entre os temas discutidos nas reuniões do IBRI e
transplantados para a revista desde seu aparecimento e publicação trimestral e
a agenda do Itamaraty nos anos imediatamente anteriores ao regime militar.
Pode-se dizer, sem hesitação, que os membros civis e os diplomatas ativos no
IBRI, e os focos de discussão e análise na RBPI exibem uma espécie de osmose
intelectual com os grandes temas da política externa brasileira e seu
tratamento pelo Itamaraty e pela própria presidência da República.
Esses grandes temas
referem-se ao relacionamento bilateral Brasil-Estados Unidos, no contexto da
Guerra Fria, aos primeiros passos da integração regional, o lançamento da
Operação Pan-Americana pelo governo Kubitschek, a criação do BID e da Alalc, o
problema de Cuba e seu encaminhamento na OEA, a emergência e afirmação da
chamada “política externa independente” – presente, implicitamente, desde o
início na revista, antes mesmo de se tornar explícita nos governos Jânio e
Goulart – e a mobilização ativa do Brasil e dos países em desenvolvimento em
torno da problemática do desenvolvimento, primeiro tratada no âmbito da Cepal,
depois transplantada – inclusive porque o diretor, Raul Prebisch, era o mesmo –
no quadro da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento,
cujo primeiro encontro se deu, aliás, ao mesmo momento em que caia o governo
Goulart e tinha início o governo militar. Todas essas questões figuram nas
páginas da revista, como uma consulta sumária aos índices dos números relativos
a esses anos iniciais pode revelar (ver a coleção completa neste link: http://mundorama.net/category/2-biblioteca/rbpi/).
Qualquer pesquisa sobre a
diplomacia brasileira no período não pode, assim, dispensar esse recurso,
muitas vezes até como fonte primária. Numa época em que o Itamaraty publicava,
se tanto, burocráticos relatórios anuais de suas atividades – e estes não eram
tão detalhados, mas ao contrário, bem menos copiosos do que os antigos
relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, sob a monarquia –
e algumas poucas publicações avulsas, a seção documental da RBPI
invariavelmente fazia a transcrição dos principais expedientes da diplomacia
oficial: discursos, documentos de posição, atas de reuniões, textos de tratados
e de outros atos internacionais, geralmente traduzidos pelos próprios
diplomatas que colaboravam com a revista. No início do governo militar, por
sinal, os relatórios de atividades do Ministério se rarefizeram, o que tornam
ainda mais úteis esses números trimestrais da RBPI, a despeito do eventual
retraimento de alguns diplomatas ante a nova situação política e suas
orientações mais alinhadas à diplomacia tradicional da era da Guerra Fria.
Embora tenham ocorrido poucos
episódios de enquadramento da corporação ao novo Zeitgeist, e até algumas baixas entre os opositores identificados –
foi o caso, por exemplo, do embaixador Jayme Rodrigues, segundo na delegação
brasileira à Unctad –, a revista continuou a dar ênfase aos seus temas
habituais. O novo editor, o historiador e ex-professor do Instituto Rio Branco
José Honório Rodrigues – que deu início a uma revista “concorrente”, a Política Externa Independente, que
sobreviveu a três corajosos números entre 1964 e 1966 – preparou números
temáticos sobre os temas econômicos do momento, a dependência do Brasil das
exportações de commodities e a reforma do sistema multilateral de comércio; as
questões da política nuclear, do direito do mar e vários outros que estavam
ativamente presentes na agenda de trabalho da diplomacia brasileira também
comparecem nas páginas da RBPI com muita frequência (ver o número especial sobre
os 40 anos da revista, em 1998, bem como o editorial assinado por Antônio
Carlos Lessa e Paulo Roberto de Almeida, no vol. 47-1, junho de 2004, por
ocasião dos cinquenta anos do Instituto, ambos disponíveis na plataforma
Scielo).
É provavelmente esse
espírito da revista, e do próprio Instituto, que explica a relativamente rápida
retomada das posições da “política externa independente” já no segundo governo
do regime militar, a despeito das limitações políticas da época e de alguns
cânones ideológicos identificados com o espírito de caserna dos dirigentes. A
sua influência foi, no entanto, sendo progressivamente diminuída depois que o
ministério e todo o corpo diplomático presente no Rio de Janeiro tiveram de
operar a mudança para a nova capital, no início dos anos 1970, o que culminou
com a transferência do próprio Instituto Rio Branco, em 1975. O IBRI e a RBPI
foram perdendo realce e prestígio nos meios que eles mais influenciavam: a
própria corporação profissional do Itamaraty, o corpo diplomático e os muitos
acadêmicos e altos funcionários que sempre gravitaram em torno desse antigo
empreendimento na capital cultural do país. Seguiu-se uma trajetória de
declínio, quando o IBRI já era praticamente virtual e a revista continuava a
ser mantida – financiada, editada e distribuída – graças aos esforços
solitários de Cleantho de Paiva Leite, sem grande promotor e animador nas duas
décadas restantes de sua fase carioca. Sua morte, em outubro de 1992, sinalizou
o fim de uma época e o início de outra, tanto para o IBRI quanto para a RBPI,
que se tornaram menos policy-oriented,
e mais deliberadamente voltados para o mundo acadêmico.
Essa orientação, adotada a
partir da transferência – de fato a recriação, tanto no que concerne o IBRI,
fundado novamente, quanto a revista – para Brasília representou na verdade uma
dinamização e uma potencialização das possibilidades intelectuais e de
disseminação para um público mais vasto de ambos instrumentos. O IBRI passou a
organizar seminários e outros eventos tipicamente acadêmicos, firmou convênios
com outras instituições, a começar com a Fundação Alexandre de Gusmão, do
Itamaraty, publicou muitos livros – geralmente em coedição com editoras
comerciais ou da área acadêmica e diplomática – e adquiriu um novo prestígio,
graças à sua íntima associação com o Instituto de Relações Internacionais da
Universidade de Brasília, que fornece a quase totalidade dos recursos humanos,
e muitos dos recursos materiais, necessários às suas atividades. O Professor
José Carlos Brandi Aleixo, seu primeiro diretor na fase de Brasília, permanece
como presidente de honra, em vista de seu trabalho meritório nos primeiros
esforços de soerguimento da antiga instituição inaugurada em 1954.
Quanto à revista, ela não
apenas recuperou suas excelentes qualidades analíticas dos anos do Rio de Janeiro,
quanto cresceu exponencialmente em prestígio e audiência internacionais, o que
é confirmado pela ampla gama de instrumentos de citação e de indexação de
âmbito mundial. Dois nomes foram essenciais para essa feliz evolução
institucional e intelectual: o professor emérito Amado Luiz Cervo, seu primeiro
editor durante os primeiros dez anos da fase de Brasília, e desde 2004 o
professor Antônio Carlos Lessa, que imprimiu notável modernização editorial e
gráfica à revista, bem como atuou de forma decisiva para inculcar-lhe os mais
rigorosos padrões de qualidade propriamente acadêmica (ver a coleção: http://ibri-rbpi.org/category/edicoes-da-rbpi/).
Ela é parte de um esforço mais amplo que também vem
acompanhado de outros veículos e instrumentos de pesquisa e publicação, como a
antiga plataforma Relnet e, desde muitos anos, a plataforma Mundorama. Por
iniciativa do professor Lessa, foi criado o Boletim Meridiano 47, cujo significado foi explicando em seu primeiro
número nestes termos: “Meridiano 47 é
uma homenagem que o IBRI faz a Brasília (cidade cortada por aquela linha), onde
está funcionando desde 1993, com o que renova o seu compromisso permanente com
a análise de alto nível na área de relações internacionais, há muito firmado
com a publicação ininterrupta da Revista
Brasileira de Política Internacional - RBPI, que desde 1958 é testemunha e
muitas vezes veículo preferencial dos
movimentos intelectuais e políticos que renovaram a ação internacional do
Brasil, assumindo desde logo um papel de relevo na cultura política e acadêmica
do país.” (n. 1, neste link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4774/4007)
O longo quadro analítico,
de 1954 a 2014, que se segue a este ensaio tenta realizar uma síntese do
contexto internacional, regional e nacional sob os quais se desenvolveram a
reflexão, a produção intelectual e a própria ação da diplomacia brasileira, tal
como repercutida numa produção de obras – por acadêmicos, por diplomatas e
alguns analistas estrangeiros – relevantes para enquadrar essa rica evolução
intelectual e prática das relações internacionais e da política externa do
Brasil. Ele fornece um rápido instrumento de consulta sobre os trabalhos mais
importantes publicados no Brasil nas últimas seis décadas, com destaque para a
própria RBPI, ademais de uma seleção dos livros já integrados à literatura
desses campos, e que marcaram cada um desses anos de aprofundamento analítico e
de crescimento intelectual. O IBRI e a RBPI são peças destacadas, e certamente
meritórias, desse cenário de realizações intelectuais, como tais destinados a
perdurar no futuro previsível, num ambiente certamente mais competitivo do que
o das primeiras décadas, e por isso mesmo mais estimulante em termos de rigor
analítico e de preservação dos padrões de qualidade que sempre foram os seus.
Paulo Roberto de Almeida
[Hartford, 2722: 2 de dezembro de 2014]
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