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domingo, 18 de novembro de 2018

Cartas de Prestes e de Olga Benario - Jose Casado (O Globo)

Ver as fotos, de 1 a 6 (suprimidas nesta postagem), no site do jornal: 



Um romance no cárcere: cartas mostram amor entre Olga Benario e Luiz Carlos Prestes


Correspondência do casal de revolucionários comunistas se destaca entre as 330 cartas do líder do PCB achadas no lixo

por José Casado
O Globo, 18/11/2018 4:30 / Atualizado 18/11/2018 7:28

Em cartas achadas no lixo de Copacabana, a paixão e o drama do casal Olga Benario e Luís Carlos Prestes depois da derrota na rebelião de 1935, promovida pelo Partido Comunista contra o governo Getulio Vargas para instaurar uma ditadura do proletariado no Brasil. Documentos históricos vão a leilão nesta quarta-feira.  
1
Com amor, Olga
Olga Benário e Luís Carlos Prestes- Reproduções
A letra saiu firme na finíssima folha de papel: “Rio, 4.IV.36. Ao Snr. Luís Carlos Prestes”.
Naquele sábado, 4 de abril de 1936, contava um mês desde a prisão no Méier, Zona Norte do Rio, e a separação do marido na sede da polícia. Amputou o tom formal num espaço branco e debulhou a solidão em francês fluido, como quem sussurra a ouvido íntimo:
“Meu querido,
espero que essas linhas cheguem nas suas mãos.
Eu queria muito te dizer uma coisa que diz respeito somente a nós dois. Mas diante das circunstâncias, não me resta [nada mais] que essa possibilidade.
Querido, nós teremos um filho. (Eu sinto todos os sinais que existem nesse caso. Vômitos etc.) Esse acontecimento me faz muito feliz, ainda que eu me dê conta das dificuldades que terei de atravessar. Enfim, nós teremos uma expressão viva de todo o bom e doce que existe entre nós. Eu imagino que você esteja inquieto sobre minha situação.”
‘Querido, como eu queria saber de você, se você está vivo, com saúde, eu não sei de nada. Estou muito, muito, inquieta e te peço para me dar uma resposta a esta carta’
- Olga BenarioCarta para Luís Carlos Prestes escrita na prisão da Rua Frei Caneca
Acrescentou: “Eu me encontro sozinha numa cela sem livros e eu não saio nunca de minha cela. Para me impedir de ver o céu, colocaram um grande pedaço de tecido na frente. Então eu passo os dias olhando as paredes e esse pedaço de tecido.
Tudo isso não é agradável, mas eu te asseguro que terei força suficiente para resistir.
Querido, como eu queria saber de você, se você está vivo, com saúde, eu não sei de nada. Estou muito, muito, inquieta e te peço para me dar uma resposta a esta carta.”
Despediu-se: “Você sabe que todo o meu coração e meus pensamentos estão sempre perto de você.
Muitos beijos,
Sua.”
Papel esgotado, espremeu a letra no canto esquerdo para um P.S.: “esta carta é um pouco (ininteligível), mas você compreende...!
Responda-me!
Maria Prestes,
Casa de Detenção”
2
Para fugir de Hitler, Olga foi Eva, Frieda e Maria

Carta enviada por Olga da prisão a Prestes- Agência O Globo

Era Maria, já havia sido Eva, Frieda e outras tantas em Berlim, Moscou e no Rio, mas ainda evitava assumir a identidade real, Olga, e a origem do sobrenome Benario, judaico-alemão. Provavelmente por temer a deportação para a Alemanha de Adolf Hitler.
Estava no pavilhão prisional da Rua Frei Caneca, Centro. Dois quilômetros de distância a separavam do marido, enjaulado, isolado e incomunicável no Quartel da Polícia Especial, no Morro de Santo Antônio.
Conheceram-se sob o inverno moscovita às vésperas do Natal de 1934. Disfarçados de casal milionário, embarcaram para o Rio com a missão de deflagrar a revolução no Brasil, abrindo caminho para uma ditadura do proletariado na América do Sul.
Agente premiada, aos 27 anos foi escolhida para proteger o cultuado Prestes, dez anos mais velho, chefe do Partido Comunista do Brasil (PCB) e integrante da mesa central da Terceira Internacional (Comintern), fundada na década anterior por Vladimir Lenin.
Apaixonaram-se e casaram-se durante a viagem de 12 semanas por 18 países para dissimular o destino.
Separados e atrás das grades um ano depois, eram apenas sobreviventes de um monumental fiasco político, o levante comunista de novembro de 1935 em Natal, no Recife e no Rio — usado pelo governo Getulio Vargas para impor o estado de sítio e ampliar a repressão aos adversários.
Restavam-lhes lembranças do romance em liberdade e incertezas de encarcerados num mundo à beira da guerra. Verteram angústias em monólogos escritos, alguns jamais recebidos como foi o caso da folha manuscrita naquele sábado de abril com a notícia da gravidez (o pai soube da gestação no trimestre seguinte e só viu a filha, Anita Leocadia, com 9 anos.)
3
Catador levou achado à Praça XV

O passaporte de Prestes e de sua esposa Olga, com nomes fictícios- Reprodução
Essa carta se destaca entre outras 330 enviadas a Prestes por Olga, família e amigos. Foram achadas, aparentemente, numa caixa jogada à beira de rua em Copacabana. Vão a leilão na quarta-feira.
Aos sábados na praça, antigo ponto de reunião de burocratas, é possível encontrar desde uma nota de mil réis até a primeira edição do GLOBO, de 29 de julho 1925, com manchete sobre o delírio do empresário americano Henry Ford com seringueiras na Amazônia: “Voltam-se as vistas para a nossa borracha!”. Naquele inverno, o capitão Prestes comandava uma coluna rebelde contra a Velha República. Vararam 25 mil quilômetros de chão, a pé e a cavalo, por 11 estados. Fracassaram.
Na praça, um comércio multicolorido de velharias se espraia ao redor do Paço Imperial, onde despachavam D. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves, e os Pedro, imperadores brasileiros.
Nesse microcosmo capitalista há numa divisão informal de mercado. Catadores ou burros sem rabo, por causa das carroças de tração humana, são os garimpeiros urbanos. Abastecem 366 barraqueiros e incontáveis “sem-terra”, os sem licença municipal que deitam produtos sobre o calçamento.
Alex Seixas, um “sem-terra”, narra a compra das cartas enviadas a Prestes de um burro sem rabo, cinco anos atrás, em Copacabana. Sob um chapéu de pano evocando o modelo de Sherlock Holmes, um deerstalker, Seixas diz ter pago os R$ 500 pedidos, mas não lembra o nome. Leu uma carta, sua mulher olhou outras, mas nada entenderam: “Não sabia o nome de quem escreveu. Vendi quando precisei de dinheiro.”
Num amanhecer de sábado encontrou Carlos Otávio Gouvêa Faria, conhecido como Cacá, montando barraca na Praça Quinze. Espalhou as cartas no chão, indicando selos antigos nos envelopes carimbados pela censura de guerra de Brasil, México, EUA, França e Alemanha.
4
'Garimpeiro urbano' levou achado a leilão

Ccarta de Olga Benário para Prestes, cuja transcrição está no livro de Anita Prestes- Márcia Foletto / Agência O Globo

Mais experiente e letrado, Cacá percebeu que era correspondência de Prestes. Comprou a papelada — não revela quanto pagou — e, à noite, em casa, pesquisou para compreender o acervo.
Ele vive disso há mais de 30 anos, com êxito. Já comprou de um burro sem rabo um lote de ações ao portador da Petrobras e da Gerdau. Levou o “lixo” ao gerente do seu banco e saiu com mais de R$ 200 mil no bolso, gastos na residência com piscina em Nova Iguaçu.
Em outra bamburrada de garimpo urbano adquiriu o porte de arma de Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara. Em agosto de 1954 ele foi vítima de um atentado em Copacabana, referência do início da derrocada do seu adversário Getulio Vargas. Lacerda reagiu a tiros. A autorização para uma Smith & Wesson .38 foi vendida a um colecionador.
Cacá submeteu as cartas enviadas a Prestes ao crivo de Soraia Cals, leiloeira de arte. Decidiram vender em lote único. “Seria uma ‘violência’ repartir o acervo” — ela argumenta. “Melhor perder dinheiro e manter o conjunto, com apenas um dono.”
Talvez um dia essa correspondência sobre amor em tempo de guerra seja exposta ao público.
5
Presa com Barão de Itararé e Graciliano Ramos

Fachada do antigo presídio da Rua Frei Caneca, onde Olga ficou presa. Complexo foi demolido em 2010- Arquivo O Globo / Agência O Globo
O leilão de um acervo de cartas, quarta-feira no Rio, abre novo capítulo na história de um romance que permeou decisões sobre o confronto armado do Partido Comunista do Brasil (PCB) com o governo Getulio Vargas, em 1935, para instaurar no país uma ditadura do proletariado.
A correspondência narra, pela lente intimista, as sequelas nas vidas de Luís Carlos Prestes e de sua mulher, a alemã Olga Benario. Em apenas 16 meses se apaixonaram, casaram-se, foram derrotados, presos e separados.
Eram ativistas do comunismo no Brasil de 83 anos atrás, dominado pelo avanço das ideias antiliberais, impulsionadas pelos regimes de Adolf Hitler, na Alemanha, e de Benito Mussolini, na Itália.
A sedução fascista arrebatava corações e mentes nas ruas cariocas, com a alegoria dos desfiles de militantes uniformizados da maior organização de massa até então vista na República, o Partido Integralista.
O integralismo ofertava um elixir político composto por um “Estado forte”, avesso aos “erros” do capitalismo e do comunismo, nacionalista e conciliado na doutrina social do cristianismo. Tudo sob o estandarte “Deus, na Pátria e na Família” — lema que o humorista Barão de Itararé converteu para “Adeus, Pátria e Família!”. Na pele do gaúcho Aparicio Torelly, o Barão foi vizinho de Olga Benario na prisão da Rua Frei Caneca.
Branca e serena, na descrição do escritor Graciliano Ramos, também preso, ela chamava a atenção aos 28 anos pela altura, grandes olhos azuis e porte atlético.
O sotaque pesado transparecia nos interrogatórios, conta o biógrafo Fernando Morais. Carregava nos erres: “Eu sou a mulher de Prestes, que é brasileiro. Portanto, sou brasileira.”
6
Morta no campo de concentração

Documento assinado pelo diretor Gestapo, polícia política de Hitler, sobre Olga Benário- Agência O Globo

Grávida de sete meses, foi deportada por Vargas para a Alemanha de Hitler em setembro de 1936, com apoio da Corte Suprema (atual STF). Alemã, judia e comunista, Olga ficou numa prisão-hospital em Berlim até o nascimento da filha, Anita Leocadia — resgatada da vida entre grades aos 14 meses após uma campanha da família Prestes na Europa e nos Estados Unidos.
Passou ao campo de concentração de Ravensbrück, enquanto no Rio o marido era condenado a 16 anos de prisão (até a anistia cumpriu nove anos, sete dos quais na “solitária”). Escreveu-lhe sobre a solidão no inverno de 1940: “Eu imagino que a sua não seja assim pra você, que vive no mundo dos seus pensamentos (...) Fico imaginando como você iria se divertir com eu te contando os meus sonhos.”
Quando veio a primavera, desabafou: “Vocês não imaginam a gratidão que se tem pelo sol.” Naquele abril, Hitler invadia a Dinamarca e a Noruega, e os soviéticos massacravam 22 mil poloneses. Mês seguinte alegrou-se com uma carta do marido: “Como eu poderia descrever pelo menos uma fração dos sentimentos e pensamentos que suas lindas palavras despertaram em mim.”
Em Ravensbrück se tornou “blockova”, a vigilante do bloco judeu nomeada pelos nazistas, relata a escritora Sara Helm. “Devo admitir que parei de esperar milagres” — contou em carta a Prestes. “Nunca devemos culpar o destino, pois afinal, apesar das dificuldades, nos provou que somos feitos um pro outro e temos a Anita.”
Resignava-se no final de 1941: “Temos que continuar tendo paciência”. Àquela altura, o Nordeste, estopim do levante comunista com que ela e Prestes sonharam, tornou-se base dos EUA para ataque aos nazistas na África.
Pouco antes do Natal, a “blockova” Olga deixou uma cigana de 3 anos, doente, dormir além do permitido. O SS Johann Kantschuster viu, entrou na ala 11 de Ravensbrück, agarrou a criança pelos cabelos, “levou-a para o lago e a afogou” — contou Alice Bernstein, sobrevivente, à escritora Helm.
Depois de quase dois mil dias prisioneira, foi executada em abril de 1942. Prestes só soube sete anos mais tarde, ao sair da prisão anistiado. Perdoou Getulio Vargas, publicamente.

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