O BRASIL E A NOVA ROTA DA SEDA (I)
Fausto Godoy (Facebook, 11/11/2024)
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
O BRASIL E A NOVA ROTA DA SEDA (I)
Fausto Godoy (Facebook, 11/11/2024)
Um artigo que merece comentários deminha parte. Eles virão… (PRA)
O BRASIL, O G-7 ...E A TAL DA DEPENDÊNCIA DA CHINA
Polemizando...
Fausto Godoy
O artigo publicado no Estadão de hoje, 22/05, de autoria da minha colega professora da “Escola Superior de Propaganda e Marketing”/ESPM, Denilde Holzhaker, intitulado “Cúpula expôs paradoxos da diplomacia brasileira”, instigou-me a refletir sobre a participação do Brasil na Cúpula do G-7.
Tem ela razão em afirmar que “a reunião do G-7 realizada em Hiroshima expôs os desafios que a ordem multilateral enfrenta, não apenas no tocante à gestão de crises globais, mas também na busca por diálogo além dos países membros do grupo”. Tem ainda maior razão quando afirma que “as relutâncias manifestadas pelo Brasil e pela Índia em se alinharem aos líderes do G-7 reforçam a árdua tarefa de avançar na construção de um consenso global”.
A questão é: qual seria este “consenso global”... que cara teria ele? A do grupo dos países “mais ricos” do planeta, que (ainda) se consideram os guardiões dos “valores universais” – democracia “western style”, direitos humanos, segurança internacional, etc... - num planeta em acelerada transformação?
Tem razão a Professora Denilde quando afirma que “embora os países do G-7 compartilhem de um entendimento - eu diria convicção - em relação à Ucrânia, condenando as agressões russas e partilhando a visão de contenção do poderio chinês, a tentativa de obtenção de apoio de Índia, Brasil e Indonésia esbarra na falta de confiança dessas nações”. Aí está o dilema: no nosso caso: onde nos encaixaremos, nós e a nossa diplomacia, que tem que respeitar os preceitos de “não intervenção” e “solução pacífica dos conflitos” inscritos lapidarmente no artigo 4º da Constituição, no contexto desta guerra? Ou seja, o outro lado da moeda é exatamente este: conceitos que servem bem a determinada(s) civilização ("ões") não se aplicam “erga omnes” num mundo ao mesmo tempo globalizado e apegado às tradições e valores próprios das suas sociedades.
Denilde também tem razão ao afirmar que “a diplomacia brasileira deve incessantemente se esforçar para ressaltar a necessidade de reforma das instituições multilaterais. Mas é imprescindível não ceder à ingenuidade diante da crescente bipolaridade mundial, e das estratégias dos países ocidentais para conter a China”. A meu juízo, Brasil e Índia, com suas características próprias, fazem parte de um planeta em plena transformação; isto é tautológico, evidentemente, mas nem sempre percebido e introspectado em toda a sua dimensão: uma coisa é saber, e outra apreender o seu significado em toda a plenitude... e consequências...
Aí é que está a questão: onde nos posicionamos nesta prevista bipolaridade? Nos apegaríamos ao Ocidente central rico, mas crescentemente envelhecido e confrontado com os países cada vez mais afluentes do Oriente – China, Índia, Japão, Coreia do Sul, ASEAN, etc. – , em direção aos quais o mundo está transferindo o protagonismo da globalização?
Adotaríamos uma posição conservadora e anacrônica por desconhecimento... ou preconceito... ou temor de olharmos para onde esta globalização se encaminha, e que poderia nos trazer benefícios maiores? Senão vejamos: o nosso principal parceiro comercial, desde 2009, é a China “comunista”, como sabemos todos. A Índia – o 5º PIB mundial - se encaminha para tornar-se a terceira maior economia do planeta até o final deste século, segundo os analistas.. Seriam os valores do Ocidente suficientes para conter esta configuração da economia mundial que o próprio Ocidente desenhou em meados do século passado?
Como já disse em outro texto, quando eu nasci, em junho de 1945, no final da II Guerra, o hegemon mundial ainda era a Grã-Bretanha, mas já não mais...depois consolidou-se a bipolaridade compartilhada entre os Estados Unidos, guardião do capitalismo ocidental, e a União Soviética, do mundo comunista... com a dissolução desta, em 1991, restaram apenas os Estados Unidos...e agora, desde o início deste século, emergiu a China...Ou seja, no meu tempo de vida – 77 anos - convivi com quatro hegemonias. Qual será a próxima?...
E como a nossa política externa deve agir neste cenário mutante?Uma coisa é a estrutura do poder mundial...e outra é a nossa essência, brasileira. A meu juízo, compartilhamos a grande maioria dos valores do Ocidente central... mas não todos. Esta nossa natureza aconselha, acredito, a sufragar antes de tudo as nossas especificidades como país e nacionalidade, bem como os nossos objetivos próprios. O melhor caminho, acredito, é seguir a teoria – e prática – do “pragmatismo responsável”, que o Itamaraty aplicou sob a liderança do Chanceler Antonio Azeredo da Silveira, na década de 70: o que define a nossa diplomacia são os nossos interesses nacionais. Foi assim que em pleno governo militar transferimos o reconhecimento da China de Taipé – capitalista – para Pequim - comunista. Pelo visto, acertamos...
Acho que o Itamaraty tem toda razão em adotar uma postura neutra!
Sugiro aos amigos que leiam o artigo da professora Holzhaker:
Reinaldo Bessa
“O senhor que é o Fausto, né?”, pergunta uma jovem turista gaúcha acompanhada da mãe antes de pedir para tirar uma foto, ao que o senhor de inacreditáveis 77 anos consente sorrindo timidamente. Ao agradecer, a garota emenda: “Decidi que quero ser diplomata por sua causa”. Fausto agradece e lhe deseja boa sorte. O breve encontro foi ao final da visita à exposição “Ásia: a Terra, os Homens, os Deuses” que fiz ciceroneado pelo embaixador Fausto Martha Godoy durante sua última vinda a Curitiba, na primeira semana de novembro.
Sua vida está resumida naquela exposição, em cartaz permanente desde abril de 2018 no Museu Oscar Niemeyer, escolhido por ele para receber o acervo em definitivo. Cada um daqueles objetos – do menor, que cabe no bolso do paletó, ao maior, que só pode ser transportado em contêiner – foi adquirido por ele em quase 40 anos de carreira diplomática, quase toda ela desenvolvida no continente asiático.
A condição de embaixador lhe dava o direito de despachar as peças e obras de arte adquiridas por contêineres para o Brasil. Afinal, como trazer na bagagem um riquixá indiano ou as inúmeras estátuas, esculturas e quadros, além de móveis de grandes dimensões? Fausto sabe a história de cada uma delas. “Quando comprava uma peça, procurava saber sua história. Digo que não criei uma coleção de arte, mas de civilizações”, afirma, para completar: “A Ásia é a cultura do excesso. Excesso de gente, de cheiros”. Diante de cada item da mostra, ele dá uma pequena aula. Ao reparar no interesse do público de todas as idades, exibe um sorriso de orelha a orelha. Nem todos que ali circulam sabem quem ele é.
Não fosse sua determinação em contrariar o desejo paterno, provavelmente hoje ele ainda estaria morando em Bauru, no oeste paulista, onde nasceu, e vivendo confortavelmente como titular do cartório de Registro Civil da cidade. Quando o pai quis passar-lhe o cartório disse que seu futuro estava garantido. “Não quero ser rico, quero viver uma vida bonita”, respondeu sem a menor diplomacia filial.
Tudo o que Fausto não queria era assumir o negócio familiar, ter um cavalo na Sociedade Hípica Bauruense e tampouco constituir família. “Queria sair da província e uma profissão que não me prendesse a uma vida confortabilíssima, mas sem graça”, diz. O pai aceitou com dificuldade a decisão do primogênito – ele tem uma irmã mais nova – e concordou em bancá-lo por seis meses em Paris.
O acordo era que, se não desse certo, ele voltaria e assumiria o cartório. Os seis meses duraram seis anos e a carreira diplomática foi o caminho que encontrou para ganhar o mundo. Às vezes, quando o dinheiro faltava, ligava para a mãe para pedir uma ajuda. Antes de atender ao pedido ela dizia: “Se você não tivesse jogado fora o cartório não estaria me pedindo agora” relembra divertido. O pai morreu em 1986 a tempo de ver o filho consolidado na carreira.
Já formado em Direito, aproveitou a estada na França para fazer doutorado e cursar História da Arte. Em 1975, prestou concurso para o Itamaraty. Foi o terceiro colocado da turma. “A diplomacia foi uma fuga que virou um achado”, diz. Em 1979, ele assumiu seu primeiro posto, como 3º secretário da embaixada do Brasil em Bruxelas, na Bélgica. Dois anos e meio depois foi deslocado para Buenos Aires com a Argentina sob a baioneta do ditador Jorge Rafael Videla. Pegou toda a Guerra das Malvinas, vencida pela Inglaterra de Margareth Thatcher.
Ao deixar o posto, com o país redemocratizado com a eleição de Raúl Alfonsín, foi convidado a assessorar o embaixador do Brasil na capital indiana, Nova Deli. “A Índia foi um tapa na cara. Um caipirinha de Bauru topando com Ganesha”, recorda-se aos risos. A partir daí, fez seu check-in na civilização hindu e se jogou no país dos marajás. “Virei um rato da Índia”, define-se. Em 16 anos passou por 11 países, o que lhe confere o título de único membro da diplomacia brasileira que serviu no maior número de nações asiáticas. Foi quando começou a formar sua coleção de peças doadas ao museu paranaense, do qual tornou-se curador de assuntos asiáticos. Inicialmente, ela estava destinada à Universidade de Brasília. Enquanto estava na ativa Fausto a mantinha em sua ampla casa no Lago Sul, que construiu quando atuava como embaixador no Paquistão.
Mais tarde, com a venda do imóvel residencial, ele precisava achar um local para as peças. As tratativas com a UnB não prosperaram e Fausto as levou para o MASP, em São Paulo, onde, segundo diz, foi construído um puxadinho para acomodá-las. A ideia era fazer um comodato com o museu paulista. Novamente surgiram entraves burocráticos e a coleção foi devolvida.
Em 2015, por sugestão de José Teixeira Coelho Netto, então curador geral do MASP e também da Bienal de Curitiba e amigo da diretora-presidente do MON, Juliana de Almeida Vosnika, decidiu doá-la ao museu. Enfim, as milhares de peças acumuladas por Fausto ao longo de quase quatro décadas encontraram um lar definitivo. Ponto para os curitibanos. Ave, Ganesha! Com a vinda da coleção para cá, Fausto sonha em transformar o MON no primeiro museu de arte não europeia do Brasil, com nível de Metropolitan, segundo ele.
“Quero que Curitiba se torne o centro de pesquisa sobre a Ásia no Brasil e que o MON seja a pedra de toque disso”, diz. Para ele, as pessoas não fazem a menor ideia do que está acontecendo por lá. “Fico fulo da vida quando falam em comunismo chinês. Que comunismo é esse que tem o maior número de milionários?”, questiona.
Para ajudá-las a compreender as complexidades do continente, ele criou, em 2021, o Centro de Estudos das Civilizações da Ásia na Escola Superior de Propaganda e Marketing, em São Paulo, do qual é coordenador. Fausto diz que o prazer de todo diplomata é falar mal do lugar onde está servindo. Com ele deu-se o contrário, especialmente com a Índia. “Fui conhecendo as pessoas e a Índia me adotou”, fala com entusiasmo.
Certa vez, um colega o indicou a uma aluna que precisava entrevistar alguém sobre o país para o seu Trabalho de Conclusão de Curso com a seguinte recomendação: “Tem um maluco aí que adora a Índia”. Até hoje seus melhores amigos são indianos e suas férias sempre são lá. Durante a entrevista, contou que estava de viagem marcada para o país em dezembro, onde pretendia ficar um mês e meio. Ele e um grupo de amigos haviam combinado fazer trecking no vizinho Nepal.
Depois de cumprir dois anos e meio de serviço no país, Fausto voltou para o Brasil para uma reciclagem obrigatória e logo em seguida foi designado para chefiar o setor cultural da embaixada brasileira em Washington a convite do embaixador Rubens Ricupero.
Mas a Ásia estava de olho nele e vice-versa. Após um período na capital norte-americana, seguiu para a China como chefe do setor político da embaixada, já na posição de conselheiro. De lá, foi transferido para Tóquio, onde permaneceu mais tempo, três anos e meio, como ministro-conselheiro. O embaixador era Celso Amorim – que deverá voltar à chefia do Itamaraty no novo governo Lula a partir de janeiro de 2023. Fausto pediu-lhe para assumir a embaixada do Brasil na gélida Islândia. Em 2004, ocupou pela primeira vez o cargo mais alto na hierarquia da carreira. Do pequeno país insular no extremo norte do globo terrestre foi para Cabul, capital do conturbado Afeganistão. Foi o primeiro embaixador brasileiro a apresentar credenciais no país hoje novamente sob o domínio do Talibã. Ao concluir a gestão, regressou ao Brasil e abdicou de outros postos de comando. Optou por atuar apenas como encarregado de negócios em embaixadas para ter mais liberdade. Liberdade que usufruiu mergulhando cada vez mais nas diversas culturas asiáticas.
O bauruense Fausto fala da Ásia com a intimidade de um nativo. Para ele, a curva da civilização saiu do Ocidente e migrou para o Oriente. “Peguei quatro hegemonias desde 1945: a Inglaterra, a União Soviética, a queda desta em 1991 e agora a hegemonia compartilhada entre China e Estados Unidos”, diz. Daí seu empenho em mostrar a riqueza cultural do continente para que as pessoas entendam porque ele é hegemônico no mundo atual. Segundo Fausto, em 30 anos a China vai superar os Estados Unidos. Quem viver, verá, garante. Enquanto isso, ele continua adquirindo peças asiáticas e diz não fazer ideia do quanto já investiu no hobby desde que iniciou sua coleção.
A tão sonhada vida bonita que planejou na juventude ao recusar o cargo vitalício de cartorário concretizou-se. Para vivê-la, Fausto Martha Godoy abriu mão da riqueza material que a função lhe traria para acumular uma fortuna incalculável em conhecimento e experiências como cidadão do mundo. A pergunta da jovem turista gaúcha que o abordou mostra o quanto ele estava certo. Ninguém é Fausto Godoy por acaso. Registre-se em cartório.