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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida

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sábado, 23 de agosto de 2025

A Paz de Westfália - Fausto Godoy (Facebook)

REQUIEM PARA WESTFALIA...

Fausto Godoy

O mundo moderno é herdeiro da Paz de Westfalia...

Estou-me referindo aos tratados de paz assinados em 1648 nas cidades alemãs de Münster e Osnabrück, que puseram fim à Guerra dos Trinta Anos na Europa, a qual durou de 1618 a 1648. Estes tratados, firmados entre o Imperador Fernando III, do Sacro Império Romano-Germânico, os demais príncipes alemães e os Reinos da França e da Suécia, marcaram o declínio do Império e do Papado de Roma e a emergência de um novo sistema de poder.

Este, que foi um dos conflitos mais sangrentos da história europeia, teve início por motivos religiosos decorrentes da Reforma Protestante. Começaram por um ato de protesto de nobres boêmios contra a tentativa do imperador Fernando III de abolir as igrejas luteranas. O conflito evoluiu da disputa religiosa para a luta por supremacia entre as potências europeias, inaugurando o sistema de relações internacionais moderno, baseado no poder temporal e nos interesses seculares em vez dos religiosos. E teve por consequência a emergência do conceito de soberania dos Estados nacionais: desfez-se o Império, refez-se a cartografia politica, e cada Estado passou a ter autoridade exclusiva sobre seu território, sem interferências externas.  A partir de então este tem sido o padrão que rege o relacionamento entre os países... 

Só que... esta tem sido também a grande mazela neste início do século XXI, quando a intensificação do processo de globalização das economias vem transformando de forma radical a geografia humana e econômica e, desta forma, o jogo de poder no planeta...

Desde o final do século XIX e início do século XX, o ocaso do colonialismo europeu, que se consolidou no final da II Guerra Mundial, sacralizou o fim da Europa imperial e colonialista, e deu azo à consolidação de novos atores, mormente os Estados Unidos, que no final do conflito passaram a compartilhar com a então União Soviética a disputa pela hegemonia planetária... Só que em 1991 esta se dissolveu e tornou a América no único hegemon mundial... Só que a partir de 1978, as reformas de Deng Xiaoping na República Popular da China - até então maoísta - alavancaram o “País do Meio” a se liberar do seu “século das humilhações” - como os chineses alcunham o século XIX, em que foram vítimas dos ingleses nas duas “Guerras do Ópio” - e do ranço ideológico radical do maoísmo, e sob sua batuta passou a “caçar ratos, não importasse a cor do gato”, como Deng afirmava... ou seja, a abrir-se para o mundo independentemente do credo político-ideológico e dos sistemas de governo dos parceiros. Foram então criadas as “zonas econômicas especiais”, encerrando o isolamento multicentenário da China. A partir de então ela ganhou o ímpeto que a transformou na segunda maior economia do planeta, já disputando agora com os Estados Unidos a liderança. Ou seja, em oitenta anos o planeta mudou quatro vezes de “patrões”!...

A pergunta que não quer se calar neste ponto é... será que as estripulias isolacionistas de Donald Trump no intuito de “Make America Great Again”, que afetam o planeta por inteiro - como estamos aturdidamente acompanhando - marcariam o início do declínio de um dos dois atuais hegemons?... Mais radicalmente falando: será que a hegemonia territorial será substituída, enfim, pela hegemonia econômica?...Fará sentido disputas territoriais num mundo economicamente interligado?...

Vamos, uma vez mais, recorrer à História...desta vez a da China... Cabe ressaltar, primeiramente, que ao longo da sua história ela não invadiu nenhum país; ou seja, à parte o Tibete e Taiwan que ela reivindica - com ou sem razão(ões)... - como suas partes inalienáveis, ela se reteve ao seu próprio território. Ao contrário, construiu as muralhas que a isolaram dos “bárbaros”, na busca de preservar sua coerência civilizacional...haja vista que o seu nome, em mandarim, é “Zhōngguó”  (中国), o país (terra) do meio. Ou seja, antes de ser um país, ela se considera como uma Civilização....com base nisto, ela espraiou seu comércio pelo Ocidente afora através da Rota da Seda e tornou-se a maior economia do mundo ao longo dos séculos; porém trancou-se sobre si mesma, não permitindo a presença de estrangeiros no seu solo. 

Corolário disto é a sua participação nos dois conflitos de cunho vestfaliano que mobilizam todo o planeta na atualidade: a guerra da Ucrânia e o conflito Israel-Palestina. À parte declarações retóricas, e algum posicionamento sobretudo em favor da Rússia aliada, ela tem-se pouco manifestado de forma mais engajada. Isto porque o que lhe interessa, na verdade, é a hegemonia econômica!

Este é um dos corolários do livro “The China Dream”, escrito por um professor da Academia de Defesa da China, Liu Mingfu, livro este que o Presidente Xi Jinping menciona amiúde. Logo no seu primeiro capítulo, intitulado “China´s Dream for a Century” está escrito: ”…it has been China´s dream for a century to become the world´s leading nation...but what does it mean for China to become the world´s leading nation? First it means that China´s economy will lead the world. On that basis it will make China the strongest country in the world. As China rises to the status of a great power in the 21st century, its aim is nothing less than the top – to be the leader of the modern global economy”!!!!!… 

Em nenhum momento é feita menção a avanços sobre outros territórios... este é um tema que não lhe interessa, até porque ela sabe que cada vez mais o mundo “vestfaliano” vai paulatinamente cedendo espaço para o atual e maior impulso agregador da humanidade: o comércio (e a tecnologia...). Fruto dele o planeta se desloca cada vez mais para o Oriente, onde estão algumas das economias mais pujantes: China, a segunda maior, e a Índia, a quinta (ainda....). E não nos esqueçamos da Coreia do Sul, do Japão, da Indonésia, do Vietnã, etc... E assim “la nave va”...

Neste cenário fica a pergunta recorrente: para onde vamos nós, brasileiros?... Seguindo a nossa herança atávica, vamos nos enquistar no universo que conhecemos melhor e sofrermos as suas consequências, tal como agora... ou nos atirarmos na aventura, como fizeram os nossos antepassados portugueses? Remember Sagres... 


Westfalia, ou o Futuro?...To be continued...

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

PALESTINA: A TRAGÉDIA SEM FIM... - Fausto Godoy (FB)

PALESTINA: A TRAGÉDIA SEM FIM...

Fausto Godoy (FB)

O papo é longo...como o sofrimento na Faixa de Gaza...

Num texto que publiquei na minha página do Facebook, em 17/10/23 , intitulado “A Tragédia Palestina”, eu dizia que “do momento em que centenas de militantes do Hamas lançaram um ataque ao território sul de Israel, no dia 7 de outubro, resultando na morte de pelo menos 1.200 pessoas e no sequestro de dezenas de reféns abriu-se um capítulo trágico na História da região bíblica da Palestina. Desde o início da guerra, a ofensiva israelense já deixou mais de 60 mil mortos, segundo dados do ministério da Saúde de Gaza. 

Fica difícil para os que estamos fisicamente longe do conflito separar o “joio do trigo”, ou seja, encontrar as razões que nos ajudem a minimamente entender (?...) o que está ocorrendo naquela região”...  Neste cenário nebuloso, e diante das opiniões divididas, o que importa é não somente a libertação dos reféns israelenses, mas o destino dos 2,2 milhões de indivíduos que habitam a faixa de Gaza... Ou seja, a humanidade está diante do dilema VIDAS X DISPUTAS POLÍTICAS... ou GENTE X IDEOLOGIA...” 

Em 22 meses de guerra, o Exército israelense tomou quase 75% da Faixa de Gaza, e nos últimos dias, intensificou os ataques aéreos e operações terrestres na Cidade de Gaza e nos campos de deslocados próximos, que considera os últimos redutos do Hamas. Estamos, portanto, na iminência da sucumbência de um ESTADO...Replicando o NYT, o Estadão de hoje noticia que “Israel convocou ontem 60 mil reservistas para ocupar a cidade de Gaza, ignorando críticas e desafiando o crescente apoio à criação da Palestina. O governo do premiê Binyamin Netanyahu também aprovou a construção de 3,4 mil casas na Cisjordânia, uma manobra que praticamente inviabiliza a criação de um Estado palestino”... Isto malgrado a condenação da maioria dos governos estrangeiros. Incidentalmente, cabe relembrar que 144 dos 193 Estados-membros da ONU reconhecem o Estado palestino. Ainda a propósito, as relações de governo entre o Brasil e a Palestina datam de 1975, e temos uma representação diplomática no território...

Entretanto, fatos são fatos, e a sua percepção é outro “departamento”...se os alemães tivessem ganhado a II Guerra Mundial, leríamos a História de outra maneira...

Vamos, pois, recapitulá-la, da maneira mais fidedigna...


Estamos nos referindo à Canaã bíblica, que os judeus tradicionalistas preferem chamar de Sion. A região foi conquistada pelos hebreus por volta de 1.200 AEC, quando, guiados por Moisés, se retiraram do Egito, onde viveram por alguns séculos. Entretanto, sucessivas dominações estrangeiras, iniciadas com a tomada de Jerusalém (587 AEC) por Nabucodonosor, rei da Babilônia, deram início a um processo de diáspora da população. Os segundos ocupantes foram os romanos. As duas rebeliões dos judeus contra este domínio, em 66-70 e 133/135 AEC, tiveram resultados desastrosos. Ao debelar a primeira revolta, as tropas do general Tito - posteriormente Imperador - tomaram Jerusalém, em setembro de 70 EC. O templo construído por Salomão, em 970 AEC, e reconstruído por Herodes em 19 AEC, símbolo e centro do poder religioso e político dos judeus, foi incendiado e os habitantes deportados como escravos. Dele restou apenas o Muro das Lamentações. Por sua vez, o imperador Adriano, ao sufocar a segunda rebelião, intensificou a diáspora e proibiu os judeus de viverem em Jerusalém. A partir de então, eles se espalharam pelo Império Romano, para a Mesopotâmia e outras regiões do Oriente Médio, fora do poder de Roma. 

Em 638 EC a região foi conquistada pelos árabes, no contexto da expansão do islamismo, e passou a fazer parte do mundo muçulmano. Após várias disputas hegemônicas, de 1517 a 1918 a Palestina passou a integrar o Império turco-otomano. Entretanto, no início do século XX já existiam na região pequenas comunidades israelitas vivendo em meio à população predominantemente árabe. A partir de então, novos núcleos começaram a se instalar ali, geralmente mediante compra de terras aos árabes palestinos. A criação do Estado de Israel é uma verdadeira epopeia!

Após a I Guerra Mundial, com a derrota dos turcos, que haviam lutado ao lado da Alemanha, a Palestina passou a ser administrada pela Grã-Bretanha por mandato outorgado pela Liga das Nações. Foi quando se intensificou a imigração de judeus para a região, gerando inquietação no seio da população árabe majoritária. A crescente hostilidade levou os colonos judeus a criarem uma organização paramilitar – a “Haganah” – a princípio voltada para a autodefesa, e mais tarde também para operações de ataque contra os árabes.

Entrementes, em 1896, o escritor austríaco de origem judaica Theodor Herzl fundava o “Movimento Sionista”, que pregava a criação de um Estado judeu na antiga pátria dos hebreus. Este projeto teve ampla ressonância junto à comunidade judaica internacional. Foi neste contexto que em novembro de 1917, em plena I Guerra Mundial, o governo britânico emitiu uma declaração, registrada pela História como “Declaração Balfour” anunciando seu apoio ao estabelecimento de um "lar nacional para o povo judeu" na Palestina, então uma região otomana com uma população judaica bastante reduzida.

Apesar do conteúdo da declaração favorável à criação de um Estado judeu, a Grã-Bretanha tentou frear o movimento imigratório para não descontentar os países muçulmanos do Oriente Médio, com o quais mantinha proveitosas relações econômicas. Entretanto, viu-se confrontada pela pressão mundial da comunidade israelita e dentro da própria Palestina, pela ação de organizações terroristas. Após a Segunda Guerra Mundial, o fluxo de imigrantes judeus tornou-se irresistível. Em 1947, a Assembleia-Geral da ONU decidiu dividir a Palestina em dois Estados independentes: um judeu e outro palestino. Mas tanto os palestinos como os Estados árabes vizinhos recusaram-se a acatar a partilha proposta pela ONU.

Em 14 de maio de 1948, foi proclamado o Estado de Israel, que se viu imediatamente atacado pelo Egito, Arábia Saudita, Jordânia, Iraque, Síria e Líbano. Esta foi a 1ª Guerra Árabe-Israelense. Os árabes foram derrotados, e Israel passou a controlar 75% do território palestino. Os 25% restantes, correspondentes à Faixa de Gaza e à Cisjordânia, ficaram sob ocupação respectivamente do Egito e da Jordânia. Cabe notar que a Cisjordânia incluía a parte oriental de Jerusalém, onde fica a Cidade Velha, de grande importância histórica e religiosa. Como territórios palestinos restaram a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. A partir daí, iniciou-se o êxodo dos palestinos para os países vizinhos. Atualmente, esses refugiados somam cerca de 3 milhões.

Para arregimentar a população palestina na defesa dos seus territórios ancestrais, em 1964 foi criada a “Organização para a Libertação da Palestina” (OLP), cuja pretensão inicial era destruir Israel e criar um Estado Árabe Palestino. Utilizando de inicio táticas terroristas, mas sofrendo pesadas retaliações israelenses, a OLP não alcançou seu objetivo e, com o decorrer do tempo, passou a admitir implicitamente a existência de Israel.

Paralelamente, nas décadas de 1950 e 1960, estava em ascensão o nacionalismo árabe, liderado pelo presidente do Egito, e posterior presidente da República Árabe Unida (RAU), Gamal Abdel Nasser. Ele era apoiado vários chefes de Estado árabes, sobretudo os que integravam a “Liga Árabe”. Na “Segunda Conferência do Cairo”, de 1964, esses países deixaram claro, por meio de uma declaração, que um dos seus objetivos principais era “a destruição do Estado de Israel”. A situação piorou quando Síria e Jordânia passaram a dar apoio a grupos guerrilheiros da OLP e a movimentar tropas regulares nas fronteiras com Israel. 

Diante desta ameaça, em maio de 1967, os israelenses, de forma preventiva, ocuparam fulminantemente a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, e tomaram a Península do Sinai ao Egito, bem como as Colinas de Golan à Síria. A História registrou este momento como a “Guerra dos Seis Dias”. Outros confrontos aconteceram posteriormente, porém os israelenses conservaram em seu poder os territórios ocupados em 1967. Em 1977, pela primeira vez, desde a fundação do Estado de Israel, uma coalizão conservadora - o bloco Likud - obteve maioria parlamentar. O novo primeiro-ministro, Menachem Begin, iniciou o assentamento de colonos judeus nos territórios ocupados em 1967. 

Em 17 de setembro de 1978, o Presidente do Egito, Anwar Sadat e o Primeiro-Ministro Begin firmaram os "Acordos de Camp David", que foram negociados secretamente, intermediados pelo Presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter. Por eles, o Egito tornou-se o primeiro país árabe a reconhecer o Estado de Israel, o qual, em contrapartida, devolveu-lhe a Península do Sinai, cláusula esta que foi cumprida em 1979. Por eles, Sadat e Arafat receberam conjuntamente o "Prêmio Nobel da Paz", em 1978. Mas, em revanche, em 1981 militares egípcios, contrários aos acordos e à paz, assassinaram Sadat.

Na busca de se livrar das ações da OLP, em 1982 Israel invadiu o Líbano, então em plena guerra civil entre cristãos e muçulmanos, e conseguiu expulsar a organização do território libanês. Em resposta, foi criado o grupo Hezbollah (“Partido de Deus”), organização xiita libanesa apoiada pelo governo islâmico fundamentalista do Irã. Em 1987, palestinos que se opunham à ocupação israelense promoveram, na faixa de Gaza uma  “Intifada”. Basicamente, a Intifada consiste em manifestações diárias da população civil que arremessa pedras contra os soldados israelenses. 

Em 1993, com a mediação do presidente norte-americano Bill Clinton, Yasser Arafat, líder da OLP, e Yitzhak Rabin, Primeiro-Ministro de Israel, firmaram em Washington um acordo prevendo a criação de uma Autoridade Nacional Palestina, com autonomia administrativa e policial em alguns pontos do território palestino, o que a História registrou como os "Acordos de Oslo". Estava prevista, também, a progressiva retirada das forças israelenses de Gaza e da Cisjordânia. Em troca, a OLP reconhecia o direito de Israel à existência e renunciava formalmente ao terrorismo. Mas duas organizações extremistas palestinas - Hamas e Jihad Islâmica – opuseram-se aos termos do acordo, da mesma forma que os judeus ultranacionalistas. Em 1994, a Jordânia tornou-se o segundo país árabe a assinar um tratado de paz com os israelenses.

Estes esforços foram crescentemente dilapidados quando, em 1996 foi eleito primeiro-ministro de Israel Binyamin Netanyahu, do Partido Likud, que paralisou a retirada das tropas de ocupação dos territórios palestinos e intensificou os assentamentos de colonos judeus em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, em meio à população predominantemente árabe. O processo de pacificação da região entrou, então, em compasso de espera, ao tempo em que recrudesceram os atentados terroristas palestinos, como o que ocorreu em 7 de outubro do ano passado. As controvertidas políticas que o grupo de extrema direita de Netanyahu e a ala radical de seu partido, vêm promovendo ao incentivar a expansão das colônias judaicas na Cisjordânia, causaram um profundo revés aos acordos previamente firmados e são a mola motora dos atentados... 

A situação é ainda pior na faixa de Gaza, uma extensão de território de apenas 41 quilômetros de comprimento e de 6 a 12 quilômetros de largura, com uma área total de 365 km2. A título de exemplo, a área urbana da cidade de São Paulo é de 949,611 km². Este espaço exíguo abriga cerca de 2,2 milhões de pessoas; ou seja, é praticamente impossível de se viver ali, porque, ademais, Israel controla grande parte da infraestrura do enclave, como a eletricidade e o fornecimento de água. Disto sou testemunha ocular... Quando servia em Aman, em 2012, tive a “nefasta” ideia de passar as férias de Natal em Jerusalém, o que muitos considerariam de grande significado. Pois, entusiasmado, lá fui eu... e não só fiquei muito impactado com o nível da agressividade da segurança imposta pelas tropas israelenses em cada recanto da cidade sagrada para as três grandes religiões monoteístas, senão também, a caminho de Belém, na véspera de Natal, cruzando o território palestino, no qual Belém se situa, pude avaliar as dificuldades que enfrenta uma população, sobretudo os mais jovens, confinada num país – chamemo-lo assim – em que se pode quase ver num só golpe de vista o muro inacessível da fronteira leste e o mar a oeste, ambos patrulhados pelos israelenses!!!! 

A pergunta que me ficou na alma é: qual é o limite da tolerância humana de suportar tais condições antes que o desespero leve – sobretudo os jovens sem futuro – a atitudes radicais e tresloucadas? Nada justifica, é claro, o que está acontecendo, assim como nada tampouco justifica as suas causas....

Trágico...Meninos, eu vi.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE - Fausto Godoy

Fausto Godoy se ocupa da atual fase de transição do conturbado mundo atual para algo ainda não devidamente identificado:


Fausto Godoy

ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE

Um jornalista do Jornal Nexo procurou-me hoje para conversarmos sobre a questão das tarifas de 50% que Donald Trump impôs à Índia para tentar impedir as importações daquele país de petróleo proveniente da Rússia. Juntamente com o Brasil, elas se encontram entre as maiores impostas pelos americanos a seus parceiros comerciais. Como sabemos, a razão levantada por Washington tem viés político, dentro do alegado esforço de Trump de subverter a economia da Rússia para forçar Vladimir Putin a acabar com a guerra da Ucrânia. A resposta de Nova Delhi não tardou: na tarde de ontem a Chancelaria Indiana descreveu a decisão como “injusta, injustificável e irrazoável”, acrescentando que as importações são baseadas em fatores e preços do mercado e têm por objetivo manter a segurança energética da sua população.
No mesmo “imbróglio” nos encontramos, nós brasileiros: como percebemos, o substrato de ambas as pressões tem viés político: no nosso caso o “fator Bolsonaro” e o Ministro Alexandre de Morais; no da Índia, a guerra da Ucrânia... A este último respeito, ainda que o objetivo seja numa primeira leitura, encomiável, à luz das tergiversações do presidente americano com relação à questão ucraniana (“remember” a sua entrevista desastrosa com Volodymyr Zelensky, no Salão Oval, e do vexame a que expôs o presidente Cyril Ramaphosa, da África do Sul, durante a visita deste à Casa Branca, quando fez acusações de que estaria ocorrendo uma "limpeza étnica" contra brancos na África do Sul), fica evidente o quão errática é a sua percepção de mundo...Trata-se, no nosso caso, de uma injustificável ingerência nos nossos assuntos internos (cf. Constituição do Brasil – artigo 4º.).
A conversa derivou, então, para o ímpeto dos americanos de Donald Trump em tentar moldar e subjugar as agendas dos países ao que consideram valores universais “American style”. Discutimos, por extensão, sobre as diferenças de percepção de mundo - e , por corolário, das relações - entre o Ocidente e o Oriente: este é um tema que tenho “à flor da pele”, em razão da minha vivência na região! Neste ponto, afirmei que, para mim, a primeira premissa é sabermos o quanto a nossa matriz civilizacional contemporânea - brasileira e miscigenada - atende aos valores do que eu chamaria do “Ocidente central”, e o quanto os compactuaríamos e compartilharíamos com a nossa cultura e ancestralidade: em suma, com o substrato africano e indígena da nossa matrizl, que apesar de toda a influência da cultura europeia e americana, nos tempos mais recentes, e do negacionismo de parte da nossa elite, é fundamental para nos entendermos, até em razão dos conflitos que geram.
Em seguida, mencionei o que, para mim, é o diagnóstico mais importante – e difícil de ser assimilado por muitos: a transferência do eixo da globalização do Ocidente Central para a Ásia...Para mim, este fator está-se tornando cada vez mais evidente. Senão vejamos: 1) segundo o Fundo Monetário Internacional, entre as dez maiores economias mundiais em termos de PIB nominal, três são asiáticas: China (2ª.); Japão (4ª.) e Índia (5ª.); 2) em termos de propriedade intelectual, que define o status da pesquisa tecnológica, segundo a Organização Internacional da Propriedade Intelectual (OMPI) os países que mais registraram pedidos de patentes de propriedade intelectual no ano passado, foram China, Estados Unidos, Japão, República da Coreia e Alemanha, sendo que a China lidera em vários indicadores, inclusive desenhos industriais e marcas, acompanhada do Japão e da Coreia do Sul; 3) entre os maiores exportadores mundiais estão a China (1º), o Japão e a Coreia do Sul; 4) a Índia e a China, nesta ordem, possuem as duas maiores populações do planeta - 2,8 bilhões conjuntamente – e a Índia, que possui a população mais jovem do mundo (mais da metade do seus 1,4 bilhão tem menos de 25 anos de idade), é um dos países que registraram maior crescimento nos últimos anos.
Fatos são fatos...Como lidar com esta realidade, tão longe geograficamente de nós... e tão parecida, em definitivo, em termos de valores civilizacionais?...
Na verdade, está sendo muito complexa a aceitação pelo Ocidente de que a dinâmica do mundo mudou e que é necessário conviver com paradigmas novos e distintos nas relações internacionais: o Oriente tornou-se fator decisivo na economia/política globalizada. Esta presença, crescente e irreversível, instiga sentimentos ambíguos: de um lado, respeito pelo despertar de um gigante de História muito antiga e, de outro, temor das consequências que esta presença possa causar. Mais que tudo, evidencia o despreparo para lidar com esta realidade. Acostumado a exportar seus valores e a impor seus conceitos civilizatórios como verdades absolutas e perenes sobre essa metade da massa humana, o Ocidente não tem sabido lidar com este novo fenômeno.
Estaríamos no umbral de uma nova hegemonia, compartilhada desta vez entre Estados Unidos (ainda...), China e ...Índia? Quando eu nasci, em junho de 1945, a Grã-Bretanha era (“remember...the sun never sets on the British Empire”?...) o hegemon mundial; mas já não mais: exausta no final da II Guerra ela cedia o bastão para os Estados Unidos e a União Soviética (passei grande parte da minha carreira envolto nas questões da Guerra Fria...); em 1991, desfez-se a União Soviética, e os Estados Unidos se consolidaram como o único hegemon, até que no início deste século surge a República Popular da China numa disputa compartilhada.
E as relações entre os países seguem o caminho atribulado da globalização... Então, fica a pergunta... e o repto: já está(ão)-se conformando o(s) próximo(s) hegemon(s)?... Deixo a pergunta no ar para os amigos... Acima de tudo, fica o desafio...e nós, Brasil, para onde vamos?...
To be continued...

sábado, 12 de julho de 2025

Fausto Godoy sobre as relações estratégicas entre o Brasil e a Índia (e um pouco da China também)

 O BRASIL, A ÍNDIA, E A NOSSA “PARCERIA ESTRATÉGICA”


Numa demonstração da falta de sintonia com a política internacional contemporânea relativa à Ásia, passou sem ênfase, e praticamente despecebida da nossa imprensa o que para mim foi o principal resultado da reunião do BRICS que acaba de acontecer no Rio de Janeiro: a presença do Primeiro-Ministro indiano, Narendra Modi, emprestou relevo especial a um evento de certa forma esvaziado pela ausência de dois dos principais membros do grupo, o chinês Xi Jinping e o russo Vladimir Putin. Ao término do evento, o PM indiano realizou, em 08 deste mês, uma “visita de Estado” ao nosso país. 

Para melhor entender este cenário é necessário primeiramente reiterar a diferença que existe entre uma visita de Estado e uma visita oficial, mais comum. Diferentemente do que seria esta última, o nível concedido à de Narendra Modi é o mais alto no protocolo da diplomacia: o “hóspede” foi a Índia, como Estado. Neste contexto, as decisões e os entendimentos alcançados vinculam antes os Estados que os governos, o que tem muito significado em termos políticos.  

O Comunicado Conjunto da visita resume os principais acordos a que chegaram. Eles estão elencados na “Declaração Conjunta”, que tem por título “Índia e Brasil, Duas Grandes Nações com Elevados Propósitos” (cf. o “site” do Itamaraty). Segundo seu enunciado “...a visita transcorreu em espírito de amizade e confiança, valores que há quase oito décadas constituem o alicerce da relação Brasil–Índia”... Mais importante, ainda, o documento recapitula que “a relação fora elevada ao patamar de Parceria Estratégica em 2006”. Como se sabe, uma parceria estratégica é mais vinculante que uma “simples” parceria: seus membros se comprometem a alcançar com maior empenho objetivos comuns, através de sinergias, com benefícios mútuos. 


Foram elencados no documento os cinco pilares prioritários que orientarão as relações na próxima década: 1) Defesa e Segurança; 2) Segurança Alimentar e Nutricional; 3) Transição Energética e Mudança do Clima; 4) Transformação Digital e Tecnologias Emergentes; e 5) Parcerias Industriais em Áreas Estratégicas; todos eles consentâneos com as realidades compartilhadas por ambos. A este respeito, comparando-se com os desafios enfrentados pela China de Xi Jinping, é possível concluir que os perfis de Brasil e Índia são muito mais assemelhados.


Por exemplo, a China anunciou ter erradicado a pobreza absoluta - num país de mais de 1,4 bilhão de habitantes - já no final de 2020. Índia e Brasil ainda estão longe de atingir este objetivo, o que os assemelha na comunidade de objetivos e de esforços nesse sentido. Outro exemplo: na década de  1980 até o início da década de 1990, o Produto Interno Bruto (PIB)  do Brasil era superior ao da China... Atualmente, o PIB do gigante asiático -, o segundo maior do planeta em termos de Produto Interno Bruto - é dez vezes maior que o do Brasil. A Índia, de sua parte, foi um dos países que mais cresceram no ano passado, e o aumento registrado do seu PIB neste primeiro trimestre de 2025 foi de 7,4%. Acrescente-se a isto o fato de que a idade media de sua população de mais de 1,4 bilhão de indivíduos é de 28.8 anos; destes 40% têm menos de 25 anos ! Imaginemos o que significa isto em termos de desafios, e de oportunidades para o país... e para a expansão do nosso intercâmbio..

A este respeito, embora o comércio entre Brasil e China tenha crescido significativamente nos últimos anos, tornando-a o nosso principal parceiro comercial, a relação é assimétrica, impulsionada sobretudo pelas exportações de commodities, do nosso lado, em contraponto com as nossas importações  de produtos industrializados, de tecnologia e da indústria de transformação, principalmente,, cristalizando uma interdependência assimétrica. No que respeita à Índia, o relacionamento ainda está muito aquém das possibilidades. A este propósito, um estudo da “ApexBrasil” identificou várias oportunidades para nossos produtos no mercado indiano. Estas oportunidades abrangem setores estratégicos, como combustíveis minerais, matérias-primas, máquinas e equipamentos de transporte, produtos químicos, artigos manufaturados e alimentos. Ainda a propósito, em 2023 as nossas exportações para ela somaram em  US$ 4,7 bilhões, contra US$ 104 bilhões para a China!... Diante deste quadro e do porte dessas economias, fica evidente que há espaço para diversificarmos e incrementarmos  substancialmente o nosso intercâmbio, com ambas, aliás... Ou seja, há muito espaço, sobretudo diante da perspectiva de que estes dois países serão as molas motoras no século XXI... no que acredito piamente!


Ainda cumprindo a agenda da reunião, os dois líderes “reiteraram seu compromisso com uma reforma abrangente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, inclusive com sua ampliação nas categorias de membros permanentes e não permanentes...” E, neste contexto, “...reiteraram o apoio mútuo às candidaturas de seus países a assentos permanentes num Conselho de Segurança ampliado e reafirmaram a intenção de continuar a trabalhar em boa coordenação em questões relacionadas à reforma do Conselho de Segurança", sublinha o documento.


No que respeita à situação no Oriente Médio “... eles expressaram preocupação com a recente escalada da situação de insegurança e reiteraram como única alternativa o diálogo e a diplomacia para abordar e resolver os múltiplos conflitos na região”... e “enfatizaram a importância de uma solução negociada de dois Estados que leve ao estabelecimento de um Estado palestino soberano, viável e independente, vivendo em paz e segurança com Israel”.


Outras áreas de importância tratadas pelos dois governantes foram a espacial e a cooperação marítima e oceânica. Conforme o documento “...os líderes reconheceram a importância de intensificar a cooperação em áreas estratégicas, com destaque para os usos pacíficos do espaço exterior. Ambos os lados comprometeram-se a explorar novas oportunidades de colaboração entre suas respectivas agências espaciais, inclusive nas áreas de design e desenvolvimento de satélites, veículos lançadores, lançamentos comerciais e estações de controle, além de pesquisa, desenvolvimento e capacitação técnica”. Cabe relembrar, a propósito, que em 2023 a Índia realizou um pouso histórico  da sua espaçonave Chandrayaan-3 na lua, com isto tornando-se o quarto país a alcançar tal façanha. Esta é certamente uma das áreas promissoras da Parceria Estratégica, pois abrange setores de tecnologia de ponta, nos quais a Índia se sobressai. Cabe, porém, relembrar que nós já temos um acordo de construção de satélites com a China, o “China and Brazil Earth Research Satelites”/CBERS, que monitora a Amazônia.


Ambicioso?...


Eu tive a chance de servir na Índia em duas oportunidades na minha carreira: primeiramente, na nossa Embaixada em Nova Delhi, em 1984/87, e posteriormente, em 2009/10, como Cônsul-Geral em Mumbai. Servi também, em Pequim, em 1994/7. Vivi, acredito, experiências em ambos países que me permitem tentar fazer uma análise tão isenta quanto meu possível do papel que China e Índia se encaminham a desempenhar mutuamente, e no mundo globalizado que se configura.


 Arrisco a pensar que as relações entre os dois gigantes se tornarão cada vez mais complexas em razão da disputa - “à la asiática” - pela liderança regional (e mundial, para alguns)...Parceiros e molas motoras no BRICS, são ao mesmo tempo antagonistas na disputa por protagonismo na Ásia. Por exemplo, confrontam-se na região das fronteiras que herdaram do colonialismo britânico nos cimos dos Himalaias, que já se deterioraram em várias guerras fronteiriças. Igualmente, competem por supremacia na região do sudeste asiático; a China através da iniciativa da “Nova Rota da Seda/BRI” e a Índia no projeto “Act East” - a “menina dos olhos de Modi” – pelo qual ela pretende tornar-se o principal parceiro econômico-comercial da vizinhança do sudeste asiático . 


Neste cenário, a pergunta que se coloca é para qual destino se encaminham essas relações: para uma convivência negociada, ainda que cada vez mais difícil, seguindo o  modelo asiático, ou a uma disputa acirrada e beligerante, com a República Popular buscando preservar a dianteira que logrou e a Índia jogando as cartas da sua crescente afluência, da sua população jovem, numerosa e cada vez mais afluente e “tecnologizada”?...


Cenário complexo...


E nós, onde ficamos nós, brasileiros, neste “Brave New World” do Ocidente estiolado e sem rumo do imperialismo “à la Trump”, e de uma Ásia cada vez mais afluente...e influente? Mais uma vez me vêm à lembrança as lições do nosso saudoso Chanceler Azeredo da Silveira: a “receita” é buscar, de forma autônoma, soberana e com discernimento político, os espaços que mais nos interessem,  beneficiando-nos inclusive das oportunidades que a disputa entre as duas superpotências asiáticas nos venham a abrir...


Cinismo... ou “real politik”?...


To be continued...

DIÁRIO DE BORDO: uma história universal entre Oriente e Ocidente - Fausto Godoy

 O Diário de Bordo de Fausto Godoy, uma fabulosa travessia nas grandes correntes de encontros e desencontros entre o Oriente (que ele conhece muito bem) e o Ocidente (por “defeito” de nascença), e um plaidoyer pela convivência harmoniosa.

Uma pequena grande história das relações, das interações, desencontros, dominação e oposição, nas trajetórias respectivas do Oriente e Ocidente, por um grande conhecedor prático, pelo estudo e pela convivência direta, por um fino conhecedor, e compendiador excepcional das virtudes, defeitos, contribuições e desafios de dois universos nas antioodas, que se conheceram, se retrairam, se relacionaram, prla cooperação e pela dominação, Fausto Godoy. PRA

DIÁRIO  DE  BORDO

Estou rascunhando um livro sobre as minhas andanças nestes 80 anos de vida, 40 de Itamaraty e quase 10 como professor universitário. É muita história, pelo que sou muito grato à Vida... Preparei uma introdução, em que tento explicar a minha visão sobre a Ásia, com base nas minhas experiências nos onze países em que servi durante quase dezesseis anos, e sobre o que penso das relações Ocidente/Oriente. Resolvi resumir tanto quanto possível neste texto algumas das reflexões e das conclusões a que cheguei. Por isto ele é longo, pelo que me desculpo antecipadamente perante os amigos que terão a paciência de chegarem até o final...mas não posso fazer de outra forma. Além de prolixo, vivi muito... Aqui vai o seu resumo:

“Está sendo muito complexa a aceitação pelo Ocidente de que a dinâmica do mundo mudou e que é necessário convivermos com paradigmas novos e distintos nas relações internacionais: a Ásia tornou-se fator decisivo na economia e na política globais; e sua presença, crescente e irreversível, instiga sentimentos ambíguos: de um lado, respeito pelo despertar de um gigante de História muito antiga e, de outro, apreensão pelas consequências que este protagonismo crescente possa causar. 

Mais que tudo, evidencia o nosso despreparo para lidar com esta realidade. Acostumado a exportar seus valores e a impor seus conceitos civilizatórios como verdades absolutas e perenes sobre esta mais da metade da raça humana, o Ocidente não tem sabido lidar com o novo fenômeno de que não serão mais possíveis situações como as Guerras do Ópio, promovidas pelos ingleses para impor à China o consumo da droga a fim de equilibrar uma balança comercial bilateral deficitária para a Grã-Bretanha; ou a abertura forçada do Japão Tokugawa às potências ocidentais; ou, ainda, o fim melancólico do Raj britânico e a independência arbitrária e intempestiva da Índia e do Paquistão, com as sequelas que deslanchou. Ainda pior, instituir uma ordem “à la Ocidental” a um Oriente cada vez mais assertivo da sua identidade e crescente poder. Os conflitos atuais – a guerra da Ucrânia, o conflito Israel-Hamas/Palestina, a guerra Israel-Irã, os talibãs no Afeganistão, etc. – evidenciam cada vez mais a incapacidade – e o profundo dilema que assola o Ocidente em lidar com uma “outra História”, que não entende e, de certa forma, lhe escapa.

De sua parte, antes de emergirem como elemento maior nas relações internacionais, os países asiáticos, assim como as ex-colônias europeias em todo o mundo, tiveram que absorver o impacto e administrar o legado da independência que tão traumaticamente alcançaram ao longo do século XX, sobretudo as fronteiras forjadas de forma artificial e arbitrária pelos colonizadores. O país que se tornaria o Laos, por exemplo, resultou de uma solução de conveniência para os colonizadores franceses no processo traumático da chamada “Guerra da Indochina”, que durou quase dez anos, causou perto de quatrocentas mil mortes e resultou na independência conturbada de três países - Vietnã, Laos e Camboja, abrindo ainda espaço para a Guerra do Vietnã, de trágica memória, sobretudo para os americanos que se envolveram no conflito. No final, a maioria da população de etnia lao tornou-se tailandesa e as fronteiras étnicas não se encaixam nas fronteiras políticas, com as consequências agudas que decorrem desta indefinição. Processo semelhante ocorreu na Malásia e na Indonésia: a população do norte da ilha de Sumatra foi repartida pelos holandeses ao largo do estreito de Malaca: parte tornou-se malaia e parte indonésia. Índia e Paquistão até hoje não solucionaram a questão da Caxemira, que está na raiz do recrudescimento do fundamentalismo islâmico e de sua cria: o extremismo talibã e seus desdobramentos. As cento e trinta e cinco etnias de Myanmar se recusam a aceitar a supremacia de qualquer uma delas no país definido arbitrariamente pelos colonizadores ingleses como Birmânia, e os “rohingyas” muçulmanos que foram deslocados arbitrariamente para servirem como “coolies” nas plantações de chá da região majoritariamente budista vivem hoje a tragédia de uma verdadeira “limpeza étnica”, que os tornou apátridas. Bem-vindos ao mundo westfaliano... 

As guerras do Vietnã nos confrontos da Guerra Fria, e as do Iraque e do Afeganistão, mais recentemente, assim como as tragédias na Líbia, na Síria, na Palestina, e agora a guerra entre Israel e Irã, demonstram o quanto as potências centrais do Ocidente são incapazes de entender e conviver com o “diferente” e com a penosa realidade de ter de compartilhar conceitos e valores que não lhes são próprios. Na contracorrente, tampouco têm sabido lidar com a “invasão” dos seus territórios por imigrantes e refugiados que buscam escapar de vicissitudes econômicas, muitas das quais herdadas do período em que foram colônias.

A “contaminação” entre culturas, ou, melhor, a introversão de referenciais culturais “estrangeiros” no quotidiano do indivíduo urbano contemporâneo, seja no Ocidente, seja no Oriente, obriga a que revisemos percepções e valores, senão os assimilando – o sushi nas churrascarias, o yoga nas academias, neste lado do planeta, ou a bolsa Louis Vuitton, no Japão, ou na China, o Mc Donald´s e os “jeans” em todo o planeta - como verdadeiro código interplanetário. Impõe-se a obrigação de convivermos com estas realidades irrefutáveis, e para os mais generosos e intelectualmente motivados, assimilá-las. Não somos mais ilhas, ou, melhor, os continentes/ilhas estão agora integrados no continente global... Bem-vindos todos à Pangeia restaurada...

Porém isto não quer absolutamente dizer que perdemos referenciais e valores próprios, mas sim que os globalizamos sempre quando exista comunicabilidade entre eles. Outros, porém, permanecem intocáveis, posto que constituem os alicerces das nossas genéticas culturais. Parecem-me que são “espaços inegociáveis”.

Talvez o mais fundamental desses valores e um dos principais diferenciais entre as duas grandes geografias mundiais seja a inserção do ser humano na sociedade: para o Ocidente o indivíduo constitui o seu cerne e alicerce. Tal é a mensagem da “Declaração dos Direitos do Homem”, corolário da Revolução Francesa, ou da Declaração da Independência norte-americana (...“nós consideramos como verdade auto-evidente que todos os homens nascem iguais, que eles são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre estes a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”...). Confúcio, nos Analectos, diria quase o oposto: “o filósofo Yu disse:...a  submissão filial e fraternal, não é ela a raiz de todas as ações benévolas?”. Para o asiático confucionista a virtude maior reside em servir à sociedade, em ser um elo para o seu funcionamento. O indivíduo somente se realiza no contexto social: o bom cidadão é aquele que obedece aos mais velhos e ao superior. Citando, ainda, Confúcio, nos Analectos (1:6):  “...o Mestre disse, o jovem deve ser um bom filho no lar e um indivíduo obediente fora dele, frugal nas palavras porém confiável no que diz, e deverá amar o povo,  no geral, porém cultivar a amizade dos companheiros... Em contrapartida, o ser superior deve ser merecedor desse respeito: “se o indivíduo for pessoalmente correto, então haverá obediência sem necessidade de ordens; mas se ele não for correto pessoalmente, não haverá obediência ainda que haja ordens”  (Analectos, 13:16).

Já o hindu tem uma visão quase diametralmente distinta: concentrado em suas encarnações futuras a caminho da transcendência (moksha), o indivíduo deve ocupar-se sobretudo do seu dharma,  sua lei/missão pessoal, e do seu kharma  que definiu a sua encarnação presente, fruto de suas vidas passadas, e o dirige para a próxima, que será melhor, ou pior, como resultado das suas ações que o seu livre-arbítrio indicará...É, aliás, o que ensina o Bhagavad Gita.

O Islã prega, de sua parte, a existência de um Deus único e absoluto, que revelou a Maomé, o seu Profeta, a sua lei, o Al Corão.  O significado do próprio termo “islã” – submissão – revela a relação entre o Criador e a criatura. Entretanto, contaminados pelo fanatismo religioso, os países islâmicos enfrentam desafios gigantescos para evitar que a paixão e a militância da fé termine por comprometer a própria sobrevivência do Estado. Fruto dela, o Afeganistão, que se confronta com uma comoção civil interminável, viveu o dilema de aceitar a presença de tropas estrangeiras, soviéticas e ocidentais, em seu território que em última instância se revelaram mais nefastas que eficazes. Outro não foi o desfecho trágico da desocupação das tropas americanas e a retomada do poder pelos talibãs. Esta verdadeira “cruzada” entre um islã deturpado por uma sociedade patriarcal anacrônica, para alguns, e o vagido de uma sociedade mais liberal, herdada da presença do Ocidente nestes últimos vinte anos, transborda para o vizinho Paquistão e tem poucas chances de chegar a um final feliz no curto, ou sequer médio, prazos. 

Estes conflitos vazaram as fronteiras territoriais e hoje envolvem praticamente todo o planeta. E os refugiados do Oriente e  da África, principalmente, que “invadem” a Europa na busca de uma vida mais pacífica encontram crescente resistência de seus anfitriões islamofóbicos. 

Será, em última instância, que esses valores perdurarão numa Ásia cada vez mais imbricada com o Ocidente... e vice-versa? Seria, por acaso, relevante que eles prevalecessem na forma em que estão? Quão “inegociáveis” serão eles?... 

O espraiamento do terrorismo para o Ocidente - as torres gêmeas de Nova York; a estação de Atocha, em Madri; os atentados na França; o “Boko Haram”, na Nigéria; as invasões do Iraque e da Síria; o retorno dos talibãs ao poder no Afeganistão; o conflito entre Israel e os militantes do Hamas na faixa de Gaza, e agora seu confronto com o Irã xiita, etc. - demonstram que estamos todos vulneráveis. Não podemos mais ignorar a questão; temos de nos posicionar, sob pena de sermos suas vítimas – próximas ou distantes. Mas qual é a melhor postura? A arrogância das potências centrais que buscam impor suas políticas... a agressividade bélica das tropas estrangeiras pela Ásia afora... as guerras que destampam a ameaça de um holocausto nuclear e causam o êxodo de milhares de indivíduos pelo Ocidente afora?... A busca de uma “contemporização” que abrirá ainda maiores espaços para a militância?... 

A resposta é certamente difícil e nunca deixará de ser incompleta. Não obstante demasiado complexo, o “dilema” precisa ser enfrentado se quisermos encontrar um mínimo de convivência entre os indivíduos e os povos no planeta cada vez mais globalizado. Nesse quadro, talvez a melhor solução seja buscar entender o fenômeno sem “parti pris”, sem “verdades absolutas”, hierarquia de conceitos ou imposição de valores, abrindo espaço para o diálogo construtivo. Temos que escapar do “absoluto” nos nossos julgamentos e convivermos com o “relativo” das múltiplas realidades: nada é “negro” e nada é “branco” nas relações entre os Estados e os indivíduos. Temos que atuar na gama do “cinza” da negociação, que deixa espaço para o entendimento e a humanidade.  

Impossível...Devaneio?... Haveria outra saída para a Pangeia globalizada?... Não é projeto fácil, contaminado que está pela intransigência contrária à discussão isenta e pelo fanatismo dogmático de abandonar posições rígidas. Daí a necessidade cada vez maior de buscarmos as raízes do problema, que, para mim, estão na impermeabilidade dos indivíduos e das instituições em conviver com a alteridade”... 


 To be continued...

terça-feira, 12 de novembro de 2024

O BRASIL E A NOVA ROTA DA SEDA (I) - Fausto Godoy (Facebook)

 O BRASIL E A NOVA ROTA DA SEDA (I)

Fausto Godoy (Facebook, 11/11/2024)

Polemizando...
O Estadão publicou recentemente na sua parte editorial um artigo que replica matéria do “The Economist” sobre a participação do Brasil no projeto da “Belt and Road Initiative”/BRI’ - a Nova Rota da Seda- promovida pelo governo da China. Segundo a matéria “uma eventual adesão pode até parecer bom negócio, mas é preciso ponderar se isso é realmente necessário, e se o custo geopolítico de um alinhamento desse tipo com a China não será alto demais.”
A questão é não somente oportuna, mas fundamental para balizarmos os grandes vetores da inserção do Brasil no processo de globalização (?) que se está conformando neste século. Para tanto, é importante revisitarmos a História para chegarmos a uma (qualquer) conclusão sobre qual destino a “Belt and Road Initiative” nos propiciaria...
Para tanto recorramos à História. A este respeito, sabemos que alimentada pelo comércio com o Ocidente através da Rota da Seda, a China imperial foi a principal economia do planeta até meados do século XIX. Sôfrega por produtos – seda, especiarias, porcelanas, etc. - que de lá chegavam para referendar a opulência das suas elites, a Europa, com a Inglaterra à frente, não conseguia contrabalançar com a prata que partia das Américas a balança de comércio que lhe era profundamente deficitária. Diante disto, os ingleses decidiram promover o contrabando espúrio do ópio, transformando a China num “país de drogados”. Confrontada com a resistência das autoridades do império chinês, a Corte de Saint James promoveu as duas chamadas “Guerras do Ópio” (1839-1842 e 1856-1860), que inauguraram um período extremamente conturbado que os chineses chamam até hoje de “o século das humilhações”, uma das causas motrizes da emergência do ideário comunista e de todas as convulsões políticas que o país viveu ao longo do século passado, até que, à morte de Mao Zedong, em 1976, Deng Xiaoping abriu o país para o exterior com a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZPE´s), rompendo o isolamento multissecular da China.
A partir de então as autoridades chinesas, com o Partido Comunista à frente, passaram a focar o desenvolvimento econômico como prioridade, sobretudo após a morte de Mao. Mantiveram, porém, os jargões comunistas – e a foto de Mao no muro da Cidade Proibida – como garantes de que o processo não se “descarrilaria”. Isto porque as raízes ancestrais confucionistas da sociedade chinesa “exigem” que o governante observe o “Mandato do Céu”, ou seja, que atenda aos interesses da população, legitimando-o no poder.
Com a aceleração do processo de desconstrução do radicalismo maoísta (ainda que mantendo seus referenciais teóricos...), fruto da abertura e da crescente integração do país ao exterior e às cadeias mundiais de comércio, a partir do final dos anos setenta - em 2020, a China foi o maior exportador do planeta (US $ 2,49 trilhões, ou 13,3% do total mundial) e o segundo maior importador, em 2019 ( US$ 2,06 trilhões), ela decidiu se reinventar. Dois vetores, principalmente, estruturaram os seus projetos de desenvolvimento e o seu espraiamento impressionante pelo mundo afora neste último quartel de século, inclusive na América Latina: 1) a “Nova Rota da Seda” (BRI), e 2) o “Plano China 2025”, através dos quais o Governo Central tem-se empenhado em “aggiornar” o país. No “XIV Plano Quinquenal da China”, de 2015, ela estabeleceu um conjunto de metas destinadas a fortalecer a economia através do plano “Made in China 2025”, que priorizou dez setores de tecnologia de ponta que atualizarão, consolidarão e alavancarão a sua indústria, transformando a República Popular numa potência tecnológica - acreditam os chineses - capaz de influenciar padrões, cadeias de suprimento e de valor globais: a tecnologia 5G e os automóveis elétricos BYD são apenas alguns exemplos deste novo “status quo”.
A segunda meta foi reconstruir o antiga Rota da Seda, que fez a sua fortuna através dos séculos, interligando três continentes: a Ásia, a Europa e a África. Porém desta feita não mais no lombo dos camelos, senão através de uma rede de sistemas tanto tecnológicos quanto empresariais e financeiros, lançando mão dos bilhões de dólares das reservas que ela acumulou nesse processo.
Aí chegamos à América Latina...Segundo a matéria, “um dos projetos principais recentes é um grande porto em Chancay, no Peru, no qual a Cosco, maior empresa de transporte marítimo chinesa, vai investir em parceria com uma empresa peruana cerca de US$ 1,3 bilhão, para o desenvolvimento da infraestrutura portuária. Por ali, devem ser escoados rumo à Ásia desde materiais para a transição energética, como o lítio, a alimentos e produtos industrializados. O objetivo é óbvio: encurtar em um terço o tempo médio que os produtos da região levam para chegar ao Oriente”.
A matéria anota ainda que um dos objetivos paralelos é manter a região, sobretudo a América do Sul, como um dos vetores para o incremento do seu comércio mundial, que cresceu, na região, de US$ 18 bilhões, em 2002, para US$ 450 bilhões, em 2022! Desta forma, a RPC já superou os EUA como o principal parceiro comercial de Brasil, Chile, Peru, entre outros países. Só no Peru os chineses investiram cerca de US$ 24 bilhões nos setores de mineração, energia e transportes. Entretanto, no caso da América Central e do México, a sua presença sofre a concorrência da política do “nearshoring” americano.
E chegamos ao Brasil...e à pergunta que não quer se calar: nos interessa integrar a BRI – e para tanto algumas empresas chinesas instaladas no nosso solo estão concentrando seus investimentos em portos e rodovias – e aderirmos a este processo, com seus bônus e os seus ônus? Constituiria isto, em definitivo, uma real “ameaça”, como acredita parte da nossa população, à nossa soberania, tanto política quanto territorial?...
Um destes paradigmas estratificados são os fatores ideológicos envolvidos no processo de “aliciamento" pelos comunistas. Neste ponto, lanço mão da minha experiência de campo na China e nos vários países asiáticos nos quais servi ao longo dos meus dezesseis anos na Ásia: não notei neste tempo todo de convívio, nem na China e nem com os temas chineses, qualquer empenho de Pequim em “converter” outros governos ao seu credo. A ela interessam as questões econômicas. Vejo, na contracorrente, temor de alguns de nós, brasileiros, de sermos abduzidos pelo “comunismo”... embora seja cada vez mais difícil para mim entender o que seja “comunismo” no país que abriga o maior número de bilionários do planeta...
Distopia ideológica?...Ameaça real?...Quais seriam as vantagens e as desvantagens de uma ameaça de “contaminação” por valores que, no fundo...no fundo.., são estranhos à nossa cultura? Recorro sempre à nossa história recente, quando em pleno governo Geisel, o Brasil militar transferiu o reconhecimento do país “China”, de Taiwan para o Continente, e foi o primeiro país a reconhecer o governo de esquerda de Agostinho Neto em Angola...Nossos interesses, comerciais, sobretudo, nos mostraram esse caminho. O título que se deu a essa política foi “pragmatismo responsável”, cunhada pelo maior Chanceler brasileiro no século passado: Antonio Azeredo da Silveira! Ou... mimetizando Deng Xiaoping... sim, ele mesmo, chinês: “não importa se o gato é preto ou branco desde que cace ratos...” coincidíamos, então... Corolário: são os nossos interesses nacionais que devem balizar o nosso relacionamento com outras nações., ”as simple as that...it´s the economy, stupid”... Mantemos a nossa integridade política e civlizacional e nos lançamos na aventura universal...
To be continued...

quarta-feira, 24 de maio de 2023

O Brasil e sua política externa- Fausto Godoy

 Um artigo que merece comentários deminha parte. Eles virão… (PRA)


O BRASIL, O G-7 ...E A TAL DA DEPENDÊNCIA DA CHINA

Polemizando...

Fausto Godoy

O artigo publicado no Estadão de hoje, 22/05, de autoria da minha colega professora da “Escola Superior de Propaganda e Marketing”/ESPM, Denilde Holzhaker, intitulado “Cúpula expôs paradoxos da diplomacia brasileira”, instigou-me a refletir sobre a participação do Brasil na Cúpula do G-7. 

Tem ela razão em afirmar que “a reunião do G-7 realizada em Hiroshima expôs os desafios que a ordem multilateral enfrenta, não apenas no tocante à gestão de crises globais, mas também na busca por diálogo além dos países membros do grupo”. Tem ainda maior razão quando afirma que “as relutâncias manifestadas pelo Brasil e pela Índia em se alinharem aos líderes do G-7 reforçam a árdua tarefa de avançar na construção de um consenso global”.

A questão é: qual seria este “consenso global”... que cara teria ele? A do grupo dos países “mais ricos” do planeta, que (ainda) se consideram os guardiões dos “valores universais” – democracia “western style”, direitos humanos, segurança internacional, etc... -  num planeta em acelerada transformação? 

Tem razão a Professora Denilde quando afirma que “embora os países do G-7 compartilhem de um entendimento - eu diria convicção - em relação à Ucrânia, condenando as agressões russas e partilhando a visão de contenção do poderio chinês, a tentativa de obtenção de apoio de Índia, Brasil e Indonésia esbarra na falta de confiança dessas nações”. Aí está o dilema: no nosso caso: onde nos encaixaremos, nós e a nossa diplomacia, que tem que respeitar os preceitos de “não intervenção” e “solução pacífica dos conflitos” inscritos lapidarmente no artigo 4º da Constituição, no contexto desta guerra? Ou seja, o outro lado da moeda é exatamente este: conceitos que servem bem a determinada(s) civilização ("ões") não se aplicam “erga omnes” num mundo ao mesmo tempo globalizado e apegado às tradições e valores próprios das suas sociedades.

Denilde também tem razão ao afirmar que “a diplomacia brasileira deve incessantemente se esforçar para ressaltar a necessidade de reforma das instituições multilaterais. Mas é imprescindível não ceder à ingenuidade diante da crescente bipolaridade mundial, e das estratégias dos países ocidentais para conter a China”. A meu juízo, Brasil e Índia, com suas características próprias, fazem parte de um planeta em plena transformação; isto é tautológico, evidentemente, mas nem sempre percebido e introspectado em toda a sua dimensão: uma coisa é saber, e outra apreender o seu significado em toda a plenitude... e consequências...

Aí é que está a questão: onde nos posicionamos nesta prevista  bipolaridade? Nos apegaríamos ao Ocidente central rico, mas crescentemente envelhecido e  confrontado com os países cada vez mais afluentes do Oriente – China, Índia, Japão, Coreia do Sul, ASEAN, etc. – , em direção aos quais o mundo está transferindo o protagonismo da globalização? 

Adotaríamos uma posição conservadora e anacrônica por desconhecimento... ou preconceito... ou temor de olharmos para onde esta globalização se encaminha, e que poderia nos trazer benefícios maiores? Senão vejamos: o nosso principal parceiro comercial, desde 2009, é a China “comunista”, como sabemos todos. A Índia – o 5º PIB mundial - se encaminha para tornar-se a terceira maior economia do planeta até o final deste século, segundo os analistas.. Seriam os valores do Ocidente suficientes para conter esta configuração da economia mundial que o próprio Ocidente desenhou em meados do século passado?

Como já disse em outro texto, quando eu nasci, em junho de 1945, no final da II Guerra, o hegemon mundial ainda era a Grã-Bretanha, mas já não mais...depois consolidou-se a bipolaridade compartilhada entre os Estados Unidos, guardião do capitalismo ocidental, e a União Soviética, do mundo comunista... com a dissolução desta, em 1991, restaram apenas os Estados Unidos...e agora, desde o início deste século, emergiu a China...Ou seja, no meu tempo de vida –  77 anos - convivi com quatro hegemonias. Qual será a próxima?... 

E como a nossa política externa deve agir neste cenário mutante?Uma coisa é a estrutura do poder mundial...e outra é a nossa essência, brasileira. A meu juízo, compartilhamos a grande maioria dos valores do Ocidente central... mas não todos. Esta nossa natureza aconselha, acredito, a sufragar antes de tudo as nossas especificidades como país e nacionalidade, bem como os nossos  objetivos próprios. O melhor caminho, acredito, é seguir a teoria – e prática – do “pragmatismo responsável”, que o Itamaraty aplicou sob a liderança do Chanceler Antonio Azeredo da Silveira, na década de 70: o que define a nossa diplomacia são os nossos interesses nacionais. Foi assim que em pleno governo militar transferimos o reconhecimento da China de Taipé – capitalista – para Pequim - comunista. Pelo visto, acertamos... 

Acho que o Itamaraty tem toda razão em adotar uma postura neutra!

Sugiro aos amigos  que leiam o artigo da professora Holzhaker:



quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Fausto Godoy, o colecionador de civilizações asiáticas - Reinaldo Bessa

 


Fausto Godoy, o colecionador de civilizações que doou seu acervo ao MON; leia seu perfil na coluna de Reinaldo Bessa para a revista Pinó

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Reinaldo Bessa

Fausto Godoy, o colecionador de civilizações que doou sua coleção ao MON; leia seu perfil na coluna de Reinaldo Bessa na revista Pinó

“O senhor que é o Fausto, né?”, pergunta uma jovem turista gaúcha acompanhada da mãe antes de pedir para tirar uma foto, ao que o senhor de inacreditáveis 77 anos consente sorrindo timidamente. Ao agradecer, a garota emenda: “Decidi que quero ser diplomata por sua causa”. Fausto agradece e lhe deseja boa sorte. O breve encontro foi ao final da visita à exposição “Ásia: a Terra, os Homens, os Deuses” que fiz ciceroneado pelo embaixador Fausto Martha Godoy durante sua última vinda a Curitiba, na primeira semana de novembro. 

Sua vida está resumida naquela exposição, em cartaz permanente desde abril de 2018 no Museu Oscar Niemeyer, escolhido por ele para receber o acervo em definitivo. Cada um daqueles objetos – do menor, que cabe no bolso do paletó, ao maior, que só pode ser transportado em contêiner – foi adquirido por ele em quase 40 anos de carreira diplomática, quase toda ela desenvolvida no continente asiático.

A condição de embaixador lhe dava o direito de despachar as peças e obras de arte adquiridas por contêineres para o Brasil. Afinal, como trazer na bagagem um riquixá indiano ou as inúmeras estátuas, esculturas e quadros, além de móveis de grandes dimensões? Fausto sabe a história de cada uma delas. “Quando comprava uma peça, procurava saber sua história. Digo que não criei uma coleção de arte, mas de civilizações”, afirma, para completar: “A Ásia é a cultura do excesso. Excesso de gente, de cheiros”. Diante de cada item da mostra, ele dá uma pequena aula. Ao reparar no interesse do público de todas as idades, exibe um sorriso de orelha a orelha. Nem todos que ali circulam sabem quem ele é.

Não fosse sua determinação em contrariar o desejo paterno, provavelmente hoje ele ainda estaria morando em Bauru, no oeste paulista, onde nasceu, e vivendo confortavelmente como titular do cartório de Registro Civil da cidade. Quando o pai quis passar-lhe o cartório disse que seu futuro estava garantido. “Não quero ser rico, quero viver uma vida bonita”, respondeu sem a menor diplomacia filial. 

Tudo o que Fausto não queria era assumir o negócio familiar, ter um cavalo na Sociedade Hípica Bauruense e tampouco constituir família. “Queria sair da província e uma profissão que não me prendesse a uma vida confortabilíssima, mas sem graça”, diz. O pai aceitou com dificuldade a decisão do primogênito – ele tem uma irmã mais nova – e concordou em bancá-lo por seis meses em Paris. 

Fausto Godoy, o colecionador de civilizações que doou sua coleção ao MON; leia seu perfil na coluna de Reinaldo Bessa na revista Pinó

O acordo era que, se não desse certo, ele voltaria e assumiria o cartório. Os seis meses duraram seis anos e a carreira diplomática foi o caminho que encontrou para ganhar o mundo. Às vezes, quando o dinheiro faltava, ligava para a mãe para pedir uma ajuda. Antes de atender ao pedido ela dizia: “Se você não tivesse jogado fora o cartório não estaria me pedindo agora” relembra divertido. O pai morreu em 1986 a tempo de ver o filho consolidado na carreira.

Já formado em Direito, aproveitou a estada na França para fazer doutorado e cursar História da Arte. Em 1975, prestou concurso para o Itamaraty. Foi o terceiro colocado da turma. “A diplomacia foi uma fuga que virou um achado”, diz. Em 1979, ele assumiu seu primeiro posto, como 3º secretário da embaixada do Brasil em Bruxelas, na Bélgica. Dois anos e meio depois foi deslocado para Buenos Aires com a Argentina sob a baioneta do ditador Jorge Rafael Videla. Pegou toda a Guerra das Malvinas, vencida pela Inglaterra de Margareth Thatcher.

Ao deixar o posto, com o país redemocratizado com a eleição de Raúl Alfonsín, foi convidado a assessorar o embaixador do Brasil na capital indiana, Nova Deli. “A Índia foi um tapa na cara. Um caipirinha de Bauru topando com Ganesha”, recorda-se aos risos. A partir daí, fez seu check-in na civilização hindu e se jogou no país dos marajás. “Virei um rato da Índia”, define-se. Em 16 anos passou por 11 países, o que lhe confere o título de único membro da diplomacia brasileira que serviu no maior número de nações asiáticas. Foi quando começou a formar sua coleção de peças doadas ao museu paranaense, do qual tornou-se curador de assuntos asiáticos. Inicialmente, ela estava destinada à Universidade de Brasília. Enquanto estava na ativa Fausto a mantinha em sua ampla casa no Lago Sul, que construiu quando atuava como embaixador no Paquistão.

Mais tarde, com a venda do imóvel residencial, ele precisava achar um local para as peças. As tratativas com a UnB não prosperaram e Fausto as levou para o MASP, em São Paulo, onde, segundo diz, foi construído um puxadinho para acomodá-las. A ideia era fazer um comodato com o museu paulista. Novamente surgiram entraves burocráticos e a coleção foi devolvida. 

Em 2015, por sugestão de José Teixeira Coelho Netto, então curador geral do MASP e também da Bienal de Curitiba e amigo da diretora-presidente do MON, Juliana de Almeida Vosnika, decidiu doá-la ao museu. Enfim, as milhares de peças acumuladas por Fausto ao longo de quase quatro décadas encontraram um lar definitivo. Ponto para os curitibanos. Ave, Ganesha! Com a vinda da coleção para cá, Fausto sonha em transformar o MON no primeiro museu de arte não europeia do Brasil, com nível de Metropolitan, segundo ele. 

“Quero que Curitiba se torne o centro de pesquisa sobre a Ásia no Brasil e que o MON seja a pedra de toque disso”, diz. Para ele, as pessoas não fazem a menor ideia do que está acontecendo por lá. “Fico fulo da vida quando falam em comunismo chinês. Que comunismo é esse que tem o maior número de milionários?”, questiona. 

Para ajudá-las a compreender as complexidades do continente, ele criou, em 2021, o Centro de Estudos das Civilizações da Ásia na Escola Superior de Propaganda e Marketing, em São Paulo, do qual é coordenador. Fausto diz que o prazer de todo diplomata é falar mal do lugar onde está servindo. Com ele deu-se o contrário, especialmente com a Índia. “Fui conhecendo as pessoas e a Índia me adotou”, fala com entusiasmo. 

Certa vez, um colega o indicou a uma aluna que precisava entrevistar alguém sobre o país para o seu Trabalho de Conclusão de Curso com a seguinte recomendação: “Tem um maluco aí que adora a Índia”. Até hoje seus melhores amigos são indianos e suas férias sempre são lá. Durante a entrevista, contou que estava de viagem marcada para o país em dezembro, onde pretendia ficar um mês e meio. Ele e um grupo de amigos haviam combinado fazer trecking no vizinho Nepal. 

Depois de cumprir dois anos e meio de serviço no país, Fausto voltou para o Brasil para uma reciclagem obrigatória e logo em seguida foi designado para chefiar o setor cultural da embaixada brasileira em Washington a convite do embaixador Rubens Ricupero.

Mas a Ásia estava de olho nele e vice-versa. Após um período na capital norte-americana, seguiu para a China como chefe do setor político da embaixada, já na posição de conselheiro. De lá, foi transferido para Tóquio, onde permaneceu mais tempo, três anos e meio, como ministro-conselheiro. O embaixador era Celso Amorim – que deverá voltar à chefia do Itamaraty no novo governo Lula a partir de janeiro de 2023. Fausto pediu-lhe para assumir a embaixada do Brasil na gélida Islândia. Em 2004, ocupou pela primeira vez o cargo mais alto na hierarquia da carreira. Do pequeno país insular no extremo norte do globo terrestre foi para Cabul, capital do conturbado Afeganistão. Foi o primeiro embaixador brasileiro a apresentar credenciais no país hoje novamente sob o domínio do Talibã. Ao concluir a gestão, regressou ao Brasil e abdicou de outros postos de comando. Optou por atuar apenas como encarregado de negócios em embaixadas para ter mais liberdade. Liberdade que usufruiu mergulhando cada vez mais nas diversas culturas asiáticas. 

O bauruense Fausto fala da Ásia com a intimidade de um nativo. Para ele, a curva da civilização saiu do Ocidente e migrou para o Oriente. “Peguei quatro hegemonias desde 1945: a Inglaterra, a União Soviética, a queda desta em 1991 e agora a hegemonia compartilhada entre China e Estados Unidos”, diz. Daí seu empenho em mostrar a riqueza cultural do continente para que as pessoas entendam porque ele é hegemônico no mundo atual. Segundo Fausto, em 30 anos a China vai superar os Estados Unidos. Quem viver, verá, garante. Enquanto isso, ele continua adquirindo peças asiáticas e diz não fazer ideia do quanto já investiu no hobby desde que iniciou sua coleção. 

A tão sonhada vida bonita que planejou na juventude ao recusar o cargo vitalício de cartorário concretizou-se. Para vivê-la, Fausto Martha Godoy abriu mão da riqueza material que a função lhe traria para acumular uma fortuna incalculável em conhecimento e experiências como cidadão do mundo. A pergunta da jovem turista gaúcha que o abordou mostra o quanto ele estava certo. Ninguém é Fausto Godoy por acaso. Registre-se em cartório.