Sem ter conhecido pessoalmente Richard Morse, quando organizei encontros e uma obra sobre a tribo brasilianista enquanto estive em Washington— publiquei O Brasil dos Brasilianistas, 1945-2000 —, pois que Morse vivia no Haiti, ainda assim estive na missa post-mortem organizada em sua homenagem na catedral da Catholic University of America, pouco depois de sua morte. O livro está disponível em minha página de Academia.edu.
Paulo Roberto de Almeida
O HISTORIADOR GRINGO FISSURADO PELA PAULICÉIA
Fernando José Coscioni
Livro esplêndido, especialmente para quem gosta de história intelectual com abordagens comparadas entre países distintos. Fala sobre a trajetória de Richard Morse (1922-2001), importante historiador norte-americano, especialista em América Latina, que lecionou por décadas em Yale.
A autora, Ana Claudia Veiga de Castro (professora da USP), elucida, com enorme riqueza de detalhes e rigor primoroso de pesquisa, as condições de produção, as influências intelectuais e a recepção da obra "Da comunidade à metrópole: biografia de São Paulo", que foi publicada, com suporte do aparato cultural da prefeitura, por Morse em 1954, na ocasião das comemorações do IV Centenário da Cidade de São Paulo.
O livro do historiador americano, que é, na realidade, uma adaptação da sua tese de doutorado defendida na Universidade de Columbia em 1952, até hoje é considerado uma espécie de marco inaugural da historiografia urbana da maior cidade brasileira.
Morse fez, posteriormente, algumas modificações pontuais na obra e, à luz de considerações sobre o desenvolvimento do debate envolvendo a questão da especificidade da urbanização latino-americana, republicou o trabalho em 1970, na famosa coleção "Corpo e Alma do Brasil", com o título de Formação Histórica de São Paulo: de comunidade a metrópole".
O ponto mais rico da obra de Ana Claudia é a reconstrução das redes de sociabilidade e das influências de Morse.
A autora enfatiza a relação do norte-americano com o paradigma de pesquisa "ecológico" da Escola de Chicago (especialmente com Robert Park e Louis Wirth), com a sensibilidade etnográfica de seu orientador, o antropólogo Frank Tannenbaum (latino-americanista de mão cheia e grande estudioso da história mexicana), com as discussões da teoria da modernização, que vinham da sociologia do início do século (Simmel e Tönnies principalmente) e da obra de Robert Redfield (debates que, como sabemos, estavam centrados na reflexão sobre o impacto "desorganizador" e "anômico" que a urbanização trazia, ao fragilizar os vínculos "comunitários" e impor a impessoalidade e a aceleração de uma ordem social baseada nas operações "matemáticas" impessoais de uma economia monetária), com a preocupação com a "cultura" urbana e a personalidade das cidades, problemática herdada dos estudos seminais do polímata Lewis Mumford, e, sobretudo, com o meio intelectual e artístico paulistano dos anos 1940 e 1950, especialmente a partir de seu contato com o grupo uspiano formado por Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes, e também com artistas modernistas e arquitetos.
Morse construiu sua interpretação da evolução histórica paulistana a partir de uma preocupação com a delimitação do "ethos" que teria prevalecido na cidade nos momentos históricos que compreendem o período que vai do pós Independência política do Brasil até o meio do século XX.
Para isso, em parte por influência de Antonio Candido (que falou em "momentos decisivos" e na "formação" da literatura brasileira), o historiador tomou como referência uma abordagem culturalista do desenvolvimento de São Paulo, que partia das análises das obras de Álvares de Azevedo e Mário de Andrade com o objetivo de enxergar nelas um retrato do "ethos" que teria marcado a cidade no início e no meio do século XIX, no caso de Azevedo, o "romântico", e no início do século XX, no caso de Andrade, o "modernista".
Sem abrir mão da descrição dos aspectos sociais, econômicos e geográficos do desenvolvimento histórico da Paulicéia, Morse incorpora, segundo a autora, a oposição binária entre "romantismo" e "modernismo" como o principal polo organizador de sua leitura da evolução da metrópole.
Um grande destaque dessa pesquisa é a maneira intrincada através da qual a autora articula uma série de movimentos da história intelectual brasileira e norte-americana com o contexto global do pós II Guerra, momento em que os EUA começavam a realizar, em grande medida por razões geopolíticas, uma série de investimentos em pesquisas acadêmicas e em redes de colaboração intelectual para compreender melhor a América Latina, dos quais o historiador se beneficiou amplamente para viabilizar a sua empreitada.
A enorme região do continente americano exercia, nos anos 1940 e 1950, grande atração sobre jovens intelectuais como Morse, que queriam descobrir a "outra América", aquela não protestante, de matriz ibérica e católica, que gerou uma cultura híbrida e mestiça, e que, no entendimento do historiador, representava, à época, uma espécie de evidência da possibilidade de que haveria uma outra maneira de ser moderno, que combinasse modernidade e capitalismo com formas mais "flexíveis" de sociabilidade e de organização institucional que não fossem tão rígidas quanto as formas sociais modernas engendradas pelo desenvolvimento histórico dos países centrais (aqui, o historiador oferece claramente um contraponto à tese do déficit de modernidade do Brasil como um problema a ser superado, que marca a argumentação de Sérgio Buarque em "Raízes do Brasil").
Por fim, em meio a todo esse rico contexto histórico e intelectual de Brasil e EUA nas décadas de 1940 e 1950, São Paulo, no bojo do espírito de redescoberta do país e do lugar dos paulistas na história nacional, fomentado pelo modernismo (já não mais em sua fase pioneira, é verdade), vivia um período importantíssimo da sua história, caracterizado, entre outras coisas, pela sua consolidação definitiva como a cidade mais importante do Brasil, que culminou no febril ano de 1954, no qual ocorreram intensas comemorações do IV Centenário e foi inaugurado, junto com todo o complexo do Ibirapuera, o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, que havia começado a ser construído décadas antes.