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domingo, 30 de abril de 2023

O martírio de Branca Dias em O Santo Inquérito, de Dias Gomes - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Embargos Culturais, Consultor Jurídico)

 Mais um da imperdível série dos Embargos Culturais de Arnaldo Godoy.

EMBARGOS CULTURAIS

O martírio de Branca Dias em O Santo Inquérito, de Dias Gomes

Por 

Em O Santo Inquérito, Dias Gomes (1922-1999) retomou o martírio de Branca Dias (século XVI) para explorar o assustador tema da violência na política. Agências judiciárias são instrumentalizadas para a perseguição e destruição do inimigo político, o que muitos chamam hoje de "lawfare". O tema é recorrente, porque é da essência de uma concepção realista da vida forense. Não há novidades.

Quanto ao enredo, Branca Dias é uma personagem cuja existência suscitaria algumas dúvidas, inclusive se vivia em Pernambuco ou na Paraíba. Há fortes indícios de que vivera em Olinda, onde encontramos uma simpática casa atribuída a essa proto-heroína.

Para José Joffily (político e historiador paraibano que viveu muitos anos no Paraná) Branca Dias nasceu na Paraíba, em 1734, foi condenada pela Inquisição por ser judia, e teria morrido na fogueira em Lisboa, em 1761. Joffily expôs em seu livro (Nos tempos de Branca Dias) uma foto da rua Branca Dias em João Pessoa. Minha mãe, Leila Moraes Godoy, coordenou e revisou o trabalho.

Arnaldo Nisker, da Academia Brasileira de Letras, também tratou do assunto em Branca Dias, Martírio, em livro muito bem pesquisado, sob uma perspectiva da perseguição ao judaísmo, realisticamente observando que o martírio de Branca Dias, real ou imaginário, marca fortemente a imaginação popular. Niskier é um especialista em temas conexos, como lemos em Padre Antonio Vieira e os Judeus.

Dias Gomes antepõe à peça um texto de importante valor historiográfico, registrando o que sabia e o que pensava sobre os personagens. Supõe que Branca Dias havia de fato existido, e que fora queimada na fogueira, a exemplo de Joana D'Arc. Admitiu que a história não é precisa e que há muita controvérsia em torno do assunto. A introdução fixa precisamente os limites entre história e ficção. O que aconteceu não importa. O que vale é como o autor se apropriou do enredo e do motivo histórico.

O que também encanta nessa peça de Dias Gomes é a problematização da condição da mulher. A sinceridade de Branca Dias, e até certo ponto sua ingenuidade, possibilitam uma chave interpretativa para a tragédia. O Inquisidor, Padre Bernardo, é um crápula. Implacável, pervertido, maldoso, que invertia o sentido da realidade das coisas, alertando que a acusada fingia que era um anjo de candura, e que os julgadores não eram "bestas sanguinárias". Branca Dias, no entanto, chega a afirmar que o Santo Ofício era misericordioso e justo. Quanta ingenuidade.

Há aqui também um problema historiográfico que pode nos colocar numa cilada. A Inquisição era a forma de adjudicação daquele tempo, naquele contexto, e nesse sentido era a forma como se buscava a verdade. Quem viveu à época não entendia (e nem podia entender) de outra forma. O assunto foi tratado por Michel Foucault em uma série de conferências que proferiu no Rio de Janeiro, em 1973, na então Universidade Católica do Rio de Janeiro. As conferências foram organizadas e coordenadas por Affonso Romano de Sant'Anna.

A busca da verdade por meio da racionalidade não era certamente a fórmula que conduzia os processos no ambiente da Inquisição, como lemos nos grandes estudos sobre o assunto, de Anita Novinsky, Giuseppe Marcocci, José Pedro Paiva, Neusa Fernandes, Francisco Bethencourt, Ronaldo Manoel Silva e Antonio Borges Coelho, entre tantos outros. Indico a leitura imperdível das Confissões da Bahia, organizadas por Ronaldo Vainfas. O assunto (Inquisição) é substancialmente atual, especialmente à luz de delações premiadas, acordos de leniência e de não persecução penal. No núcleo, a disputa em torno do monopólio da verdade. Vale também a leitura de O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginsburg.

Na peça, ironicamente, Branca Dias havia salvado a vida do religioso que a acusa, que quase morrera afogado. O padre reconhece que Branca Dias lhe havia estendido a mão uma vez, que lhe salvara a vida, e que agora era sua vez de retribuir com o mesmo gesto. Ela a mandou para a fogueira, na conclusão de um processo que não poderia terminar de outra forma. Retribuiu. Um canalha.

Branca Dias tinha posições firmes. Afirmou (na peça) que "se um texto da Sagrada Escritura pode ter duas interpretações opostas, então o que não estará nesse mundo sujeito a interpretações diferentes?". É essa dúvida (de algum modo cartesiana) que forneceu à Inquisição o material para condenar a ré. A acusação consistia na heresia e na prática de atos contra a moralidade, a exemplo de nadar nua no rio, numa noite de muito calor. Branca Dias não confessou o que não podia confessar, não mentiria, "nem mesmo em troca do sol".

Na sentença, o tribunal concluiu: "Procedemos a um longo e minucioso inquérito, em que todas as acusações foram examinadas à luz da verdade, da justiça e do direito canônico. À acusada foram oferecidas todas as oportunidades de defesa e arrependimento. Dia após dia, noite após noite, estivemos aqui lutando para arrancar essa pobre alma às garras do Demônio. Mas fomos derrotados. Desgraçadamente". Na execução (fogueira) o padre, o canalha a que me referi acima, "a vê, angustiado, contorcer-se entre as chamas (...) contorce-se também, como se sentisse na própria carne".

A Inquisição queimava os corpos para salvar as almas.


 é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

Revista Consultor Jurídico, 30 de abril de 2023, 8h00

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Gelson Fonseca e o definitivo A Equidade como Fonte do Direito - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Embargos Culturais, Conjur)

 Do sempre arguto Arnaldo Godoy, em sua série milenar (ou seja, mais de mil embargos) dedicada a livros com alguma, muito ou mesmo nenhuma, inclinação para o Direito.

Embargos Culturais

Gelson Fonseca e o definitivo A Equidade como Fonte do Direito

Por 

O tema das fontes é central no estudo do direito. Um estudo sério de direito comparado consiste, necessariamente, na avaliação das fontes que se pretende compreender e comparar. Por exemplo, mais importante do que atentarmos para um determinado comando do direito de tradição islâmica seria entendermos o substrato da regra, cuja origem desconhecemos. Quem a determina? Quais poderes detém quem tem força para fazê-la valer? De igual modo, uma compreensão de enciclopédia jurídica é na prática uma projeção operacional dos vários sistemas que identificam as fontes do direito. A pergunta fundamental que a experiência jurídica nos põe é essa: de onde vem a força impositiva de um determinado comando? É o fascinante assunto das fontes do direito.

É o tema mais apaixonante dos antigos manuais de introdução ao estudo do direito e de introdução ao direito civil. Esses livros são importantes na formação do jurista. Não sei se ainda são estudados. Muito já se escreveu sobre a lei, sobre a doutrina, sobre os costumes, sobre os princípios gerais do direito, sobre a jurisprudência. Esta última, enquanto fonte, parece-nos hoje justificativa de um superlativo hebraico: a jurisprudência se tornou a fonte das fontes. A jurisprudência hoje tudo fixa, tudo altera, tudo comanda. Pior. A jurisprudência engole a si mesma, o que pode se inferir em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no rumorosíssimo caso da anulação de decisão tributária definitiva sem modulação de efeitos (Temas 881 e 885).

No contexto do estudo das fontes do direito há um tema hoje esquecido. Refiro-me à equidade. A equidade é um conceito derivado da filosofia de Aristóteles. No Livro V da Ética a Nicômaco, o estagirita mencionou uma régua que havia na Ilha de Lesbos e que media superfícies que não eram planas. Desse modo, metaforicamente, a aferição de uma dada medida levava em conta as características específicas do que se metrificava. Ao contrário das réguas convencionais, que medem apenas superfícies planas, e que, portanto, desprezam características específicas do que se está medindo, a régua de Lesbos permitia uma aferição completa. Era o indicativo de uma medida justa. 

Do ponto de vista da hermenêutica jurídica, a aplicação da equidade resulta na mitigação dos inconvenientes que resultam da aplicação estrita dos textos, que não leva em conta peculiaridades e aspectos muito específicos de um dado problema. Não se confunde com o conceito de equidade do common law, que é uma das variáveis da estrutura jurídica desse modelo. A equidade é instrumento de oposição à aplicação irrestrita de um texto jurídico que resulte em injustiça objetiva, e que a tradição do direito romano identifica no brocardo summum jus, summa injuria, isto é, o máximo de direito, o máximo da injustiça.

Há muitos anos tive notícia de um livro que tratava monograficamente do assunto, e que não conseguia localizar. Em recente evento no Liberty Fund, em São Paulo, conheci o filho do autor do livro. Refiro-me ao livro A Equidade como Fonte do Direito, de Gelson Fonseca, importantíssimo e competentíssimo advogado militante no Rio de Janeiro, nos anos de 1950 e 1960. O livro, que é texto definitivo sobre a equidade, é uma tese para o concurso de livre-docente da disciplina de Instituições de Direito, junto à antiga Faculdade de Ciências Econômicas do Estado da Guanabara. O livro é de 1968.

Eu já conhecia e admirava o filho de Gelson Fonseca. Trata-se do embaixador Gelson Fonseca Júnior, que se destacou como diplomata de carreira entre 1968 a 2016, quando se aposentou. O embaixador Gelson, entre outros postos, foi representante permanente junto à ONU, embaixador no Chile, cônsul-geral em Madrid e no Porto. Em São Paulo, conversamos sobre a trajetória do pai, advogado militante, e sobre o livro. Constatei que havia um único exemplar à venda, na Estante Virtual. A generosidade do embaixador resultou no encaminhamento do exemplar raro, que li numa sentada. Aprendi muito.

O autor trata da equidade primeiramente sob uma perspectiva histórica. É o ponto de partida para o postulado básico da tese: a equidade encontra-se em todos os sistemas de direito. Na primeira parte do livro o autor expõe as linhas gerais da equidade na tradição judaico-cristã. Nesse sentido, explora a equidade no Antigo Testamento (com a aparente iniquidade do julgamento de Deus) e em seguida a equidade no Novo Testamento, cujo sentido é o amor. Essa comparação é também encontrada em Hans Kelsen, em interessante livro sobre a ideia de justiça nas Sagradas Escrituras.

O autor também trata do conteúdo da equidade na tradição grega e refere-se, entre outros, ao tema do direito natural, como aparece no teatro (Antígona). Nesse ponto, Gelson Fonseca (pai) concebe a equidade como uma parte efetiva do direito não escrito. O estudo da equidade na tradição romana é o ponto alto do livro. Não nos esqueçamos que os pretores decidiam por equidade, o que também afasta a premissa equivocada de que a tradição do common law seria refratária às estruturas conceituais e práticas do direito romano, em qualquer uma de suas fases.

Quanto ao direito inglês propriamente dito a equidade tem um papel determinante, quanto à função do rei de distribuir justiça, o que se desdobra ao longo da unificação de seu poder. Após 1066, explica-nos Gelson Fonseca (pai) a fixação do direito era da autoridade local. Cuida-se de um traço peculiar do feudalismo (enquanto um tipo ideal), o que se reflete na construção da topografia e das peças do jogo de xadrez. 

Na parte final o autor estuda a equidade entre os autores nacionais, a exemplo de Pontes de Miranda, Vicente Rao, Carlos Maximiliano, Caio Mário, Serpa Lopes e Washington de Barros Monteiro. Com vários exemplos tomados do direito positivo então vigente (o livro é de 1968), o autor concluiu que a equidade é fonte formal do direito, especialmente na sociedade moderna, "em que a lei é concebida sob o império da razão, como norma técnica do governo, em que ela disciplina relações sociais".

Pelo que entendi, o concurso não teria prosperado, por razões de formalidades e de procedimento. Ficou o livro: 150 páginas da mais exuberante forma de doutrina, hoje tão rara e tão macunaímica. 

 é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).


sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

O populismo reacionário: resenha de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro: O populismo reacionário - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Excelente resenha de um livro magistral 

O populismo reacionário

Imagem: Kartick Chandra Pyne

Por ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY*

Comentário sobre o livro de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro

O populismo reacionário, de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro, é um dos livros nacionais mais importantes para uma tentativa de compreensão da situação política atual. Os autores são professores e pesquisadores no Rio de Janeiro. Em quase 200 páginas apresentam uma radiografia do populismo reacionário que levou quase a metade dos votos nas últimas eleições (o livro é anterior ao pleito). Não tratam de uma aventura política transitória e passageira. Tratam de um assunto sério que exige enfrentamento.

A partir da crise da Nova República, e com foco no judiciarismo lava-jatista, os autores exploram nosso tempo político, tateiam uma obtusidade que desdenhamos (e hoje pagamos por isso) e apontam para uma aporia intransponível: o paradoxo do parasita. O parasita precisa do corpo invadido para sobreviver, não pode destruí-lo. A destruição do corpo invadido tem como pressuposto e resultado a morte do parasita. Essa metáfora implica na relação ambígua entre o líder populista reacionário e a democracia. No último dia 8 de janeiro essa tensão chegou ao limite.

Os autores identificam essa nova onda populista (especialmente brasileira) no contexto da crise do liberalismo democrático, que se desdobra da ressaca da euforia da globalização, dos atentados às torres gêmeas e da crise econômica de 2008. Nesses últimos tempos discutiu-se seriamente sobre o destino da agenda democrática, isto é, se haveria uma revitalização desse projeto ou se a ameaça era realmente verdadeira. O que acha o leitor?

Parece-me, venceu esse último postulado. A ameaça transcendeu o espaço digital e foi para a praça com porretes na mão (literalmente). Tudo condimentado por perigos potencializados por um universo de informação paralela, no qual um comunismo idealizado, a imigração estrangeira, um sentido recorrente de injustiça e de mudanças sociais foram fomentados pelo compartilhamento de valores identitários.

Para os autores, o populista reacionário não se interessa por assuntos de governo e de administração. Comanda um partido digital disperso e ao mesmo tempo unido em torno de uma conta também digital. Lê-se nesse corajoso livro que a conta digital do populista reacionário não é lugar democrático com espaço aberto para a crítica do cidadão. A conta digital do populista reacionário “é um altar, cujo acesso é privativo dos fieis para fins de adoração de seu ídolo”. Quando materializado, e agora a opinião é minha, esse espaço de veneração é concomitante ao entorno topográfico oficial: é o cercadinho.

O populista radical, segundo os autores, apresenta-se como o herói antissistema. Gerencialmente é incompetente. Vale-se dessa incompetência como um selo de autenticidade. Entre a competência e a autenticidade (ainda que fingida, o que possível) o medíocre insatisfeito com a mediocridade de sua vida não pensa duas vezes: quer o autêntico.

Que caminho histórico pavimentou o populista reacionário, porta-voz de uma utopia regressiva de restauração a tempos imaginados? Era latente essa utopia? Na tentativa de explicar essas duas perguntas os autores primeiramente exploram uma revolução judiciarista, que se dizia instrumento de uma suposta capacidade regenerativa da Nação. O Judiciário resolveria tudo. Aplicaria a lei.

É o lavajatismo, em sua versão mais completa, que assumiu o padrão de um tenentismo togado. O ex-juiz de Curitiba e o ex-procurador da República que lá atuava tentaram ser versões contemporâneas de Juarez Távora e de Eduardo Gomes. Creio que não conseguiram, ainda que incensados na imprensa e nas redes, aplaudidos em aviões e restaurantes, ouvidos em gravações suspeitas.

Na tese dos autores de O populismo reacionário o judiciarismo escorava-se em legitimidade oriunda do acesso meritocrático ao serviço público. Acrescentaram também o tema do neoconstitucionalismo, que resultou na valorização das corporações jurídicas e, paradoxalmente, na massificação do ensino de Direito. Havia uma multidão de bacharéis que falavam o tempo todo em regras e princípios, citavam autores alemães em tradução (Hesse, Häberle, Müller e Alexy) e remoíam o aspartame jurídico anglo-saxão (Dworkin e Rawls). Defendiam uma maior participação do Judiciário em detrimento dos demais poderes. A restauração se dava no curul, a cadeira dos altos dignitários romanos que ditavam a jurisprudência.

Segundo os autores, basta que consultemos os livros de Direito Constitucional para constatarmos que o espaço dedicado ao Legislativo é ínfimo em relação ao espaço dedicado ao Judiciário e às corporações jurídicas. O judiciarismo que já se verificava em Rui Barbosa e em Pedro Lessa voltou para o proscênio. O moralismo recorrente da UDN, na voz de Afonso Arinos, Bilac Pinto e Aliomar Balleeiro estava na espinha dorsal dessa revolução do judiciário, que também, o que mais paradoxal, escorou-se em intepretações padronizadas do Brasil, como lemos em Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta.  Esse diálogo seria impossível. Os autores nos lembram que os udenistas de Carlos Lacerda pularam do barco em 1965, do mesmo modo que Sergio Moro e o MBL o fizeram em tempo próximo.

No argumento de O populismo reacionário o núcleo da nova expressão de poder orbitava em torno do culturalismo reacionário de Olavo de Carvalho e do neoliberalismo de Paulo Guedes. Do primeiro apreendeu-se uma concepção petrificada de cultura, centrada na obsessão em face do marxismo cultural, contra o qual se opôs o decadentismo, a crítica à globalização e a âncora da metapolítica, para a qual a cultura vem depois da política. Do segundo, de acordo com os autores, sabe-se que o ponto fraco dos neoliberais tem sido sempre a impopularidade do programa.

O populismo reacionário distancia-se muito da referência e da reverência que tem para com a tecnocracia militar. É que o conservadorismo estatista de Golbery do Couto e Silva subordinou e dominou o culturalismo de Gilberto Freyre e de Miguel Reale, bem como o neoliberalismo de Roberto Campos e de Octávio Bulhões. Os autores não chegam a conjecturar sobre uma explicação para essa disfunção. Talvez, a adesão do populismo reacionário ao negacionismo estrutural possa ser uma chave interpretativa para o enigma.

Os autores dão pistas. A negação do aquecimento global, do holocausto, a fé no terraplanismo, a crença na hipótese de que nazismo e fascismo seriam de esquerda, o racismo reverso, o conspiracionismo, a pandemia, a eficiência da vacina, a ortodoxia das urnas e o tema da ideologia de gênero transitariam nesse quadro explicativo. Na pergunta de Fernando Gabeira, “por que se afastam tanto da realidade e quando se dão conta dela ficam tão revoltados?”.

O populista reacionário cerca-se de quadros medíocres e servis, fomentando um macarthismo administrativo. Os dissidentes são perseguidos. Na construção do caminho para o populismo reacionário formulou-se uma teoria constitucional de sustentação, sempre servida por juristas desfrutáveis (a expressão é dos autores) que retomaram o tema da razão do Estado, agora justificativa de segredos quase perpétuos (100 anos).

Acrescento ao argumento dos autores o papel de certa teologia da prosperidade. Para Carl Schmitt (o príncipe dos juristas desfrutáveis) o milagre estaria para a fé como a jurisprudência para o direito. Para sua quase versão brasileira (Francisco Campos) o Estado totalitário seria uma técnica a serviço da democracia. É a união entre o templo e o palácio da justiça.

Penso que a grande mensagem de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro nesse belíssimo livro consiste na constatação de que se abandonou a busca racional da verdade como fundamento da vida coletiva. Os autores instigam mais para a busca racional da verdade do que para a própria verdade. Afinal, sobre essa última, e a questão é bíblica (João 18:38) nem mesmo Pilatos sabia do que se tratava.

*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Referência


Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro. O populismo reacionário. São Paulo, Contracorrente, 196 págs.

Do site A Terra é Redonda

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Lançamento do livro "Roberto Campos: diplomata, economista e político – o constituinte profeta" - participação Paulo Roberto de Almeida (IDP)

 Lançamento do livro:


Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins (coords.): 

Roberto Campos: diplomata, economista e político – o constituinte profeta 

(São Paulo: Almedina, 2021, 391 p.; ISBN: 978-65-5627-192-7; p. 81-122).

 

Canal do IDP no Youtube, link:https://youtu.be/YCbGEmoCY_Q


Programação: 

- Gilmar Ferreira Mendes - organizador da obra, Ministro do Supremo Tribunal Federal 

- Ives Gandra Da Silva Martins - organizador da obra, Advogado 

- Roberto de Oliveira Campos Júnior 

- Roberto Campos Neto - Presidente do Banco Central do Brasil 

- Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy - coautor da obra, Professor e Procurador da Fazenda Nacional 

- Bernardo Cabral - coautor da obra, Advogado 

- Lenio Luiz Streck - coautor da obra, Professor e Advogado 

- Paulo Roberto de Almeida - coautor da obra, Diplomata e Professor

 

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Embargos Culturais: Os vários legados de Victor Nunes Leal - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Conjur)

O grande mestre cassado pela ditadura resolveu o enigma do nosso fracasso como país, como nação, como Estado: a subalternidade do município como foco central da vida da nação. Ninguém vive na União, ninguém vive nos estados, todos vivemos num município, daí a importância fulcral da funcionalidade e da centralidade administrativa do município para a vida de cada um de nós. No entanto, o município foi sempre esquecido nos arranjos constitucionais e colocado apenas a serviço das oligarquias, os coroneis (e existem até hoje, sob formas aparentemente modernas). Daí também a grande diferença, entre termos de desenvolvimento, entre, de um lado, as formações políticas anglo-saxãs, cuja democracia, cuja vida, cujo funcionamento parte da aldeia, do village, no máximo do county, do condado, para depois se projetar em esferas mais amplas, e de outro lado, nossos municípios que praticamente não têm vida própria, nem finanças próprias, tudo dependendo do estado ou da União. Vai ser preciso refundar a nação. 

Paulo Roberto de Almeida

Embargos Culturais

Os vários legados de Victor Nunes Leal

Por 

Victor Nunes Leal (1914-1985) foi infatigável estudioso, de quem se dizia acordar às duas horas da madrugada para preparar suas aulas de Direito Constitucional. Doutor em Ciências Sociais, Victor Nunes Leal desenvolveu multifacetária atividade. Foi advogado, jornalista, ministro do Supremo Tribunal Federal, consultor-geral da República, chefe da Casa Civil (no Governo Juscelino). Era um mestre, no sentido mais puro da expressão. Afastado do STF pelo Ato Institucional em 1969, permaneceu na vida pública, advogando, orientando, ensinando, combatendo o autoritarismo e o centralismo. 

O insuperável Roberto Rosas, em "Perfis do Mundo Jurídico"[1] sintetizou as inúmeras habilidades de Nunes Leal. O tema das súmulas, hoje central na expressão prática da vida jurídica, que Roberto Rosas também tratou em livro fundamental[2], radica, objetivamente, em legado de Nunes Leal, mineiro da Carangola. Metódico, Nunes Leal reunia e resumia em cadernos (que já vi expostos na biblioteca do STF) pontos convergentes entre temas discutidos e as várias decisões proferidas. Sintetizava uma linha de pensamento, que reduzia em fórmula rápida e direta. 

Emendou-se o Regimento do STF, concebendo-se um "enunciado de súmula", decidido pelo Plenário, proposto por uma então criada Comissão de Jurisprudência, ou por qualquer dos ministros, nesse caso, com parecer da Comissão. Nesse tema, há interessante estudo de Marcus Gil Barbosa Dias, que foi assessor de Sepúlveda Pertence e que mapeou a luta de Nunes Leal contra o desconhecimento que o STF tinha, em relação às próprias decisões[3]

Nunes Leal batiza a biblioteca do STF e o centro de estudos da AGU. Era vice-presidente do STF quando foi compulsoriamente aposentado pelo governo militar. As emblemáticas decisões de Nunes Leal foram comentadas por Fernando Menezes de Almeida, autor de preciocíssimo Memorial Jurisprudencial desse combativo juiz e advogado[4]

Esse estudo inicia-se com comentários ao decidido no Recurso Extraordinário 54.190; segundo Fernando Menezes de Almeida, "trata-se de acórdão cujo interesse diz respeito não à questão de fundo debatida, mas à invocação de determinada Súmula, o que, no caso, deu ensejo a amplos debates sobre o modo de se aplicarem as Súmulas e, em especial, de se as interpretar"[5]. Essa decisão, penso, é a certidão de batismo das súmulas, em sua dimensão operacional. É o antepassado mais vivo do inciso IV do art. 927 do atual Código de Processo Civil.

O municipalismo é outro tema central em Nunes Leal. Chamo a atenção para O Município e o Regime Representativo no Brasil — Contribuição ao Estudo do Coronelismo, publicado em livro importante para compreensão da realidade brasileira, Coronelismo, Enxada e Voto[6]. No núcleo do pensamento de Nunes Leal, o estigma da centralização, que tem marcado nossa experiência política. O fracasso do modelo dos donatários (criado em 1532) determinou a criação do sistema do governador-geral (com sede em Salvador). Salvo pouquíssimas manifestações nativistas (Emboabas, Mascates), quase nada se fez, em termos de autonomia municipal. 

A experiência joanina (1808-1821) deu muita importância para o Rio de Janeiro, em detrimento dos demais lugares do país. O texto constitucional de 1824 desconhecia a vida da vila, circunstância mantida pelo Ato Adicional de 1834, em que pese pregações descentralizadoras do Padre Diogo Antônio Feijó. O texto republicano de 1891 (reformado em 1926) possibilitou o controle do município pelo poder central, no contexto da política do café-com-leite e do coronelismo, ambiente político e eleitoral pesquisado por Nunes Leal, que estudou também a estrutura normativa da carta de 1946, quando ao município já se outorgavam poderes, competências, características, ainda diminuídos por mentalidade que tudo outorga ao federal, substantivo que usamos muitas vezes como adjetivo.

Para Nunes Leal a propriedade da terra é fator de liderança política local, de onde a relação entre poder e política. É que tal propriedade é historicamente concentrada, determinando dicotomia na composição das classes na sociedade rural. O chefe construía poder a partir do meio agrícola, exercendo-o no meio urbano, que controla à distância, seja da propriedade ou da capital, estadual ou federal.

É no município, no entanto, que se desenvolve a vida real. É no ambiente cotidiano que se aferem serviços públicos, pelo que elenco de competências identificadas em textos normativos apenas contemplam realidade fática. Emperrada pela política tradicional da República Velha, a vida municipal encalacrou-se entre valores como moralização e eficiência, nos primeiros dias do golpe de 1930. Porém o municipalismo foi sufocado com a carta de 1937, que consagrou as orientações de Francisco Campos, suprimindo o princípio da eletividade dos prefeitos. Ao não mencionar o município, o modelo republicano de 1891 promoveu um silêncio enigmático, esfíngico, que possibilitou consolidação normativa, que ensejou o esvaziamento do poder local. 

Nunes Leal identificou pontos essenciais que informam a trajetória do municipalismo brasileiro. Constatou centralização arbitrária, que faz do município meio e não fim, tornando a vida local espaço de manobra para poder distante. Percebeu que injunções locais eram trianguladas por polos de poder (vinculado à posse da terra), de submissão econômica e de procedimento eleitoral falsificado, o que justificou título de seu livro, Coronelismo, Enxada e Voto

Compreendeu que todas as funções da vida prática se dão no município, que detém fins e por isso carece de deter meios também. Observou que a eletividade é princípio sonegado, em nome de uma moralidade volátil, distante. Sublinhou que o silêncio normativo paralisa o município, tomado por tradição histórica que respeita o macro, o grande, consubstanciado no poder central. Despreza-se o micro, o local, onde se vive cotidiano que tem massacrado os mais carentes, cujos gritos e soluços não provocam ouvidos moucos de sistema centralizado. 

É que forças centralizadoras se oxigenam no município, aos quais retribuem com o esquecimento e atitudes interesseiras, como constatado por Nunes Leal. Coronelismo, Enxada e Voto é um livro clássico, que exige permanente atenção, leitura e releitura. Os tempos mudaram, porém, muitas estruturas ainda nos marcam profundamente. 

De igual modo, as súmulas, que antecedem súmulas vinculantes e precedentes qualificados, e tantas figuras contemporâneas, a exemplo de incidentes de resolução de demandas repetitivas e de incidentes de assunção de competência. Foi Fernando Almeida quem coletou passagem de Aliomar Baleeiro no MS 15.866, que se referiu a Nunes Leal como “a própria jurisprudência viva do Supremo Tribunal Federal andando pelas ruas”. 

 

[1] Roberto Rosas, Perfis do Mundo Jurídico, Ribeirão Preto: Migalhas, 2011. 

[2] Roberto Rosas, Direito Sumular, São Paulo: Malheiros, 2012. Roberto Rosas dedica esse livro de leitura obrigatória entre outros, para Victor Nunes Leal. 

[4] Fernando Menezes de Almeida, Memória Jurisprudencial- Ministro Victor Nunes Leal, Brasília: STF, 2006. 

[5] Fernando Menezes de Almeida, cit., p. 11. 

[6] Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo: Alfa Ômega, 1976.


terça-feira, 24 de agosto de 2021

Vianna Moog e os paralelos culturais: bandeirantes e pioneiros - Arnaldo Godoy (Conjur)

 

EMBARGOS CULTURAIS

Vianna Moog e os paralelos culturais: bandeirantes e pioneiros

Por 

É preciso estudar os autores brasileiros, e com mais razão os que correm risco de algum esquecimento. Entre os chamados “intérpretes do Brasil” deve-se acrescentar Vianna Moog (1906-1988). Nascido em São Leopoldo (é um capilé, e o gentílico decorre de uma rivalidade folclórica com Novo Hamburgo) Moog formou-se em Direito (Porto Alegre, 1930), atuou em vários cargos tributários (foi agente fiscal), trabalhou na Delegacia do Tesouro que o Brasil mantinha nos Estados Unidos (1946-1950), foi presidente da Comissão de Ação Cultural da Organização dos Estados Americanos, vivendo na cidade do México (1952-1962). Foi membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 4. Ilustrado, parece que leu e entendeu tudo. Uma cultura abrangente.

Em 1943 esteve nos Estados Unidos, a convite da Fundação Guggenheim, e dessa experiência nasceu Bandeirantes e pioneiros, que consiste em estudo comparativo entre o Brasil e os Estados Unidos. É um clássico da literatura política e da sociologia comparativa. Moog está entre os brasileiros que refletiram sobre os Estados Unidos, onde esteve, a exemplo de Oliveira Lima, Gilberto Freyre e Érico Veríssimo, que também registraram as respectivas impressões. Em Bandeirantes e pioneiros (doravante B&P) a análise comparativa de Moog enfrenta algumas questões centrais na concepção de brasilidade. Nesse ponto, é um livro central no tema da compreensão do Brasil.

O livro é de 1955. Distancia-se 67 anos da abolição escravidão, por isso, talvez, alguns problemas cujas hipóteses de solução hoje não compreendemos. B&P é uma das últimas tentativas de fixação de uma visão compreensiva do Brasil. A obra de Moog consiste na retomada de uma questão recorrente: por que os Estados Unidos seriam mais avançados do que o Brasil? A colonização na América do Norte iniciou-se em 1620, com os peregrinos do Mayflower. Os portugueses estavam no Brasil desde 1532, com a criação da capitania de São Vicente.Qual a explicação para esse fato inegável?

Moog é encantado com a civilização norte-americana. Lembrava que circulava no país (em 1943, no meio da guerra) sem ter que exibir o passaporte, enquanto que no Distrito Federal precisava portar sua carteira de identidade. Moog é um forte nome para o argumento de Jessé Souza, no sentido de que diminuímos o Brasil e a nós brasileiros, quando contrastados com os Estados Unidos e com os norte-americanos, especialmente a partir das interpretações culturalistas, que radicam na tradição de Franz Boas, bem como em alguns tradutores de Max Weber. Já se argumentou que Weber seria um antídoto norte-americano a um outro alemão, Marx. Este último demonizava o capitalismo. Havia necessidade de quem o canonizasse: seria a força explicativa da “Ética protestante e o espírito do capitalismo”. Há vezes que as descrições de Moog (que visitou todo o país) se assemelham às descrições de Alexis de Tocqueville, outro viajante mesmerizado com os Estados Unidos. Democracia na América é talvez o mais convincente relato da democracia norte-americana.

Percebo em B&P alguns deslizes ou avaliações, hoje indefensáveis, mas que não retiram o mérito do autor, e de sua obra. Moog enfatizava que vivíamos uma democracia racial. Talvez tenha padecido da mesma euforia interpretativa de Gilberto Freyre, que comparou o sul dos Estados Unidos, onde estudou no fim dos anos 1910, com sua Recife natal. Moog era nascido e ambientado no Rio Grande do Sul, onde a escravidão fora vivida em outra dimensão, dada a economia extensiva do gado. O mundo do tropeiro em nada se assemelhava ao mundo do engenho. Uma comparação entre os romances de Erico Verissimo e de José Lins do Rego confirma a assertiva. Para Moog, e aqui errou, o Brasil não teria problemas raciais intransponíveis. O problema racial, argumentava, estaria dissolvido no social, e por isso já se encaminhava para a solução.

O subtítulo de B&P é “paralelo entre duas culturas”, o que explica o esforço metodológico desse precioso ensaio. O autor adianta que o livro também poderia ter como titulo Conquistadores e colonizadores, o que, ao lado do título original, explicita e adianta as conclusões. Nosso atraso se explicaria pela forma como fomos conquistados, a contrário do mundo norte-americano, que fora colonizado. O esquema expositivo de B&P é didático. São seis capítulos (Raça e geografia, Ética e economia, Conquista e colonização, Imagem e símbolo, Fé e império, Sinal dos Tempos) e um epílogo.

Nessa última parte há uma extensa análise psicanalítica comparativa entre Lincoln e o nosso Aleijadinho, o escultor barroco de Minas Gerais. Moog conhecia o freudismo e as teorias psicanalíticas. Sua avaliação de Lincoln merece leitura. Moog investiga a melancolia indisfarçável do presidente norte-americano. Investiga uma personalidade neurótica, cujo sofrimento radicava na perda da mãe, no casamento subsequente do pai, no abandono afetivo e na metáfora da quebra de um casco de tartaruga como representativo da quebra de um lar.

O núcleo do livro, insisto, é uma pergunta que exigia uma resposta. Nas palavras de Moog, “como foi possível aos Estados Unidos, país mais novo do que o Brasil e menor em superfície territorial contínua, realizar o progresso quase milagroso que realizaram e chagar (...) à vanguarda das nações?”. Analisou, em primeiro lugar, o argumento racial, que abominou. Não admitia o argumento de que o sucesso norte-americano predicaria no fato de que o anglo-saxão teria preservado uma “pureza racial” enquanto que os portugueses se mestiçaram. Refutou as teorias racistas do Conde Gobineau (que inclusive viveu no Brasil no século XIX). Afinal, os grandes navegadores portugueses e espanhóis, bem como os grandes artistas da renascença não eram anglo-saxões.

Também refutou a explicação culturalista que derivava da explicação etnocêntrica. Nesse passo, faz impugnações a Gilberto Freyre, a Roquete Pinto, a Artur Ramos e a Gilberto Amado. Criticou Joaquim Murtinho (que foi ministro da fazenda de Campos Salles) para quem não desenvolveríamos um parque industrial porque nos faltavam aptidões raciais, isto é, como poderia um jabuti acompanhar o voo da águia?

Partiu para uma explicação geográfica, que de algum modo o seduziu. A orografia (descrição das montanhas) norte-americana era melhor do que a nossa. Uma extensa planície ligava a Flórida ao Maine. Entre nós, a mata atlântica prendia o português no litoral. Quando os norte-americanos enfrentaram as montanhas do oeste, já tinham tecnologia. Comparou a extensão das ferrovias e rodovias norte-americanas com as nossas, e sugeriu que a natureza, nesse caso, fora mais amistosa com os norte-americanos.

Em seguida comparou os sistemas hidrográficos, e mais uma vez evidenciou vantagens para os Estados Unidos. O Mississipi cortava o país e realmente propiciava uma integração nacional. O Amazonas, monstruoso e indômito (Euclides da Cunha já o falara) era um rio nada patriótico: as terras que engolia eram despejadas no mar, e que levadas pelo gulf stream sedimentava o México e a Flórida. Talvez a crise hídrica contemporânea e nosso potencial o fizessem mudar de ideia. Moog também elogiou o clima norte-americano. Não havia doenças tropicais. Não levou em conta as temperaturas do inverno brutal da região de Boston.

Moog comparou o calvinismo que vicejou nos Estados Unidos (no início da colonização) com o catolicismo que se disseminou no Brasil, vinculando valores éticos com valores econômicos. O calvinismo se afastava dos pobres. Os pobres, nessa lógica, não foram eleitos para a salvação divina. Dos muitos chamados e dos poucos escolhidos, os pobres não estavam entre os poucos. Moog opôs Calvino a São Francisco de Assis, em passagem memorável. Calvinistas compartilhavam a vida com esposas que eram companheiras de trabalho e de vida. O conquistador português teria a mulher como uma presa. A violência contra índias e escravas, que Gilberto Freyre descreveu em pormenor é exemplo dessa conduta abominável.

O calvinista, no entanto, não admitia a miscigenação. Moog comparou o nosso Diogo Álvarez (o Caramuru, que se casou com a índia Paraguaçu) com John Smith (que voltou para a Inglaterra e que não se casou com Pocahontas). A diferença nessas duas histórias, ainda que mitológicas, pode ser uma chave interpretativa para o tema da aproximação entre culturas. Gilberto Freyre viu vantagens em nosso modelo. Moog apenas apontou as diferenças, não opinou assertivamente nesse caso.

Moog insistiu no tema do espírito do colonizador. Os peregrinos do Mayflower, argumentou, acreditavam que eram um povo eleito, que a Inglaterra era o Egito, que o rei Jaime I era o faraó, que o oceano atlântico era o mar vermelho, que a América era Canãa, a terra prometida. Associavam-se à ideologia do Velho Testamento, de onde retiravam os nomes das crianças: Jacob, Abraão, Joshua, Abigail, Eva, Raquel, Sara. No Novo Testamento, preferiam Marta a Maria. Marta estava o tempo todo ocupada, não era uma personagem bíblica contemplativa. As irmãs pensavam de um modo distinto, e aderiam ao cristianismo de forma distinta. Maria simboliza um comportamento feminino na América espanhola, o “marianismo”, marcado pela devoção, pelo sofrimento e pela aceitação do destino. Marta, de algum modo, é a insurgência, pelo trabalho, e pela devoção ao resultado do trabalho. Na concepção calvinista a contemplação é perda de tempo. O homem deve glorificar a Deus por intermédio de trabalho e dedicação. Moog leu e compreendeu Max Weber.

Os ingleses na América do Norte viam-se como americanos. Os espanhóis na América espanhola viam-se como criollos. Entre nós havia o “mazombo” o branco português nascido na América, permanentemente triste, sorumbático e macambúzio, um tema que foi explorado por Paulo Prado. Mazombos conviviam com mulatos (brancos e negros), com mamelucos (brancos e índios), curibocas (negros e mulatos) e cafuzos (negros e índios).

À desorganização desses grupos Moog opôs o ascetismo calvinista, a obsessão com o tempo, com o relógio, com a pontualidade. Lembrou a impetuosidade norte-americana para com o accomplishment, palavra que entendemos, mas que temos dificuldade para traduzir. Do mesmo modo, não traduzimos adequadamente accountability. E talvez os norte-americanos não conseguiriam traduzir “jeitinho brasileiro”. O problema não é de dicionário de equivalência, é de conceito. O diálogo entre culturas é prisioneiro de incompreensões mútuas. Não há esquemas explicativos simplificados. Enquanto acharmos que somos inferiores por conta do “jeitinho” não nos libertaremos de esquemas culturais que nos oprimem. Eu francamente não acredito que Vianna Moog tenha resolvido esse impasse[1].

[1] Dedico esse ensaio ao Dr. José Diogo Cyrillo da Silva, conhecedor da história rio-grandense, e colega na advocacia pública, há uma longa e agitada jornada.


 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico, 6 de setembro de 2020, 8h02

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Ricardo Lobo Torres e o direito ao mínimo existencial (Embargos Culturais) - Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Embargos Culturais

Ricardo Lobo Torres e o direito ao mínimo existencial

Por 

Ricardo Lobo Torres (que faleceu em 2018) deixou-nos extensa bibliografia de Direito Tributário. Sua obra, no entanto, é marcada por aliciantes intervenções filosóficas. Deve-se essa característica, creio, à sua dupla formação: licenciou-se em Filosofia (1962/UERJ), bacharelou-se em Direito (1958/UFF) e compôs tese de doutoramento que aproximou esses dois campos (1990/Gama Filho). No doutorado, escreveu sobre a liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal [1].

Foi um pesquisador interdisciplinar. Aproximou o que de comum havia nas disciplinas que explorava e metodicamente estudava. Entre seus livros, deixou-nos "O Direito ao Mínimo Existencial", publicado em 2009 pela Editora Renovar. Há nesse texto uma concepção humanista da normatividade. Lobo Torres compreendia o Direito como uma técnica a serviço da construção de uma sociedade mais justa. No Direito Tributário, contrapunha-se aos positivistas da tipicidade cerrada, defensores de um formalismo intransigente para com qualquer rompimento interpretativo com a legalidade absoluta. Para Lobo Torres, o Direito deveria se orientar para a plena realização dos ideais de dignidade da pessoa humana. Transcendeu seus pares. Era um visionário.

Em "O Direito ao Mínimo Existencial", Lobo Torres especulou em torno de mecanismos de luta contra a exclusão social, as desigualdades e miséria de um modo geral. O que denominava de mínimo existencial comporia núcleo inegociável no conjunto dos direitos fundamentais. O livro foi estruturado em duas sessões. Trata inicialmente da positivação da teoria do mínimo existencial, explicitando conceito, estrutura normativa, bem como valores e princípios jurídicos que o sustentariam e que justificariam sua plena realização. Na segunda sessão trata-se de sua efetividade, com base na doutrina do status, atribuída a Georg Jellinek (1851-1911), autor alemão cujo trabalho Lobo Torres bem conhecia.

Colocando-se a questão em termos mais simples, e no ambiente da tributação, o mínimo existencial consiste na vedação de qualquer forma de tributação que resulte na impossibilidade de uma pessoa hipossuficiente ter acesso a bens e produtos essenciais para a sobrevivência. É relevante quando pensamos em termos de tributação indireta, que atinge bens e serviços. Trata-se da regressividade fiscal: a tributação acaba pesando mais nos mais pobres.

Lobo Torres realçou do ponto de vista histórico o papel exercido pela Igreja, incumbindo-se do cuidado para com os pobres. Lembrou que essa formulação poderia ter estimulado a mendicância. É o que justifica (acrescento) o fato de que a mendicância fosse enquadrada entre nós como contravenção penal (decreto-lei 3.688-1941), no núcleo das infrações contra os costumes. É o caso de quem pedia esmolas por "ociosidade ou cupidez". Essa disposição vinha desde o Código Criminal de 1890. Foi revogada em 2009. Também do ponto de vista histórico, Lobo Torres predicou a defesa do mínimo existencial em certa tradição europeia que defendia a tributação progressiva, invocando a autoridade de Jeremias Bentham, de David Hume e de Montesquieu. Estava ao lado dos utilitaristas, dos céticos e dos iluministas.

Exemplificou que entre nós há preocupação com o assunto desde a Constituição de 1824, que dispunha sobre garantia de "socorros públicos" (artigo 179, 31). Lobo Torres mapeou essa tradição, caminhando até o dispositivo constitucional atual sobre erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais (artigo 3º, III). Em seguida, motivou o mínimo existencial em padrões de ética, de liberdade, de felicidade, de igualdade e de dignidade. Entendo que há uma fundamentação metafísica, o que revela influencia kantiana exercida sobre o professor fluminense.

Lobo Torres reconheceu que o mínimo existencial é conceito operacional que carece de conteúdo normativo específico. O assunto é pulverizado, do ponto de vista de suposta definição de campos de estudo. Encontra-se nos Direitos Tributário, Financeiro, Previdenciário, Civil, Penal e Internacional. Em passo reducionista, Lobo Torres afirmou que o mínimo existencial ocuparia posição de centralidade, em torno da qual gravitariam o direito ao desenvolvimento humano, à qualidade de vida e à redistribuição de rendas. A teoria do mínimo existencial seria um subsistema da teoria dos direitos fundamentais.

Revela-se uma teoria normativa, na medida em que dirigida à concretização e eficácia de seus valores. Seria também interpretativa, justamente porque implicaria em determinada compreensão dos direitos fundamentais. Essencialmente, a concepção de mínimo existencial seria dogmática também, porquanto somente se realizaria a partir de disposições legais e de intervenções judiciais. Lobo Torres relacionou o mínimo existencial com as teorias da justiça, com especial atenção às críticas formuladas por Hans Kelsen.

Há uma inegável relação do conceito de mínimo existencial com os postulados do Direito natural, criticados por Kelsen. O Direito natural, afirmou Kelsen, não responderia a uma objeção central, que consiste na impossibilidade de formular normas de conduta reta com caráter geral, válidas em todas as circunstâncias. Isto é, a impossibilidade real de um direito natural imutável levou a uma concepção de Direito natural variável. Para Kelsen, não se consegue fixar um parâmetro comum e constante. Lobo Torres contrapõe-se à essa concepção, invocando o caráter absoluto desse Direito, dada sua inegável dimensão valorativa humana.

Os direitos sociais, concede, estariam sujeitos à reserva do possível, de feição orçamentária. Transpõe-se esse óbice destacando-se o mínimo essencial dessa contingência, de vínculo com os direitos sociais. Discorreu sobre intuições de justiça na tradição filosófica ocidental mais recente, com base em John Rawls, em Robert Alexy e em Jurgen Habermas.

Referiu-se a Rawls a propósito de um quadro protetivo do mínimo social, que visaria a assegurar uma igualdade de oportunidades que seria potencialmente imparcial. Socorre-se também do Tribunal Constitucional Alemão, ao qual imputou, inclusive, a noção mais acabada de reserva do possível. Referiu-se ao julgamento dos alunos aprovados, mas não convocados para a Escola de Medicina. A mera aprovação não garantiria a vaga, por falta de orçamento que garantisse a fruição do curso. Comentou a decisão da Corte Alemã.

Lobo Torres considerou com deferência a obra singular de Ingo Sarlet (a quem prioritariamente dedicou o livro). Ingo, maior autoridade brasileira no assunto, inovou na discussão, apresentando a multidimensionalidade de uma reserva do possível que denominou de "fática". Nesse sentido, há de se considerar aspectos financeiros, orçamentários, de recursos humanos, jurídicos, de competência de entes federados, de direitos conflitantes, de proporcionalidade e de isonomia.

O tipo ideal conceitual reserva do possível sujeita-se a fatos concretos, com implicações diretas na aplicação do mínimo existencial, também estruturado na reserva do possível, em seu contexto prático. Lobo Torres insistia na necessidade de se desvencilhar esses dois núcleos conceituais e operativos. Argumentou que a doutrina brasileira "desinterpretou" o conceito de mínimo existencial. Teríamos perdido o sentido originário desse conceito humanista de direito.

De tal modo, argumentou, a estrutura normativa da "reserva do possível" mostra-se como regra (porque demanda subsunção) e não como valor ou princípio. Transita-se no campo dos "limites dos limites", referente à intervenção do Estado, pautada também pela reserva de lei e pelas destinações orçamentárias, em que não há espaço para qualquer forma de discricionariedade.

Lobo Torres defendia a maximização do mínimo existencial com a consequente otimização dos direitos sociais. No plano fático apontava para a teoria das imunidades tributárias. Cuidou de imunidades implícitas (cestas básicas, disposições da legislação do Imposto de Renda, direito à moradia) bem como de imunidades explícitas (acesso à Justiça e certidões, instituições de educação e de assistência social, entidades de previdência privada). Discorreu sobre a legitimação das imunidades, discussão que permanece em aberto na jurisprudência brasileira. Talvez contraditoriamente percebeu no Sistema Único de Saúde-SUS um modelo utópico de gratuidade nos serviços de saúde.

"O Direito ao Mínimo Existencia

l", de Ricardo Lobo Torres, é livro de defesa do resgate humanitário da função do Direito. É documento literário e jurídico de época, datado. Mas, ao mesmo tempo, é presente e permanentemente inspirador. Dessa inspiração recorrente é que se colhe o legado de um grande mestre, de quem sentimos muita saudade.

 

[1] Dedico esse pequeno ensaio a Agostinho Nascimento Netto, preparadíssimo e estudioso colega na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, com quem comungava imensa admiração e respeito por Ricardo Lobo Torres.



domingo, 19 de julho de 2020

Euclides da Cunha e a história como testemunha da brutalidade - Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

Euclides da Cunha e a história como testemunha da brutalidade


Consultor Juridico, 19 de julho de 2020
É preciso estudar os autores brasileiros. Euclides da Cunha (1866-1909) revela-nos a violência cometida contra os sertanejos do interior da Bahia (Canudos, mais especialmente), a par da desolação dos seringueiros e da Amazônia. Euclides da Cunha é uma figura contraditória. Estudioso meticuloso e dedicado, trabalhador incansável, hipocondríaco, republicano que se irritou com a república, positivista que refutou Floriano Peixoto, pai carinhoso nas cartas, marido traído que foi assassinado pelo amante da esposa, em horrível duelo, no qual o amante agiu inegavelmente em legítima defesa. Uma vida marcada pela tragédia e pelo heroísmo. Nada singular. Euclides é a história em forma de denúncia da brutalidade.
Euclides foi salvo, por um triz, da pena de enforcamento, prevista no Código Militar, que poderia lhe ser aplicada após o comentadíssimo episódio do sabre. Conta-se que os cadetes da Escola Militar pretendiam deixar a caserna para saudar o republicano Lopes Trovão, que passava pelo Rio de Janeiro. O Império vivia seus últimos momentos, e era latente um confronto entre os militares e o Imperador. O general comandante da escola proibiu a saída dos alunos, sob o pretexto de que o Ministro da Guerra faria uma inspeção na tropa. À hora em que estavam formados para a revista o cadete Euclides (então com 22 anos) adiantou-se, tentou quebrar o sabre, jogando-o aos pés do Ministro. Foi detido, e por intervenção de seu pai junto ao Imperador teve a pena comutada para afastamento do Exército. Escapou da forca. Entrou para a história. Júlio de Mesquita, dono e editor da Província de São Paulo (hoje o Estadão) interessou-se pelo rapaz, que passou a assinar uma coluna de política nesse importante jornal. Era o ano de 1888. Começa o trilema que marcará a vida de Euclides: exército, política e literatura, em forma de jornalismo.
Alguns anos depois do episódio do sabre, em carta dirigida a seu sogro, General Sólon Ribeiro, datada de 12 de agosto de 1897, Euclides relatou que fora convidado para estudar a região de Canudos, na Bahia. Traçaria os pontos principais da campanha. Confirma que havia aceitado. Dizia que o assunto era importante, e que “estava em jogo a felicidade geral da República”. Já em Canudos, em carta ao advogado Reinaldo Porchat, seu amigo, relatava que no sertão da guerra a vida era insípida e lúgubre, e que a distração consistia em “assistir à chegada de feridos, assistir à partida das tropas”. As informações que Euclides colheu no interior da Bahia constituem a base do livro “Os Sertões”; a primeira edição é de 1902. As edições posteriores, revistas pelo autor ainda em vida, revelam uma guinada na forma de escrever. Euclides abrasileirou sua escrita, adotando prosódia e ortoépica que distintas das formas castiças de Portugal, que tanto conhecia. Abandonou as ênclises.
Há no Brasil uma fortíssima linha de pesquisa em torno de Euclides da Cunha, sobressaindo-se Walnice Nogueira Galvão, a quem, entre outros importantes trabalhos, se deve a publicação das cartas de Euclides (ao lado de Oswaldo Galloti), bem como dos autos do processo referente a seu trágico fim. Há também a inestimável obra biográfica de autoria de Roberto Ventura, precocemente falecido, em acidente de automóvel. Toda a inteligência brasileira já opinou sobre Euclides: Miguel Reale, Gilberto Freyre, Fernando Henrique Cardoso, José Guilherme Merquior. À época de Euclides, há José Veríssimo e Araripe Júnior. Brito Broca também deixou passagens memoráveis sobre Euclides.
Euclides da Cunha nasceu na Fazenda Saudade, em Cantagalo, no Rio de Janeiro. Estudou engenharia, formando-se na Escola Militar, na Praia Vermelha, na cidade do Rio de Janeiro, depois de readmitido ao Exército, já na era republicana. Era o mais avançado centro de estudos que havia no Brasil. Pontificavam as ideias positivistas e cientificistas. Euclides foi aluno de Benjamin Constant. Bem além das ciências exatas, estudava-se com profundidade a filosofia, com foco no inglês Herbert Spencer e na concepção de que os mais aptos triunfam. Também foi preponderante a influência de Charles Darwin. Euclides estudou Auguste Comte, e só não foi um positivista mais extremado provavelmente porque resistia aos fundamentos quase religiosos dessa escola. A concepção de herói em Thomas Carlyle também influenciou Euclides, na visão de mundo e no estilo.
“Os Sertões” é vigorosa denúncia às atrocidades cometidas contra uma população esquecida do interior brasileiro. Vale como uma primeira tomada de consciência para com um problema complexo na construção da identidade nacional. O problema persiste, ainda que sob outras perspectivas. Euclides é cartesiano. O livro se divide em três partes: a terra, o homem e a luta. Euclides é ambicioso, escreve sobre vários assuntos: geologia, botânica, sociologia, antropologia, política, mineralogia, hidrologia, frenologia, história. Especialistas apontam que há muitos erros e premissas mal fundamentadas.
“Os Sertões” tem muitos méritos, especialmente, na medida em que Euclides provoca olhares sobre uma gente explorada. O livro foi um sucesso. A primeira edição esgotou-se rapidamente. O estilo de Euclides é difícil. Abundam adjetivos, superlativos e oximoros. Tem-se a figura do “pleonasmo euclidiano”. Barroco, e ao mesmo tempo esforçado para o alcance de uma precisão científica, há muito leitor que desiste logo no primeiro capítulo. Vale uma leitura que principie com a descrição do nativo, que Euclides define como o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo, o caipira simplório.
Euclides denunciou a campanha de Canudos, que definiu como um crime, “na significação integral da palavra”. É um libelo contra a campanha militar, uma acusação direta contra o governo. Euclides já não estava no Exército. Denunciou os soldados como “mercenários inconscientes”. Segundo Euclides, os agressores viviam pacificamente à beira do Atlântico, nos parâmetros de princípios civilizados elaborados na Europa, bem armados pela indústria alemã.
“Os Sertões” principia com uma “nota preliminar”. Euclides observa que o livro foi escrito “nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante”. A maior parte foi redigida em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde trabalhava como engenheiro. Pretende apresentar um estudo sobre as “sub-raças sertanejas”. A visão de Euclides é presa ao paradigma dominante da época. E nem poderia ser de outra forma. Somos filhos e produtos de nosso tempo. Não se pode julgá-lo sem o benefício do retrospecto. Predominava um determinismo que vinculava o homem ao meio. É o que justifica, metodologicamente, a descrição inicial da região inóspita, onde os fatos ocorreram.
Euclides recria o ambiente. A descrição da seca é assustadora. Logo no início do livro Euclides trata de um “higrômetro inesperado e bizarro”. Descreve um soldado morto, cujo corpo a seca manteve intacto, como se fosse uma múmia. Cito: “braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava... havia três meses. Morrera no assalto de 18 de julho (...)”. O autor imagina a morte e a sorte (falta de) do soldado mumificado: “sucumbira corpo a corpo com um adversário possante”; não fora percebido, e por isso não fora enterrado com os demais mortos. Estava intacto; murchara apenas: “braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sois ardentes, para os lugares claros, para as estrelas fulgurantes”. Cena de horror: “mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sobra daquela árvore benfazeja”. Com aquela estranha e inesperada imagem, Euclides enfatizava a secura extrema dos ares. Por perto, ainda, havia cavalos mortos, semelhantes às “espécies empalhadas, de museus”. As lufadas moviam as crinas dos cavalos tombados.
A descrição do homem, ainda que hoje saibamos imprecisa e cheia de generalizações, é uma peça especial de literatura e de antropologia. É o perfeito relato de um paradigma. Euclides trata da complexidade do problema etnológico no Brasil. Faz digressões em torno do vulto do jagunço. Explicita a corporatura do sertanejo. Expõe a figura de Antonio Conselheiro, disserta sobre os habitantes de Canudos.
Para Euclides, a gênese das raças mestiças no Brasil era um problema a desvendar. Duvidava que pudéssemos um dia ter uma unidade de raça. Duvidava de que poderia haver um tipo antropológico brasileiro. Acreditava na hipótese do autoctonismo, isto é, o nativo brasileiro não era o resultado de uma migração que se perdia nos tempos. Assim, afirmava que “os selvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes das velhas raças autóctones da terra”. Euclides contrastava o interior com o litoral. Entendia que “estávamos condenados à civilização”. Acrescentava que “ou progredimos, ou desaparecemos”. Ao contrário de Gilberto Freyre, Euclides dedicou apenas três linhas ao português.
Elogia Nina Rodrigues, então na moda, a quem reverenciava como um “investigador tenaz”. Euclides era um darwinista convicto; a seleção natural, escreveu, “mais que quaisquer outras, se faz pelo uso intensivo da ferocidade e da força”. Nesse sentido, darwinista, percebia o mestiço como um intruso, perdido na “concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção capitaliza atributos que a hereditariedade conserva”.
Euclides entendia o mestiço como portador de um desequilíbrio nervoso incurável. O mestiço seria, na visão de Euclides, um desequilibrado. A mestiçagem, prossegue Euclides, um retrocesso. Era obcecado com concepções eugênicas de raça superior, que matizavam o paradigma da época, escrevendo que “todo homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro é uma herança”. Aproximava o mestiço do mulato, raça dominada, “(...) a besta de carga adstrita aos trabalhos sem folga”.
Na leitura dos Sertões, percebe-se, no entanto, que Euclides vai se afeiçoando ao mestiço, em quem descobre um injustiçado ser humano que a política convencional satanizou, com apoio da imprensa, num dos maiores crimes de preconceito vividos na história do Brasil. Euclides era o tipo de homem que somente retrocedia quando o passo para frente fosse o suicídio. Tratarei, nas próximas intervenções, das cartas de Euclides, da guerra de Canudos, das impressões que Euclides colheu na Amazônia, e dos autos do processo de seu trágico fim. É preciso, mais do que nunca, estudarmos os autores brasileiros.


 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.


Revista Consultor Jurídico, 19 de julho de 2020, 8h00