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segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Relações Brasil-China - Thiago de Aragão (Gazeta do Povo)

O canal para uma relação pragmática e lucrativa com a China

O Brasil deve procurar entender o vice-primeiro-ministro Liu He, amigo pessoal de Xi Jinping, se quiser conseguir uma boa relação econômica com a China

 | Fred Dufour/AFP
O presidente chinês, Xi Jinping, fortaleceu a imagem de líder no campo internacional por meio de uma narrativa de livre comércio. Essa narrativa, inclusive, o levou a falar em Davos, algo difícil de imaginar em um passado não tão recente. Sua imagem doméstica se fortaleceu não somente com essa postura externa, mas também como a de um líder que buscou combater a corrupção como antepassados não fizeram. Esse combate à corrupção, no entanto, também acabou sendo utilizado para fortalecer seu poder, ao retirar algumas lideranças do partido que não estavam alinhadas com a nova narrativa de Xi. 
Hoje, Xi precisa se preocupar com a guerra comercial com os Estados Unidos, com o endividamento crescente dos bancos provinciais da região central do país e com a desaceleração econômica que muitos analistas econômicos no mundo já esperam para este ano. 
Educado em Harvard, Liu é considerado mais pragmático que Li Keqiang e que o próprio Xi Jinping
O primeiro-ministro Li Keqiang é, sabidamente, seu principal rival político. Buscando mais protagonismo internacional (aproveitando-se de que Xi está com a cabeça voltada para os EUA), Li vem visitando mais países e tentando mostrar uma narrativa própria de cooperação da China com essas nações. A dificuldade para aumentar seu poder esbarra não só em Xi, mas no vice-primeiro-ministro Liu He. 
Para quem acompanha ou necessita acompanhar a China, o grande ponto de referência para analisar o termômetro econômico do país é exatamente Liu He. Além do cargo mencionado, ele também é assessor econômico e amigo pessoal de Xi. Sua influência econômica sobre as ideias de Xi é tão acentuada que, para muitos, ele é a segunda pessoa mais influente do país. Sua postura, agenda de visitas e narrativa revelam muito sobre os passos seguintes que o governo chinês irá tomar. Dado o tamanho da relação com o Brasil, analisar a forma como Liu He pensa deveria ser prioridade para o novo governo brasileiro. 

Educado em Harvard, Liu é considerado mais pragmático que Li Keqiang e que o próprio Xi Jinping. Em relação ao Brasil, sua visão é clara e direta: fortalecer a relação comercial e pronto. Por essas e outras, Xi designou Liu para uma viagem aos Estados Unidos nas próximas semanas, para dar continuidade às negociações da guerra comercial.
Tendo demonstrado interesse em manter relações pragmáticas e sólidas com a China, o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, poderia ter alguém observando a narrativa e desvendando o processo de tomadas de decisão de Liu He. Esse tipo de conhecimento e perspectiva poderá dar uma importante vantagem ao Brasil nas relações comerciais com a China.
Thiago de Aragão é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Johns Hopkins, pesquisador sênior do Instituto Francês de Relações Internacionais e diretor de Estratégia da Arko Advice.

sábado, 19 de janeiro de 2019

As FFAA ocupam o governo? Talvez. Elas são iliberais? Acredito que não - PRA

Discordo de Augusto de Franco quanto à classificação das FFAA que ele faz: a prova do pudim está em comê-lo e os militares não podem ser acusados de iliberalismo a partir do nada.
Militares se envolveram em assuntos políticos desde longa data, praticamente desde o segundo império, e no próprio golpe da República. Depois, militares continuaram a se envolver em política, praticamente durante todo o século XX, mas enquanto personagens da política, não enquanto corpo institucional do Estado.
As FFAA se envolveram de fato no sistema político em poucas oportunidades: 1) na deposição do presidente Washington Luiz, em 1930; 2) na de Getúlio Vargas em 1945; 3) na implementação do parlamentarismo, em 1961; 4) na deposição de Goulart, em 1964; 5) na Junta Militar, depois do afastamento do presidente Costa e Silva, em 1969; 6) no retorno ao regime civil, em 1985.
Todos os demais episódios, inclusive os atuais, partem, não das FFAA enquanto corpo estatal, e sim de indivíduos militares atuando pelos canais existentes na política.
Quero ver os comportamentos supostamente iliberais das FFAA no governo atual.
Paulo Roberto de Almeida


A intervenção militar no Brasil atual que ninguém está querendo ver


Não se assustem quando digo que há um movimento militar (ou, pelo menos, uma movimentação: um conjunto de articulações de militares da reserva e da ativa) no Brasil atual. Há, é óbvio. É preciso ser idiota ou muito desonesto para não ver. Já publiquei três artigos sobre isso:
Agora segue o quarto artigo.
Quando militares intervêm na política, mesmo que por vias legais (eleições ou nomeações de quem foi eleito), mas de forma organizada, isso significa, sim, uma intervenção militar. Em democracias o papel dos militares na política é bem claro: nenhum. Um dos princípios basilares das democracias liberais é o controle dos militares pelos civis (nunca o contrário: regimes tutelados por militares são i-liberais).
O Brasil de hoje está sob intervenção militar. Claro que não é uma intervenção como a de 1964 ou de 1968, um golpe, uma quartelada, contra o Estado democrático de direito. Claro que os militares que começaram a se articular – mais ostensivamente entre 2014 e 2018 – para intervir na política por meios legais (via eleições ou legítimas nomeações de quem foi eleito) não rasgaram a Constituição. Isso não significa que não há intervenção.
Há intervenção: os militares da reserva, em conluio com militares da ativa, se organizaram para colocar ordem na casa. Isso é uma intervenção, uma ação indevida. Não há muita diferença, em termos de concepção e de comportamento político, entre um militar da reserva e um militar da ativa. Passar para a reserva não tem o efeito de mudar concepções e comportamentos num passe de mágica. E o que é pior é que as concepções dos militares (da reserva ou da ativa, pouco importa em termos práticos) que resolveram tomar o Palácio do Planalto e vários cargos-chave do governo por vias legais, assumindo posições de comando no primeiro escalão e no segundo escalão, têm um pensamento i-liberal em termos políticos: basta analisar suas declarações (passadas e recentes) para comprová-lo.
Não há quem possa negar que enxames de militares, de modo organizado, ocuparam posições estratégicas no governo Bolsonaro. Matéria do Congresso em Foco de ontem (18/01/2019) faz um levantamento de cargos de primeiro e segundo escalões que foram entregues a militares.
No levantamento do Congresso em Foco – veja-se a lista abaixo – estão faltando muitos nomes ainda. Por exemplo, não aparece o nome do major Pedro César Nunes de Souza, chefe de gabinete da Presidência. Também não aparecem os militares que estão no MEC, como o general Oswaldo de Jesus Ferreira que comandará a Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares). E nem aparece o antigo comandante do Exército, o general Villas-Bôas, que também vai estar no Palácio (como funcionário ou “consultor”) – espantosamente, porquanto sempre foi considerado um fiel da balança, quando os próprios membros da corporação desconfiavam, com razão, do oportunista e péssimo militar Jair Bolsonaro. Quando Bolsonaro foi eleito, Villas-Bôas passou-se de armas e bagagens para o Estado-Maior bolsonarista.
Tudo isso é, no mínimo, um exagero. Não há, nem nunca houve, em qualquer democracia do mundo, um governo com tantos militares.
Isso nada tem a ver com a capacidade técnica, a dedicação, a lealdade, a honestidade, o espírito público e outras características dos militares. Tem a ver com o fato de que a entrada massiva de militares em cargos políticos, não foi obra do acaso e sim uma operação deliberada de ocupação do terreno mesmo, não importa o motivo: se foi para moralizar a vida pública e combater a corrupção, se foi para proteger o Estado-nação brasileiro da perigosa ameaça comunista (como eles, os militares, argumentaram em 1964) ou se foi para defenestrar da vida pública os democratas (como eles fizeram em 1968), se foi para impedir a volta do PT e manter Lula preso et coetera. O fato é que os militares estão seguindo a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin, ou seja, estão tomando a política como continuação da guerra por outros meios. Para tanto, estão fazendo uma guerra de posição (tal como na guerra de 1914-1918, estão cavando trincheiras em terreno supostamente ocupado pelos inimigos).
Repita-se: nada disso é relevante. O que é relevante, para a democracia, é que os militares não poderiam ter papel político: e agora passaram a ter. O que é preocupante, para os regimes liberais, é que os militares têm um pensamento i-liberal.
Eis a lista (incompleta):
Presidente da República – Capitão Jair Bolsonaro
Vice-presidente da República – GeneralHamilton Mourão
Ministro do GSI (antiga Casa Militar) – General Augusto Heleno
Secretário-Executivo do GSI – General de Divisão Valério Stumpf Trindade
Secretário de Coordenação de Sistemas do GSI – Contra-AlmiranteAntonio Capistrano de Freitas Filho
Secretário de Assuntos de Defesa e Segurança Nacional do GSI – Major Brigadeiro do Ar Dilton José Schuck
Secretário de Segurança e Coordenação Presidencial do GSI – General de Brigada Luiz Fernando Estorilho Baganha
Secretário-Executivo Adjunto do GSI – Brigadeiro do Ar Osmar Lootens Machado
Secretário Executivo da Secretaria-geral – Generalde Divisão Floriano Peixoto Vieira Neto
Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Secretaria-geral – GeneralMaynard Marques de Santa Rosa
Secretário-Executivo Adjunto da Secretaria-geral – General de Divisão Lauro Luis Pires da Silva
Assessor Especial da Secretaria-geral – CoronelWalter Félix Cardoso Junior
Ministro da Defesa – General Fernando Azevedo e Silva
Secretário-Geral da Defesa – Almirante de Esquadra Almir Garnier Santos
Secretaria de Produtos de Defesa – General de Divisão Decílio de Medeiros Sales
Secretário de Pessoal, Ensino, Saúde e Desporto – Tenente Brigadeiro do Ar Ricardo Machado Vieira
Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) – Tenente-coronel da Força Aérea Brasileira Marocs Pontes
Chefe de Gabinete do MCTIC – Brigadeiro do ArCelestino Todesco
Secretário de Políticas Digitais – Tenente-Brigadeiro do Ar Antonio Franciscangelis Neto
Secretário de Radiodifusão – Coronel Elifas Chaves Gurgel do Amaral
Secretário-Executivo Adjunto – Coronel-Intendente Carlos Alberto Flora Baptistucci
Ministro de Minas e Energia – Almirante Bento Costa
Chefe de Gabinete de Minas e Energia – Contra-almirante José Roberto Bueno Junior
Ministro da Infraestrutura –Capitão Tarcísio Gomes
Secretário de Transportes Terrestre e Aquaviário – General Jamil Megid Júnior
Ministro da Secretaria de Governo – General Carlos Alberto dos Santos Cruz
Secretário Nacional de Segurança Pública – General Guilherme Theophilo
Secretário de Esportes – General Marco Aurélio Vieira
Ministro da Controladoria-Geral da União (CGU) – Capitão Wagner Rosário
Presidente da Funai – General Franklimberg de Freitas
Presidente do Conselho de Administração da Petrobras – Almirante-de-esquadra Eduardo Bacellar Ferreira
Presidente da Itaipu – General Joaquim Silva e Luna
Porta-voz do governo – General Otávio Santana do Rêgo Barros
E ainda precisamos saber onde será alocado o general linha-dura Aléssio Ribeiro Souto (que coordenou o programa de educação do candidato Bolsonaro). Esse general, aliás, é o exemplo perfeito de um militar com pensamento i-liberal: recentemente ele declarou (quando já integrava o principal grupo técnico da campanha bolsonarista) que “os livros de história que não tragam a verdade sobre 64 precisam ser eliminados”.
A lista acima não contempla os militares que forem eleitos para outros níveis de governo e para os parlamentos. Mas parece óbvio que houve também articulação – confessada publicamente pelo vice-presidente General Mourão – para candidatar militares das três forças (assim como houve articulação – feita inclusive pelo filho de Bolsonaro, Eduardo – para montar listas de candidatos com elementos policiais, da Polícia Federal e da Polícia Militar). As forças de segurança resolveram fazer o que nunca deveriam fazer numa democracia: intervir na política. Ah! Mas agora foi legítimo, porque elas usaram os meios legais. Nada disso. Militares não devem intervir (de modo organizado) na política: nem por meios ilegais, nem por meios legais.
Outra coisa é uma pessoa que foi militar ser eventualmente nomeada para um cargo qualquer. Mas não é disso que estamos tratando aqui.
Quem pode acreditar que todos estes militares foram nomeados por mero acaso, ou por notório saber, na ausência de bom candidatos civis?
Eles foram nomeados porque se alinham com um pensamento: o pensamento i-liberal do capitão eleito Jair Bolsonaro. Quem quiser comprovar esta afirmação pode conversar com esses militares: em maioria, eles defendem os golpes de 1964 e 1968 (ou, cinicamente, negam que houve golpe), acham que quem se opôs à ditadura era terrorista (e até hoje, cinquenta anos depois, continuam chamando os dissidentes do golpe de terroristas), justificam as perseguições, prisões, condenações, banimentos, exílios e até a tortura (alguns ainda tratam o torturador do Exército, Brilhante Ustra, como herói) em nome do combate ao comunismo. São esses que estão no poder em cargos de destaque, não os militares que se converteram à democracia liberal.
Outra evidência é que, uma vez no governo, esses militares se comportam como uma corporação (por exemplo, lutando internamente para escapar da reforma da Previdência) e, o que é mais grave, atuam como uma espécie de partido informal militarista-bolsonarista.
Por outras vias, os que pediam – nas manifestações do impeachment – Intervenção Militar Já!, tiveram sucesso. E quem pode garantir que militares não estavam por trás dessa palavra de ordem?
Ou seja, estamos – no Brasil de 2019 – sob intervenção militar: uma intervenção “branca”, operada por meios legais, mas uma intervenção. Uma intervenção que ninguém está querendo ver e que pode ter consequências trágicas para nossa democracia (no mínimo tornando-a menos liberal).

Democracy Unschool é um ambiente de livre investigação-aprendizagem sobre democracia, composto por vários itinerários. O primeiro itinerário é um programa de introdução à democracia chamado SEM DOUTRINA. Para saber mais clique aqui

domingo, 2 de dezembro de 2018

America Latina: por que alguns países vão demorar para se desenvolver?

Pouco tempo atrás, tendo recebido um convite do Clube Farroupilha de Santa Maria (RS), para participar do Simpósio Interdisciplinar Farroupilha 2018, nos dias 9 e 10 de novembro deste ano, perguntado sobre qual seria o meu tema, e sabedor que estaria no mesmo evento a famosa economista historiadora Deirdre McCloskey, eu escolhi um título para o meu ensaio de caráter histórico que aparentemente se encaixa nas preocupações dela com o desenvolvimento, ou o não desenvolvimento, de alguns países, aqui explícito: 

Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido?

Aos interessados, informo que esse trabalho foi anunciado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/11/por-que-o-brasil-ainda-nao-e-um-pais.html) e se encontra disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/s/28ed0af501/por-que-o-brasil-ainda-nao-e-um-pais-desenvolvido). 

Agora, percorrendo, como sempre faço, as redes de intercâmbio acadêmico, deparei-me com um título que combina com um antigo trabalho que eu já fiz sobre os regimes econômicos do Brasil, em perspectiva histórica, mas desta vez sobre o conjunto da América Latina. O trabalho tinha este título pomposo: 

Regímenes de crecimiento económico en América Latina 1950-2012
(Regímenes de crecimiento económico en América Latina 1950-2012)

Trata-se de um capítulo de um livro editado no Equador chamado: Estudios de economía heterodoxa para América Latina
Marcelo Varela (ed.). Quito: Editorial IAEN, 2017.

Mas, por que eu digo que alguns países latino-americanos vão demorar para se desenvolver?
Bem, basicamente pelo tipo de pensamento, aparentemente difundido em muitas faculdades 
de economia da região. Leiam esta introdução: 



Quando não se tem uma noção precisa do que seja o capitalismo e se acredita nesse tipo de bobagem, então os "economistas" que saem com esse tipo de formação estão condenados a repetir as mesmas magias econômicas do passado, e que justamente condenaram a América Latina, e o Brasil, ao atraso e ao subdesenvolvimento.
O que eu posso recomendar a esses estudantes de economia?
Permito-me fazer referência a três obras da economista Deirdre McCloskey que muito me ajudaram a revisar profundamente minha própria concepção sobre a natureza da grande revolução capitalista na trajetória histórica de algumas sociedades (primeiro ocidentais, agora se espalhando pela Ásia, e na AL, talvez só no Chile, por enquanto): 

1) Bourgeois Equality: how ideas, not capital or institutions, enriched the world (2016)
2) Bourgeois Dignity: Why Economics Can't Explain the Modern World (2010) 
3)  The Bourgeois Virtues: ethics for an age of commerce (2006)

Seu mais recente livro, ainda está sob impressão, devendo ser publicado no início de 2019: How to be a Humane Libertarian: Essays for a New Liberalism (New Haven: Yale University Press, 2019).

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2 de dezembro de 2018

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Deirdre McCloskey: Brasil tem chance de implementar o liberalismo (Gazeta do Povo)

Grato ao amigo Orlando Tambosi pela transcrição desta matéria em seu blog.

Brasil tem a chance de colocar ideias liberais em prática de forma democrática, diz historiadora do liberalismo.


Em entrevista à Gazeta do Povo, que visitou em Curitiba, a historiadora e economista Deirdre McCloskey (que, infelizmente, não tem nenhuma de suas obras fundamentais sobre a burguesia traduzidas por aqui) fala sobre as perspectivas do Brasil com a ascensão de um governo liberal-conservador:


Nos Estados Unidos, Deirdre Nansen McCloskey, 76, uma dos maiores expoentes vivas do pensamento liberal, é quase sempre apresentada como uma economista “libertária”. Por lá, o termo liberal tornou-se quase um sinônimo das causas da esquerda. Mas McCloskey está em uma cruzada contra esse sequestro. No prefácio do novo livro que prepara, a economista anuncia fazer uma defesa do verdadeiro liberalismo da linhagem de Adam Smith: “igualdade [social], liberdade [econômica] e justiça [legal], com um governo pequeno e moderado ajudando de verdade os pobres”. 

Crítica de autoritários e populistas à esquerda e à direita, McCloskey tem uma carreira pouco óbvia. Formada em Harvard, pupila de Milton Friedman, quando ainda era Donald, antes de mudar de gênero no final dos anos 1990, McCloskey deu aula na Universidade de Chicago, celeiro liberal de Prêmios Nobel, entre 1968 e 1980. “Dei aula para todos os ‘Chicago Boys’, brasileiros e chilenos”, comenta quando perguntada sobre as perspectivas do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, que fez seu Ph.D. na universidade entre 1974 e 1978.

Guedes passou dois anos no Chile no início da década de 1980. “Os liberais chilenos ainda são assombrados pelo fato de que o liberalismo no Chile foi posto em prática à força e com base na violência. Agora, vocês têm uma oportunidade no Brasil de pô-lo em prática democraticamente”, diz. 

Desde a década de 1980, McCloskey foi se aproximando cada vez mais da História, da Poesia, da Retórica e da Filosofia, sem nunca se esquecer da Economia. Essa erudição levou-a a escrever sua obra prima, a “Trilogia Burguesa”. Em 1800 páginas, a intelectual procura explicar o milagre do “grande enriquecimento” que o capitalismo trouxe ao mundo desde o século 18 e, ao mesmo tempo, formular uma ética das virtudes para um mundo de comércio. 

Sobre esses temas, McCloskey conversou com a Gazeta do Povo um ano atrás. Nesta semana, a economista esteve novamente no Brasil, visitou a Gazeta do Povo e falou sobre sobre os desafios do liberalismo no país, as eleições nos Estados Unidos, as políticas de Donald Trump e a emergência de movimentos autoritários ao redor do mundo. 

Confira a íntegra da entrevista abaixo:

Gazeta do Povo: Seu novo livro se chamará “Por um Novo Liberalismo: Ensaios sobre Persuasão” (no prelo; tradução livre). Nas últimas eleições aqui no Brasil, as ideias liberais parecem ter ficado mais populares: tivemos candidatos eleitos que defenderam ideias claramente liberais. Mas muitas pessoas acham que o Brasil ainda precisa ser convencido a ser realmente liberal. Como você poderia nos persuadir? 

Deirdre McCloskey: Eu posso usar uma analogia. Um dia já fomos crianças, tínhamos uma mãe e um pai, e isso era muito bom: é ótimo ter uma família. Mas agora somos adultos e não deveríamos ter mães e pais “governamentais”. Quando somos crianças, é bom que nossas mães e pais nos digam o que fazer, mas não acho que esse seja um papel apropriado para o governo, por uma série de razões. Por um lado, diferentemente dos nossos pais, o governo não sabe o que é realmente bom para nós. Eles estão lá longe em Brasília, e a informação que naturalmente está disponível no âmbito de uma família não está disponível em uma grande sociedade. Então, é muito melhor que você deixe isso para o que podemos chamar de “conversa” entre os comerciantes e os consumidores.

Por outro lado, como vocês no Brasil aprenderam bem nos últimos dez anos, quando há um governo grande forçando as pessoas, essa é a oportunidade para a corrupção. O que as pessoas querem dizer com “corrupção” é que um agente privado vai até o governo e paga o governo para forçar uma medida. Agora, eu sou uma liberal cristã, anglicana, e acredito que nós temos obrigações para com os pobres. A obrigação principal é deixar que os pobres tenham um trabalho digno, mas, em casos de emergência, de necessidade premente, eu deveria ser taxada para ajudá-los. Mas o imposto seria pequeno. Veja: com 10% da renda sendo taxada no Brasil, já não haveria mais pobres – você não precisa de 40% de taxação para ajudar os pobres. 

Aqui no Brasil, depois de uma longa crise econômica e com uma bomba fiscal armada, nós elegemos um presidente com um passado estatista e corporativista. Apesar disso, ele diz que, junto com o economista Paulo Guedes, que promete ser um tipo de superministro, quer tornar o Brasil mais liberal. Paulo Guedes fez o Ph.D. em Chicago, onde você deu aula. Se ele foi um bom aluno, que tipo de reformas deveria buscar? 

Elas são bem óbvias: permitir que as pessoas comprem onde queiram comprar e vendam onde queiram vender. Permitir que as pessoas façam as coisas que querem. Comecem os negócios que queiram e se ocupem do que queiram – e comprar onde se queira comprar inclui o comércio exterior. Essa deveria ser a regra de uma economia, porque é assim que conseguimos inovar, e é o livre comércio que melhora a qualidade dos produtos. Nesse caso, você não pode vender uma câmera ruim feita no Brasil – e o Brasil é bom em muitas coisas. Em fazer aviões pequenos, por exemplo, e açúcar. Nós pagamos, nos Estados Unidos, o dobro do preço mundial do açúcar, quando deveríamos estar comprando açúcar do Brasil. Mas nossos fazendeiros são protegidos. Então, eu espero que ele faça este tipo de coisa, como simplificar as tarifas. 

Paulo Guedes passou dois anos no Chile, no começo dos anos 1980, e o Chile é visto como um exemplo por muitos liberais no Brasil... 

Eu dei aula para eles, tanto para os brasileiros quanto para os chilenos. Dei aula em Chicago entre 1968 e 1980. Lecionava o grande curso de microeconomia na pós-graduação. Ensinei todos eles. 

Sim, e como você avalia agora a experiência dos “Chicago Boys” no Chile, com um pouco de distanciamento histórico? 

Eu não os ensinei a colocar as pessoas em estádios de futebol e atirar nelas [referência ao Estádio Nacional do Chile, onde militares chilenos prenderam, torturam e mataram opositores durante a ditadura do general Augusto Pinochet]. Os liberais chilenos ainda são assombrados pelo fato de que o liberalismo no Chile foi posto em prática à força e com base na violência. Agora, vocês têm uma oportunidade no Brasil de pô-lo em prática democraticamente. Elogio vocês por isso. É muito sábio e mostra certa maturidade política.

Mas acho que o liberalismo na economia funcionou [no Chile] – e um caso ainda mais espetacular é a China, que é uma autocracia terrível, um país terrivelmente iliberal na política, mas muito liberal em grande parte da economia, o que lhes trouxe um crescimento econômico fantástico. Um caso muito melhor é a Índia, que é uma democracia vibrante, embora um pouco maluca, e que também adotou o tipo de liberalismo que o Brasil deveria ter. Eu não conheço o Brasil tão bem, mas conheço bem a África do Sul e eles têm as mesmas políticas que o Brasil. É muito difícil começar um negócio por lá, há tarifas protegendo vários setores, e regulações no mercado de trabalho que geram – veja bem – 50% de desemprego entre os jovens negros sul-africanos. É uma catástrofe. 

Você mencionou a China: economia liberal e política iliberal. Há um ano, quando conversamos, você disse que o Partido Comunista Chinês está montado em um tigre, como na velha fábula: se você cai, você é comido pelo tigre. Mas Xi Jinping, o presidente chinês, parece estar segurando bem esse tigre no laço, então eu pergunto novamente: a China inventou uma alternativa às democracias liberais? 

Não. O inventor dessa versão foi Singapura. Se você chupa chicletes em Singapura, eles te batem [risos]. A imprensa não é livre como aqui no Brasil, nos Estados Unidos, na África do Sul e na Índia. Não é uma alternativa, não é algo que o Brasil deveria pensar em pôr em prática, e eu acho que esse modelo não vai durar na China. Veja, eu entendo ainda menos da China do que do Brasil, embora esteja muito empenhada em oferecer conselhos a todos vocês [risos], mas realmente acho que um país rico – o que a China vai se tornar em mais uma ou duas gerações – não vai tolerar esse tipo de controle. 

Lembra a minha metáfora da mãe e do pai? Estive em uma universidade de tecnologia no meio da China uns meses atrás, e eles me mostraram o programa de reconhecimento facial que estão desenvolvendo e que vai permitir vigiar e guardar registros de todo mundo. Um país rico não vai tolerar esse tipo de coisa, e há muitos exemplos disso. A Coreia do Sul era uma ditadura, Taiwan era uma ditadura, e no fim das contas se tornaram democracias. 

Mas não ainda Singapura... 

Não ainda Singapura, e me pergunto por quê. Mas estão fazendo muito dinheiro em Singapura, então talvez continue assim por mais um tempo mesmo. Mas sou otimista em relação ao futuro, tanto na política quanto na economia. 

Então vamos para os Estados Unidos. Os democratas, em geral, eram os entusiastas do protecionismo e do déficit fiscal, mas agora Donald Trump apoio esse tipo de política e se gaba de criar empregos com base nelas, e ainda investe em uma “guerra comercial” com a China. Ao mesmo tempo, assistimos à emergência de movimentos iliberais ao redor do mundo, como na Hungria, na Polônia, nas Filipinas. A ideia do livre comércio e do liberalismo está arrefecendo no mundo e, em particular, nos Estados Unidos? 

Sim, estão sob ataque. O nacionalismo está vindo à tona, temporariamente. Eu, assim como muitas pessoas, acho que é só um movimento pendular. Donald Trump não tem convicções – seu homem [Jair Bolsonaro] é mais perigoso nisso, ele é autoritário e isso me preocupa um pouco. Mas Trump está no negócio Trump. Ponto. Ele só diz as coisas sobre as pessoas trans, essas coisas malucas sobre comércio exterior, porque a base política dele acredita nisso. Não acho que essas coisas vão ter muito efeito.

De fato, o que acho que vai acontecer nos próximos dois anos é que haverá uma recessão econômica [nos Estados Unidos], não necessariamente causada pelas políticas econômicas estúpidas de Trump, mas ele será culpado por ela. Equivocadamente até, porque o presidente não tem muito a fazer sobre as oscilações dos ciclos econômicos. Então, isso talvez marque o fim do populismo. Não me entenda mal: é ruim para o país erigir barreiras tarifárias, tentar conter a imigração, etc., mas o enredo vai se desenvolver assim, com Trump acabando culpado pelos resultados econômicos ruins. 

E você acha que, se isso acontecer nos Estados Unidos, o populismo vai arrefecer no restante do mundo? 

Sim, porque acho que a vitória do Trump foi uma grande inspiração para o populismo. Ele ganhou por muito pouco e, se eleição fosse hoje, ele perderia. De fato, ele perdeu as eleições para o Congresso. 

Os democratas recuperaram a Câmara nas eleições de meio de mandato, mas muitos “socialistas democráticos” foram eleitos, muitos progressistas que investem na política identitária e, ao mesmo tempo, Trump está reinando no Partido Republicano. Ainda existe espaço para o liberalismo de verdade nos Estados Unidos? A esquerda não está respondendo também de forma iliberal? 

Sim, está. Ambos os lados são iliberais, o socialismo e o fascismo são iliberais. Mas há muitos políticos, que se chamam mais de “pragmáticos” do que de “liberais”, que estão dispostos a ouvir. Não acho que o Partido Democrata seja estúpido o suficiente para apoiar uma figura realmente de esquerda, como Elizabeth Warren [senadora democrata reeleita por Massachusetts, às vezes cotada para concorrer à Presidência em 2020] – isso seria um erro terrível, acho que eles não o cometeriam. Eles vão apoiar um moderado e as coisas vão terminar bem. A política americana é importante para vocês. Se houver uma Terceira Guerra Mundial, vocês estarão nela [risos]. Minha solução para isso é permitir que o mundo todo vote para escolher o presidente americano [risos]. 

Sei que você está brincando sobre a Terceira Guerra Mundial, mas você acha que estamos de volta aos anos 1930, em termos de protecionismo e disputas comerciais, etc.? 

Essa é, obviamente, a analogia assustadora, mas os anos 1930 foram muito piores do que agora, em todos os aspectos imagináveis. Um quarto da força de trabalho estava desempregada nos Estados Unidos e na Alemanha. Note: desde o início do século 19, houve cerca de 40 recessões – elas chegam mais ou menos a cada cinco anos –, mas a tendência de longo prazo foi de crescimento. Houve 6 recessões mais graves, a pior das quais a da década de 1930, mas a tendência é sempre de crescimento. 

Mesmo a reação populista de agora é menos violenta do que a dos anos 1930, quando houve o regime do [Getúlio] Vargas, os fascistas na Espanha e na Hungria, os comunistas na Rússia. Havia comunistas e fascistas armados. Agora são só pessoas fazendo barulho. Trump é um exemplo disso, recuou na questão das pessoas trans no Exército e mesmo a tal “guerra comercial” ainda não aconteceu. Quando há fascistas e comunistas armados brigando nas ruas, como era o caso na década de 1930, aí você deve ficar preocupado mesmo. 

Conhecendo a sua trajetória, não poderia deixar de perguntar isto. Talvez por causa das sucessivas crises econômicas pelas quais o Brasil passou, os economistas se tornaram gurus do debate público há muitas décadas, mas me parece que muitos deles só conseguem falar de gráficos e números e se esquecem de falar com a população em geral. O que você diria para as pessoas que acreditam que a economia é tudo que importa? 

A propósito, essa proeminência dos economistas é muito característica dos países da América Latina, onde os economistas se tornaram muito importantes, às vezes trazendo resultados terríveis. Quem acha que só a economia importa está terrivelmente enganado. Defendo o que chamo de “Humanomia”: Economia com os humanos dentro. Isso significa, por exemplo, que temos de conceber a Economia como um campo da linguagem. Nos negócios, falar é crucial. No espírito de uma empresa, no exercício da liderança. Um quarto dos empregados em economias como o Brasil e os Estados Unidos ganha a vida na base do convencimento. Você e eu, por exemplo, trabalhamos com as palavras. Supervisores também, e há muitos deles na força de trabalho. 

Não estamos mais na época da escravidão: você não pode convencer os trabalhadores a fazer as coisas pela ameaça de violência. Na verdade, você mal pode demiti-los, não por causa das leis – embora isso possa ser um problema –, mas porque você quer ensiná-los a fazer o trabalho corretamente, a crescer. Então, é necessária uma Economia mais ampla, que inclua as Humanidades. Uma economia da inovação, que aliás é melhor para os pobres, é uma economia em que a criatividade humana é plenamente empregada. Isso não é, para usar a linguagem técnica, uma questão de “função produção”. Enfim, ainda precisamos de uma Economia bem mais ampla. 

Além de você, tem alguém pensando nisso? 

Umas seis pessoas [risos]. Uma delas é o Vernon Smith, ganhador do Prêmio Nobel, e seu colega Bart Wilson, da Universidade Chapman. Algumas pessoas antes deles, uma das quais bastante conhecida na América Latina, o grande economista Albert Hirschman. Veja: isso não é um pedido para abandonar a matemática. Eu quero mais matemática, mais números, mas quero números inteligentes. Não sou contra os estudos quantitativos, sou contrária a uma maneira desumana de olhar o mundo, e essa é uma tentação na economia, seja na esquerda ou na direita. A economia marxista é tão bárbara e limitada quanto a economia burguesa, e ambas precisam se tornar uma economia verdadeiramente humana.

domingo, 11 de novembro de 2018

Como será a política externa do governo Bolsonaro - Fernando Martins (Gazeta do Povo)

Como será a política externa do governo Bolsonaro 

Fernando Martins

Gazeta do Povo, 11/11/2018

Esvaziamento do Mercosul e de outros blocos “ideológicos” de nações do qual os brasileiros fazem parte dos planos de Jair Bolsonaro para a política externa. | Mauro Pimentel/AFP
Pressão intensa e até mesmo guerra, se for necessário, para derrubar a ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela. Rompimento de relações diplomáticas com Cuba. Forte alinhamento com os Estados Unidos e outros países comandados por conservadores, como Israel e Itália. Extradição de Cesare Battisti. Briga com a China para que ela não “compre o Brasil, mas compre no Brasil”. Esvaziamento do Mercosul e de outros blocos “ideológicos” de nações do qual os brasileiros fazem parte. Mudança da Argentina pelo Chile como parceiro preferencial na América do Sul. Abertura comercial ampla.
Durante a campanha eleitoral e até mesmos nos primeiros dias pós-eleições, o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) e seus aliados deram a entender que o Brasil dará uma profunda guinada em sua política externa a partir de 2019. Especialistas em relações internacionais dizem que ainda é cedo para saber exatamente como será a diplomacia brasileira sob o comando de Bolsonaro. Mas eles acreditam que uma mudança muito profunda dificilmente vai acontecer. A possibilidade de o país dar um cavalo de pau na cena mundial tende a ser freada pelo risco de haver prejuízo para os interesses nacionais. 
Ou seja, a realidade da geopolítica vai se impor sobre o discurso do presidente eleito. “O Brasil não são os Estados Unidos e o Bolsonaro não é o Trump”, explica Giorgio Romano, professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). A nação norte-americana é uma superpotência militar e econômica com instrumentos para impor suas vontades – algo que não está disponível ao Brasil.
Bolsonaro, aliás, parece já ter tomado um choque de realidade ao anunciar que escolherá um profissional do ramo para o Itamaraty. O futuro ministro das Relações Exteriores será um diplomata de carreira .
Giorgio Romano lembra ainda que Bolsonaro, na campanha, buscou se contrapor à política externa do PT. Mas o governo de Michel Temer (MDB) já havia promovido mudanças em relação à diplomacia das gestões petistas, adotando uma visão mais pragmática. Com Temer na Presidência, o Brasil se distanciou da Venezuela, aproximou-se dos Estados Unidos e promoveu uma abertura ao capital externo – caso da permissão para que empresas estrangeiras explorem o pré-sal sem estarem subordinadas à Petrobras. A aproximação com países do Pacífico, como o Chile, tampouco é exatamente uma novidade na agenda brasileira.
O professor da UFABC aposta que Bolsonaro tende a manter as linhas gerais das relações exteriores do governo atual. Mas, para ele, haverá mudança no estilo da diplomacia presidencial: “A diferença entre o Temer e o Bolsonaro é que o Bolsonaro vai cacarejar antes de colocar o ovo”. Ou seja, o presidente eleito tende a ser mais “falastrão” que o antecessor.
Além de falar mais, o país também tende a ser mais falado no mundo. Para o professor de relações internacionais Argemiro Procópio, da Universidade de Brasília (UnB), o alinhamento do governo Bolsonaro com os Estados Unidos, se efetivamente ocorrer, vai dar mais visibilidade internacional ao Brasil, o que não necessariamente será bom. “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim”, resume Procópio.

Especialista diz que país precisa recuperar imagem desgastada

Contudo, Alberto Pfeifer, coordenador do grupo de análise da conjuntura internacional da Universidade de São Paulo (USP), acredita que o Brasil teria de caminhar justamente na direção de ser “bem falado” no mundo. Segundo ele, a imagem internacional do país está muito desgastada devido aos escândalos de corrupção, ao impeachment de Dilma Rousseff (visto por parte da opinião pública internacional como um “golpe”), à prisão de Lula (interpretada como injusta pela mesma parte da opinião pública externa) e pela própria imagem de Bolsonaro, mostrado no exterior como autoritário, machista, homofóbico, fascista.
Pfeifer aposta ainda que a política externa do governo Bolsonaro vai estar sujeita à agenda econômica: será mais um instrumento para promover o crescimento. E isso tende a ser feito por meio da abertura comercial.
Mas a política de livre comércio internacional também pode esbarrar nas circunstâncias internas. “Bolsonaro vai ter de superar a resistência da Fiesp [a Federação da Indústria do Estado de São Paulo]”, diz Giorgio Romano, professor de relações internacionais da UFABC. Ele alerta que uma abertura comercial unilateral traz o risco de quebrar o que sobrou da indústria brasileira – daí a possível resistência da Fiesp, a principal organização industrial do país.

Venezuela: guerra de palavras não deve virar guerra de fato

O caso da Venezuela é emblemático para mostrar como o discurso de campanha de Bolsonaro pode ser bem diferente do que vai acontecer na prática. 
A ditadura bolivariana de Nicolás Maduro foi usada na propaganda eleitoral de Bolsonaro como exemplo do que o Brasil se transformaria se o PT vencesse a disputa. A retórica pesada, associada a outros fatores, leva muita gente a acreditar que o presidente eleito pode até mesmo declarar guerra se for necessário para tirar Maduro do poder.
Filho do presidente eleito, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), pouco antes do primeiro turno, em uma manifestação a favor de seu pai, em 30 de setembro, sugeriu que o Brasil invadisse a Venezuela para depor a ditadura bolivariana. “O general [Hamilton] Mourão [vice de Bolsonaro] já falou: a próxima operação de paz do Brasil será na Venezuela. O melhor para a crise imigratória que nós vivemos é a saída de Maduro do poder”, disse. 
Não era bem o que Mourão havia dito. Ele apenas havia afirmado que, se a ONU decidisse realizar uma operação de paz na Venezuela, o Brasil poderia participar – descartando a invasão militar pura e simples. O próprio Bolsonaro, pouco antes do segundo turno, disse não querer guerrear com a Venezuela. Ainda assim, o discurso do filho do então candidato serviu para inflamar os eleitores antipetistas. 
A declaração juntou-se a outros fatores que alimentaram a ideia de que, com Bolsonaro no Planalto, haverá a possibilidade de o Brasil compor uma coalização internacional para depor Maduro. Trump – a quem Bolsonaro admira e tenta se aproximar – afirmou publicamente em agosto de 2017 que cogitava a “opção militar” para lidar com o caso venezuelano. O presidente americano também teria conversado com os atuais presidentes do Brasil e da Colômbia sobre o assunto – o que foi negado pelo Planalto.
No dia 29 de outubro, logo após o segundo turno, a Folha de S.Paulo publicou reportagem em que afirma que fontes do governo colombiano diziam que o país estaria disposto a apoiar uma intervenção militar na Venezuela encabeçada pelo Brasil. A Colômbia negou a informação. E um dos principais braços-direitos de Bolsonaro, o general Augusto Heleno, também. “Isso contraria os princípios das nossas relações exteriores. Nós temos como preceito fundamental a não ingerência (...) em assuntos internos de outros países”, disse Heleno.

“O Brasil não vai cometer o suicídio de se meter numa brincadeira armada na Venezuela”

Rumor ou não, o fato é que uma guerra com os venezuelanos seria muito custosa ao país, o que tende a esfriar qualquer ânimo nesse sentido. “O Brasil não vai cometer o suicídio de se meter numa brincadeira armada na Venezuela”, diz Argemiro Procópio. “Eles podem não ter comida nos supermercados; mas têm muita bala”, complementa o professor, lembrando que a Venezuela dispõe de Forças Armadas bem aparelhadas, com equipamentos modernos comprados da Rússia, China e Europa.
Procópio afirma que há outras condições limitantes para uma ação brasileira mais radical em relação à Venezuela. O estado de Roraima não está interligado ao sistema elétrico brasileiro e depende de energia venezuelana. E há grandes empresas brasileiras com negócios no país vizinho, que seriam prejudicados num rompimento radical de relações. “O pragmatismo tende a falar mais alto”, diz.
Isso não significa, contudo, que o governo Bolsonaro não terá uma atitude diplomática dura em relação à Venezuela. Até mesmo porque o Brasil vem sendo afetado diretamente pela crise humanitária na nação vizinha, recebendo grandes levas de refugiados. Isso traz uma série de problemas como segurança, custos de acomodação, deslocamento, saúde.
“O presidente eleito provavelmente apoiará sanções e medidas mais rigorosas para conter o fluxo de refugiados venezuelanos para o Brasil”, escreveu o analista norte-americano Kevin Allison no relatório Signal do último dia 31, publicação de relações internacionais do Eurasia Group.
Para Giorgio Romano, a relação Brasil-Venezuela vai para a geladeira no governo Bolsonaro. Coordenador do grupo de análise da conjuntura internacional da Universidade de São Paulo (USP), Alberto Pfeifer acredita que é possível que haja um alinhamento diplomático do Brasil sob Bolsonaro com a Colômbia para pressionar a Venezuela. Os colombianos também estão recebendo milhares de imigrantes venezuelanos – aliás, muito mais refugiados do que o Brasil.

Estados Unidos: Trump pode ser ‘amigo’ de Bolsonaro, mas negócios à parte

Bolsonaro tem proximidade ideológica com Donald Trump. Ambos são conservadores e de direita. Argemiro Procópio lembra que o americano foi um dos primeiros chefes de Estado a telefonar para cumprimentar Bolsonaro após ele vencer o segundo turno. “Isso é significativo.”
Alberto Pfeifer destaca que a inclinação pró-norte-americana de Bolsonaro ocorre também do ponto de vista pragmático. Os Estados Unidos, afinal, são um parceiro fundamental no comércio, investimentos, transferência de tecnologia. E os brasileiros têm interesse em ampliar essa relação. 
Contudo, Giorgio Romano pondera que a proximidade ideológica entre Bolsonaro e Trump não terá influência nas negociações comerciais quando os interesses dos dois países se chocarem. “Todo amor que o Bolsonaro quer dar aos Estados Unidos não vai ter reciprocidade”, aposta Romano.
Trump vem adotando uma política econômica nacionalista, de proteção da indústria local, que contraria os interesses brasileiros. No fim de setembro, o norte-americano indicou que vai endurecer o jogo comercial com o Brasil. Disse que o país trata as empresas dos Estados Unidos “injustamente” e que esse comércio é “o mais difícil do mundo”. Trump também já havia fixado cotas para a importação de aço brasileiro.

Mercosul e América Latina: além do comércio, Brasil tem outros interesses que vão impedir mudanças profundas 

Logo após Bolsonaro ter sido eleito presidente, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que a Argentina e o Mercosul “não são prioridade”. Segundo ele, o bloco tornou o Brasil “prisioneiro de alianças ideológicas”. O anúncio de que o Chile será o primeiro país que o presidente eleito vai visitar após a posse também reforçou a percepção de que haverá um esvaziamento do Mercosul (bloco formado por Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e a hoje suspensa Venezuela). O objetivo seria priorizar o comércio com outros países vizinhos.
Alberto Pfeifer admite que o Mercosul tem problemas e precisa se modernizar. Mas ele acredita que o futuro ministro da Economia desconhece todas as atribuições do bloco. “O que o Paulo Guedes fala de política externa não vale um vintém”, diz. Pfeifer lembra que o Mercosul não é apenas uma união comercial. Os países têm fronteiras e outras questões em comum que são de interesse do Brasil: circulação de cidadãos, tráfico de armas e drogas, vigilância sanitária. 
Argemiro Procópio, contudo, diz que Guedes pecou pela sinceridade. “Às vezes o Mercosul é mais ficção do que realidade.” Procópio diz que o bloco é um grande exportador de commodities agrícolas, essencial para garantir a segurança alimentar mundial. Portanto, teria de ter mais peso. “O Mercosul é uma bela onça que mia como um gato.”
Por isso, Procópio vê o bloco como uma oportunidade para o Brasil. Até mesmo porque há um alinhamento de direita com os governos da Argentina e do Paraguai para promover mudanças mais liberais no Mercosul.
Pfeifer avalia ainda que a Argentina não deixará de ser importante para o país. “A Argentina é grande compradora de manufaturados do Brasil; não é interessante mudar isso.” Ele também acredita que o Brasil pode ampliar a aproximação, que já está ocorrendo, do Mercosul com nações como o Chile, Colômbia e Peru (países que fazem parte da Aliança do Pacífico junto com o México).
Giorgio Romano diz que não é estratégico para o Brasil abrir mão de blocos com os quais pode vir a ter mais peso em negociações internacionais. A partir do ano que vem, aliás, o Brasil vai presidir o Mercosul, a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e os Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Cuba é uma incógnita: Bolsonaro diz que pode cortar relações

Na América Latina, há ainda outra incógnita: a relação com Cuba. A ilha comunista, assim como a Venezuela, foi outro país usado na campanha de Bolsonaro para dizer o que aconteceria com o Brasil se o PT vencesse. Após ser eleito, ele disse que poderia cortar relações diplomáticas com o país por desrespeitos aos direitos humanos dos cubanos. Mas o presidente eleito deixou aberta a possibilidade de não fazer isso.

China: Brasil vai perder muito se desafiar seu maior parceiro comercial

Bolsonaro passou a campanha dando a entender que entraria numa briga com a China se fosse eleito. Afirmou que não quer que os chineses “comprem o Brasil, mas comprem no Brasil” – referindo-se a sua rejeição a que os estrangeiros adquiram terras e estatais brasileiras, que pretende privatizar. Além disso, em março ele visitou Taiwan – o que teria irritado a China, considera que esse não é um país independente, mas uma província rebelde.
Pequim esperou a eleição passar para dar uma resposta. E ela foi incisiva. Editorial do China Daily, o principal jornal do governo chinês em língua inglesa, advertiu Bolsonaro. Disse que suas críticas ao país asiático podem “servir para algum objetivo político específico (...), mas o custo econômico pode ser duro para a economia brasileira, que acaba de sair de sua pior recessão da história”. “Ainda que Bolsonaro tenha imitado o presidente dos Estados Unidos ao ser verbalmente ultrajante para captar a imaginação dos eleitores, não existe razão para que ele copie as políticas de Trump [que adotou medidas protecionistas contra a China]”, prossegue o editorial.
A pressão diplomática também foi feita pessoalmente. Na última segunda-feira (5), Bolsonaro recebeu uma comitiva de empresários chineses encabeçada pelo embaixador da China no Brasil, Li Jinzhang. O embaixador saiu sem dar declarações.
A posição do presidente eleito sobre a China foi alvo de manifestação inclusive do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Se formos por esse caminho, vamos levar o Brasil para uma posição como se fosse os Estados Unidos, mas sem ser os Estados Unidos. Nós não temos esta possibilidade. A China é nosso maior parceiro comercial e, se o Brasil tomar certas medidas, eles vão reagir”, disse FHC. 
Os analistas de política internacional concordam. “O pragmatismo vai falar mais alto; Bolsonaro vai perceber que precisa tratar bem seu principal parceiro comercial”, diz Alberto Pfeifer. Giorgio Romano lembra que Bolsonaro tem apoio dos produtores rurais, que dependem do mercado chinês: “O agronegócio vai pedir para ele baixar a bola”.

Israel: a grande mudança de fato, mas que também esbarra em interesses comerciais

A aproximação do Brasil com Israel talvez seja a principal mudança de fato na diplomacia brasileira no governo Bolsonaro. Especialmente porque Bolsonaro dá sinais de que essa aliança se dará na mesma medida em que haveria um esfriamento das relações com a Palestina.
A intenção do presidente eleito de mudar a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, seguindo o exemplo dos Estados Unidos, é emblemática nesse sentido. Trata-se do reconhecimento de que a cidade sagrada é a capital dos israelenses. Isso não é aceito pelos palestinos e pelo mundo árabe em geral, que também reivindicam Jerusalém como sua capital. 
Na prática, o gesto de Bolsonaro dá respaldo internacional à política do atual primeiro-ministro de Israel, o conservador Benyamin Netanyahu, que congelou as negociações para a formação de dois Estados no atual território israelense: a Palestina e Israel. Netanyahu inclusive planeja comparecer à posse de Bolsonaro, numa visita que seria inédita de um premiê israelense ao Brasil.
Giorgio Romano afirma, se isso ocorrer, o Brasil rompe com a tradição histórica da diplomacia brasileira, que sempre apoiou a existência dos dois Estados. “É bastante drástico.” A mudança da embaixada, segundo ele, pode ter efeitos ruins e bons para o Brasil.
Do lado positivo, Romano diz que o Brasil pode firmar uma aliança estratégica com Israel, um país com alta tecnologia militar, de irrigação, de informação. Argemiro Procópio concorda. Segundo ele, Israel é um país boicotado no cenário internacional e essa proximidade poderia render bons frutos ao Brasil .
Contudo, há riscos. O principal é a ameaça de que países árabes promovam uma retaliação deixando de comprar produtos brasileiros – sobretudo frango e carne. O mundo árabe, aliás, é um dos principais mercados da indústria de carne brasileira – o que pode fazer com que haja pressão externa e interna sobre Bolsonaro para que ele desista da ideia de mudar a embaixada. 
Autoridades palestinas já criticaram a intenção de Bolsonaro. E o governo egípcio foi o primeiro aliado da Palestina a dar um sinal diplomático de seu descontentamento com a questão da embaixada. Desmarcou em cima da hora a visita que o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, faria ao Egito entre os dias 8 e 11 deste mês. Oficialmente, foi um problema de agenda. Mas, nos meios diplomáticos, o gesto foi visto como um recado.
Bolsonaro parece ter percebido os riscos de mudar a embaixada. Recentemente, vem dizendo que ainda não bateu o martelo sobre o assunto.

Itália: Battisti pode ser um símbolo de aproximação, mas jogo comercial será duro

A Itália tende a ser a “ponte” de Bolsonaro com a Europa. É um país com o qual ele pretende se aproximar em função de um alinhamento ideológico de direita entre o presidente eleito com o do atual governo italiano. 
A extradição do terrorista italiano Cesare Battisti, mantido no Brasil por decisão do ex-presidente Lula, seria um gesto simbólico nessa direção. Bolsonaro já anunciou que, se o Supremo Tribunal Federal autorizar, vai enviá-lo à Itália, onde Battisti foi condenado pelo assassinato de quatro pessoas. 
Mas a possível aliança Brasil-Itália, do mesmo modo que ocorre com a aproximação com os Estados Unidos, pode esbarrar nos interesses econômicos divergentes dos dois países. O professor Giorgio Romano afirma que a direita italiana é nacionalista e o governo italiano vem buscando privilegiar as empresas do país – o que seria uma dificuldade para um comércio mais amplo entre as duas nações.

Meio ambiente será fator de pressão externa sobre o Brasil

A questão ambiental será um fator de pressão internacional sobre o futuro governo brasileiro. “Bolsonaro é um cético da mudança climática. E, embora tenha recuado de promessas anteriores de tirar o Brasil do Acordo Climático de Paris (...), ele prometeu facilitar as exigências de licenciamento ambiental para projetos de infraestrutura. (...) Não está claro o quanto isso afetaria o já acelerado desmatamento da Amazônia, mas ativistas ambientais estão preocupados”, escreveu o analista norte-americano Kevin Allison, num relatório do Eurasia Group.
Isso pode virar motivo de pressão internacional sobre o Brasil, inclusive com retaliações comerciais. Por exemplo: a fusão dos ministérios da Agricultura e Meio Ambiente, que ainda não foi decidida nem completamente descartada, já foi alvo de críticas de fora do país, além das internas.
O professor Argemiro Procópio, da UnB, avalia que Bolsonaro pode até mesmo resgatar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCE) para responder às críticas ambientais que possivelmente sofrerá. Procópio diz que a OTCE, que reúne os países amazônicos, foi usada por muito tempo como fórum de defesa dessas nações contra a pressão internacional sobre a Amazônia.