O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 10 de novembro de 2018

Por que sou um contrarianista? - Paulo Roberto de Almeida

Por que sou um contrarianista?


Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: minha postura básica; finalidade: caráter didático]


No contexto do imenso supermercado de ideias, que todos nós frequentamos na vida acadêmica, na vida profissional, ou em qualquer outro tipo de situação social ou de condição pessoal – e em face de todas as ofertas de ideias, ideologias, opções políticas, filosóficas, religiosas, ou quaisquer outras que são oferecidas nas estantes abertas e nas geladeiras fechadas desses estabelecimentos, em sua variedade infinita, e com produtos sempre renovados, alguns até atraentes e “novedosos” –, confesso que a postura que melhor se enquadra em minhas preferências pessoais, a que melhor combina com meu modo de ser, com a minha maneira de encarar o mundo, o ceticismo sadio me parece ser a mais adequada a meu espírito rebelde. Já explico do que se trata, mas, antes, uma outra digressão sobre minhas opções preferidas no supermercado de ideias.
Considero-me não apenas um cético – mas não doentio, como pode revelar o adjetivo sadio –, mas sobretudo um contrarianista, condição que deve ser vista não como o equivalente de algo próximo a um negativista sistemático, mas justamente como o complemento, talvez radical, de minha atitude básica em favor do ceticismo sadio. O contrarianista é aquele que, apresentado a qualquer argumento, afirmação, lição, tese, hipótese ou defesa de tal ou qual postura ou proposta, levanta o dedo e diz de imediato: “Espere um pouco, vamos examinar essa questão mais de perto”. Ou então: “Certo, mas vamos considerar o que poderia desmentir tal afirmação, vamos examinar em quais circunstâncias sua proposta pode ser válida, ou se existem elementos que a contestem, ou invalidem”. Resumindo, pode ser algo próximo da frase em inglês que diz: “Think again”. Ou seja, pense duas vezes, antes de concretizar sua proposta ou de validar a sua afirmação. Desse ponto de vista, minha postura ao considerar-me um contrarianista corrobora, de certa forma, minha opção pelo ceticismo sadio.
Os dois parágrafos acima querem simplesmente dizer que eu nunca vou “comprar” um produto, no supermercado de ideias, sem antes examinar cuidadosamente seus componentes, proceder a uma análise, mesmo rudimentar, de custo-benefício – isto é, o produto vale o que se pede por ele? –, pensar nas consequências de seu consumo ou utilização, e verificar se não existem produtos alternativos, que melhor se encaixem em minhas preferências de “consumidor”, ou de aderente a uma ideia ou ideologia que se me oferece naquela feira livre de opiniões, no supermercado de ideias e ideologias. Tem sido assim desde os tempos remotos de minha formação intelectual, e antes em face de certas angustias religiosas, que se me apresentaram na catequese da primeira comunhão, antes, portanto, de adentrar na adolescência. 
Desconfie sempre do que pretendem lhe fazer acreditar, foi essa a minha atitude precoce quando, vindo de um ambiente familiar marcado por uma adesão natural ao culto católico, fui levado a frequentar os bancos da igreja, onde eu simplesmente deveria decorar, e repetir, aquele conjunto de respostas simples, e simplistas, que deveriam nos preparar a uma santa primeira comunhão. Em resumo, primeiro me tornei um agnóstico – o que já quer dizer um cético –, depois fui sendo levado a uma postura de indiferença prática com respeito aos cultos religiosos, o que combina inteiramente com a minha definição no que tange essa questão: sou um irreligioso, ponto. 
Atenção: isso não quer dizer ateu, pois o ateu é comumente definido como aquele que não crê em Deus, ou em qualquer deus. Isso não tem nada a ver com a minha posição em face dessa questão, que para mim é uma não-questão: a ideia de deus não faz o menor sentido para mim, não tem qualquer substância lógica, qualquer fundamento empírico, e portanto não posso considerar que se trate de uma questão de escolha, acreditar ou não acreditar. Devo essa primeira atitude contrarianista em relação à religião às minhas leituras de história e de ciências sociais em geral, que eu fazia na biblioteca pública de meu bairro desde que aprendi a ler na escola primária. Monteiro Lobato foi uma constante nessa fase, em especial o livro “História do Mundo para as Crianças”, uma tradução e adaptação de obra original americana, que li várias vezes, e posso dizer que praticamente devorei e decorei o livro. Com ele, muitos outros desse autor, e quaisquer outras leituras interessantes que se me apresentassem, em especial literatura de viagens e de aventuras, como Jules Verne, Emílio Salgari, Karl May.
A postura política, ou a filosofia social, ou ainda, a ideologia social veio depois, quando eu já tinha resolvido aquela primeira questão, e foi colocada simultaneamente ao golpe militar de 1964, quando eu entrava na adolescência e buscava, portanto, me informar melhor sobre o que estava acontecendo no país. Fui naturalmente levado a me posicionar contrariamente ao regime militar, depois de uma primeira e feliz adesão ao “golpe”, que correspondia ao “alívio” que uma família de classe média baixa, como era a minha, podia sentir em face do término da grande bagunça, da ameaça inflacionista, do grevismo agressivo, que marcaram os anos turbulentos do governo João Goulart. Digo que fui “naturalmente levado” porque quase toda a literatura de cunho político a que se tinha acesso naqueles primeiros anos do regime militar, nos estabelecimentos de ensino em que convivi, ou tinha contatos, era predominantemente de esquerda, a despeito de um esforço sincero do governo, mas canhestro e mal apresentado, de convencer os brasileiros que eles tinham sido “salvos do comunismo”. 
Lembro-me, por exemplo de uma edição especial da revista americana, fartamente distribuída naqueles anos, Seleções do Readers’ Digest, com a tradução em português de um longo artigo que se chamava algo assim: “A nação que se salvou a si mesma” (ou seja, os americanos não tinham nada a ver com o golpe). Os materiais da esquerda, por sua vez, asseguravam que “o golpe começou em Washington”. Mesmo jornalistas que, ao início se posicionaram a favor da intervenção militar, logo se colocaram em oposição ao regime, sem que eu percebesse imediatamente as razões. Também me lembro de ter lido, logo em 1965, uma seleção de artigos de Carlos Heitor Cony, “O Ato e o Fato”, que já traduzia essa contrariedade com os caminhos do regime militar. Isso já era contemporâneo às minhas primeiras leituras de literatura marxista.
Pois bem, mesmo lendo já intensamente o material de esquerda disponível, de nível universitário (a que tive acesso precocemente, talvez dois ou três anos antes de ingressar no ensino de terceiro ciclo), eu nunca deixei de acompanhar o “outro lado”, como se poderia dizer. Em outros termos, a despeito de ter sido conquistado, também precocemente, por uma posição de esquerda, e de me ter familiarizado muito cedo toda a literatura marxista, eu nunca deixe de ler todas as críticas disponíveis ao marxismo, que também entravam em minha lista de leituras. Ou seja, ao lado de Marx e Lênin, eu lia Raymond Aron e Roberto Campos, o que me fez afirmar, desde muito cedo, que eu era um “marxista não religioso”, ou seja, não aderente a um culto exclusivo.
Assim foi sendo construída minha formação intelectual, impregnada desde cedo de marxismo, ou de socialismo, e no entanto aberta à leitura dos críticos inteligentes de “direita”, como podiam ser considerados os dois acima citados. No plano prático, sendo um aderente a certas ideias, mas não um “true believer”, nunca considerei me filiar a qualquer partido político de qualquer tendência que fosse, ainda que partilhasse de modo amplo das posições da esquerda, mas de uma esquerda não dogmática, não religiosa, como já afirmei. Sendo de esquerda, como estava convencido que era, sendo socialista pelo lado da ideologia econômica, nunca apreciei o sistema soviético, e menos ainda o ridículo das posições maoístas, que me pareciam justamente beirar um tipo de fanatismo religioso. Por leituras também precoces de Rosa Luxemburgo – uma crítica de esquerda do bolchevismo –, sempre tive objeção ao sistema opressivo construído pelos bolcheviques e mais rejeição ainda tinha às posturas ridículas dos maoístas brasileiros, que me pareciam uma seita tresloucada. No auge de minha adesão às posturas de esquerda, no máximo fui um defensor da Revolução cubana, como muitos jovens de esquerda de minha época, mas desde o final dos anos 1960 eu estava acompanhando o que se passava na ilha, a repressão aos intelectuais e a condenação praticamente stalinista de “dissidentes” do PCC, como a fração Escalante. Na verdade, eu também já tinha lido a biografia de Stalin, por Isaac Deutscher, um trotsquista, e não podia, obviamente, aderir a um psicopata exemplar, ainda que comunista. 
Fui portanto aperfeiçoando a minha cultura política e econômica, com base num conjunto de leituras que eu chamaria de ecléticas, ou seja, pertencendo a todas as correntes de opinião e a todas as vertentes da teoria e do universo doutrinal das ideias políticas. Mais importante ainda: fui, desde muito cedo, um leitor constante de jornais, sobretudo do reacionário e burguês O Estado de S. Paulo, extremamente interessante, ainda que de direita. Não perdia um suplemento cultural nos fins de semana, e lia todos os grandes artigos de opinião e ensaios eruditos, traduzidos, que eram publicados nas edições de domingo. E mais importante ainda: sempre fui um observador atento da realidade, mais do que um aderente ingênuo ao que lia nas páginas dos livros ou nas folhas de jornais. Viajante precoce no Brasil e no Cone Sul, também pude ver o Brasil e o mundo sob outras perspectivas que não as exclusivamente nacionais, e também esforçava-me desde cedo para ler em outras línguas, com dicionário do lado. 
Quando saí pela primeira vez do Brasil, ainda jovem estudante universitário, abandonando no segundo ano o curso de Ciências Sociais da famosa FFLCH da USP, fui direto ao socialismo – na então República da Tchecoslováquia –, decidido a continuar ali meus estudos. Começou ali mesmo a revisão também precoce de minhas crenças, se existiam, nas virtudes do socialismo: a experiência prática de um sistema fatalmente erigido sobre a utopia é o melhor antídoto que se possa ter contra qualquer adesão ingênua a credos a partir apenas da leitura dos profetas do culto. Abandonei o socialismo em menos de três meses, e me instalei por quase sete anos no capitalismo da Europa ocidental, para trabalhar e dar prosseguimento a meus estudos de ciências sociais. A primeira coisa que fiz quando retomei esses estudos na universidade de Bruxelas foi elaborar uma lista imensa de leituras, o que me levou a permanecer a maior parte do tempo na Biblioteca do Instituto de Sociologia. Foram anos e anos de contato direto com as estantes internas, graças à boa vontade das bibliotecárias. 
Mantive, durante muitos anos, cadernos quadriculados para anotações de leituras, cada um dedicado a um campo do conhecimento: sociologia, antropologia, história, Brasil, e naturalmente marxismo. Ainda os conservo, embora minhas notas tenham sido retomadas no computador, desde que o equipamento esteve disponível, mas isso foi bem depois de terminar a tese de doutorado: esta foi feita inteiramente na máquina de escrever, uma elétrica, que me custou quase tanto quanto um carro usado.
Nunca deixei de viajar, por todos os capitalismos reais e socialismos surreais, o que é uma boa maneira de aprender, bem como de desmentir, e recusar, afirmações desprovidas de qualquer fundamentação empírica, o que podia ocorrer de ambos os lados das ideologias então em disputa: as democracias burguesas e o capitalismo, de um lado, as repúblicas populares de sistemas socialistas, de outro. Não é preciso dizer o que resultou dessa confrontação direta, na teoria e na prática, entre os dois sistemas de crenças, ou de realidades. Depois de ter sido um socialista estatizante, tornei-me um socialista light, ou seja, reformista e alinhado com a socialdemocracia, até converter-me totalmente aos regimes de democracia de mercado e de livre economia. Mas isso não apenas teoricamente, o que também seria válido, mas basicamente em função de uma vivência direta, um conhecimento íntimo sobre como não funcionam os sistemas socialistas, e como podem ser obstrutores da criação de renda e riqueza os sistemas dominados pelo Estado.
O que explica o atraso do Brasil, o que está na origem dos nossos problemas e o que nos impede de nos tornarmos uma nação rica, uma economia avançada e uma sociedade próspera e aberta? Acho que nem preciso responder. O Brasil acaba de ser rebaixado, no mais recente relatório sobre as liberdades econômicas no mundo, à quarta categoria de países, aqueles que simplesmente não são livres, depois de ter estacionado durante anos na terceira categoria, os parcialmente não livres, o que é uma vergonha. 
Por isso mesmo sou um contrarianista a tudo o que vejo em nosso país, e prefiro manter o meu ceticismo sadio a propósito de todas as políticas públicas implementadas em nosso país desde sempre, atualmente, e possivelmente no futuro também. O Brasil é, das supostas democracias de mercado o país mais “socialista” que existe, não tanto por um regime econômico estritamente definido, mas pelo peso do Estado, da burocracia, do corporativismo, do dirigismo, do intervencionismo, do protecionismo, das formas mais disformes de corporativismo, nepotismo, prebendalismo, fisiologismo, e vários outros ismos que, inevitavelmente, alimentam nossa frondosa e ativa corrupção, em todas as esferas da vida pública. 
Isso vai mudar um dia? Possivelmente, mas não antes de uma revolução mental que nos retira dessa humilhante crença nas virtudes supostamente distributivistas do Estado, e façam do Brasil um país simplesmente simpático à iniciativa privada, que nos remeta a um regime de amplas liberdades, em todas as esferas da vida pública, justamente. Vai ser difícil, reconheço, pois as mentalidades dos formadores de opinião – acadêmicos, jornalistas, “intelequituais” em geral – estão amplamente comprometidas com uma visão do mundo dominada pela regulação estatal, pela “justiça social”, pelo igualitarismo ingênuo, pelo anti-capitalismo visceral. É duro, mas é forço reconhecer que é assim.
Vou continuar defendendo meu ceticismo sadio, e sendo um contrarianista em todas as áreas de atividades que me forem concedidas atuar. Acho mais racional...


Paulo Roberto de Almeida


Na estrada, entre Porto Alegre e Santa Maria, RS, 9 de novembro de 2018

Nenhum comentário: