terça-feira, 20 de abril de 2021

Cientistas estudam a produção da ignorância - Luciana Rathsam (UniCamp)

 

Cientistas estudam a produção da ignorância e unem esforços para combatê-la

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A pandemia de Covid-19 impulsionou uma intensa produção de publicações científicas no mundo todo. Conforme um levantamento a partir das informações da plataforma Dimensions, realizado pela Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica (AGUIA), até o dia 17 de outubro de 2020 haviam sido produzidas e registradas 168.546 publicações sobre Covid-19. Paralelamente, a ciência também se dedicou à compreensão e ao enfrentamento de outra ameaça, que se propaga exponencialmente pelas redes sociais: a desinformação.

A desinformação é um conceito que extrapola o significado de “fake news”. Embora amplamente difundido, o termo ‘fake news’ é considerado ambíguo ou impreciso por alguns autores. Para examinar a complexidade da desordem da informação são estabelecidos critérios de classificar as mensagens, como o modelo proposto por Wardle e Derakshan (2017), que diferencia a desinformação (dis-information”), criada propositalmente para prejudicar um indivíduo, um grupo, uma organização ou uma nação, a informação errada (“mis-information”), que é produzida sem a intenção de provocar danos, e a informação maliciosa(“mal-information”), que embora seja baseada em fatos, é divulgada na esfera pública para causar prejuízos a uma pessoa, organização ou país.

O Grupo de Estudos da Desinformação em Redes Sociais (EDReS) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) reúne pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento para tentar entender e reduzir os efeitos da desinformação sobre a sociedade. “Estamos trabalhando no limite entre o conhecimento acadêmico formal e as suas aplicações”, explica Leandro Tessler, integrante do EDReS e professor do Instituto de Física da Unicamp. No início da pandemia, o grupo criou um canal no Whatsapp para receber notícias falsas disseminadas pelas redes sociais, formando um extenso banco de dados. “A análise de dados depende do estudo que está sendo feito. Pode ser intensiva, com a participação humana (assistir muitos vídeos sobre um assunto) ou mais baseada em máquina (correlacionar todos os tuítes sobre vacinas em língua portuguesa num determinado intervalo de tempo)”. Um dos objetivos dos estudos é classificar as notícias e compreender como elas evoluem no tempo. Em geral, as notícias analisadas classificam-se em 3 grandes grupos, relacionados à minimização da gravidade da doença, às teorias conspiratórias e à negação das vacinas, destaca Tessler. ‘’Dentro de cada grupo há variantes. Na verdade, há toda uma hierarquia de desinformação, quase dá para fazer uma classificação filogenética”.

Em Maceió, uma pesquisa coordenada por Priscila Muniz de Medeiros, professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) busca estudar a influência da desinformação sobre a pandemia de covid-10 nas atitudes e comportamentos da população. Com base nas informações de oito agências de checagem, o estudo fez uma cartografia das notícias falsas que circularam no País entre março e outubro de 2020. O próximo passo, diz a pesquisadora, é entender como essas notícias impactaram os esforços de contenção do vírus. Os dados já analisados indicam que as notícias falsas buscam ajustar os fatos à visão de mundo do grupo político que as está propagando “As notícias falsas operam no sentido de conservar para aquele grupo a narrativa do herói infalível, o mito, o salvador, que nunca erra. Ao mesmo tempo que qualquer um que se oponha ao herói se torna antagonista nessas narrativas ficcionais. A manutenção dessa coerência narrativa é essencial para a conservação do amálgama que une o grupo”, avalia Medeiros.

A fraqueza das instituições fortalece a ignorância 

A desinformação e o negacionismo (versão articulada e institucionalizada da desinformação), não se restringem ao Brasil. Em parceria com colegas da Columbia University e da University of Vienna, o pesquisador Renan Leonel, pós-doutorando no Health Ethics and Policy Lab da ETH Zurich, Suiça, busca analisar e comparar os efeitos da produção da ignorância e do negacionismo sobre o enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Brasil, nos Estados Unidos e no Reino Unido. O grupo selecionou os principais jornais impressos dos três países e levantou mais de 36 mil artigos relacionados ao tema de interesse. Ferramentas computacionais permitiram identificar quais palavras-chaves apareceram com mais frequência nos jornais por período da pandemia e revelaram que os discursos negacionistas se concentraram, num primeiro momento, em desqualificar o conhecimento sobre a transmissão do vírus. No período entre as duas ondas da pandemia, a circulação em espaços públicos e a reabertura de estabelecimentos comerciais ganha atenção, e quando a vacina se tornou realidade, passou a ser o alvo do negacionismo. Em relação às particularidades dos discursos negacionistas no país, Leonel aponta que as notícias da mídia brasileira deram maior ênfase à questão dos medicamentos sem eficácia comprovada e também à polêmica da reabertura do comercio para a retomada da economia.

Comparando a situação do Brasil e dos EUA, Leonel ressalta a importância das instituições democráticas para redução dos efeitos do negacionismo. A despeito do discurso negacionista do Trump, órgãos e instituições estadunidenses seguiram seus projetos na pandemia, o Congresso aprovou medidas de estímulo à economia, as vacinas foram produzidas. “No caso do Brasil, faltou uma infraestrutura de ciência articulada com os instrumentos democráticos e que pudesse dar conta de um caminho alternativo. Nossas instituições já estavam muito enfraquecidas e infelizmente o nosso Congresso Nacional também compartilhava grande parte das percepções negacionistas do Presidente da República, então o caos político no Brasil alcançou um nível muito superior e a adesão à desinformação foi muito maior do que naqueles países.”

Iniciativas de combate à desinformação

A resposta à pandemia no Brasil não se destaca apenas pelas falhas políticas, mas também por manifestações e iniciativas promovidas por grupos da sociedade civil para garantir o acesso à informação de qualidade. Cientistas de todo o país concentraram esforços para criar espaços de comunicação em plataformas e redes sociais, promoveram webinários e conferências, dedicaram-se à checagem de mensagens que circulavam na internet. O site ciência popular, que mapeia algumas iniciativas das universidades brasileiras na pandemia, registrava a ocorrência de 535 iniciativas de disseminação de informações e divulgação científica em 15 de março de 2021.

Referência de iniciativa independente no combate à desinformação, o Observatório Covid-19 BR reúne 85 pesquisadores associados a 28 instituições e fornece dados atualizados, análises estatísticas e previsões sobre a pandemia. Pesquisadores e instituições também se organizam em coletivos e redes de divulgação e combate à desinformação, como a Rede Nacional de Combate à Desinformação e #TodosPelasVacinas, da qual o Observatório faz parte. “O trabalho do Observatório é voluntário, não há aporte de nenhum meio. Pretendemos, no futuro, manter o grupo multidisciplinar de análise de questões que envolvem a saúde pública e seus impactos sociais e continuar a atuar na proposição de políticas públicas baseadas em evidências”, diz Flavia Ferrari, bióloga co-responsável pela divulgação científica do Observatório Covid-19 Br.

A ampliação dos canais de comunicação entre ciência e sociedade é uma tendência importante. “De fato, o ambiente digital é hoje o principal ambiente disseminação da desinformação, mas também é o espaço onde as pessoas buscam conhecimento e informação qualificada, então uma estratégia de comunicação eficaz deve ser forte no ambiente online”, reflete Leonel. “O grande desafio que percebo é o de manter os ganhos trazidos pelas mídias digitais, especialmente no que concerne a ampliação de vozes no debate público, mas reduzindo os enormes danos sociais que os aspectos negativos vêm promovendo”, conclui Medeiros. 

*Luciana Rathsam - editora e roteirista, formada em Ciências Biológicas (IB/Unicamp), com especialização em Gestão Ambiental (Faculdade de Saúde Pública/USP) e aluna da turma 2019-2020 do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor (Unicamp).

Observação: A série de três artigos foram escritos a partir de reflexões sobre o negacionismo científico e sua manifestação durante a pandemia para trabalho de conclusão do curso de especialização em Jornalismo Científico (Labjor/ Unicamp), feito sob a orientação da professora Germana Barata. O texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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