Sobre a tal de “neutralidade” na “guerra da Ucrânia”
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Nota sobre argumentos de Elie Wiesel e de Rui Barbosa.
O Brasil de Bolsonaro foi assim, o Brasil de Lula 3 está sendo assim, o Brasil de muita gente, provavelmente a maioria, e com ela também a maioria do chamado “Sul Global”, uma entidade diáfana, inventada por acadêmicos e gente bem pensante (mas que formalmente não existe), todo esse povo, oficialmente ou apenas declaradamente, sem qualquer outra explicação mais explícita, é objetivamente, abertamente ou implicitamente NEUTRO em relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, evitando fornecer armas e outros materiais bélicos para um ou outro lado daquilo que eles chamam de “conflito”, ou apenas “guerra” da ou na Ucrânia (uma expressão banida na Rússia de Putin, podendo render vários anos de prisão para quem assim se referir ao que o tirano de Moscou apenas chama de “operação militar especial”), mas aproveitando para continuar a manter relações comerciais e outras, com uma ou outra parte no “conflito”, o que ocasionalmente pode render algum lucro ou vantagem temporária na “contenda”, algum desconto na aquisição, grandes lucros na revenda de materiais com valor de mercado, embora continuando a apregoar a sua “neutralidade” em relação ao “conflito” em si.
Pois bem, não preciso me referir novamente ao famoso discurso feito em Buenos Aires pelo eminente jurista, politico e intelectual brasileiro Rui Barbosa, por ocasião do primeiro centenário da independência argentina, em 1916, quando, ao mencionar a invasão da Bélgica neutra pelas tropas do Império alemão no curso da Grande Guerra, ele proclamou solenemente que não se pode ser neutro entre a Justiça e o crime, ante a injustiça, a violência e a opressão, entre um opressor e o oprimido, e que não há imparcialidade possível nessas circunstâncias.
Esse famoso discurso, mais popularmente conhecido como “os deveres dos neutros”, justamente, pode ser encontrado numa publicação da Fundação Casa de Rui Barbosa, de 1983, formalmente intitulada Conceitos Modernos de Direito Internacional. Ele fundamentou em parte o abandono pelo Brasil da sua postura oficial de “neutralidade” em relação à guerra europeia (e mundial), mas apenas depois que submarinos do Reich torpedearem barcos brasileiros no Atlântico, o que também ocorreu antes do rompimento de nossa neutralidade em circunstâncias semelhantes no curso do que já tinha ficado conhecido como Segunda Guerra Mundial.
Esse mesmo discurso de Rui Barbosa e seus argumentos irrespondíveis foram fundamentais para que o então chanceler Oswaldo Aranha apoiasse sua tomada de posição em favor da cessação da postura oficial de neutralidade em relação ao “conflito” em curso, rompendo relações diplomáticas comas potências do Eixo (ou “Pacto de Aço”), a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão militarista, e depois declarando guerra aos agressores (mas, também, só depois que submarinos nazistas afundaram navios brasileiros em nossas costas, comperdas humanas e materiais, além dos próprios crimes de guerra).
Esse discurso de Rui Barbosa, assim como diversos dos seus outros discursos por ocasião da segunda Conferência da Paz da Haia, em 1907, constituem um marco conceitual relevante na formulação jurídica e na implementação prática da doutrina diplomática brasileira, integrando nosso patrimônio político e moral na tomada de posição em relevantes questões da agenda internacional, sobretudo em problemas atinentes à paz e a segurança internacionais, tal como modernamente regulamentadas pelos principais dispositivos da Carta das Nações Unidas (contra a guerra e a opressão, justamente), assim como em diversos outros instrumentos do Direito Internacional. Ou pelo menos constituíam, pois que desde a invasão violenta e a anexação ilegal, pela mesma Rússia, em 2014, da península ucraniana da Crimeia, tais princípios de Direito Internacional e do sistema político multilateral parecem ter deixado de fazer parte de nossa doutrina diplomática, pois que o Brasil do governo Dilma Rousseff não tomou oficialmente posição, ou declarou informalmente sua “neutralidade” em relação àquela violência perpetrada contra um Estado soberano, membro das Nações Unidas. Naquela ocasião, diversos estados membros da Organização das Nações Unidas, tomaram oficialmente posição, mas não o Brasil, na defesa dos princípios da Carta da ONU, acusando a violação do Direito Internacional e adotando sanções contra o agressor, sanções inteiramente conformes ao espírito e à letra dos artigos 41 e 42 da Carta, apenas “unilaterais” em virtude do uso abusivo do “direito de veto” pela Rússia, então como agora, em circunstâncias similares e até semelhantes, mas de natureza muito mais grave, pois que estamos falando da invasão unilateral, não provocada, do território soberano de um Estado parte por outro membro, inclusive em situação ainda mais ilegal, pois que formalmente responsável pela garantia da lei e da ordem, da paz e da segurança internacionais, em conformidade com os princípios que regem a atuação dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como é o caso da Rússia.
Voltando ao tema da “neutralidade” brasileira, e retomando princípios e valores que já pareciam consagrados em nossa doutrina jurídico-diplomática desde Rui Barbosa, hoje aparentemente esquecidos pelos governos de Bolsonaro e de Lula, gostaria de remeter a argumentos de natureza simplesmente moral, ou de cunho apenas humanos, expostos pelo sobrevivente do Holocausto nazista, o judeu polonês Elie Wiesel, tal como transcritos abaixo:
“We must take sides. Neutrality helps the oppressor, never the victim. Silence encourages the tormentor, never the tormented. Sometimes we must interfere. When human lives are endangered, when human dignity is in jeopardy, national borders and sensitivities become irrelevant. Wherever men and women are persecuted because of their race, religion, or political views, that place must — at that moment — become the center of the universe.”
Elie Wiesel
Tradução livre:
“Precisamos tomar partido. A neutralidade ajuda o opressor, jamais a vítima. O silêncio encoraja o torturador, nunca o torturado. Em algumas ocasiões, precisamos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está sob ameaça, quando as fronteiras nacionais e as sensibilidades se tornam irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres são perseguidos por causa de sua raça, religião ou posturas políticas, aquele lugar precisa — naquele momento — tornar-se o centro do universo.”
Este é o caso, este é o momento, em relação à guerra de agressão, ilegal, desumana, contra o país e o povo da Ucrânia, violadora do Direito e da consciência universais. Os princípios e valores da nossa tradição diplomática, as cláusulas de relações internacionais de nossa própria Constituição assim o pedem. Assim deveríamos fazer: tomar partido, como recomendava Rui Barbosa, cono aquiesceu Oswaldo Aranha, como apelou Elie Wiesel.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4431, 8 julho 2023, 3 p.
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