O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador Brasil deve seguir esse caminho?. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Brasil deve seguir esse caminho?. Mostrar todas as postagens

sábado, 20 de abril de 2024

Alianças preferenciais no Sul Global: o Brasil deve seguir esse caminho? - Paulo Roberto de Almeida

 Alianças preferenciais no Sul Global: o Brasil deve seguir esse caminho?

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor

 

     Qual é o argumento típico dos entusiastas do Sul Global?


     Devemos reforçar os laços com grandes países (China, Rússia), com outros países em desenvolvimento (Índia, África do Sul) e, com os da América do Sul, com os quais dispomos de vantagens comparativas. 

     Talvez, mas vejamos os custos e benefícios desse tipo de política de aliança com o chamado Sul Global.

 

O problema dos países médios, ou “emergentes”, como o Brasil, é que eles dispõem de um estatuto incerto no sistema mundial. Não constituem, obviamente, grandes potências, dotados de meios militares ou econômicos suscetíveis de influenciar decisivamente a agenda internacional, mas tampouco são países irrelevantes ou desprovidos de meios para fazer pender, por vezes, a balança das relações internacionais em determinadas direções. O Brasil certamente se insere, com vários outros países, nessa categoria pouco precisa dos “países médios”, cuja classificação pode ser dada a partir de vários atributos físicos e econômicos. Vejamos, em primeiro lugar, características próprias a esses países, passemos em seguida às recomendações de política externa tais como apresentadas no título deste capítulo e discutamos, por fim, as implicações dessas orientações sugeridas.

Os países médios constituem geralmente grandes extensões territoriais, dotados de importante população, com economias não totalmente desenvolvidas ou avançadas do ponto de vista tecnológico, mas participando ativamente da vida diplomática internacional e podendo desempenhar um papel relevante na definição de alguns dos problemas que frequentam a agenda mundial. Não é o caso da Rússia ou da China, igualmente grandes e ativos, embora a renda per capita desses dois gigantes, um geográfico, o outro econômico, se situe na faixa dos países médios. Mas esses dois países não são normalmente identificados a países médios ou emergentes, uma vez que já são (ou já foram e voltaram a ser) grandes potências, detêm armas nucleares e são membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. China e Rússia podem, portanto, ainda que com certo esforço, tentar desafiar o monopólio estratégico da superpotência remanescente no contexto mundial pós-Guerra Fria. A China, na verdade, é uma potência ascendente, ao passo que a Rússia é uma potência apenas militar, mas economicamente e demograficamente declinante. Por razões curiosas, os dois gigantes são identificados a um ainda mais bizarro Sul Global, o que não parece ser o caso, nem no plano estritamente geográfico, nem no plano político, ainda que lato senso.

A geografia política das potências médias apresenta contornos indefinidos, podendo cobrir gigantes demográficos como a Índia e a Indonésia, ou o próprio Brasil, e países realmente médios como o México, a África do Sul, talvez do Egito ou o Irã, e outros menores, como a da Coréia do Sul, assim como diversos outros, no mundo em desenvolvimento, ou o Canadá, a Espanha, a Itália e vários outros, no clube dos países ricos. As definições são, entretanto, ambíguas, uma vez que a “assemblagem” dessas potências “médias” num mesmo conjunto recobre realidades e potencialidades muito diversas. Senão vejamos.

A Índia é agora o primeiro país mais populoso do mundo, é dotada da arma nuclear e já pode, talvez, ser enquadrada entre as grandes potências. Ela se encontra envolta num cenário estratégico de tensões recorrentes e perigosas que conforma um dos maiores focos de instabilidade internacional, junto com o Oriente Médio e algumas partes da África. A Indonésia constitui, por sua vez, um mundo à parte, cujos focos de tensão são propriamente internos, ainda que ela tenha provocado, no passado, situações de instabilidade no cenário regional (Timor Leste, por exemplo). A África do Sul já foi uma emergente potência nuclear, mas decidiu renunciar a esse status ao iniciar-se o período de transição para o fim do regime de apartheid. O Brasil já ostentou uma economia bem mais pujante, em fases de crescimento sustentado ou de valorização cambial, chegando a superar alguns membros do G7, como seria o caso do Canadá, mas no início do século XXI chegou a ser superado em termos de PIB pelo México, país que tem uma projeção meramente regional, recuperando-se recentemente, ultrapassando não apenas o México, mas também o Canadá e a Rússia. 

Por outro lado, determinadas potências econômicas, como a Alemanha, o Japão ou mesmo o Canadá e a Itália, não ostentam um poderio militar à altura de sua presença no comércio e nas finanças internacionais, ainda que elas possam ser ativas em missões de manutenção de paz da ONU ou de um ativo engajamento na defesa de países atacados, como é o caso da Ucrânia a partir de fevereiro de 2022, país objeto de uma guerra de agressão por parte da Rússia. Todos elas estão no G7 e podem ser consideradas potências médias apenas do ponto de vista da limitada capacidade de determinar um cenário estratégico, de forma diferente como, por exemplo, a China, a Rússia, ou mesmo a Índia (mas esta se vê “dissuadida” pelo Paquistão, também nuclearizado). Em todo caso, o que identifica todas essas potências médias ocidentais (e o Japão se enquadra na categoria) é o fato de possuírem certa capacidade de moldar cenários regionais ou até determinadas conjunturas internacionais, mas um poder limitado no que se refere ao recurso “último” à arma nuclear no caso de uma confrontação estratégica. Nesse particular, talvez apenas EUA, Rússia e China sejam relevantes, todos os demais sendo atores de segunda ou terceira linha, mesmo França e Grã-Bretanha, a despeito de também nucleares.

O Brasil aparece como claramente situado num escalão modesto das potências médias, daí o frequente apelo – ou recomendação – de muitos de seus dirigentes políticos (e conselheiros diplomáticos) a algum tipo de “relacionamento especial” com outros países médios, na suposição de que essa interação aumentará nosso poder de tentar influenciar, modificar ou moldar em nosso favor determinadas vertentes da agenda internacional (no caso do Brasil, claramente no sentido de se impulsionar um projeto de desenvolvimento econômico e tecnológico, concebido como a base de maior projeção política e militar internacional). O pressuposto é o de que o relacionamento com grandes potências comporta situações assimétricas que não são facilmente superáveis, o que confirma nossa situação de desigualdade ou mesmo de dependência nos terrenos financeiro, tecnológico ou militar. De fato, não se afigura como factível qualquer diálogo de igual para igual com os EUA, assim como não são isentos de percepções assimétricas as relações com a França e a Grã-Bretanha, os outros dois membros ocidentais – e plenamente capitalistas, como o Brasil – do CSNU. 

Mas, também no caso da Rússia e da China, os outros dois parceiros apontados como estratégicos nessa recomendação de “alianças privilegiadas”, o fato nuclear e o pertencimento ao CSNU deveria colocar alguns constrangimentos para um diálogo aberto a considerações de natureza estratégica ou militar por parte do Brasil. Essas duas grandes potências não plenamente desenvolvidas encontram-se por sua vez envoltas em situações potencialmente conflituosas que têm pouco a ver com os interesses do Brasil no sistema onusiano ou mesmo no plano do diálogo político ou cultural (em matéria de direitos humanos ou de cooperação direta entre instituições governamentais, científicas ou culturais). Existe certo espaço e algum potencial para o desenvolvimento de áreas de cooperação de caráter parcialmente estratégico – como no caso do programa sino-brasileiro para a construção e lançamento de satélites – ou mesmo para a expansão do comércio e de outras trocas econômicas. Mas as diferenças de sistemas socioeconômicos, de instituições culturais e políticas e, sobretudo, os interesses de cunho estratégico são fatores limitantes na ampliação da interface, ainda que no caso da China a densidade das relações já estabelecidas aponte para o seu reforço futuro.

Considere-se, por outro lado, que não será da Rússia ou da Índia que virão os capitais, o know-how e os investimentos de ponta que permitirão ao Brasil avançar ainda mais na escala de sua industrialização ou no âmbito da sustentação dos investimentos em infraestrutura. Existe a ideia, talvez fundamentada, de que esses países poderão conformar, com o Brasil, uma agenda comum para a reforma das instituições multilaterais políticas e econômicas – seja o funcionamento do CSNU, seja o do FMI ou do Banco Mundial – que atenda aos interesses supostamente comuns (mas de fato diferenciados) de todos eles. 

Resta a intensificação dos laços comerciais e econômicos de todo tipo com os países mencionados, sem descartar a cooperação tecnológica e científica, mas reconheça-se, desde logo, a limitada capacidade transformadora desses vínculos no quadro de um sistema econômico já relativamente complexo como o do Brasil, inserido, por sua vez, numa rede de ligações de toda sorte com empresas e instituições dos principais países capitalistas avançados. No campo dos valores, por outro lado – direitos humanos, democracia, tratamento de minorias, identificação cultural – não é preciso ressaltar a intensidade, a diversidade e a fluidez naturais, inclusive por razões humanas dotadas de fortes raízes históricas, dos laços afetivos e materiais que nos unem aos países desenvolvidos do Ocidente. 

Deixando o plano longínquo das “estepes asiáticas” pode-se apontar, no lugar de um investimento relativamente custoso nas duas potências nucleares não-ocidentais, a forte indução à intensificação dos laços de cooperação e de integração, inclusive política e social, com os países vizinhos da América do Sul, ou mesmo, por razões talvez mais sentimentais do que lógicas, com os latino-americanos em geral, como se a América Latina fosse uma realidade “manipulável”, no plano operacional, para qualquer tipo de diplomacia concreta por parte do Brasil (descontando aqui a retórica política dos grupos regionais nos foros multilaterais, muito pouco “rentável” em si mesma). Ainda que essa vertente tenha sua razão de ser, sobretudo do ponto de vista da projeção econômica brasileira no plano regional, deve-se atentar, uma vez mais, para os custos e limites desse tipo de investimento regional e integracionista.

A integração não pode ser considerada como um fim em si mesmo, uma vez que ela não se destina a corrigir nenhum grande obstáculo de natureza estratégica, militar ou econômica que se interponha no bom desenvolvimento das relações de todo tipo entre os países da América do Sul. Existem limitações do ponto de vista da infraestrutura ou derivadas do caráter “excêntrico” da maior parte dessas economias, resultado de alguns séculos de história colonial e da dominação subsequente das relações econômicas externas por um ou outra das grandes potências capitalistas avançadas. O não desenvolvimento dessas sociedades e economias, por outro lado, não se explica pela ausência de integração, e sim pela ausência de estruturas internas de geração endógena de tecnologia, o que por sua vez é determinado pelas insuficiências de caráter educacional e no plano das instituições públicas. Um pouco mais de integração pode ampliar as vantagens de escala de determinados ramos econômicos, sobretudo industriais, mas não permite, por si só, um upgradenotável na intensidade tecnológica ou uma reforma das estruturas educacionais e de administração pública em cada um dos países. 

Assim como no caso das potências nucleares não-ocidentais, não será do Paraguai, do Uruguai ou mesmo da Argentina, do Chile e do México, que virão os capitais, tecnologia e outros recursos tangíveis e intangíveis que permitirão acelerar o ritmo de desenvolvimento econômico e social do Brasil. No máximo esses países nos proverão de oportunidades adicionais para empresas brasileiras competitivas que possam não estar em condições de enfrentar a concorrência no plano mais amplo da economia internacional, mas que podem sim deslocar congêneres da própria região. Trata-se, contudo, de uma relação que pode não ser julgada ideal por esses países, que estariam supostamente em busca de ganhos não recíprocos, o que lhes pode ser assegurada por uma grande economia “imperial”, não necessariamente por uma potência “média” como o Brasil. É o que se observou, precisamente, no caso do fracasso das negociações da Alca, após as quais os latino-americanos procuraram uma relação comercial “não recíproca” por parte dos EUA, à diferença do Brasil, cujos empresários confessavam temer o poder de fogo de empresas americanas em áreas como serviços e compras governamentais. 

A grande potência hemisférica, de seu lado, temia a “vantagem comparativa” dos baixos salários latino-americanos em todos os ramos dotados de forte componente laboral ou em recursos naturais, dados os baixos custos desses fatores nos países do Sul. Para o Brasil, paradoxalmente, a melhor relação custo-benefício estaria numa relação de intensificação “administrada” dos laços econômicos e tecnológicos com a potência do Norte, mais até do que com os seus parceiros regionais, mas os riscos percebidos eram considerados muito altos numa avaliação essencialmente política – isto é, envolvendo cálculos de “soberania” – feita pela maior parte das lideranças políticas. Com a interrupção do processo da Alca, o hemisfério perdeu uma oportunidade de maior inserção na economia global, o que, no caso do Mercosul, só poderia ser parcialmente compensado por algum acordo de associação com a União Europeia, mas que tampouco avançou muito nas duas décadas seguintes à implosão da Alca por razões puramente políticas. 

Com os demais países do assim chamado Sul Global – uma invenção acadêmica que não sustenta o teste da realidade econômica, cultural ou científica – dificilmente haveria uma oferta tão ampla e diversificada quanto a existente na interface com as grandes economias desenvolvidas, ainda que o comércio, sobretudo o comércio, possa aumentar desigualmente com alguns dessas economias em desenvolvimento. A exceção, há muitos anos, é representada pela região da Ásia Pacífico, ou do Sudeste asiático, onde as perspectivas de crescimento tem sido significativamente encorajadoras para um grande ofertante de grãos e proteína animal como é o Brasil. A África permanece uma promessa de progressos futuros, e será, certamente, o fogo de grande crescimento nos anos e décadas à frente, tanto pelo potencial demográfico, ainda ascendente, quando pela crescente inserção na economia mundial, algo previsível. Dada certa similaridade de perfis naturais, são oportunidades abertas ao Brasil, tendentes à adequação da agricultura tropical, já amplamente dominada pelo Brasil, podendo, portanto, ser objeto de cooperação tecnológica. Os problemas subsistentes na África referem-se, em grande medida, a títulos de propriedade e questões contratuais, que dificultam um ambiente propício aos negócios numa economia de mercado regida por normas legais e constitucionais. Alianças preferenciais nesse diáfano Sul Global precisam ser construídas pacientemente e corajosamente, uma vez que demandam um pouco mais de esforço do que o fluxo de relações contínuas com os países já inseridos na moderna economia de mercado à qual o Brasil certamente aspira.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 20/04/2024