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quarta-feira, 23 de julho de 2025

A TEORIA DA MINEIRIDADE - BENÍCIO MEDEIROS (Blog de São João Del-Rei, de Francisco Braga)

 A Mineiridade e outras manias...

Não sou muito afeto a essas manias de peculiaridades regionais: "Ah, o carioca é assim, sempre chiando; o paulista insiste no "né"; o gaúcho tem aquelas manias farroupilhas; o baiano é isso mais aquilo; o pernambuco sabe se lá o quê. Acho tudo isso muito subjetivo. Mas não deixo de apreciar a boa literatura, como esta que fala de Otto Lara Resende e a Mineiridade.
Mineiridade, o que seria isso? Vamos ver... PRA

A TEORIA DA MINEIRIDADE
Por BENÍCIO MEDEIROS *
Blog de São João Del-Rei, de Francisco Braga
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/07/a-teoria-da-mineiridade.html
domingo, 20 de julho de 2025

A TEORIA DA MINEIRIDADE
Por BENÍCIO MEDEIROS *
Blogdomingo, 20 de julho de 2025

"O mineiro é velhíssimo, é um ser reflexivo, com segundos propósitos e enrolada natureza."
João Guimarães Rosa

Otto Lara Resende (✰ São João del-Rei, 1º/05/1922 ✞ Rio de Janeiro, 28/12/1992) ocupou a cadeira nº 39 da Academia Brasileira de Letras.

Minas assumiu o poder com a Revolução de 30. Não o poder político. O poder cultural. Embora o movimento tenha sido liderado pelos gaúchos, com Getúlio Vargas à frente, coube a um mineiro, Gustavo Capanema, dirigir a política educacional e cultural do governo Vargas, na qualidade de ministro da Educação e Saúde Pública.


Muito já se falou da luminosa passagem de Capanema pelo MES. Decerto favorecido pela ditadura estadonovista, que tornou de fato efetiva a carta-branca a ele conferida por Getúlio, Capanema, durante a sua gestão, promoveu a sua revolução particular, espanando, com extraordinário vigor, o empoeirado universo cultural da época.

Com o poder que lhe foi delegado, ele introduziu nos sistemas oficiais conceitos e pontos-de-vista ao gosto dos modernistas de 22 que não haviam no entanto, àquela altura, merecido o crédito da sociedade e, menos ainda, das chamadas autoridades constituídas. O Brasil, culturalmente falando, era ainda um país tacanho, dos saraus pseudoliterários e das conferências meloparnasianas, comandado, esteticamente, pelos cânones mais retrógrados das beaux arts.

Mineiro, Capanema cercou-se de mineiros. Pôs como seu chefe de gabinete Carlos Drummond de Andrade (como o ministro, de uma geração anterior à de Otto ¹), o que por si só equivalia a uma tomada de posição. O poeta, tido como comunista, não era benquisto pela nata da sociedade conservadora, incluindo-se aí os velhos mandarins dos círculos literários oficiais e os representantes da direita católica.

Eram conhecidas, por exemplo, as diferenças entre o poeta de Claro Enigma e o crítico Alceu Amoroso Lima ². Em março de 1936, Drummond recusou-se a assistir a uma conferência de Alceu, "A educação e o comunismo", no MES. Por causa disso, o poeta-funcionário-público se viu obrigado a por o cargo à disposição do ministro, que, no entanto, desconsiderou sua atitude.

O episódio pode parecer estranho à luz da atualidade. Mas fazia parte da guerra ideológica que se travava no período. Cruzado e patrulheiro da causa do catolicismo, embora com os anos tenha arrefecido sua posição no que esta tinha de mais intolerante, Alceu Amoroso Lima foi, na mesma época, o responsável pela demissão do cronista Rubem Braga do Diário da Noite, de Assis Chateaubriand. Irreverente e anticlerical, Braga escreveu, num momento infeliz, que a Igreja espanhola "não passava de uma pinóia". Só por causa disso Alceu, indignado, pediu a cabeça do jornalista. Chateaubriand a concedeu.

Outro mineiro ilustre no MES foi o jovem advogado, escritor e jornalista Rodrigo Melo Franco de Andrade. Para não fugir à regra da tradição da sua terra, tinha publicado um livro de contos tristes, Velórios, do qual aliás não gostava. Rodrigo foi o criador, em 1937, do antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN), voltado, pioneiramente, para a preservação do patrimônio cultural brasileiro.

A perspectiva do MES era a de reconhecer e identificar os valores notáveis do nosso passado, através do SPHAN, e, ao mesmo tempo, projetá-los ao futuro, a partir do reconhecimento de certas propostas da vanguarda que ainda causavam ojeriza tanto ao senso comum como às elites renitentes. Algumas das cabeças mais brilhantes da época se associaram a essa tarefa de redescobrir, com novos olhos, o passado cultural brasileiro.

Mário de Andrade, por exemplo, foi um colaborador incansável de Rodrigo desde os primeiros tempos, tendo redigido o anteprojeto de criação do SPHAN e, mais tarde, como um caçador de relíquias, saído pessoalmente à cata de dados pelo país, particularmente o interior de São Paulo, que enriqueceriam o repertório conceitual da instituição e engrossariam as suas primeiras listas de bens tombados.

Mário de Andrade se tornaria uma espécie de mentor e orientador intelectual do grupo de mineiros de que Otto Lara Resende fazia parte. De espírito aberto e extrovertido, entusiasta dos esforços literários da juventude, o autor de Macunaíma, a partir da sua obra e de suas passagens por Belo Horizonte, influenciaria de forma decisiva a carreira de Otto e de seus amigos, que, durante anos, mantiveram correspondência com o escritor, já então consagrado.

O MES, ou melhor, Gustavo Capanema, acolheu e prestigiou artistas que encontrariam, naquela época, pouco espaço de atuação fora do abrigo da estruturas oficiais. Encomendou painéis ao incompreendido Portinari. Esculturas aos malditos Celso Antônio, Bruno Giorgi e Lipchitz, cujo talhe moderno incomodava a muitos. E até um edifício inteiro, a superenvidraçada sede do MES, a um grupo de arquitetos liderados por Lúcio Costa, achando-se entre estes um jovem especialmente talentoso, porém ainda desconhecido: Oscar Niemeyer.

Tanto Lúcio Costa como Niemeyer — conduzidos logo depois, pelas mãos de Juscelino Kubitschek, a Belo Horizonte — teriam papel destacado no sentido de arejar um pouco a então fechada, e mesmo opressiva, sociedade mineira. Por volta de 1940, no entanto, os jovens mais esclarecidos de Belo Horizonte, entre os quais Otto Lara Resende, só tinham olhos para a guerra na Europa. E, apesar dos feitos vanguardistas do conterrâneo Capanema na Capital Federal, todos detestavam Getúlio.

Mais de uma vez, Otto Lara Resende valendo-se, em geral, de opiniões alheias pautadas no determinismo geográfico, descreveu o mineiro como um ser à parte no contexto das psicologias regionais. Se o brasileiro do litoral, por exemplo, tendia à comunicabilidade e à extroversão, o homem da montanha era, em geral, um ser reservado, desconfiado e muito cioso do seu universo individual.

Num artigo sobre Carlos Drummond de Andrade "O mel oculto, o áspero minério", na tentativa de explicar a personalidade do poeta, Otto se refere a um texto de Guimarães Rosa sobre o "enigma mineiro" (expressão de Otto). Nele, ao seu estilo, o autor de Tutameia arrola algumas características que lhe pareciam fundamentais do montanhês:

“Seu gosto do dinheiro em abstrato. Sua desconfiança e cautela. Sua honesta astúcia meandrosa, de regato serrano, de mestres na resistência passiva. Seu vezo inibido, de homens aprisionados nas manhãs nebulosas e noites nevoentas de cidades tristes, entre a religião e a regra coletiva, austeras, homens de alma encapotada, posto que urbanos e polidos.”
A opinião de Drummond não é muito diferente:
“O Estado mais tipicamente conservador da União abriga o espírito mais livre. Sua aparente docilidade esconde reservas de insubmissão, às vezes convertida em ironia, e de algum modo chocada na pachorra de esperar, que tanto ilude o observador apressado, incapaz de perceber a chama latente do borralho. As revoluções liberais em Minas ilustram isso.”
A teoria da mineiridade explicaria em parte, assim, a Inconfidência e outros episódios históricos. A ironia e a dicotomia de espírito a que se refere Drummond estariam também na base do extenso anedotário envolvendo alguns políticos mineiros ilustres, de Benedito Valadares a José Maria Alkmin e Tancredo Neves. Valadares foi o interventor escolhido por Getúlio para governar Minas no Estado Novo. A notícia da sua nomeação causou surpresa à própria mãe, que não confiaria muito nos dotes intelectuais do filho. "Mas será o Benedito?" ³ — teria ela exclamado, introduzindo assim no repertório popular uma nova interjeição.
Outra anedota envolvendo Benedito Valares versa sobre um discurso que o político teria feito numa cidade do interior de Minas, conhecida pelo cultivo de uma fibra vegetal chamada pita. Começava assim: "Nesta região, onde a pita abunda..." Percebendo o cacófato, ele voltou atrás, tentou corrigir, mas a emenda saiu pior que o soneto: "Nesta região, onde abunda a pita..."

A julgar até pela sua frase mais famosa, Otto Lara Resende, apesar da fidelidade às suas raízes, não cultivava bairrismo em relação a Minas. Disse ele:

“O fato de Minas produzir muito escritor e muito banqueiro tem certamente a mesma explicação pela ecologia e pela sociologia. Mineiro é o povo que se deixa cortar o pescoço para não pagar imposto, porque não acredita no Estado. A própria formação de Minas, com aquelas levas de aventureiros de diferentes etnias que procuravam vender pastéis e miçangas aos arruinados do ouro, determinou uma economia de reflexos fechados, à base do pé-de-meia individual.”
A mudança de eixo no poder, com a consequente abolição da "política do café-com-leite", pela Revolução de 30, gerou certamente, entre os mineiros, ressentimentos e preconceitos em relação ao governo central. Essa sensação de esvaziamento explicaria, em certa medida, o horror que Getúlio Vargas despertava em Minas, ao qual Otto e o seu grupo não eram indiferentes. Anos depois, já entendendo melhor os complicados meandros da política nacional, o escritor mudaria de ideia.
Como jovem repórter, já no Rio, cobrindo a instalação da Constituinte de 1946 para O Globo, Otto Lara Resende teve a oportunidade de conhecer de perto Getúlio Vargas, então um ex-presidente retornando ao poder, dessa vez ao poder legislativo, na qualidade de senador dos mais votados. Essa entrevista renderia a Otto, mais tarde, algumas de suas melhores páginas.

Ele encontrou-se com Getúlio no apartamento deste, no Morro da Viúva. Em vez do repulsivo tirano da sua adolescência, deparou-se com um homem algo bonachão, às vezes mesmo meio tímido, disposto a ouvi-lo paternal e pacientemente, sempre com um atencioso sorriso nos lábios. Deu até espaço para que Otto, um mero foca ³, explicitasse todas as suas furibundas críticas acumuladas contra o Estado Novo. Depois disse: "Tu és ainda muito jovem e não sabes que um ditador não pode fazer tudo. Um dia saberás."

Curioso, anotou o repórter, é que o ex-presidente chamava-se a si próprio de "ditador", mesmo termo usado pela imprensa de oposição para ofendê-lo. Anos depois, anotaria o escritor maduro:

“A despeito de seu estilo caudilhesco, de sua formação pouco inclinada ao prestígio das instituições democráticas, é possível que a História venha um dia a reconhecer, sem paixão, que Getúlio Vargas foi um momento importante em nossa trajetória republicana.”
Nos tempos da juventude de Otto, no entanto, eram poucos os mineiros que pensavam assim.


* Jornalista e escritor, nasceu em Niterói-RJ em 1947 e faleceu no Rio de Janeiro em 11/10/2019. Estreou na imprensa em 1970 como repórter do jornal Última Hora. Trabalhou como editorialista no Jornal do Brasil, no Estado de S. Paulo; foi repórter e crítico literário da revista Veja, redator da revista Isto É, editor do Jornal da Globo e redator-chefe da revista Manchete. Também foi diretor de jornalismo da Academia Brasileira de Imprensa (ABI), editor da Revista do Livro da Biblioteca Nacional, tendo participado do conselho editorial da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. É autor de “A poeira da Glória” (Relume Dumará, 1998), “Brilho e sombra” (Bem-Te-Vi, 2006), sobre a vida e obra de Otto Lara Resende, e “A rotativa parou” (Record, 2010), que relata a história do jornalista Samuel Wainer à frente do jornal Última Hora.


II. NOTA EXPLICATIVA do gerente do Blog


¹ Efetivamente, é da vida e obra de Otto Lara Resende que trata o livro "A Poeira da Glória" de Benício Medeiros, de cujo terceiro capítulo intitulado "A teoria da mineiridade", esse texto foi extraído.

² O célebre pensador e crítico literário brasileiro, Alceu Amoroso Lima, adotou o pseudônimo de Tristão de Athayde, ao se tornar crítico em O Jornal (1919).

³ Na gíria brasileira, "foca" significa jornalista novato, sem experiência.

⁴ Marcelo Duarte, in Guia dos Curiosos, dá a seguinte versão para o dito popular: "A expressão "Será o Benedito?" nasceu em 1933, quando o presidente Getúlio Vargas demorou muito para escolher o interventor de Minas Gerais. Todos temiam que ele escolhesse o pior candidato, Benedito Valadares. Por isso, a população se perguntava: "Será o Benedito?" E o Benedito foi o escolhido."


III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


MEDEIROS, Benício: OTTO LARA RESENDE: a poeira da Glória, integrante da série “Perfis do Rio”. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 1998, 141 p.

__________________: À SOMBRA DO CARAÇA, 2º capítulo do livro A POEIRA DA GLÓRIA, postado no Blog de São João del-Rei em 08/01/2025
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/01/a-sombra-do-caraca.html
Postado por Francisco José dos Santos Braga às 17:01

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Stefan Zweig e o país que não chegou ao futuro - Paulo Roberto de Almeida (blog São João del-Rei)

 Divulgando o que acabo de receber, aproveitando também para convidar todos os cariocas, fluminenses, assemelhados, passantes ao acaso, navegantes, turistas, curiosos, zweiguianos fanáticos, a prestigiarem o simpósio que se realizará na Biblioteca Nacional, em cooperação com a Embaixada da Áustria no Brasil, a ABL e a própria Casa Stefan Zweig de Petrópolis, na próxima sexta-feira 25/04, sobre o maior escritor austríaco (e um dos maiores do mundo), a propósito do livro que lhe é dedicado e com o qual colaborei.

A colaboração abaixo foi divulgada pelo blog São João del-Rei, por iniciativa do colega blogueiro, o intelectual Francisco Braga:


Stefan Zweig e o país que não chegou ao futuro


Prezad@,

Tenho o prazer de apresentar ao leitor (à leitora) do Blog de São João del-Rei seu novo colaborador, Dr. PAULO ROBERTO DE ALMEIDA, diplomata e professor, entre outras especializações, que estreia com o artigo sobre o último livro de STEFAN ZWEIG, Brasil, um país do futuro.

O autor é um dos colaboradores de um livro lançado neste ano, intitulado Stefan Zweig no caleidoscópio do tempo. Aproveito a oportunidade para convidá-lo(la) para participar de um simpósio na Biblioteca Nacional na sexta-feira, dia 25/04/2025, em que será debatido o conteúdo do livro.


Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/04/stefan-zweig-e-o-pais-que-nao-chegou-ao.html


Cordial abraço,

Francisco Braga

Gerente do Blog de São João del-Rei”

terça-feira, 15 de abril de 2025

Stefan Zweig, pacifista, escreveu sobre Jean Jaurès, o socialista humanitário - via Francisco Braga (Gerente do Blog de São João del-Rei)

 Mensagem recebida de Francisco Braga, Gerente do Blog de São João del-Rei: 

Enquanto viveu JEAN JAURÈS, o socialista, o seu argumento a favor da paz prevaleceu sobre o antigermanismo francês e a pressão interna por uma declaração de guerra contra a Alemanha. Com o seu assassinato, a Alemanha formalizou as hostilidades contra a França. O antigermanismo francês foi uma das consequências da Guerra Franco-Prussiana (1870-71), em que, derrotada, a França foi obrigada a entregar aos vencedores as regiões de Alsácia e Lorena, região rica em minério de ferro, marco inicial da unificação alemã, sob o comando de Bismarck.
Neste seu ensaio, STEFAN ZWEIG dá uma interpretação muito pessoal para a causa que teria levado a Alemanha a declarar guerra à França, dando início à Primeira Guerra Mundial em 1914, embora soubesse das muitas outras questões geográficas e políticas envolvidas.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/04/jean-jaures-o-socialista.html


JEAN JAURÈS, o socialista


Por STEFAN ZWEIG (1881-1942)
A responsável pelo encontro não foi a vontade, mas a casualidade — designada miticamente como Destino. Viviam em mundos separados, seus países se encontrravam em rota de colisão, nada sugeria pontes, aproximação. Zweig viu-o uma vez na rua, num fim de tarde em Paris, e de outra vez, também na capital francesa, esteve ao seu lado algumas horas numa reunião em casa de amigos comuns (provavelmente o círculo do gravador Leon Bazalgette).
O convívio com o belga Émile Verhaeren convertera o esteta vienense Stefan Zweig num caçador de utopias e aquele tribuno que empolgava as multidões na França encarnava uma delas: o socialismo democrático e humanitário. Antes mesmo de fundar o jornal L'Humanité, Jean Jaurès (1859-1914) destacara-se como dreyfusard, militante do movimento pela reabilitação do capitão judeu Alfred Dreyfus.
Os marxistas ortodoxos entendiam que defender um militar burguês não era prioritário; Jaurès retrucava que Dreyfus fora vítima de uma tremenda injustiça e o papel dos socialistas era lutar contra todas as injustiças.
Quando a guerra parecia inevitável, conclamou os partidos socialistas europeus a colocarem-se a favor da paz porque operários, camponeses e mineiros são os principais fornecedores de carne para os canhões. “Construir escolas significa derrubar os muros das prisões”, proclamava nos comícios.
Contra Jaurès levantaram-se os conservadores, xenófobos, militaristas, monarquistas e clericais. Na noite de 31 de julho de 1914, depois de fechar a edição de L'Humanité, Jaurès foi ao bistrô Le Croissant, em Montmartre, e enquanto deleitava-se com uma torta de morangos foi assassinado com dois tiros por um nacionalista que considerava a guerra como a única solução para recuperar a querida Alsácia.
Na véspera do enterro de Jaurès, a Alemanha formalizou as hostilidades contra a França. Começara efetivamente a Grande Guerra (1914-18). Dois anos depois, 6 de agosto de 1916, integralmente comprometido com a causa pacífica, Zweig escreveu este perfil do “inimigo” Jean Jaurès no jornal Neue Freie Presse.                                                                                             Alberto Dines

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Corrigindo: sua primeira passagem pelo Brasil foi em 1936

Faz oito ou nove anos que, na rua St. Lazare, eu o vi pela primeira vez. Eram sete da noite, hora em que a estação negra como aço, com seu relógio brilhante, de um momento para o outro atrai a massa como se fosse um ímã. De uma só vez, as casas, os ateliês, as lojas vertem todos os seus ocupantes na rua, e todos, como um negro rio caudaloso, acorrem aos trens que os levarão para longe da cidade enfumaçada, para o campo. Acompanhado de um amigo, eu avançava devagar através da multidão abafada e pesada quando ele subitamente tocou o meu braço: “Olha, Jaurès!” Levantei os olhos, tarde demais para ver a silhueta do homem que passava. Vi apenas as costas largas como as de um carregador, os ombros enormes, a nuca de touro, curta e robusta, e minha primeira impressão foi a de um vigor camponês inabalável. A pasta sob o braço, o pequeno chapéu redondo na cabeça poderosa, as costas um pouco encurvadas, como o camponês empurrando o seu arado e com a mesma determinação, assim ele ia abrindo seu caminho lenta e inabalavelmente por entre a massa impaciente. Ninguém reconheceu o grande tribuno, jovens rapazes passavam por ele correndo, pessoas apressadas o ultrapassavam, atropelando-o, e seu passo continuava inabalavelmente firme em seu ritmo pesado. A resistência da massa negra que fluía se quebrava como num rochedo nesse homem baixo e forte que andava sozinho arando um campo próprio: a multidão escura e anônima de Paris, o povo que ia ou voltava do trabalho. 
 
Nada mais restou em mim desse encontro fugidio além da sensação de um vigor inflexível, telúrico, determinado. Pouco depois eu o veria mais de perto e compreenderia que essa força era apenas um fragmento de sua complexa personalidade. Amigos haviam me convidado para jantar, éramos quatro ou cinco no espaço apertado, quando ele entrou de repente, e a partir desse instante tudo passou a pertencer a ele  a sala, preenchida por sua voz sonora, e nossa atenção à sua palavra e ao olhar, pois sua cordialidade era tão forte, sua presença tão evidente, tão calorosa em sua vitalidade interior, que cada um se sentia inconscientemente estimulado e elevado. 
Ele acabara de chegar do campo, o rosto largo e aberto com os olhos fundos e pequenos, porém faiscantes, tinha as cores frescas do sol, e seu aperto de mão era o de um homem livre, não polido, mas cordial. Naquele momento, Jaurès pareceu-me especialmente satisfeito, tinha reabastecido o seu sangue com um novo vigor e um frescor vital ao trabalhar com enxada e pá no pequeno jardim, e agora distribuía esse vigor com toda a generosidade de seu ser. Para cada um tinha uma pergunta, uma palavra, uma cordialidade, antes de falar de si próprio, e era maravilhoso perceber como ele inconscientemente começava criando calor e vivacidade à sua volta para poder depois deixar fluir sua própria animação de modo livre e criativo. 
Lembro com nitidez como ele de repente se virou para mim, pois naquele segundo olhei pela primeira vez para dentro de seus olhos. Eram pequenos, mas, apesar de sua bondade, vívidos e penetrantes, agrediam sem machucar, penetravam sem importunar. Perguntou-me por alguns de seus amigos de partido vienenses, fui obrigado a responder, lamentando, que não os conhecia pessoalmente. Em seguida, perguntou-me pela baronesa Suttner, por quem parecia nutrir grande estima, querendo saber se ela tinha uma influência real e palpável em nossa vida literária e política. Eu lhe respondi  e hoje estou mais convicto que nunca de não lhe ter transmitido apenas a minha sensação pessoal, e sim uma verdade  que entre nós poucos compreendiam efetivamente o maravilhoso idealismo dessa senhora nobre e rara. Disse-lhe que a estimavam mas com um leve sorriso de superioridade, que suas convicções eram respeitadas, sem que as pessoas se deixassem convencer no âmago, pois em última instância sua persistência em uma mesma ideia era tida como algo monótono. E não escondi o quanto lamentava o fato de que justo os melhores na nossa literatura e arte sempre a tratavam de um modo algo marginal e indiferente. 
Jaurès sorriu e disse: “Mas é assim mesmo que temos de ser, como ela, obstinados e persistentes no idealismo. As grandes verdades não entram de uma vez no cérebro da humanidade, é preciso martelá-las repetidamente, prego a prego, dia a dia! Trata-se de tarefa monótona e ingrata, mas como é importante!” 
Passamos a outros assuntos e a conversa seguiu animada enquanto ele estava conosco, pois não importava o que ele dissesse, sempre vinha de dentro, caloroso, de um peito aberto, de um coração que batia forte, de uma plenitude de vida amontoada e acumulada, uma maravilhosa mistura de cultura e energia. A grande testa arredondada conferia ao seu rosto seriedade e significado, os olhos livres e alegres davam um ar de bondade a essa seriedade, esse homem poderoso exalava um ar benfazejo de jovialidade quase pequeno-burguesa, fazendo intuir que, na ira ou na paixão, seria capaz de deitar fogo como um vulcão. Sempre achei que, sem fingir, ele guardava dentro de si seu verdadeiro poder, que não havia motivo suficiente para sua total erupção (ainda que ele se entregasse inteiro na conversa), que éramos poucos para estimular toda a sua plenitude e que o espaço era apertado demais para a sua voz. Pois quando ele ria, a sala toda estremecia. Era como uma jaula para esse leão. 
 
Agora eu já o vira de perto, conhecia seus livros  que, compactos e pesados, assemelhavam-se um pouco ao seu corpo –, lera muitos de seus artigos que me permitiram intuir o ímpeto de sua fala, e tudo isso apenas aumentava o meu desejo de vê-lo e escutá-lo um dia também no seu mundo, no seu elemento, enquanto agitador e tribuno. A ocasião não tardaria a acontecer. 
Eram dias pesados na política, as relações entre a França e a Alemanha estavam carregadas de eletricidade. Algum incidente tinha ocorrido, a superfície de fósforo da suscetibilidade francesa se inflamara novamente em algum incidente fugidio, não sei mais se foi o caso do navio Panther em Agadir, o zepelim na Lorena, o episódio de Nancy; o fato é que havia eletricidade no ar. Em Paris, nessa atmosfera de eterna efervescência, esses sinais meteorológicos eram percebidos então muito mais intensamente do que sob o céu azul político idealista da Alemanha. Os vendedores de jornal dividiam as multidões nas avenidas com seus gritos agudos, os jornais atiçavam com palavras ardentes e manchetes fanáticas, exacerbavam a agitação com ameaças e palavras de persuasão. Embora os manifestos fraternais dos socialistas alemães e franceses estivessem grudados nos muros, não ficavam ali mais de um dia, pois à noite os “camelots du roi” os arrancavam ou sujavam com palavras de escárnio. Nesses dias agitados vi anunciado que Jaurès faria um discurso: nos momentos de perigo ele estava sempre presente. 
O Trocadéro, maior salão de Paris, haveria de servir-lhe de tribuna. Esse prédio absurdo, esse “nonsense” em estilo oriental-europeu, resto da antiga Exposição Universal, que com seus dois minaretes saúda na outra margem do Sena o outro vestígio histórico, a torre Eiffel, oferece em seu interior um espaço vazio, sóbrio e frio. Em geral serve a eventos musicais e raramente à palavra falada, pois o ambiente vazio absorve quase todos os sons. Só um gigante de voz, um Mounet-Sully, conseguia projetar suas palavras da tribuna até o alto das galerias, como quem lança uma corda por sobre um precipício. Era ali que Jaurès falaria, e a sala gigantesca cedo começou a encher. Já não lembro se era um domingo, mas todos vieram vestindo trajes de dia de festa, eles que normalmente fazem seu trabalho em camisas azuis nas caldeiras e fábricas, os trabalhadores de Belleville, de Passy, de Montrouge e Clichy, para ouvir seu tribuno, seu líder. O enorme salão estava negro de gente que se acotovelava já muito antes da hora, sem aqueles sons impacientes como nos teatros da moda, sem aqueles gritos reivindicatórios, rítmicos, pedindo que as cortinas logo se abrissem. A massa apenas ondulava, poderosa e agitada, cheia de expectativa, mas também de disciplina  imagem que por si só já era inesquecível e profética. Então surgiu um orador, uma faixa atravessada no peito, para anunciar Jaurès; mal se conseguia ouvi-lo, mas imediatamente fez-se o silêncio, um imenso silêncio que respirava. E ele entrou. 
Com os passos pesados e firmes que eu já conhecia nele, Jaurès subiu à tribuna, subiu do silêncio absoluto para um trovão extático e tonitruante de boas-vindas. A sala inteira ficara de pé e as aclamações eram mais do que vozes humanas: eram a ansiosa gratidão acumulada, o amor e a espe- rança de um mundo que geralmente se encontra dividido e disseminado, individualizado em silêncio e gemidos. Jaurès precisou esperar minutos e mais minutos antes de conseguir fazer sua voz se distinguir dos milhares de gritos que o rodeavam. Teve de esperar e esperava sério, persistente, consciente do momento, sem o sorriso amigável, sem a falsa resistência que os comediantes nesses momentos costumam colocar em seus gestos. Só começou a falar quando a onda se apaziguou. 
Sua voz não era a mesma daquela vez, uma voz que misturava amigavelmente brincadeiras e palavras significantes. Era outra voz, forte, lacônica, entrecortada pela respiração, uma voz metálica como minério. Nada havia nela de melódico, nada daquela maleabilidade vocal que tanto seduz no caso de Briand, seu perigoso companheiro e rival; a voz não era polida e não agradava os sentidos. Só se percebia nela acuidade  acuidade e determinação. Às vezes, arrancava uma única palavra da fornalha fogosa de sua fala como se fosse uma espada e a enfiava de um só golpe na multidão que gritava, atingida no fundo do coração. Não havia modulação nesse pathos, talvez lhe faltasse o pescoço flexível para amenizar a melodia do órgão vocal, parecia que sua garganta ficava no peito  mas por isso mesmo percebia-se tão intensamente que a sua palavra vinha de dentro, forte e excitada, diretamente de um coração forte e excitado, muitas vezes ainda arfando de ira, vibrando como a batida do coração em seu peito largo e forte. E essa vibração passava da sua palavra para todo o seu ser, quase o fazia perder o equilíbrio, ele caminhava de um lado para o outro, erguia o punho cerrado contra um inimigo invisível e o deixava cair sobre a mesa, como se fosse destruí-la. Toda a máquina a vapor de seu ser trabalhava com cada vez mais força nesse sobe e desce de touro enfurecido, e involuntariamente esse poderoso ritmo de uma excitação obstinada contagiava a multidão. Os gritos respondiam a seu chamado com uma força crescente, e sempre que ele cerrava o punho muitos o acompanhavam. 
De repente, a sala fria, ampla e vazia estava repleta da excitação trazida por esse homem único, forte, que sua própria força fazia tremer, e sempre aquela voz aguda passava de novo por cima dos regimentos escuros de trabalhadores, qual um trompete, conclamando seus corações para o ataque. Eu mal conseguia escutar o que ele dizia, apenas percebia para além do sentido o poder dessa vontade e sentia que também me aquecia, por mais estranhos que fossem a mim, o estranho, tanto o ensejo quanto a hora. Mas eu percebia o homem de maneira tão forte como jamais percebera alguém, sentia-o, e sentia o imenso poder que dele exalava. Pois por trás desses poucos milhares que agora estavam enfeitiçados por ele, sujeitos à sua paixão, havia ainda milhares e milhares que sentiam o seu poder de longe, transmitido pela eletricidade da vontade contínua, da magia da palavra  as incontáveis legiões do proletariado francês e mais ainda seus companheiros além das fronteiras, os trabalhadores de Whitechapel, de Barcelona e Palermo, de Favoriten e St. Pauli, de todas as direções e cantos da Terra, que confiavam nesse seu tribuno e estavam dispostos a doar a sua vontade a ele a qualquer momento. 
 
Com seus ombros largos, robusto, o corpo compacto, Jaurès podia dar, àqueles que só ligam ao tipo do francês as noções de delicadeza, sensibilidade e maleabilidade, a impressão de não ser da estirpe de um verdadeiro gaulês. Mas só se pode compreendê-lo enquanto francês, em sua terra, só no contexto, só como representante, último de uma estirpe. A França é o país das tradições, raras vezes um grande fenômeno ou uma pessoa importante é inteiramente novo; todos são resultado de coisas já intuídas e vividas, cada acontecimento tem a sua analogia (e não é difícil identificar analogias entre o atual fanatismo, esse sangrar por uma única ideia, e 1793). Eis o grande divisor de águas em relação à Alemanha. A França está constantemente se reproduzindo, e nisso reside o segredo da manutenção de sua tradição, por isso Paris é uma unidade, sua literatura um círculo fechado, sua história interna uma repetição rítmica de maré alta e baixa, de revolução e reação. Já a Alemanha evolui e se modifica constantemente, e esse é o segredo do constante aumento de seu vigor. Na França, é possível explicar tudo com analogias, sem se tornar violento, na Alemanha nada, pois nenhum estado psíquico ali se assemelha ao outro, entre 1807, 1813, 1848, 1870 e 1914 há enormes transformações que modificaram a essência de sua arte, sua arquitetura, suas camadas. Mesmo suas personalidades são únicas e novas – não há precedentes na história alemã para Bismarck, Moltke, Nietzsche ou Wagner. E os homens desta guerra, por sua vez, são o começo de um novo tipo organizatório, e não repetições de um passado. 
Na França, o homem importante raramente é único, e esse também é o caso de Jaurès. E por isso mesmo ele é genuinamente francês, cria de uma estirpe intelectual que remete à revolução e que tem um repre- sentante em todas as artes. Sempre houve lá em meio à maioria delicada, frágil e de bom gosto esse tipo vigoroso com nuca de touro, ombros largos, sangue pesado, esses maciços netos de camponeses. Eles também têm nervos, mas seus nervos parecem ser envoltos por músculos; também são sensíveis, mas sua vitalidade é mais forte que a sensibilidade. Mirabeau e Danton são os primeiros intempestivos desse tipo, Balzac e Flaubert são seus filhos, Jaurès e Rodin, os netos. Em todos eles, surpreende a estatura larga, a robusteza do ser e da vontade. Quando Danton sobe à guilhotina, a armação de madeira estremece; quando querem baixar o gigantesco ataúde de Flaubert ao túmulo, este se revela pequeno demais; a poltrona de Balzac foi feita para o dobro do peso, e quem atravessa o ateliê de Rodin não consegue conceber que essa floresta de pedras foi criada por duas mãos terrenas. Trabalhadores titânicos, é o que todos eles são; honestos e sinceros, unidos no destino de serem empurrados para o lado pelos maleáveis, os astuciosos, os de bom gosto. O gigantesco trabalho da vida de Jaurès também foi frustrado: Poincaré foi mais forte do que ele, o mais forte, graças à sua maleabilidade. 
Mas esse francês de velha cepa, como era Jaurès, indubitavelmente, era impregnado pela filosofia, a ciência, o espírito da Alemanha. Nada autoriza as futuras gerações a afirmar que ele amava a Alemanha, mas uma coisa é certa: ele conhecia a Alemanha, e isso já é muito na França. Conhecia pessoas alemãs, cidades alemãs, livros alemães, conhecia o povo alemão e, um dos poucos no estrangeiro, o seu vigor. Por isso, pouco a pouco, a ideia de evitar a guerra entre essas duas potências tornara-se a ideia mestra de sua vida, seu temor, e tudo o que fez nos últimos anos foi apenas pensando em evitar esse momento. Não se preocupou com humilhações, deixou que o chamassem de “deputado de Berlim”, emissário do imperador Guilherme, permitiu que os chamados patriotas o ironizassem e atacou impiedosamente os que atiçavam e incitavam à guerra. Desconhecia a ambição do advogado socialista Millerand de exibir honrarias no peito; desconhecia a ambição de seu antigo camarada Briand, que passou de agitador a ditador; nunca quis enfiar seu peito largo em um fraque  sua ambição continuava sendo a de proteger o proletariado, que confiava nele, e todo o mundo da catástrofe, cujas minas e cujos túneis ele já escutava sendo escavados sob seus próprios pés em seu próprio país. Enquanto ele se lançava, com todo o dinamismo de Mirabeau, com o ardor de Danton, contra os que incitavam e inflamavam, ao mesmo tempo precisava barrar o zelo exacerbado dos antimilitaristas em seu próprio partido, sobretudo Hervé, que então conclamava aos brados para a revolta como hoje grita diariamente pela “vitória definitiva”. Jaurès pairava acima deles, não queria nenhuma revolução, porque ela também precisava ser conquistada com sangue, e ele tinha horror ao sangue. Discípulo de Hegel, acreditava na razão, na evolução sensata através da constância e do trabalho, o sangue lhe era sagrado e a paz entre os povos, a sua profissão de fé. Trabalhador vigoroso e incansável que era, assumira o mais pesado compromisso, o de continuar sendo sensato em um país passional, e mal a paz foi ameaçada, ele continuava ereto como um posto pronto para tocar o alarme no perigo. O grito que deveria conclamar o povo da França já estava em sua garganta quando eles o derrubaram, eles que já o conheciam em sua força inabalável, e cujas intenções e aventuras ele conhecia. Enquanto ele permanecesse vigilante, a fronteira estava segura. Eles sabiam disso. E só por sobre o seu cadáver a guerra foi detonada, e os sete exércitos alemães invadiram a França.
 
Fonte:  ZWEIG, Stefan: O mundo insone e outros ensaios, tradução de Kristina Michahelles; organização e textos adicionais de Alberto Dines, Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 175-184.

2 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse..
Prezad@,
Enquanto viveu JEAN JAURÈS, o socialista, o seu argumento a favor da paz prevaleceu sobre o antigermanismo francês e a pressão interna por uma declaração de guerra contra a Alemanha. Com o seu assassinato, a Alemanha formalizou as hostilidades contra a França. O antigermanismo francês foi uma das consequências da Guerra Franco-Prussiana (1870-71), em que, derrotada, a França foi obrigada a entregar aos vencedores as regiões de Alsácia e Lorena, região rica em minério de ferro, marco inicial da unificação alemã, sob o comando de Bismarck.
Neste seu ensaio, STEFAN ZWEIG dá uma interpretação muito pessoal para a causa que teria levado a Alemanha a declarar guerra à França, dando início à Primeira Guerra Mundial em 1914, embora soubesse das muitas outras questões geográficas e políticas envolvidas.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/04/jean-jaures-o-socialista.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

quarta-feira, 5 de março de 2025

O Credo de Rui Barbosa: trechos de um discurso de 1896, retornado do exilio (a partir de Francisco Braga)

 Meu país conhece o meu credo político, porque o meu credo político está na minha vida inteira. Creio na liberdade onipotente, criadora das nações robustas; creio na lei, emanação dela, o seu órgão capital, a primeira das suas necessidades; creio que, neste regime, não há poderes soberanos, e soberano é só o direito, interpretado pelos tribunais; creio que a própria soberania popular necessita de limites, e que esses limites vêm a ser as suas Constituições, por ela mesma criadas, nas suas horas de inspiração jurídica, em garantia contra os seus impulsos de paixão desordenada; creio que a República decai, porque se deixou estragar confiando-se ao regime da força; creio que a Federação perecerá, se continuar a não saber acatar e elevar a justiça; porque da justiça nasce a confiança, da confiança a tranqüilidade, da tranqüilidade o trabalho, do trabalho a produção, da produção o crédito, do crédito a opulência, da opulência a respeitabilidade, a duração, o vigor; creio no governo do povo pelo povo; creio, porém, que o governo do povo pelo povo tem a base da sua legitimidade na cultura da inteligência nacional pelo desenvolvimento nacional do ensino, para o qual as maiores liberalidades do Tesouro constituíram sempre o mais reprodutivo emprego da riqueza pública; creio na tribuna sem fúrias e na imprensa sem restrições, porque creio no poder da razão e da verdade; creio na moderação e na tolerância, no progresso e na tradição, no respeito e na disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor insuprível das capacidades. 

Rejeito as doutrinas de arbítrio; abomino as ditaduras de todo gênero, militares ou científicas, coroadas ou populares; detesto os estados de sítio, as suspensões de garantias, as razões de Estado, as leis de salvação pública; odeio as combinações hipócritas do absolutismo dissimulado sob as formas democráticas e republicanas; oponho-me aos governos de seita, aos governos de facção, aos governos de ignorância; e quando esta se traduz pela abolição geral das grandes instituições docentes, isto é, pela hostilidade radical à inteligência do País nos focos mais altos da sua cultura, a estúpida selvageria dessa fórmula administrativa impressiona-me como o bramir de um oceano de barbaria ameaçando as fronteiras de nossa nacionalidade.

Tributo a Rui Barbosa - Francisco Braga

 Tenho o prazer de enviar-lhe meu artigo sobre RUI BARBOSA, um dos intelectuais e políticos brasileiros mais conhecidos do seu tempo, que, durante sua vida de 73 anos, produziu mais de cem volumes, entre sua produção jornalística puramente literária, ensaios e muitos e variados discursos. Aqui será visto um trecho do discurso no Senado Federal em 13/10/1896, que foi chamado de seu CREDO POLÍTICO.



Cordial abraço,
Francisco Braga

CREDO POLÍTICO DE RUI BARBOSA

Por FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA 
Dedico este post ao são-joanense Dr. ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA, desembargador do TJ-MG e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, professor, conferencista, escritor, autor de várias obras de Direito e, ocasionalmente, de livros alheios ao mundo jurídico.
Rui Barbosa em sua biblioteca, sem data (foto: Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã)-Fonte: Agência Senado

 

De seus 55 anos de vida pública, Ruy Barbosa passou 32 no Senado. Foi recordista de mandatos. Inaugurou o Senado da República, em 1890, e só o deixou em 1923, quando morreu, aos 72 anos de idade. Antes, no Império, havia sido deputado provincial e deputado geral. 

Rui assumiu o papel de professor político não somente no Parlamento. Para alertar a sociedade e tentar reverter os abusos dos governantes, ele também fez uso sistemático do habeas corpus nos tribunais (como advogado) e dos artigos de opinião na imprensa (como jornalista). 
Foi senador (pela Bahia) com mais mandatos: cinco (de 1890 a 1923), sem interrupção. Foi senador logo na primeira legislatura da República e se reelegeu quatro vezes até o fim da vida. 
O seu Credo Político foi extraído do discurso que proferiu no Senado Federal em 13 de outubro de 1896  discurso conhecido como "Resposta a César Zama", na época, adversário ferrenho de Ruy Barbosa, no governo Floriano Peixoto, em virtude de questões como a Guerra de Canudos, o encilhamento e o voto censitário. 
Nesse discurso, Rui rebate à provocação da Câmara dos Deputados, fazendo um relato de sua trajetória política dos últimos anos e produzindo um de seus textos mais icônicos, que se configura no “Credo Político” de pp. 50 a 51. 
 
CREDO POLÍTICO DE RUI BARBOSA
 
Meu país conhece o meu credo político, porque o meu credo político está na minha vida inteira. Creiona liberdade onipotente, criadora das nações robustas; creio na lei, emanação dela, o seu órgão capital, a primeira das suas necessidades; creio que, neste regime, não há poderes soberanos, e soberano é só o direito, interpretado pelos tribunais; creio que a própria soberania popular necessita de limites, e que esses limites vêm a ser as suas Constituições, por ela mesma criadas, nas suas horas de inspiração jurídica, em garantia contra os seus impulsos de paixão desordenada; creio que a República decai, porque se deixou estragar confiando-se ao regime da força; creio que a Federação perecerá, se continuar a não saber acatar e elevar a justiça; porque da justiça nasce a confiança, da confiança a tranqüilidade, da tranqüilidade o trabalho, do trabalho a produção, da produção o crédito, do crédito a opulência, da opulência a respeitabilidade, a duração, o vigor; creio no governo do povo pelo povo; creio, porém, que o governo do povo pelo povo tem a base da sua legitimidade na cultura da inteligência nacional pelo desenvolvimento nacional do ensino, para o qual as maiores liberalidades do Tesouro constituíram sempre o mais reprodutivo emprego da riqueza pública; creio na tribuna sem fúrias e na imprensa sem restrições, porque creio no poder da razão e da verdade; creio na moderação e na tolerância, no progresso e na tradição, no respeito e na disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor insuprível das capacidades. 
Rejeito as doutrinas de arbítrio; abomino as ditaduras de todo gênero, militares ou científicas, coroadas ou populares; detesto os estados de sítio, as suspensões de garantias, as razões de Estado, as leis de salvação pública; odeio as combinações hipócritas do absolutismo dissimulado sob as formas democráticas e republicanas; oponho-me aos governos de seita, aos governos de facção, aos governos de ignorância; e quando esta se traduz pela abolição geral das grandes instituições docentes, isto é, pela hostilidade radical à inteligência do País nos focos mais altos da sua cultura, a estúpida selvageria dessa fórmula administrativa impressiona-me como o bramir de um oceano de barbaria ameaçando as fronteiras de nossa nacionalidade.
 
Corolário do Credo Político de Rui Barbosa
 
Imediatamente após a exposição do seu Crédito Político, Rui dá a sua impressão sobre o que acaba de proferir, onde explicita bem as duas seções que o compõem: 
 
Vós bem o sabeis, senhores; essas são as minhas crenças, esses os meus ódios. E um homem que tem embebidos na sua vida esses ódios santos e essas crenças incorruptíveis, não pode ter programas que fazer. Seu futuro está ligado ao seu passado pelo nobre cativeiro do dever. Um refletirá o outro, por uma dessas necessidades da consciência que o interesse não amolga.
 
************************ 
 
Não pretendo furtar-me à oportunidade de referir-me ainda ao célebre discurso, transcrevendo uma passagem nas pp. 107-8, em que Rui fala da importância de sua vida pública, embora reconheça que esta labora em detrimento de sua banca de advocacia muito mais rentável: 
 
Não há, senhores, nem pode haver aliança entre a política e os meus interesses privados. A política é e será sempre a inimiga da minha prosperidade profissional. A minha banca de advogado seria um tesouro, se eu lhe pudesse consagrar exclusivamente o meu espírito e o meu tempo, repartidos, até hoje, com as exigências dessa rival intolerante. Mas, se o trabalho não fosse, como infelizmente creio que há de ser até ao termo de meus dias, o instrumento de minha subsistência, não é aos áridos labores forenses que eu consagraria a minha vida. A minha vocação reclamava um ideal mais alto: o das letras, o da arte, ou o da ciência desinteressada. Os que me conhecerem a natureza, hão de reconhecer que, com os meus instintos e os meus gostos, não pode ser voluntária a minha absorção no comércio dos autos.
Senhores, isto já não é um discurso: é a confidência geral da minha vida, exposta como um livro aberto aos olhos do País. (...) 
 
Resposta a César Zama. Discurso no Senado Federal em 13 de outubro de 1896.
 
 
II. BIBLIOGRAFIA
 
 
BARBOSA, RUY: Discurso pronunciado no Senado Federal em sessão de 13 de outubro de 1896, Ouro Preto: Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, 1897, 113 p. Disponível inhttps://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/222312.

BRAGA, Francisco J.S.: Rui Barbosa em Haia (1907) e Buenos Aires (1916), post publicado em 26 de agosto de 2013
 
MARINHO, Josaphat: Rui Barbosa e o advogado,  Brasília: Revista de Informação Legislativa, v. 33, nº 132, out/dez 1996, pp. 5-9.

NOGUEIRA, Rubem: O advogado Rui Barbosa : Momentos Culminantes de sua Vida Profissional, Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora, 1949, 478 p. 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

O mundo insone, Stefan Zweig - por Francisco Braga (Blog de São João del-Rei)

O MUNDO INSONE


STEFAN ZWEIG (1881-1942)
Quando em 28 de junho de 1914 soube do assassinato do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império austro-húngaro, e sua mulher, Stefan Zweig passava uma espécie de lua de mel rural com Friderike von Winternitz, sua primeira mulher, nos arredores de Viena. O otimismo europeísta não permitiu que interrompesse a rotina anual de visitar o mestre Verhaeren. Um mês depois, conseguia tomar um dos últimos trens que deixaram a Bélgica antes que os alemães a invadissem.
Nos primeiros dias do conflito vibrou com a vibração dos austríacos e alemães, mas logo começou a duvidar, dividido, inquieto — mergulhara na primeira crise existencial. Saiu dela amparado pela força de Friderike, pelas cartas de Romain Rolland e transformado num pacifista integral.
Para diminuir a ansiedade começou a escrever com mais frequência no folhetim do Neue Freie Press. Um mostruário de cinco artigos (praticamente um a cada ano de conflito) foi incluído no primeiro livro de ensaios, enfeixados com o título "Durante a Primeira Guerra Mundial" (estava certo de que logo haveria outra guerra).
Zweig apresenta o conjunto com breves linhas: “A publicação na íntegra [destes textos] comprova que mesmo em meio à guerra era possível tomar uma atitude independente contra a maior das catástrofes europeias, não obstante a rigorosa censura.”
O mundo insone”, o primeiro dos textos, foi publicado no dia 18 de agosto de 1914, três semanas depois de iniciado o conflito. O instigante título — um clássico zweiguiano — tem sido utilizado com frequência nas coletâneas de ensaios publicados no pós-guerra.                                                                                             Alberto Dines

                                                                                                                    

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Corrigindo: sua primeira passagem pelo Brasil foi em 1936

Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias.
 Em cada país da infinita Europa, em cada cidade, cada ruela, cada casa, cada aposento, a respiração tranquila do sono tornou-se curta e febril, e o tempo ardente abrasa as noites e confunde os sentidos, tal qual uma noite de verão abafada e sufocante. Quantas pessoas, aqui e ali, que normalmente deslizavam da noite para o dia no negro barco do sono, embandeirado de sonhos coloridos e palpitantes, escutam agora os relógios andando, andando e andando todo o terrível caminho entre o claro e o claro, sentindo por dentro as preocupações e os pensamentos a corroer-lhes o coração, até este ficar ferido e doente! Toda uma humanidade arde agora em febre, noite e dia, uma vigília terrível e poderosa cintila pelos sentidos agitados de milhões de pessoas, o destino penetra, invisível, por milhares de janelas e portas e espanta de cada leito o sono, espanta o esquecimento. Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias. 
 
Ninguém mais está a sós com o seu destino, todos espreitam ao longe. À noite, hora em que se está sozinho e acordado na casa protegida e trancada, os pensamentos voam até os amigos e os que estão distantes. Quem sabe a essa mesma hora se cumpre alguma parte do nosso destino, uma invasão em uma aldeia da Galícia, um ataque em alto-mar, tudo o que acontece nesse mesmo segundo a milhares e milhares de milhas de distância está relacionado com nossas vidas. E a alma sabe disso, ela se expande e, em seu pressentimento, em seu anseio, quer captar algo disso, o ar queima de desejos e rezas que agora vão e voltam voando de um lado do mundo para o outro. Milhares de pensamentos se movimentam, inquietos, das cidades silentes até as fogueiras de campanha, do solitário sentinela de volta à pátria; entre os que estão próximos e os distantes flutuam fios invisíveis de amor e de preocupação, um tecido do sentimento, infinito, encobre agora o mundo, de noite e de dia. Quantas palavras são sussurradas, quantas orações ditas ao espaço impassível, quanto amor saudoso flutua através de cada hora da noite! A atmosfera estremece continuamente em ondas misteriosas cujos nomes a ciência desconhece e cujas oscilações nenhum sismógrafo é capaz de registrar: mas quem poderia dizer se esses desejos são impotentes, se esse incomensurável querer, que irrompe ardente a partir das camadas mais profundas da alma, também não percorre distâncias como a vibração dos sons e o estremecimento elétrico? Onde antes havia sono, repouso imaterial, agora há o afã imaginativo: a alma não cessa de ver, através da escuridão, os ausentes que lhe são caros, e na imaginação cada um deles vive múltiplos destinos. Milhares de pensamentos escavam o sono, cuja construção oscilante desmorona sempre, e por cima do homem solitário ergue-se vazia a escuridão povoada de imagens. Mais vigilantes à noite, as pessoas também se tornam mais vigilantes de dia: nas pessoas mais simples que encontramos está vivo nessas horas algo do poder do orador, do poeta, do profeta, é como se o que há de mais misterioso nos homens tivesse sido vertido para fora pela incomensurável pressão dos fatos, cada pessoa potencializada em sua vitalidade. Assim como lá no campo, nos simples camponeses, que a vida toda aravam sua lavoura quietos e pacíficos, nessa hora inquieta subitamente se inflama o heróico, assim se inflama em pessoas normalmente opacas e torpes a capacidade da visão; todos vivenciam dentro de si uma visão que transcende a esfera normal de sua existência, e quem antes só tinha olhos para o seu trabalho diário vê agora realidade e imagens animadas em cada notícia. As pessoas revolvem constantemente com preocupações e visões a gleba árida da noite, e quando enfim se rendem ao sono, têm sonhos estranhos. Porque o sangue circula mais quente em suas veias, e nesse calor florescem plantas tropicais de terror e preocupação, sonhos dos quais é uma bênção acordar e sentir que não passaram de pesadelos inúteis e que só aquele mais terrível sonho da humanidade é uma verdade aterradora: a guerra de todos contra todos. 
 
Os mais pacíficos sonham agora com batalhas, colunas se precipitam e atravessam o sono, o sangue ruge, escuro, com o tronar dos canhões. Acordando num sobressalto, ouvimos ainda o estrondo dos carros que passam, o bater dos cascos. Escutamos atentamente, inclinado-nos da janela  e, de fato, ali embaixo passam as longas fileiras de carros e cavalos pelas ruas desertas. Alguns soldados levam um bando de cavalos no cabresto; pacientes, eles trotam com seus passos pesados e sonoros pelo calçamento ruidoso. Também eles, os animais que normalmente descansam à noite do trabalho, quietos em seus estábulos quentes, foram privados do sono habitual, as parelhas pacíficas foram separadas, as fraternais também. Nas estações [de trem] escutam-se as vacas mugindo mansas nos vagões; retiradas de seus pastos cálidos e macios de verão para o desconhecido, até elas, as apáticas, tiveram o sono perturbado. E os trens partem para a natureza adormecida, que também se sobressalta com a agitação das pessoas. Tropas da cavalaria galopam à noite cruzando campos que desde a eternidade descansavam no escuro, por sobre a negra superfície do mar faíscam em milhares de pontos os faróis, mais claros que a luz da lua e mais ofuscantes que o sol, até mesmo lá no fundo a treva das águas está perturbada pelos submarinos à caça de presas. Disparos soam e ressoam através das montanhas caladas, acordando os pássaros, tontos, em seus ninhos; em nenhum lugar o sono é seguro, e mesmo o éter, desde sempre intocado, é atravessado pela pressa assassina dos aeroplanos, os fatídicos cometas do nosso tempo. Nada, nada mais pode ter sossego e descanso nesses dias: a humanidade arrastou animais e natureza em sua batalha assassina. Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias. 
 
Mas pensemos e repensemos, mais uma vez, a amplitude do tempo e que isso que acontece agora não tem precedente na história. Vale ficar insone, sempre vigilante. Nunca o mundo, desde que é mundo, esteve tão agitado em sua totalidade, nunca tão excitado em sua comunidade. Uma guerra, até agora, nunca passou de uma inflamação no imenso organismo da humanidade, um membro purulento e que era cauterizado para sarar enquanto todos os outros ficavam desimpedidos e livres em suas funções vitais. Sempre houve pessoas que não participavam, em algum lugar ainda havia aldeias às quais não chegavam notícias daquela agitação e que dividiam calmamente sua vida em dia e noite, em trabalho e repouso. Em algum lugar ainda havia o sono e o silêncio, gente que acordava cedo, risonha, e que dormia sem sonhar. Mas a humanidade, quanto mais conquistou a Terra, mais unida ficou: uma febre sacode agora todo o seu organismo, um terror sacode o cosmo inteiro. Não existe nenhuma oficina na Europa, nenhuma granja solitária, nenhum casario de bosque de onde não tenham arrancado um homem para participar dessa luta, e cada um desses homens, por sua vez, está unido a outros através de vínculos de sentimento. Até o mais humilde emana tanto calor que, quando desaparece, tudo se torna mais frio, mais solitário, mais vazio. Cada destino forma outros destinos a partir de si, pequenos círculos que se dilatam em ondas no mar das emoções e se ampliam; em enorme união e mútua determinação da experiência, ninguém se precipita no vazio ao morrer: cada um arrasta algo dos demais consigo. Cada um é acompanhado de olhares, e esse olhar e ansiar, multiplicado por milhões e entrelaçado com o destino de nações inteiras, cria a inquietação de um mundo inteiro. Toda a humanidade escuta, e através do milagre da técnica recebe simultaneamente a mesma resposta. Os navios transmitem mensagens uns aos outros através de incontáveis ondas, das torres de telégrafos de Nauen e Paris uma mensagem é transmitida em questão de minutos para as colônias da África Ocidental e para o lago Chade, os hindus da Índia leem as decisões em suas folhas de cânhamo e de tela à mesma hora que os chineses em seus papéis de seda  a excitação se propaga até as últimas terminações nervosas da humanidade e afugenta a letargia. Cada qual espia pela janela dos seus sentidos em busca de notícias, sugando tranquilidade das palavras dos corajosos e terror e dúvida das dos desesperados. Os profetas, verdadeiros e falsos, voltaram a ter ascendência sobre a massa que agora escuta e escuta, caminhando e repousando no delírio da febre, dia e noite, os longos dias e as noites infinitas desse tempo digno de ser vivido na vigília. 
 
Pois esses tempos não aceitam que alguém deixe de participar, e estar distante dos campos de batalha não significa estar de fora. Cada um de nós tem sua existência revolvida, ninguém mais tem o direito de dormir em paz em meio à tremenda exaltação. Nessa transformação das nações e dos povos, nós também nos transformamos, não importa que aprovemos ou não; cada um está enredado nos acontecimentos, ninguém permanece frio na febre de um mundo. Não há como ficar indiferente às realidades transformadas, hoje ninguém mais está a salvo em uma rocha, olhando com um sorriso para as ondas agitadas. Cada qual, querendo ou não, é arrastado pela maré, sem saber para onde está sendo levado. Ninguém pode se isolar, pois com nosso sangue e nosso intelecto giramos na correnteza de uma nação, e cada aceleração nos impulsiona, cada parada em seus pulsos barra o ritmo de nossa própria vida. Quando a febre ceder, tudo terá um novo valor para nós, e justo o igual será diferente. As cidades alemãs: com que sentimento as veremos depois dessa luta! E Paris: como terá se tornado diferente, estranha ao nosso sentimento! Sei desde agora que não poderei ficar na mesma casa hospitaleira em Liège com o mesmo sentimento, com os mesmos amigos, depois que as granadas alemãs caíram sobre a cidadela; entre tanto amigos, de um lado e outro da fronteira, estarão as sombras dos mortos, absorvendo com respiração fria o calor da palavra. Todos teremos que nos reorientar, do ontem para o amanhã, atravessando esse impenetrável hoje, cuja violência apenas percebemos agora, horrorizados, e teremos que chegar a uma nova forma de vida em meio a essa febre que agora torna nossos dias tão abrasadores e nossas noites tão sufocantes. Depois de nós surge uma nova geração cujos sentimentos foram forjados nesse fogo. Eles serão diferentes  eles, que viram vitórias naqueles anos em que nós só vimos retrocesso, lamento e lassidão. Da confusão desses dias surgirá uma nova ordem, e nossa primeira preocupação terá que ser nos sujeitar a ela com força e solidariedade. 
 
Uma nova ordem  pois essa febre insone, a inquietude, a esperança e a expectativa que consomem a tranquilidade dos nossos dias e das nossas noites não podem continuar. Por mais que toda a destruição agora pareça se estender de forma terrível sobre o mundo aniquilado, ela é diminuta em comparação com a energia muito mais impetuosa da vida, que depois de cada tensão sempre consegue um repouso para sair transformada, mais pujante e mais bela. Uma nova paz  oh!, quão distantes brilham ainda suas asas luminosas através da poeira e da fumaça de pólvora  haverá de reerguer a velha ordem da vida, o trabalho de dia e o repouso à noite. O silêncio voltará com o sono reparador aos mil lares que agora estão despertos na excitação e no medo, e estrelas tranquilas voltarão a olhar do alto para uma natureza que respira felicidade. O que agora ainda parece ser horror será então, em sublime transformação, grandeza. Sem lamento, quase com nostalgia, lembraremos essas noites intermináveis, durante as quais, em ampliação maravilhosa, percebíamos no sangue o destino em gestação e a cálida respiração do tempo sobre nossas pálpebras despertas. Só quem viveu a doença conhece a felicidade completa da cura, só o insone conhece a doçura do sono reconquistado. Os que regressaram e aqueles que ficaram em casa estarão mais contentes com sua vida do que os que se foram, saberão apreciar seu valor e sua beleza com mais seriedade e mais justiça, e quase ansiaríamos pela nova conformação se hoje  como nos dias antigos  o chão do templo da paz não estivesse regado com o sangue sacrificado, se esse novo e feliz sono do mundo não fosse comprado à custa da morte de milhões de seus filhos mais nobres.
 
Fonte:  ZWEIG, Stefan: O mundo insone e outros ensaios, tradução de Kristina Michahelles; organização e textos adicionais de Alberto Dines, Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 197-203.

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Prezad@,Um mês e meio após o início da Primeira Guerra Mundial, STEFAN ZWEIG começou a publicação de uma série de 5 artigos, um a cada ano, no folhetim do Neue Freie Press. Na presente postagem, o Blog de São João del-Rei publica o primeiro desses ensaios - O MUNDO INSONE -, em que o autor descreveu um mundo - na altura, sobretudo, europeu - que é, na sua origem, uma guerra civil europeia. Na viragem do século, o mundo vivia sua segunda globalização (a primeira foram os Descobrimentos portugueses). Nessa segunda globalização, a Europa, nomeadamente a Alemanha de Weimar ou a Áustria de Viena, vivia um extraordinário boom cultural e científico. Tudo parecia tranquilo e seguro. Nada impediu a explosão da I Guerra Mundial em 28/06/1914.Como resultado da enorme carnificina, a Grande Guerra vitimou quase 20 milhões de pessoas na Europa. Logo após, Stefan Zweig tornou-se um pacifista convicto, um homem que evitava até mesmo as disputas desportivas. Cerca de um mês depois de assinado o tratado de paz em Versalhes em junho de 1919 que encerrou o conflito, Zweig escreveu ao mestre e confidente, Romain Rolland: "Há momentos em que me pergunto se valerá a pena viver os próximos vinte anos." Impacientava-se com os impasses políticos produzidos pelo novo mapa do Velho Mundo.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/02/o-mundo-insone.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Anônimo disse...

Obrigado, Braga. O texto é oportuno e atual. Ainda hoje, "há menos sono no mundo". Os dias e as noites, estão cada vez mais curtos e mais há um perigo iminente, de olhos acesos sobre os homens. A política ferve... O mundo é um caldeirão. Parabéns pela escolha. Forte abraço poético de Geraldo Reis, O Ser Sensível.

Francisco José dos Santos Braga disse...

Heitor Garcia de Carvalho (graduado em Pedagogia pela Faculdade Dom Bosco (1968), mestre em Educação UFMG (1982), Ph.D em Educational Technology - Concordia University (1987 Montreal, Canada); MBA Gestão Tecnologia da Informação, Fundação Getúlio Vargas (2004); pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psicologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008); professor associado do CEFET-MG) disse...
Parece hoje!!!
Deus nos proteja!!!

Francisco José dos Santos Braga disse...

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga

E não obstante a Europa ter passado em séculos uma geração sequer sem que tenha sido atingida pelo flagelo das guerras, seus espíritos mais empáticos e sensíveis podiam ainda ressaltar seu horror.
E esse autor que tanto acreditou no Brasil...
Saudações.
Cupertino