Grato ao amigo Orlando Tambosi pela transcrição desta matéria em seu blog.
Em entrevista à
Gazeta do Povo, que visitou em Curitiba, a historiadora e economista Deirdre McCloskey (que, infelizmente, não tem nenhuma de suas obras fundamentais sobre a burguesia traduzidas por aqui) fala sobre as perspectivas do Brasil com a ascensão de um governo liberal-conservador:
Nos Estados Unidos, Deirdre Nansen McCloskey, 76, uma dos maiores expoentes vivas do pensamento liberal, é quase sempre apresentada como uma economista “libertária”. Por lá, o termo liberal tornou-se quase um sinônimo das causas da esquerda. Mas McCloskey está em uma cruzada contra esse sequestro. No prefácio do novo livro que prepara, a economista anuncia fazer uma defesa do verdadeiro liberalismo da linhagem de Adam Smith: “igualdade [social], liberdade [econômica] e justiça [legal], com um governo pequeno e moderado ajudando de verdade os pobres”.
Crítica de autoritários e populistas à esquerda e à direita, McCloskey tem uma carreira pouco óbvia. Formada em Harvard, pupila de Milton Friedman, quando ainda era Donald, antes de mudar de gênero no final dos anos 1990, McCloskey deu aula na Universidade de Chicago, celeiro liberal de Prêmios Nobel, entre 1968 e 1980. “Dei aula para todos os ‘Chicago Boys’, brasileiros e chilenos”, comenta quando perguntada sobre as perspectivas do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, que fez seu Ph.D. na universidade entre 1974 e 1978.
Guedes passou dois anos no Chile no início da década de 1980. “Os liberais chilenos ainda são assombrados pelo fato de que o liberalismo no Chile foi posto em prática à força e com base na violência. Agora, vocês têm uma oportunidade no Brasil de pô-lo em prática democraticamente”, diz.
Desde a década de 1980, McCloskey foi se aproximando cada vez mais da História, da Poesia, da Retórica e da Filosofia, sem nunca se esquecer da Economia. Essa erudição levou-a a escrever sua obra prima, a “Trilogia Burguesa”. Em 1800 páginas, a intelectual procura explicar o milagre do “grande enriquecimento” que o capitalismo trouxe ao mundo desde o século 18 e, ao mesmo tempo, formular uma ética das virtudes para um mundo de comércio.
Sobre esses temas, McCloskey conversou com a Gazeta do Povo um ano atrás. Nesta semana, a economista esteve novamente no Brasil, visitou a Gazeta do Povo e falou sobre sobre os desafios do liberalismo no país, as eleições nos Estados Unidos, as políticas de Donald Trump e a emergência de movimentos autoritários ao redor do mundo.
Confira a íntegra da entrevista abaixo:
Gazeta do Povo: Seu novo livro se chamará “Por um Novo Liberalismo: Ensaios sobre Persuasão” (no prelo; tradução livre). Nas últimas eleições aqui no Brasil, as ideias liberais parecem ter ficado mais populares: tivemos candidatos eleitos que defenderam ideias claramente liberais. Mas muitas pessoas acham que o Brasil ainda precisa ser convencido a ser realmente liberal. Como você poderia nos persuadir?
Deirdre McCloskey: Eu posso usar uma analogia. Um dia já fomos crianças, tínhamos uma mãe e um pai, e isso era muito bom: é ótimo ter uma família. Mas agora somos adultos e não deveríamos ter mães e pais “governamentais”. Quando somos crianças, é bom que nossas mães e pais nos digam o que fazer, mas não acho que esse seja um papel apropriado para o governo, por uma série de razões. Por um lado, diferentemente dos nossos pais, o governo não sabe o que é realmente bom para nós. Eles estão lá longe em Brasília, e a informação que naturalmente está disponível no âmbito de uma família não está disponível em uma grande sociedade. Então, é muito melhor que você deixe isso para o que podemos chamar de “conversa” entre os comerciantes e os consumidores.
Por outro lado, como vocês no Brasil aprenderam bem nos últimos dez anos, quando há um governo grande forçando as pessoas, essa é a oportunidade para a corrupção. O que as pessoas querem dizer com “corrupção” é que um agente privado vai até o governo e paga o governo para forçar uma medida. Agora, eu sou uma liberal cristã, anglicana, e acredito que nós temos obrigações para com os pobres. A obrigação principal é deixar que os pobres tenham um trabalho digno, mas, em casos de emergência, de necessidade premente, eu deveria ser taxada para ajudá-los. Mas o imposto seria pequeno. Veja: com 10% da renda sendo taxada no Brasil, já não haveria mais pobres – você não precisa de 40% de taxação para ajudar os pobres.
Aqui no Brasil, depois de uma longa crise econômica e com uma bomba fiscal armada, nós elegemos um presidente com um passado estatista e corporativista. Apesar disso, ele diz que, junto com o economista Paulo Guedes, que promete ser um tipo de superministro, quer tornar o Brasil mais liberal. Paulo Guedes fez o Ph.D. em Chicago, onde você deu aula. Se ele foi um bom aluno, que tipo de reformas deveria buscar?
Elas são bem óbvias: permitir que as pessoas comprem onde queiram comprar e vendam onde queiram vender. Permitir que as pessoas façam as coisas que querem. Comecem os negócios que queiram e se ocupem do que queiram – e comprar onde se queira comprar inclui o comércio exterior. Essa deveria ser a regra de uma economia, porque é assim que conseguimos inovar, e é o livre comércio que melhora a qualidade dos produtos. Nesse caso, você não pode vender uma câmera ruim feita no Brasil – e o Brasil é bom em muitas coisas. Em fazer aviões pequenos, por exemplo, e açúcar. Nós pagamos, nos Estados Unidos, o dobro do preço mundial do açúcar, quando deveríamos estar comprando açúcar do Brasil. Mas nossos fazendeiros são protegidos. Então, eu espero que ele faça este tipo de coisa, como simplificar as tarifas.
Paulo Guedes passou dois anos no Chile, no começo dos anos 1980, e o Chile é visto como um exemplo por muitos liberais no Brasil...
Eu dei aula para eles, tanto para os brasileiros quanto para os chilenos. Dei aula em Chicago entre 1968 e 1980. Lecionava o grande curso de microeconomia na pós-graduação. Ensinei todos eles.
Sim, e como você avalia agora a experiência dos “Chicago Boys” no Chile, com um pouco de distanciamento histórico?
Eu não os ensinei a colocar as pessoas em estádios de futebol e atirar nelas [referência ao Estádio Nacional do Chile, onde militares chilenos prenderam, torturam e mataram opositores durante a ditadura do general Augusto Pinochet]. Os liberais chilenos ainda são assombrados pelo fato de que o liberalismo no Chile foi posto em prática à força e com base na violência. Agora, vocês têm uma oportunidade no Brasil de pô-lo em prática democraticamente. Elogio vocês por isso. É muito sábio e mostra certa maturidade política.
Mas acho que o liberalismo na economia funcionou [no Chile] – e um caso ainda mais espetacular é a China, que é uma autocracia terrível, um país terrivelmente iliberal na política, mas muito liberal em grande parte da economia, o que lhes trouxe um crescimento econômico fantástico. Um caso muito melhor é a Índia, que é uma democracia vibrante, embora um pouco maluca, e que também adotou o tipo de liberalismo que o Brasil deveria ter. Eu não conheço o Brasil tão bem, mas conheço bem a África do Sul e eles têm as mesmas políticas que o Brasil. É muito difícil começar um negócio por lá, há tarifas protegendo vários setores, e regulações no mercado de trabalho que geram – veja bem – 50% de desemprego entre os jovens negros sul-africanos. É uma catástrofe.
Você mencionou a China: economia liberal e política iliberal. Há um ano, quando conversamos, você disse que o Partido Comunista Chinês está montado em um tigre, como na velha fábula: se você cai, você é comido pelo tigre. Mas Xi Jinping, o presidente chinês, parece estar segurando bem esse tigre no laço, então eu pergunto novamente: a China inventou uma alternativa às democracias liberais?
Não. O inventor dessa versão foi Singapura. Se você chupa chicletes em Singapura, eles te batem [risos]. A imprensa não é livre como aqui no Brasil, nos Estados Unidos, na África do Sul e na Índia. Não é uma alternativa, não é algo que o Brasil deveria pensar em pôr em prática, e eu acho que esse modelo não vai durar na China. Veja, eu entendo ainda menos da China do que do Brasil, embora esteja muito empenhada em oferecer conselhos a todos vocês [risos], mas realmente acho que um país rico – o que a China vai se tornar em mais uma ou duas gerações – não vai tolerar esse tipo de controle.
Lembra a minha metáfora da mãe e do pai? Estive em uma universidade de tecnologia no meio da China uns meses atrás, e eles me mostraram o programa de reconhecimento facial que estão desenvolvendo e que vai permitir vigiar e guardar registros de todo mundo. Um país rico não vai tolerar esse tipo de coisa, e há muitos exemplos disso. A Coreia do Sul era uma ditadura, Taiwan era uma ditadura, e no fim das contas se tornaram democracias.
Mas não ainda Singapura...
Não ainda Singapura, e me pergunto por quê. Mas estão fazendo muito dinheiro em Singapura, então talvez continue assim por mais um tempo mesmo. Mas sou otimista em relação ao futuro, tanto na política quanto na economia.
Então vamos para os Estados Unidos. Os democratas, em geral, eram os entusiastas do protecionismo e do déficit fiscal, mas agora Donald Trump apoio esse tipo de política e se gaba de criar empregos com base nelas, e ainda investe em uma “guerra comercial” com a China. Ao mesmo tempo, assistimos à emergência de movimentos iliberais ao redor do mundo, como na Hungria, na Polônia, nas Filipinas. A ideia do livre comércio e do liberalismo está arrefecendo no mundo e, em particular, nos Estados Unidos?
Sim, estão sob ataque. O nacionalismo está vindo à tona, temporariamente. Eu, assim como muitas pessoas, acho que é só um movimento pendular. Donald Trump não tem convicções – seu homem [Jair Bolsonaro] é mais perigoso nisso, ele é autoritário e isso me preocupa um pouco. Mas Trump está no negócio Trump. Ponto. Ele só diz as coisas sobre as pessoas trans, essas coisas malucas sobre comércio exterior, porque a base política dele acredita nisso. Não acho que essas coisas vão ter muito efeito.
De fato, o que acho que vai acontecer nos próximos dois anos é que haverá uma recessão econômica [nos Estados Unidos], não necessariamente causada pelas políticas econômicas estúpidas de Trump, mas ele será culpado por ela. Equivocadamente até, porque o presidente não tem muito a fazer sobre as oscilações dos ciclos econômicos. Então, isso talvez marque o fim do populismo. Não me entenda mal: é ruim para o país erigir barreiras tarifárias, tentar conter a imigração, etc., mas o enredo vai se desenvolver assim, com Trump acabando culpado pelos resultados econômicos ruins.
E você acha que, se isso acontecer nos Estados Unidos, o populismo vai arrefecer no restante do mundo?
Sim, porque acho que a vitória do Trump foi uma grande inspiração para o populismo. Ele ganhou por muito pouco e, se eleição fosse hoje, ele perderia. De fato, ele perdeu as eleições para o Congresso.
Os democratas recuperaram a Câmara nas eleições de meio de mandato, mas muitos “socialistas democráticos” foram eleitos, muitos progressistas que investem na política identitária e, ao mesmo tempo, Trump está reinando no Partido Republicano. Ainda existe espaço para o liberalismo de verdade nos Estados Unidos? A esquerda não está respondendo também de forma iliberal?
Sim, está. Ambos os lados são iliberais, o socialismo e o fascismo são iliberais. Mas há muitos políticos, que se chamam mais de “pragmáticos” do que de “liberais”, que estão dispostos a ouvir. Não acho que o Partido Democrata seja estúpido o suficiente para apoiar uma figura realmente de esquerda, como Elizabeth Warren [senadora democrata reeleita por Massachusetts, às vezes cotada para concorrer à Presidência em 2020] – isso seria um erro terrível, acho que eles não o cometeriam. Eles vão apoiar um moderado e as coisas vão terminar bem. A política americana é importante para vocês. Se houver uma Terceira Guerra Mundial, vocês estarão nela [risos]. Minha solução para isso é permitir que o mundo todo vote para escolher o presidente americano [risos].
Sei que você está brincando sobre a Terceira Guerra Mundial, mas você acha que estamos de volta aos anos 1930, em termos de protecionismo e disputas comerciais, etc.?
Essa é, obviamente, a analogia assustadora, mas os anos 1930 foram muito piores do que agora, em todos os aspectos imagináveis. Um quarto da força de trabalho estava desempregada nos Estados Unidos e na Alemanha. Note: desde o início do século 19, houve cerca de 40 recessões – elas chegam mais ou menos a cada cinco anos –, mas a tendência de longo prazo foi de crescimento. Houve 6 recessões mais graves, a pior das quais a da década de 1930, mas a tendência é sempre de crescimento.
Mesmo a reação populista de agora é menos violenta do que a dos anos 1930, quando houve o regime do [Getúlio] Vargas, os fascistas na Espanha e na Hungria, os comunistas na Rússia. Havia comunistas e fascistas armados. Agora são só pessoas fazendo barulho. Trump é um exemplo disso, recuou na questão das pessoas trans no Exército e mesmo a tal “guerra comercial” ainda não aconteceu. Quando há fascistas e comunistas armados brigando nas ruas, como era o caso na década de 1930, aí você deve ficar preocupado mesmo.
Conhecendo a sua trajetória, não poderia deixar de perguntar isto. Talvez por causa das sucessivas crises econômicas pelas quais o Brasil passou, os economistas se tornaram gurus do debate público há muitas décadas, mas me parece que muitos deles só conseguem falar de gráficos e números e se esquecem de falar com a população em geral. O que você diria para as pessoas que acreditam que a economia é tudo que importa?
A propósito, essa proeminência dos economistas é muito característica dos países da América Latina, onde os economistas se tornaram muito importantes, às vezes trazendo resultados terríveis. Quem acha que só a economia importa está terrivelmente enganado. Defendo o que chamo de “Humanomia”: Economia com os humanos dentro. Isso significa, por exemplo, que temos de conceber a Economia como um campo da linguagem. Nos negócios, falar é crucial. No espírito de uma empresa, no exercício da liderança. Um quarto dos empregados em economias como o Brasil e os Estados Unidos ganha a vida na base do convencimento. Você e eu, por exemplo, trabalhamos com as palavras. Supervisores também, e há muitos deles na força de trabalho.
Não estamos mais na época da escravidão: você não pode convencer os trabalhadores a fazer as coisas pela ameaça de violência. Na verdade, você mal pode demiti-los, não por causa das leis – embora isso possa ser um problema –, mas porque você quer ensiná-los a fazer o trabalho corretamente, a crescer. Então, é necessária uma Economia mais ampla, que inclua as Humanidades. Uma economia da inovação, que aliás é melhor para os pobres, é uma economia em que a criatividade humana é plenamente empregada. Isso não é, para usar a linguagem técnica, uma questão de “função produção”. Enfim, ainda precisamos de uma Economia bem mais ampla.
Além de você, tem alguém pensando nisso?
Umas seis pessoas [risos]. Uma delas é o Vernon Smith, ganhador do Prêmio Nobel, e seu colega Bart Wilson, da Universidade Chapman. Algumas pessoas antes deles, uma das quais bastante conhecida na América Latina, o grande economista Albert Hirschman. Veja: isso não é um pedido para abandonar a matemática. Eu quero mais matemática, mais números, mas quero números inteligentes. Não sou contra os estudos quantitativos, sou contrária a uma maneira desumana de olhar o mundo, e essa é uma tentação na economia, seja na esquerda ou na direita. A economia marxista é tão bárbara e limitada quanto a economia burguesa, e ambas precisam se tornar uma economia verdadeiramente humana.
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