, que se intitula a revista mais completa do Brasil (deve ser verdade, senão eles não diriam isso), publicou meu artigo sobre um novo congresso de Viena, com o subtítulo e uma bela ilustração do próprio, ou seja, o congresso de 1815.
El mundo fue y será una porquería
ya lo se.
En el quinientos seis
y en el dos mil también.
(...)
Pero que el siglo veinte
es un despliegue
de maldad insolente,
ya no hay quien lo niegue.
Tango Cambalache, letra de Enrique Santos Discépolo (1934)
Um dos mais famosos tangos da história musical da Argentina foi
escrito em plena “década infame”, quando tem início a decadência daquele
país, agravada depois pelo peronismo, que aliás liberou a música, antes
proibida, por sua letra ser justamente percebida como uma crítica feroz
à situação anterior (para a letra completa, de ácido teor, ver o link:
http://www.musica.com/letras.asp?letra=974519). Em todo caso, o que
Discépolo pensava do século 20, então recém ingressado em sua quarta
década, parece aplicar-se igualmente, e talvez até com mais razão, ao
século 21, recém entrado em sua segunda década: até aqui, foi um
desabrochar de maldades insolentes, ninguém pode negar; em certos países
“resulta que es lo mismo, ser derecho que traidor”. Onde foi parar
aquela nova ordem mundial, defendida ou prometida por Bush pai, em 1991?
Estaríamos, por acaso, necessitados, tanto quanto a Europa do final
das guerras napoleônicas, de uma réplica do congresso de Viena, apto a
reorganizar, num grande concerto de nações, as bases de uma nova ordem
mundial? Seria isso possível? Essa pergunta me veio à mente ao ler o
mais recente livro de Henry Kissinger,
World Order (New York:
Penguin Press, 2014), que não coloca exatamente a questão, mas a engloba
numa grande reflexão histórica, que começa, na verdade, pelo
reordenamento da paz de Westfália. Esta, como ele indica acertadamente,
não foi uma única conferência, mas um complexo processo negociador, com
acordos separados em duas diferentes cidades.
Todos os estudiosos das relações internacionais e da história
diplomática contemporânea sabem que Mister Kissinger estaria em
excelente companhia, e ficaria extremamente satisfeito, se pudesse ser
tele-transportado numa máquina do tempo para a Viena de 1815, para poder
assessorar, ao mesmo tempo, Metternich e Castlereagh. Até mesmo
Talleyrand, ministro de Luís XVIII, vindo do Ancien régime
aristocrático, convertido em aliado da revolução, ministro do Império,
sobrevivente na Restauração e finalmente servidor da
monarchie de Juillet,
poderia receber seus conselhos de longevo servidor de vários governos,
tanto quanto o francês. Talvez seja maldade deste articulista, mas tendo
lido a admiração sincera com que Kissinger completou sua tese de
doutorado em torno dos dois primeiros estadistas, depois publicada como
A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-22
(1954), dá para imaginar o entusiasmo com o qual ele se movimentaria
apressadamente atrás de cada uma das três delegações, para assoprar, aos
ouvidos dos seus chefes respectivos, suas sugestões sobre como
organizar a melhor balança de poder possível, suscetível de contemplar
os interesses das grandes potências daquela época, e apenas os delas.
O mesmo sentido profundo da História transparece nesse seu último
livro (no sentido cronológico, apenas), intitulado simplesmente
World Order,
sem qualquer subtítulo. Poucos autores na categoria das ciências
humanas ousariam desafiar as normas editoriais americanas e publicar um
volume de 400 páginas, com apenas duas palavras no seu título, o que
aliás já tinha sido o caso de
On China (2011), seu livro sobre o
grande contendor do novo jogo geopolítico mundial. Os dois últimos
livros, e o primeiro, nos trazem o melhor Kissinger, o pensador, o
historiador, mais do que o estrategista do equilíbrio do terror nuclear,
o memorialista dos anos de Casa Branca, ou o consultor caríssimo de
governos estrangeiros, o homem que ganhou um prêmio Nobel por razões
imerecidas, e que provavelmente merece mais distinções acadêmicas por
seu trabalho intelectual do que propriamente pelas suas realizações a
serviço de governos.
Kissinger parece o contrário de um Winston Churchill, que ganhou um
prêmio Nobel por seu trabalho como historiador (tarefa que ele
desempenhou em seu próprio benefício, obviamente), quando merecia o
prêmio por ter salvo a civilização ocidental do assalto horrífico dos
bárbaros nazifascistas, e ousado resistir, ao custo de “sangue, suor e
lágrimas”, quando muitos recomendavam um pacto com o diabo em pessoa
(isto é, Hitler). Kissinger talvez merecesse um prêmio literário por sua
obra acadêmica, em especial os três livros citados, e mais
Diplomacy
(1994), uma vez que ele passou o seu tempo de estrategista tentando
justamente fazer pactos com os diabos (Brejnev, Mao), como fazem, por
sinal, os estadistas das grandes potências quando a ocasião lhes é dada.
Talvez nem o júri do Nobel literário concordasse com esse tipo de
galardão, uma vez que mesmo seus livros de caráter histórico estão
igualmente contaminados por certa visão do mundo – do tipo “eu sei, eu
fiz, eu estava lá” – que tende a impregnar as suas sugestões de uma “boa
ordem mundial” como a única possível nas circunstâncias dadas (este é
um viés a que nem mesmo Churchill escapou, seja em sua história da
Segunda Guerra, ou na sua precedente história dos povos de língua
inglesa).
O problema com Mister Kissinger é que ele teria gostado de um mundo
mais “vienense” do que o que temos atualmente, já que se trata de uma
“ordem mundial” que não é propriamente uma ordem, nem é universal, como
ele mesmo reconhece no livro homônimo. O mundo parece se estilhaçar, não
em novas conflagrações globais, mas em rivalidades hegemônicas, em
proxy wars,
com vilões proliferadores protegidos por uma ou outra das grandes
potências, com desafios vindos de atores não estatais, alguns até se
pretendendo califados expansionistas, ou mesmo com bravatas
anti-imperialistas de líderes de pacotilha, num estilo parecido ao de
certos fascistas do entre-guerras.
Tudo isso é real, e já está acontecendo, um pouco em vários cantos do
planeta, inclusive numa Europa que já reproduziu, em pleno século 20,
uma segunda “guerra de trinta anos”, uma repetição, em larga escala, dos
terríveis conflitos que deram a partida, no século 17, à ordem
westfaliana que ainda constitui o horizonte insuperável de nossa época, e
pela qual tem início, justamente,
World Order. Na
impossibilidade de se chegar a novos acordos westfalianos – que, de
resto, já estão incorporados na Carta da ONU – talvez Kissinger sonhe
com novo Congresso de Viena, capaz de estabelecer as bases da nova
“ordem mundial” que ele deve intimamente desejar. Talvez ele até se
dispusesse a assessorar um ou outro soberano dos novos tempos, com
conselhos sempre sensatos sobre como melhor organizar uma balança de
poder entre as grandes potências, como fizeram os estadistas de dois
séculos atrás.
Seria isto possível? Levaria um congresso do mesmo estilo a
resultados efetivos e duráveis? Provavelmente não, pois faltaria a tal
arranjo fundacional aquilo que existiu em cada reorganização anterior da
ordem mundial: uma contestação radical da ordem anterior, com uma
alteração fundamental das relações de força entre as grandes potências, e
um reordenamento baseado no novo equilíbrio de poder. Westfália veio
depois da “guerra de trinta anos”; Viena veio após as guerras
napoleônicas; Versalhes e a Liga das Nações sucederam à Grande Guerra;
Ialta e Potsdam, em 1945, prepararam São Francisco, que foi quase uma
formalidade, depois que certas questões já estavam acertadas em Teerã
(1943), em Dumbarton Oaks (1944) e naqueles dois encontros decisivos.
Mas não é apenas pela falta de uma grande conflagração global que um
novo congresso de Viena – que obviamente não seria em Viena – se revela
impossível em nossos dias. O que falta, na verdade, seria uma espécie de
entendimento prévio sobre o que discutir e o que se buscar. “Na
construção de uma ordem mundial”, diz Kissinger no capítulo final de seu
livro, “uma questão chave refere-se inevitavelmente à substância de
seus princípios unificadores”, mas, acrescenta ele imediatamente após,
“nos quais reside uma distinção fundamental entre as abordagens
ocidentais e não ocidentais a essa ordem” (p. 363). A distinção não é
obviamente geográfica tão simplesmente, mas fundamentalmente política e
de valores.
A dificuldade, portanto, não resulta de um simples problema de
agenda, ou seja, da falta de uma ordem do dia consensual, uma lista de
questões sobre a base das quais discutir um novo arranjo global num
formato similar ou equivalente àquele de 1815. Mister Kissinger acredita
que a carência de uma ordem mundial para o século 21 pode ser explicada
por aspectos, ou dimensões, que diferem da ordem precedente. Primeiro, a
natureza do estado, em si – a unidade básica da vida internacional –
que tem sido submetida à uma variedade de pressões desagregadoras (seja
por falta de uma soberania efetiva, como no caso da UE, seja pela sua
contestação por novos “senhores da guerra”), quando não se cai na falta
de governança
tout court, em estados falidos, ou territórios
inteiros sem governo. Depois, uma descoordenação entre as organizações
econômicas e políticas internacionais, as primeiras acompanhando o
processo de globalização, mas as segundas ainda baseadas no
estado-nação. Finalmente, a falta de um mecanismo de consulta e
cooperação entre as grandes potências “on the most consequential issues”
(p. 370). Aqui já estamos em face de cenas explícitas de
kissingerianismo geopolítico: todas as instâncias existentes – CSNU,
Otan, Apec, G-7 ou G-8, G-20 – lhe parecem carentes de maior foco, pois
os chefes de governo ali presentes estão mais preocupados com o seu
público interno, e com o comunicado final, do que com problemas
concretos.
Pode ser isso, ou também pode ser que o mundo de Viena já não tem
mais condições de existir: ele era a expressão de um arranjo westfaliano
entre potências europeias, ou seja cristãs, numa época em que a Europa
dominava o mundo, o que ela fez durante praticamente cinco séculos, o
último junto com os Estados Unidos, mas já contestados pelas novas
potências emergentes. A própria Alemanha tinha desafiado as bases da
ordem europeia e internacional no arranjo precedente, por ter chegado
tarde, bem depois da Prússia, na mesa de negociações e nas conquistas
imperiais subsequentes (ainda que ela se tenha talhado alguns pedaços na
Ásia e na África). Foi justamente o seu desejo de redistribuir as
cartas do jogo que provocou uma nova guerra de trinta anos e a derrocada
definitiva da hegemonia europeia sobre os assuntos do mundo.
A China provavelmente não tem nenhuma pretensão de ser uma nova
Alemanha nas condições do século 21, nem a Rússia tem capacidade para
aspirar a tal papel, muito embora ela ainda talvez gostasse de poder
determinar o que podem e, sobretudo, o que não podem fazer as antigas
satrapias do império soviético. O problema, na verdade, não é só de
ordem geopolítica, mas também de valores e de concepções do mundo. Não
se pode ser um Metternich – como talvez gostasse Kissinger – se não se
tem do outro lado, como interlocutores afinados nesse tipo de jogo,
estadistas como Castlereagh ou mesmo Talleyrand. Aparentemente, nem Xi
Jin-ping nem Putin se dispõem a amoldar-se em papeis equivalentes aos de
Hardenberg ou de Nesselrode, os representantes respectivos da Prússia e
da Rússia imperiais em Viena. O que se buscava, na capital do Império
dos Habsburgos, era um arranjo europeu, no máximo alcançando a periferia
mais próxima, a do Império Otomano e suas dependências balcânicas. Os
arranjos que se fizeram com os impérios ibéricos e suas possessões
coloniais o foram por causa da herança napoleônica, não porque as
grandes potências estivessem tentando traçar um esquema equivalente a
Tordesilhas, ou seja, uma primeira divisão do mundo que só seria tentada
novamente em Ialta, quase cinco séculos mais tarde.
Kissinger talvez gostasse que Estados Unidos e China chegassem a um
acordo básico sobre as relações recíprocas, e foi em grande medida em
vista desse objetivo que ele escreveu
On China, uma obra
particularmente compreensiva e leniente para com as lideranças chinesas.
Da Guerra Fria política dos tempos de Stalin à nova Guerra Fria
econômica dos nossos dias, o mundo mudou perceptivelmente em termos de
atores e de interesses nacionais projetados internacionalmente.
Viena-1815 nunca foi um encontro filosófico entre potências cristãs
interessadas primariamente no bem estar de seus respectivos povos: o que
estava em jogo ali era apenas o equilíbrio de poderes para evitar uma
nova conflagração global. Westfália se revelou mais durável porque
tratou basicamente de procedimentos, não de substância, como ele diz em
outra parte do livro.
Esse objetivo, hoje em dia, está na prática assegurado pela detenção
dos arsenais atômicos, o que restringe a subida aos extremos por parte
de qualquer uma das grandes potências nucleares. Mas uma Viena do século
21 não poderia mais eludir os avanços registrados em matéria de direito
internacional, de democracia e de direitos humanos. Tais dimensões,
aparentemente, só seriam hoje defendidos pelos Estados Unidos, e se
dependesse de Mister Kissinger talvez nem isso. Tais critérios
certamente não fariam parte da agenda das outras grandes potências. Ah,
sim, ainda tem a Europa, se ela é verdadeiramente um membro dessa
pequena tribo, na vertente democrática; Kissinger, nos seus velhos
tempos de guardião da paz no mundo, se perguntava: “se eu quiser falar
com a Europa, eu telefono para quem?” Parece que o problema continua o
mesmo.
O que dizer, então, das chamadas “potências emergentes”? A julgar
pelas tomadas de posição de algumas delas, em suas próprias esferas
regionais, talvez não se possa contar tampouco com elas para algum
arranjo
nouvelle manière, seja no formato Viena 2.0, seja uma
reforma do sistema onusiano, esse dinossauro que também ostenta um
cérebro totalmente desproporcional em relação ao seu imenso corpo. Em
resumo, vamos esquecer essa história de um novo arranjo diplomático para
a tal “ordem mundial do século 21”, e nos concentrarmos em tarefas mais
prosaicas de administração da governança econômica e da defesa dos
direitos humanos e da democracia onde isso for possível. O mundo ainda é
bem mais hobbesiano do que grociano, e certos dirigentes atuais estão
bem mais para Átila ou Gengis-Khan do que para Locke ou Montesquieu.
O progresso pode até ser uma fatalidade, como queria Mário de
Andrade, alguns anos antes do milonguero argentino desconfiar de
qualquer avanço, mas talvez seja porque a história parece andar a um
ritmo similar ao dos carros de bois de antigamente. Quando alguns mais
apressadinhos tentaram forçar a passagem em marcha acelerada, não
deixaram de ocorrer acidentes de percurso, como descobriu, para sua
infelicidade, o último xá da Pérsia. O próprio Kissinger confessa, ao
final do seu livro (p. 374), que perdeu sua esperança de juventude de
descobrir o “sentido da História”. Provavelmente, ele não existe, pelo
menos não no sentido hegeliano-marxista. Quanto ao seu ritmo, talvez
caiba se contentar com o de certas partituras:
vivace, ma non troppo! Em todo caso, poderíamos repetir com Discépolo: “Todo es igual, nada es mejor…”.
Recomendação de leitura:
Peter W. Dickson:
Kissinger and the Meaning of History
(Cambridge University Press, 1978). [Nota: o autor é um acadêmico
formado em filosofia que trabalhou para a CIA, o que revela quão
eclética é essa agência de inteligência.]