‘Luxo fake’: por dentro do mercado trilionário de roupas e bolsas de grife falsificadas na China
No topo do ranking de Países que mais movimentam o mercado de produtos falsificados, metrópoles do país asiático são um polo de venda de réplicas ilegais de gigantes como Prada, Chanel, Hermès, Dior e outras
Por Wesley Gonsalves
O Estado de S. Paulo, domingo, 24 de novembro de 2024 13:52
XANGAI - Em um inglês quase ininteligível e com um sorriso no rosto, Li Qin, de 60 anos, aborda turistas que caminham pela avenida Sichuan, região central de Xangai, na costa leste da China. Quase sussurrando ela diz: “Bags? Louis Vuitton, Chanel, Prada?”, enquanto mostra um cartão com imagens de algumas bolsas falsificadas. No centro de compras da cidade, a vendedora trabalha há 20 anos tentando convencer o público - quase sempre ocidental - que caminha pela região a visitar sua loja de réplicas de bolsas de luxo, um mercado gigantesco na China.
O Estadão visitou lojas de roupas, bolsas e sapatos falsificados na maior cidade do país asiático para entender como funciona a abordagem e vendas desse grupo no País, classificado como o nº 1 no ranking de países que mais produzem itens ilegais, segundo o relatório The Notorious Markets List, do governo dos Estados Unidos, e movimenta um mercado trilionário.
Assim como as próprias lojas oficiais das marcas de luxo global, as vendedoras de falsificações estão espalhadas por diversas cidades da China, em especial aquelas de maior adensamento populacional e turístico.
Entre lojas no subsolo de shoppings, dentro de galerias e até em corredores de hotéis da megalópole chinesa com quase 25 milhões de habitantes, escondem esses pontos de compras dos produtos ilegais. Prateleiras e mais prateleiras de bolsas das principais marcas do mercado de luxo, com maior ou menor nível de “autenticidade”, capazes de pôr em xeque a decisão de especialistas em autenticação ao avaliar os produtos.
Com falsificações de todo tipo e preço, para garantir um “negócio da China” e o menor valor, os consumidores ávidos têm de pôr a negociação em jogo. Por lá, o preço da “etiqueta” nem sempre é o valor final, e a negociata faz parte do protocolo cultural.
Na primeira “loja” visitada pela reportagem, Li mostrava toda uma linha de produtos falsificados em um tablet, com fotos de modelos, tamanho e opções de cor. Depois que o comprador escolhia suas opções, uma segunda vendedora buscava, em outro local, os itens. “Você gosta? Qual paga?”, questionava Li.
Depois de dizer que não tinha mais interesse pelas bolsas, a vendedora continuou questionando “qual” o preço mínimo para levar um modelo falsificado da bolsa NeverFull da grife francesa Louis Vuitton, avaliada em R$ R$ 11,5 mil no e-20 commerce oficial da marca. “1,8 mil yuans (R$ 1,4 mil, na cotação atual), good price for you”, disparava Lin, cada vez mais agitada.
A cada negativa sobre o preço ou qualidade dos produtos, a chinesa subia o tom ao sentir que a venda estava longe de ser finalizada. Esse modus operandi é comum entre os vendedores de itens ilegais, que na primeira abordagem tentam ganhar os clientes na simpatia, mas ao ver o negócio cair por terra mudam drasticamente para um trato via agressividade. Em todas as lojas de falsificação visitadas pela reportagem, essa abordagem se repetia.
Sobre a “qualidade” da falsificação, isso dependerá de quanto o consumidor estiver disposto a desembolsar, e principalmente, qual o modelo e marca escolhido. Modelos mais “simples” podem custar a partir de R$ 200, mas as bolsas conhecidas como de “1ª linha” chegam a custar alguns milhares de reais, a depender da “exclusividade” da peça na sua versão original.
A especialista da ESPM pondera que essa oferta de diferentes qualidades e tipos de bolsas falsificadas - das piores às melhores - se dá pela demanda de cada um dos segmentos, que varia conforme o valor que cada tipo de cliente está disposto a pagar. “É a lei da oferta e da demanda. Se existem essas diferenças entre os produtos é porque há mercado consumidor”, diz.
A título de comparação, no mercado de “segunda mão”, de revenda de itens seminovos, uma bolsa do tipo Birkin da casa francesa Hermés pode custar entre R$ 55 mil e R$ 100 mil, a depender de especificações como tamanho, cor, itens de personalização e origem do couro. Em lojas espalhadas pelo centro de Xangai, uma cópia da versão “clássica” da bolsa pode custar até R$ 30 mil.
Mesmo com os esforços das maisons internacionais contra a venda de produtos falsificados, esse mercado é responsável por movimentar alguns trilhões de dólares anualmente.
Dados da plataforma Business of Fashion, de 2022, apontam para uma movimentação de US$ 3 trilhões (R$ 17,43 trilhões), com aumento de 10 vezes ante 2013. Sem sinais de arrefecimento, o mercado de falsificados cresce e faz com que as vendas dos originais encolham. É o que aponta o levantamento European Union Intellectual Property Office Observatory (EUIPO, na sigla em inglês). De acordo com o órgão, em 2024, os mercados europeus perderam em média 10% em vendas anuais por causa das falsificações.
Conforme a entidade, ao analisar o período de 2018 a 2021, as vendas perdidas devido à falsificação no mercado inteiro foram de 5,2%, quase € 12 bilhões (R$ 72,5 bilhões, na cotação atual).
A oferta expressiva de produtos falsificados na maior cidade do país, pode ser vista como um reflexo da própria China figurar no pódio de países com maior produção desses itens. Segundo o relatório sobre mercado de falsificações do governo dos Estados Unidos, que produz o The Notorious Markets List, a China continua na dianteira dos principais produtores de falsificações.
Conforme o documento, gigantes chineses do e-commerce como WeChat, Taobao e Pinduoduo são alguns dos principais fornecedores desse tipo de mercadoria. O documento que coloca a China no topo do ranking de venda de produtos falsificados também tem espaço para o Brasil. Segundo citado no relatório do governo americano, de janeiro deste ano, a rua 25 de Março, em São Paulo, é um dos principais pontos de venda de mercadoria falsificada no País.
Na avaliação de Sresnewsky, da ESPM, diferentemente de como o combate à pirataria e falsificação é feita hoje, realizada com foco nas apreensões locais e barreiras alfandegárias e fronteiras dos país separadamente, o trabalho para coibir esse mercado ilegal deveria ser fruto de um esforço coletivo, em grupos de nações, o até puxados por blocos econômicos, como o Mercosul, União Europeia, e outras entidades de relações econômicas dos países.
“De maneira mundial, é uma fraqueza legislativa global”, afirma. “Não adianta fechar a entrada de produtos e ter apreensão de cargas, desses produtos de uso pessoal de luxo. As grandes apreensões acontecem todo dia. Mas por mais que haja esse esforço, isso não é institucionalizado”, complementa.
Esse é um mercado difícil de mensurar, exatamente pela informalidade. Quanto mais informal o mercado é, mais difícil fica de levantar as informações sobre ele
Abordagem agressiva e labirinto para chegar aos produtos
Na China, a abordagem dos turistas acontece em frente às lojas de produtos originais que são copiados em larga escala. Ainda que de maneira sutil, para não despertar a atenção dos diversos policiais chineses que ficam à espreita nas ruas comerciais abarrotadas de visitantes, os contrabandistas chegam sorridentes, à primeira vista.
Depois de conseguir conquistar os possíveis compradores, ainda em uma linguagem que mistura um “inglês ruim” com gestos, os vendedores indicam a direção das lojas, que, quase sempre, ficam em avenidas próximas às vias principais de comércio, mas não perto o suficiente onde há policiamento mais pesado.
Na primeira “loja” visitada, a vendedora Li levou a reportagem por uma caminhada de quase um quilômetro, até chegar em um shopping de variedades. Ali, dois lances de escada rolante abaixo, no subsolo do imóvel, atrás dos boxes de vendas de roupas comuns, depois de uma porta de metal, havia uma sala abarrotada de bolsas falsas. Prada, Chanel, Louis Vuitton, Loewe, relógios da Cartier, Rolex, malas Rimowa, tênis da Gucci, todo tipo de peça. “Shoes and clock too” (sapatos e relógio -sic-), dizia a vendedora em inglês apontando para as caixas.
No local, compradores “discutiam” o preço de alguns itens. Um casal de americanos tentava comprar uma bolsa falsificada da Chanel, com o símbolo clássico da maison francesa, mais parecendo um G, do que um C. Com uma calculadora na mão, as contrabandistas mostravam o valor numérico e questionavam por uma contraproposta. “You! How much?”, instiga.
Mais ou menos falsas: as falsificações de “primeira linha”
Em uma segunda abordagem, a reportagem foi acompanhada por um homem, que não quis se identificar, e ficou encarregado de nos ciceronear até um shopping, cerca de 500 metros do centro de compras oficiais. No 10º andar do Ji Hotel, atrás de uma porta de metal, que mais parecia uma fechadura de cofre, estavam as primeiras falsificações, nem tão fidedignas assim.
Entre bolsas e sapatos, estavam itens da “New New”, “Prata”, “Dire”, que emulam , respectivamente, produtos das grifes italianas Miu Miu e Prada e da francesa Dior. Uma bolsa dessas, custava a partir de 300 yuans chineses - claro - a serem negociados para baixo, algo em torno de R$ 240 na cotação atual.
Ao serem questionados sobre a baixa qualidade das imitações pela reportagem, os vendedores se apressaram a buscar mais opções. Ainda diante da negativa sobre a qualidade dos produtos, o vendedor - que não quis se identificar - arranhava em português a frase “vem amigo” enquanto apontava para outra porta de metal entre as prateleiras. Atrás estavam as falsificações “de primeira” e também aquelas de preços mais altos.
Bolsas da Prada, tênis da Balenciaga, carteiras da Gucci, camisas da Moncler, e muito mais. A última parada da loja, guardava os itens mais “fidedignos” e que geraram mais negociação e mais agressividade por parte do vendedor ao ser contrariado em relação ao preço.
O ‘chanceler’ dos falsificados
Alvo de falsificações de todo nível de qualidade e detalhes, as bolsas da Hermès ganharam até um “chanceler” virtual que carimba quem estiver desfilando - e se gabando - de versões falsificadas das bolsas da grife. Com mais de 341 mil seguidores em sua conta do Instagram, o perfil anônimo “The Fake Birkin Slayer” tem como função desmascarar quem usa bolsas falsificadas, mostrando nomes, fotos e até os “@s” de famosos e anônimos endinheirados, incluindo vários brasileiros que já foram pegos na “malha fina” do perfil desfilando falsificações.
Nos “Stories” da rede social, a plataforma entrega e lista quem é consumidor de itens falsificados, o que já levou muitas “endinheiradas” a vir a público se justificar e se defender de que não é adepta de “réplicas” ou que não sabia quando comprou de segunda mão o item.
Cair na malha fina daqueles que consomem itens de luxo falsificados virou uma obsessão pelo mundo, em especial no País. Recentemente, o ator Caio Castro foi flagrado experimentando modelos de tênis falsificados em sua viagem à China. O artista acabou estampando as notícias de sites de fofoca diante do comportamento.
Katherine Sresnewsky desmistifica a ideia de que apenas os mais pobres consomem itens falsificados. Para além da sensação de pertencimento, a professora lembra que itens como bolsas e sapatos dessas grifes servem como marcadores sociais na nossa sociedade, porém, o que gera o desejo pelo item em si, mesmo que falsificado, não pela ideia de um produto de luxo, que passa pelo aspecto da exclusividade.
Ela também destaca que o verdadeiro consumidor do mercado de luxo não passa nem perto desse tipo de falsificação, já que para esse perfil de consumidor, mais do que o produto, a busca é pela exclusividade e relação íntima com algumas marcas tão cobiçadas. “Para algumas pessoas, comprar o falsificado é como uma oportunidade. Talvez o grupo em que ela está inserida socialmente não saiba distinguir entre o verdadeiro e o falso”, dispara a especialista em luxo.
Impacto financeiro
Embora amplamente conhecido por todos os países, o impacto financeiro causado pelos criminosos em escala global ainda é difícil de ser compilado, segundo narram os especialistas.
Uma das razões: a informalidade, como explica a coordenadora do curso de publicidade e propaganda da ESPM e especialista em mercado de luxo, Katherine Sresnewsky. “Esse é um mercado difícil de mensurar, exatamente pela informalidade. Quanto mais informal o mercado é, mais difícil fica de levantar as informações sobre ele,” diz.
A professora destaca que os poucos dados disponibilizados pelas grandes companhias de pesquisa são limitados, e dão apenas “uma vaga ideia” desse contingente, uma vez que a análise é feita apenas com poucas informações vindas de algumas empresas de moda listadas no mercado de capitais, que exigem algum nível de transparência sobre os negócios e que - por conta própria - relatam prejuízos oriundos da pirataria.
O jornalista viajou à China a convite da Kwai e do Centro de Comunicação da China para as Américas.
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