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domingo, 22 de março de 2015

Imperfeicoes de mercado e "perfeicoes" de governos: o que vc prefere? - Paulo Roberto de Almeida

A "revista mais completa do Brasil", Dom Total, publicou meu artigo do mês passado em que eu discuto essa questão dos mercados imperfeitos.
Para mim, eles são totalmente perfeitos: fazem sempre o que as pessoas que o movimentam querem que eles façam...
Paulo Roberto de Almeida

Colunas Paulo Roberto de Almeida

20/03/2015  |  domtotal.com

Imperfeições dos mercados ou “perfeições” dos governos?: quais são suas preferências

Não existem imperfeições de mercado, existem mercados, simplesmente.
O economista e professor da Universidade de Yale Robert Shiller – prêmio Nobel de Economia (2013) e autor do famoso Irrational Exuberance, já em sua terceira edição – publicou, nas páginas doNew York Times (8/02/2015), um artigo sobre “Ansiedade e taxas de juros”, no qual ele argumenta, em determinada passagem, que os mercados não são de fato eficientes, uma vez que tendem a amplificar as reações emocionais das pessoas (ver o original do artigo, “Anxiety and Interest Rates: How Uncertainty Is Weighing on Us”, neste link:http://www.nytimes.com/2015/02/08/upshot/anxiety-and-interest-rates-how-uncertainty-is-weighing-on-us.html?emc=edit_tnt_20150207&nlid=13125452&tntemail0=y&_r=0&abt=0002&abg=1).
A intenção de Shiller não era exatamente a de lançar invectivas contra uma tal de “lógica do mercado”, como fazem certos neófitos, ou de sequer fornecer argumentos aos que se revoltam contra a “ditadura dos mercados”, como também fazem muito frequentemente todos aqueles que não entendem nada de mercados. Ele estava apenas chamando a atenção para a reação exagerada das pessoas em face de determinadas inversões de tendência dos mercados, o que parece absolutamente normal
Nem os agentes tradicionais de mercado nem os simples cidadãos – que entram e saem dos mercados para conduzir uma operação qualquer – dispõem de todas as informações em volume e na qualidade necessários para tomar suas decisões da melhor forma possível, com total domínio sobre os fatos e amplo conhecimento de causa. Sempre persistem zonas de sombra, quando não áreas inteiras cinzentas, e até territórios obscuros, que induzem esses agentes e os particulares a tomarem decisões erradas, a enveredar por caminhos perigosos, abrindo assim a janela para a formação de bolhas especulativas, ou à simples depreciação de seus ativos, apostando nas ações ou nas moedas “erradas”. Tais fatos, ou movimentos, acontecem, e seria incongruente colocar a culpa nos mercados, que apenas se movimentam sob o impulso de nossas próprias decisões, individuais ou coletivas.
Desde quando comecei a aprender um pouco de economia – bem mais nos cadernos especializados dos grandes jornais do que na leitura dos manuais acadêmicos, justamente – sempre desconfiei das alegações sobre as “falhas de mercado”, que figuram em praticamente todos os livros de micro e macro, com alguns exemplos das principais, para, a partir daí, legitimar as medidas corretivas que os governos tomam para tornar os mercados mais “funcionais”. Os próprios dirigentes políticos, quando não seus assessores econômicos, recorrem a essas figuras de estilo – falhas ou imperfeições de mercado –, para implementar medidas que parecem “racionais”, numa primeira abordagem, mas que depois podem causar mais problemas do que soluções.
Sinto discordar desse tipo de visão, e provavelmente de 90% dos acadêmicos envolvidos nesse tipo de debate, mas me contraponho frontalmente a esse tipo de alegação. Não é que eu não acredite nas “imperfeições” do mercado, pois minha discordância vai bem mais além: eu não acredito é que existam “imperfeições” de mercado, uma vez que esse é o estado natural de existência e de funcionamento dos mercados. Ora, sendo isso natural, não há porque falar em “imperfeições”, como se estas fosse anomalias passíveis de correção pela ação de algum grupo de sábios, ou videntes, como se o mercado, ou os mercados mais precisamente, pudessem funcionar de outra forma como o fazem, com todos os seus movimentos erráticos, esses altos e baixos, essas ondas de otimismo e os vagalhões de pessimismo que os caracterizam sempre e em qualquer circunstância. Volto a repetir: não existem imperfeições de mercado, existem mercados, simplesmente. Tal tipo de afirmação me parece tão evidente que dispensaria qualquer explicação, mas vamos tornar explícito o que acabo de argumentar implicitamente.
O que é o mercado, ou o que são os mercados? Não existe um único mercado, obviamente, mas dezenas, centenas, milhares deles, sempre à disposição de qualquer agente ou um simples trabalhador, sem esquecer os famosos rentistas, que vivem, ao que parece, de especulações nos mercados; todos eles são prontamente atendidos em suas intenções de satisfazer seus desejos ou necessidades, de maneira perfeitamente legal, ou até ilegal e clandestina (para drogas, por exemplo). Os mercados são simples espaços de encontro para trocas bilaterais ou “multilaterais”, e eles existem tanto virtualmente quanto fisicamente, desde que duas ou mais pessoas se disponham a trocar seus ativos por outros, detidos pela outra parte interveniente nesse tipo de “escambo”. Pode ser uma maçã contra uma banana no pátio da escola, ou milhões de dólares numa bolsa qualquer, num agente de câmbio de divisas, ou na compra de bônus governamental de alguma economia emergente. Quaisquer bens ou serviços que sejam objeto de alguma preferência subjetiva quanto ao seu valor são facilmente integrados e integráveis a um mercado qualquer, formal ou informal, de qualquer tipo, dimensão ou “perfeição”. Mercados são perfeitamente ubíquos, mesmo quando invisíveis.
O professor Shiller afirma isto em seu artigo: “porque os mercados não são realmente muito eficientes, o efeito desses variados fatores [níveis extremos de juros e preços devido à confluência de múltiplos fatores precipitantes, entre eles a ansiedade] tende a ser amplificado pela realimentação emocional. Por exemplo, quando as pessoas começam a ver taxas e preços mudando, algumas delas decidem agir: elas são atraídas ao mercado quando os preços estão subindo, e frequentemente o deixam quando os preços caem. Nós então [suponho que ele esteja falando dos economistas] ficamos surpresos pela extensão da aparente sobre-reação do mercado aos fatores precipitantes que não pensávamos que estivessem realmente na mente de todo mundo.”
Ora, não é preciso ser prêmio Nobel de economia para descobrir que existem fatores precipitantes, ou que as pessoas reagem de tal e tal modo ao ver os preços subindo ou descendo nos mercados de valores. Sinto muito dizer isso, mas a afirmação do professor Shiller não faz nenhum sentido, ou então ela expressa exatamente o comportamento das pessoas nos mercados. Por que estes seriam pouco eficientes, então, quando eles estão atuando exatamente como as pessoas os fizeram se movimentar? Para a alta nos momentos otimistas, quando os preços estão subindo, e para a baixa quando há percepção, ou movimento real, de queda. Não é preciso nenhuma exuberância racional para explicar isso, embora as pessoas se comportem exatamente assim, com toda a irracionalidade que permeia qualquer ação humana em face de incertezas, zonas de sombra ou simples desconhecimento das dinâmicas da vida (sejam elas as forças da natureza, ou as forças igualmente imponderáveis da economia).
Tenho para mim que os mercados são perfeitamente eficientes e altamente perfeitos, uma vez que eles reagem exatamente em função de como as pessoas atuam neles, ou seja, investindo ou se retirando, trocando ativos ou permanecendo paradas, e tudo isso é feito de maneira perfeitamente descoordenada, anárquica mesma, como devem ser mercados altamente funcionais. Agora, se você pretende que o mercado funcione de uma determinada maneira, e não possa refletir os movimentos das pessoas, então coloque alguns burocratas de governo para vigiá-lo, para corrigi-lo, para discipliná-lo de algumas “imperfeições” detectadas por esses mesmos burocratas. O mais provável é que eles estejam atuando a mando de “gestores” mais poderosos, que por sua vez decidiram empreender alguma ação corretiva porque alguns agentes de mercado decidiram que ele só poderia se movimentar numa direção, e não em outra: geralmente mantendo o câmbio em determinado patamar, determinadas ações imunes aos resultados efetivos da empresa, mercadorias em certo nível de preços do que a sua oferta mais abundante, ou escassa, o determinaria, pelo livre movimento de produtores e de compradores nesses mercados específicos, etc.; escolha qualquer um dos casos.
A legitimação é sempre a mesma: como os mercados não são “eficientes”, os sábios do governo (com seus conselheiros econômicos por trás) resolvem “ajudá-los” impondo certas regras, ou limitando o ingresso de outros participantes. Barreiras ao ingresso de novos competidores é sempre uma maneira “eficiente” de preservar os ganhos dos poucos participantes de algum cartel qualquer, e isso é feito não apenas nos mercados “livres”, mas também em regime de concessões públicas (transportes, por exemplo) ou no comércio exterior (pelas tarifas ou mediante normas técnicas, que se tornam regulações compulsórias, como as nossas famosas tomadas “jabuticabas”). O resultado de tudo isso é que sempre haverá ganhos para alguns – até que o dinheiro do regulador acabe, pelo menos – e perdas para os demais, pelo menos enquanto durar a festa, ou seja, enquanto a dinâmica do mercado não se vingar de seus “corretores” (o que ele sempre acaba fazendo, mais cedo ou mais tarde). O exemplo mais patente dessa realidade é o câmbio: a Venezuela e a Argentina que o digam.
O fato singelo é o seguinte: mercados livres, perfeitamente funcionais – ainda que causando perdas para uns e outros –, sempre serão infinitamente mais eficientes do que qualquer comitê de salvação pública econômica, e isto por uma razão muito simples. Os mercados reagem imediatamente à entrada e saída de pessoas – ou de bens e serviços – em seus espaços de intercâmbios, permitindo assim que alguns realizem ganhos, que outros contabilizem suas perdas, e todos procuram se ajustar rapidamente, o que torna o sistema sempre muito eficiente e quase “perfeito”, ao sinalizar pelos preços quais são as expectativas de ganhos (oxalá) ou induzindo à redução das perdas. Quando o comitê de sábios intervêm, ele não pode fazê-lo de maneira dirigida, ou pessoal, mas estabelecendo regras genéricas, digamos assim, contemplando toda uma categoria de transações, e não a movimentação individual dos agentes. Eles ainda precisam fazê-lo por via legislativa ou mediante resoluções administrativas, que sempre são muito lentas a serem implementadas, e mais lentas ainda a serem modificadas.
Resulta de tudo isso que medidas governamentais de “correção” dos mercados sempre serão imperfeitas, limitadas, parciais, insuficientes e, no limite, estúpidas, para tratar da diversidade de situações que emerge das interações dinâmicas, racionais ou irracionais, entre pessoas e corporações transacionando nos mercados. Quanto mais livres forem estes últimos, todos buscarão o seu benefício individual – como aliás dizia Adam Smith por meio de sua famosa alegoria da “mão invisível”, que não é uma teoria e sim uma simples constatação de bom senso – e ninguém supostamente será punido pela ineficiência ou imperfeição de qualquer mercado, uma vez que todos permanecem perfeitamente livres para entrar e sair de algum deles quando assim o desejarem. De resto, quaisquer que sejam as eventuais “imperfeições” ou a ineficiência dos mercados, elas sempre serão infinitamente mais benignas, e menos prejudiciais, do que as ações dos governos, que tendem a criar camisas de força nos mercados o que só acaba ou sufocando-os ou produzindo o conhecido fenômeno dos “contraventores de regras”.
Pense bem: qual das situações você prefere? Portanto, quando alguém vier lhe falar numa tal de “lógica de mercado”, ou de que é preciso corrigir alguma imperfeição detectada, responda logo: “Tudo bem: o mercado não possui nenhuma lógica, mas ela sempre será superior à de qualquer governo; no mais, não mexa com o meu mercado, está bem assim?”. O mundo seria bem simples sem os arquitetos da vontade alheia e sem todos esses engenheiros sociais tentando tornar a nossa vida mais “simples”...

Paulo Roberto de Almeidaé doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984). Diplomata de carreira desde 1977, exerceu diversos cargos na Secretaria de Estado das Relações Exteriores e em embaixadas e delegações do Brasil no exterior. Trabalhou entre 2003 e 2007 como Assessor Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Autor de vários trabalhos sobre relações internacionais e política externa do Brasil. 

 
 

quarta-feira, 18 de março de 2015

Um congresso de Viena para o seculo 21? - Paulo Roberto de Almeida

Dom Total, que se intitula a revista mais completa do Brasil (deve ser verdade, senão eles não diriam isso), publicou meu artigo sobre um novo congresso de Viena, com o subtítulo e uma bela ilustração do próprio, ou seja, o congresso de 1815.
Paulo Roberto de Almeida 

12/03/2015  |  domtotal.com

Um congresso de Viena para o século 21?

Kissinger e o “sentido da História”
El mundo fue y será una porquería
ya lo se.
En el quinientos seis
y en el dos mil también.
(...)
Pero que el siglo veinte
es un despliegue
de maldad insolente,
ya no hay quien lo niegue.
Tango Cambalache, letra de Enrique Santos Discépolo (1934)
Um dos mais famosos tangos da história musical da Argentina foi escrito em plena “década infame”, quando tem início a decadência daquele país, agravada depois pelo peronismo, que aliás liberou a música, antes proibida, por sua letra ser justamente percebida como uma crítica feroz à situação anterior (para a letra completa, de ácido teor, ver o link: http://www.musica.com/letras.asp?letra=974519). Em todo caso, o que Discépolo pensava do século 20, então recém ingressado em sua quarta década, parece aplicar-se igualmente, e talvez até com mais razão, ao século 21, recém entrado em sua segunda década: até aqui, foi um desabrochar de maldades insolentes, ninguém pode negar; em certos países “resulta que es lo mismo, ser derecho que traidor”. Onde foi parar aquela nova ordem mundial, defendida ou prometida por Bush pai, em 1991?
Estaríamos, por acaso, necessitados, tanto quanto a Europa do final das guerras napoleônicas, de uma réplica do congresso de Viena, apto a reorganizar, num grande concerto de nações, as bases de uma nova ordem mundial? Seria isso possível? Essa pergunta me veio à mente ao ler o mais recente livro de Henry Kissinger, World Order (New York: Penguin Press, 2014), que não coloca exatamente a questão, mas a engloba numa grande reflexão histórica, que começa, na verdade, pelo reordenamento da paz de Westfália. Esta, como ele indica acertadamente, não foi uma única conferência, mas um complexo processo negociador, com acordos separados em duas diferentes cidades.
Todos os estudiosos das relações internacionais e da história diplomática contemporânea sabem que Mister Kissinger estaria em excelente companhia, e ficaria extremamente satisfeito, se pudesse ser tele-transportado numa máquina do tempo para a Viena de 1815, para poder assessorar, ao mesmo tempo, Metternich e Castlereagh. Até mesmo Talleyrand, ministro de Luís XVIII, vindo do Ancien régime aristocrático, convertido em aliado da revolução, ministro do Império, sobrevivente na Restauração e finalmente servidor da monarchie de Juillet, poderia receber seus conselhos de longevo servidor de vários governos, tanto quanto o francês. Talvez seja maldade deste articulista, mas tendo lido a admiração sincera com que Kissinger completou sua tese de doutorado em torno dos dois primeiros estadistas, depois publicada como A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-22 (1954), dá para imaginar o entusiasmo com o qual ele se movimentaria apressadamente atrás de cada uma das três delegações, para assoprar, aos ouvidos dos seus chefes respectivos, suas sugestões sobre como organizar a melhor balança de poder possível, suscetível de contemplar os interesses das grandes potências daquela época, e apenas os delas.
O mesmo sentido profundo da História transparece nesse seu último livro (no sentido cronológico, apenas), intitulado simplesmente World Order, sem qualquer subtítulo. Poucos autores na categoria das ciências humanas ousariam desafiar as normas editoriais americanas e publicar um volume de 400 páginas, com apenas duas palavras no seu título, o que aliás já tinha sido o caso de On China (2011), seu livro sobre o grande contendor do novo jogo geopolítico mundial. Os dois últimos livros, e o primeiro, nos trazem o melhor Kissinger, o pensador, o historiador, mais do que o estrategista do equilíbrio do terror nuclear, o memorialista dos anos de Casa Branca, ou o consultor caríssimo de governos estrangeiros, o homem que ganhou um prêmio Nobel por razões imerecidas, e que provavelmente merece mais distinções acadêmicas por seu trabalho intelectual do que propriamente pelas suas realizações a serviço de governos.
Kissinger parece o contrário de um Winston Churchill, que ganhou um prêmio Nobel por seu trabalho como historiador (tarefa que ele desempenhou em seu próprio benefício, obviamente), quando merecia o prêmio por ter salvo a civilização ocidental do assalto horrífico dos bárbaros nazifascistas, e ousado resistir, ao custo de “sangue, suor e lágrimas”, quando muitos recomendavam um pacto com o diabo em pessoa (isto é, Hitler). Kissinger talvez merecesse um prêmio literário por sua obra acadêmica, em especial os três livros citados, e mais Diplomacy (1994), uma vez que ele passou o seu tempo de estrategista tentando justamente fazer pactos com os diabos (Brejnev, Mao), como fazem, por sinal, os estadistas das grandes potências quando a ocasião lhes é dada. Talvez nem o júri do Nobel literário concordasse com esse tipo de galardão, uma vez que mesmo seus livros de caráter histórico estão igualmente contaminados por certa visão do mundo – do tipo “eu sei, eu fiz, eu estava lá” – que tende a impregnar as suas sugestões de uma “boa ordem mundial” como a única possível nas circunstâncias dadas (este é um viés a que nem mesmo Churchill escapou, seja em sua história da Segunda Guerra, ou na sua precedente história dos povos de língua inglesa).
O problema com Mister Kissinger é que ele teria gostado de um mundo mais “vienense” do que o que temos atualmente, já que se trata de uma “ordem mundial” que não é propriamente uma ordem, nem é universal, como ele mesmo reconhece no livro homônimo. O mundo parece se estilhaçar, não em novas conflagrações globais, mas em rivalidades hegemônicas, em proxy wars, com vilões proliferadores protegidos por uma ou outra das grandes potências, com desafios vindos de atores não estatais, alguns até se pretendendo califados expansionistas, ou mesmo com bravatas anti-imperialistas de líderes de pacotilha, num estilo parecido ao de certos fascistas do entre-guerras.
Tudo isso é real, e já está acontecendo, um pouco em vários cantos do planeta, inclusive numa Europa que já reproduziu, em pleno século 20, uma segunda “guerra de trinta anos”, uma repetição, em larga escala, dos terríveis conflitos que deram a partida, no século 17, à ordem westfaliana que ainda constitui o horizonte insuperável de nossa época, e pela qual tem início, justamente, World Order. Na impossibilidade de se chegar a novos acordos westfalianos – que, de resto, já estão incorporados na Carta da ONU – talvez Kissinger sonhe com novo Congresso de Viena, capaz de estabelecer as bases da nova “ordem mundial” que ele deve intimamente desejar. Talvez ele até se dispusesse a assessorar um ou outro soberano dos novos tempos, com conselhos sempre sensatos sobre como melhor organizar uma balança de poder entre as grandes potências, como fizeram os estadistas de dois séculos atrás.
Seria isto possível? Levaria um congresso do mesmo estilo a resultados efetivos e duráveis? Provavelmente não, pois faltaria a tal arranjo fundacional aquilo que existiu em cada reorganização anterior da ordem mundial: uma contestação radical da ordem anterior, com uma alteração fundamental das relações de força entre as grandes potências, e um reordenamento baseado no novo equilíbrio de poder. Westfália veio depois da “guerra de trinta anos”; Viena veio após as guerras napoleônicas; Versalhes e a Liga das Nações sucederam à Grande Guerra; Ialta e Potsdam, em 1945, prepararam São Francisco, que foi quase uma formalidade, depois que certas questões já estavam acertadas em Teerã (1943), em Dumbarton Oaks (1944) e naqueles dois encontros decisivos. Mas não é apenas pela falta de uma grande conflagração global que um novo congresso de Viena – que obviamente não seria em Viena – se revela impossível em nossos dias. O que falta, na verdade, seria uma espécie de entendimento prévio sobre o que discutir e o que se buscar. “Na construção de uma ordem mundial”, diz Kissinger no capítulo final de seu livro, “uma questão chave refere-se inevitavelmente à substância de seus princípios unificadores”, mas, acrescenta ele imediatamente após, “nos quais reside uma distinção fundamental entre as abordagens ocidentais e não ocidentais a essa ordem” (p. 363). A distinção não é obviamente geográfica tão simplesmente, mas fundamentalmente política e de valores.
A dificuldade, portanto, não resulta de um simples problema de agenda, ou seja, da falta de uma ordem do dia consensual, uma lista de questões sobre a base das quais discutir um novo arranjo global num formato similar ou equivalente àquele de 1815. Mister Kissinger acredita que a carência de uma ordem mundial para o século 21 pode ser explicada por aspectos, ou dimensões, que diferem da ordem precedente. Primeiro, a natureza do estado, em si – a unidade básica da vida internacional – que tem sido submetida à uma variedade de pressões desagregadoras (seja por falta de uma soberania efetiva, como no caso da UE, seja pela sua contestação por novos “senhores da guerra”), quando não se cai na falta de governança tout court, em estados falidos, ou territórios inteiros sem governo. Depois, uma descoordenação entre as organizações econômicas e políticas internacionais, as primeiras acompanhando o processo de globalização, mas as segundas ainda baseadas no estado-nação. Finalmente, a falta de um mecanismo de consulta e cooperação entre as grandes potências “on the most consequential issues” (p. 370). Aqui já estamos em face de cenas explícitas de kissingerianismo geopolítico: todas as instâncias existentes – CSNU, Otan, Apec, G-7 ou G-8, G-20 – lhe parecem carentes de maior foco, pois os chefes de governo ali presentes estão mais preocupados com o seu público interno, e com o comunicado final, do que com problemas concretos.
Pode ser isso, ou também pode ser que o mundo de Viena já não tem mais condições de existir: ele era a expressão de um arranjo westfaliano entre potências europeias, ou seja cristãs, numa época em que a Europa dominava o mundo, o que ela fez durante praticamente cinco séculos, o último junto com os Estados Unidos, mas já contestados pelas novas potências emergentes. A própria Alemanha tinha desafiado as bases da ordem europeia e internacional no arranjo precedente, por ter chegado tarde, bem depois da Prússia, na mesa de negociações e nas conquistas imperiais subsequentes (ainda que ela se tenha talhado alguns pedaços na Ásia e na África). Foi justamente o seu desejo de redistribuir as cartas do jogo que provocou uma nova guerra de trinta anos e a derrocada definitiva da hegemonia europeia sobre os assuntos do mundo.
A China provavelmente não tem nenhuma pretensão de ser uma nova Alemanha nas condições do século 21, nem a Rússia tem capacidade para aspirar a tal papel, muito embora ela ainda talvez gostasse de poder determinar o que podem e, sobretudo, o que não podem fazer as antigas satrapias do império soviético. O problema, na verdade, não é só de ordem geopolítica, mas também de valores e de concepções do mundo. Não se pode ser um Metternich – como talvez gostasse Kissinger – se não se tem do outro lado, como interlocutores afinados nesse tipo de jogo, estadistas como Castlereagh ou mesmo Talleyrand. Aparentemente, nem Xi Jin-ping nem Putin se dispõem a amoldar-se em papeis equivalentes aos de Hardenberg ou de Nesselrode, os representantes respectivos da Prússia e da Rússia imperiais em Viena. O que se buscava, na capital do Império dos Habsburgos, era um arranjo europeu, no máximo alcançando a periferia mais próxima, a do Império Otomano e suas dependências balcânicas. Os arranjos que se fizeram com os impérios ibéricos e suas possessões coloniais o foram por causa da herança napoleônica, não porque as grandes potências estivessem tentando traçar um esquema equivalente a Tordesilhas, ou seja, uma primeira divisão do mundo que só seria tentada novamente em Ialta, quase cinco séculos mais tarde.
Kissinger talvez gostasse que Estados Unidos e China chegassem a um acordo básico sobre as relações recíprocas, e foi em grande medida em vista desse objetivo que ele escreveu On China, uma obra particularmente compreensiva e leniente para com as lideranças chinesas. Da Guerra Fria política dos tempos de Stalin à nova Guerra Fria econômica dos nossos dias, o mundo mudou perceptivelmente em termos de atores e de interesses nacionais projetados internacionalmente. Viena-1815 nunca foi um encontro filosófico entre potências cristãs interessadas primariamente no bem estar de seus respectivos povos: o que estava em jogo ali era apenas o equilíbrio de poderes para evitar uma nova conflagração global. Westfália se revelou mais durável porque tratou basicamente de procedimentos, não de substância, como ele diz em outra parte do livro.
Esse objetivo, hoje em dia, está na prática assegurado pela detenção dos arsenais atômicos, o que restringe a subida aos extremos por parte de qualquer uma das grandes potências nucleares. Mas uma Viena do século 21 não poderia mais eludir os avanços registrados em matéria de direito internacional, de democracia e de direitos humanos. Tais dimensões, aparentemente, só seriam hoje defendidos pelos Estados Unidos, e se dependesse de Mister Kissinger talvez nem isso. Tais critérios certamente não fariam parte da agenda das outras grandes potências. Ah, sim, ainda tem a Europa, se ela é verdadeiramente um membro dessa pequena tribo, na vertente democrática; Kissinger, nos seus velhos tempos de guardião da paz no mundo, se perguntava: “se eu quiser falar com a Europa, eu telefono para quem?” Parece que o problema continua o mesmo.
O que dizer, então, das chamadas “potências emergentes”? A julgar pelas tomadas de posição de algumas delas, em suas próprias esferas regionais, talvez não se possa contar tampouco com elas para algum arranjo nouvelle manière, seja no formato Viena 2.0, seja uma reforma do sistema onusiano, esse dinossauro que também ostenta um cérebro totalmente desproporcional em relação ao seu imenso corpo. Em resumo, vamos esquecer essa história de um novo arranjo diplomático para a tal “ordem mundial do século 21”, e nos concentrarmos em tarefas mais prosaicas de administração da governança econômica e da defesa dos direitos humanos e da democracia onde isso for possível. O mundo ainda é bem mais hobbesiano do que grociano, e certos dirigentes atuais estão bem mais para Átila ou Gengis-Khan do que para Locke ou Montesquieu.
O progresso pode até ser uma fatalidade, como queria Mário de Andrade, alguns anos antes do milonguero argentino desconfiar de qualquer avanço, mas talvez seja porque a história parece andar a um ritmo similar ao dos carros de bois de antigamente. Quando alguns mais apressadinhos tentaram forçar a passagem em marcha acelerada, não deixaram de ocorrer acidentes de percurso, como descobriu, para sua infelicidade, o último xá da Pérsia. O próprio Kissinger confessa, ao final do seu livro (p. 374), que perdeu sua esperança de juventude de descobrir o “sentido da História”. Provavelmente, ele não existe, pelo menos não no sentido hegeliano-marxista. Quanto ao seu ritmo, talvez caiba se contentar com o de certas partituras: vivace, ma non troppo! Em todo caso, poderíamos repetir com Discépolo: “Todo es igual, nada es mejor…”.

Recomendação de leitura:
Peter W. Dickson: Kissinger and the Meaning of History (Cambridge University Press, 1978). [Nota: o autor é um acadêmico formado em filosofia que trabalhou para a CIA, o que revela quão eclética é essa agência de inteligência.]

Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984). Diplomata de carreira desde 1977, exerceu diversos cargos na Secretaria de Estado das Relações Exteriores e em embaixadas e delegações do Brasil no exterior. Trabalhou entre 2003 e 2007 como Assessor Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Autor de vários trabalhos sobre relações internacionais e política externa do Brasil.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Ainda Dom Total: lista dos artigos Paulo Roberto de Almeida (desde sempre)

Taí, aprovei a decisão adotada pelo Dom Total, de manter fixos os artigos ali públicados, mesmo quando eu passei algum tempo sem nada publicar, por diferentes motivos, o que aliás ocorreu ainda recentemente.
Permito-me colar aqui essa lista, que também me serve de registro.
Os aparentemente repetidos são apenas sequenciais, começando por baixo, ou seja: eles tinham o mesmo título, só diferindo no subtítulo, que não aparece na parte inicial.
Paulo Roberto de Almeida

Paulo Roberto de Almeidaé doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984). Diplomata de carreira desde 1977, exerceu diversos cargos na Secretaria de Estado das Relações Exteriores e em embaixadas e delegações do Brasil no exterior. Trabalhou entre 2003 e 2007 como Assessor Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Autor de vários trabalhos sobre relações internacionais e política externa do Brasil.

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