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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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terça-feira, 2 de setembro de 2014

Brasil: um avestruz protecionista - Gustavo Franco

Sim, o Brasil é protecionista, isso já sabemos. E as multinacionais aqui instaladas acabam se dobrando às deformações das nossas políticas econômicas, introvertidas e orgulhosas de sê-lo. Basta ouvir a soberana repetir que vai defender os empregos aqui dentro.
Idiotas desse tipo atrasam o Brasil e acabam justamente destruindo os empregos.
Paulo Roberto de Almeida 

Por que o ‘Brazil’ exporta pouco?

A produção industrial vem se tornando um fenômeno cada vez mais internacional, assunto que tem trazido um misto de contrariedade e excitação quanto às suas vastas consequências. Trata-se aqui de um dos capítulos mais intrincados da globalização, tanto que apenas pode ser descrito, infelizmente, com palavras em inglês capazes de embaralhar as falas mais amestradas, além de sacudir os brios dos nacionalistas do idioma: offshoring e outsourcing.
Não há uma tradução para isso, como frequentemente ocorre com novos e complexos processos relativos à economia global, o leitor deve olhar para esses vocábulos como ideogramas, ou talvez deixar-se embriagar pela sua sonoridade, pela associação com coisas referentes à alta tecnologia ou com relações internacionais. Talvez um dia entrem para o vernáculo, como o abajur, o bonde e a manicure.
Preferimos investir em parcerias “Sul-Sul” em vez de entrar para a OCDE e em acordos comerciais que nos colocam no mapa da produção internacional
Concretamente, trata-se de processo pelo qual a produção industrial se desagrega em etapas que vão sendo implantadas ou transferidas para diversos países, conforme a vantagem locacional, e de sorte a reduzir a exposição a variações cambiais e otimizar a cadeia, ou mais propriamente, a rede internacional de valor.
Pense no seu smartphone (que já está quase entrando no dicionário) e repare que a fabricação pode se dar na China, com componentes vindos de diversos países, com peças e software de outros, e o desenvolvimento, o branding e o marketing em outros. Ou pense num call center nos EUA onde os atendentes estão na Índia ou na Bahia e os data centers na nuvem. A globalização, às vezes, parece propaganda de um curso de inglês, não é mesmo?
A história desses processos tem muito a ver com outro fenômeno que outrora pareceu perturbador: a empresa multinacional. Nos anos 1950 e 1960 as grandes empresas, sobretudo americanas, começaram a abrir filiais no exterior, em muitos casos apenas para atender os desejos de “substituição de importações”, ou de “produção local”, em países clientes que se tornaram mais protecionistas. Com o tempo, o número e o volume de produção e vendas do conjunto das filiais no exterior foi crescendo a ponto de mudar a natureza dessas organizações, que deixaram de ser federações de réplicas da mãe, e foram assumindo uma personalidade distintamente transnacional. A divisão internacional do trabalho se aprofundou dentro da empresa, e com isso explodiu o fenômeno do “comércio intrafirma” (entre partes relacionadas) que já nos anos 1990 tinha ultrapassado 1/3 do comércio mundial.
Em tempos mais recentes, o processo se acelerou ainda mais diante da ascensão industrial da China, e o Brasil poderia estar na crista da onda desse vendaval de transformações, pois a presença de multinacionais no país é imensa. Em 2010, tínhamos 16.844 empresas estrangeiras no país. Como eram 6.322 em 1995, pode-se dizer que foram duas novas a cada dia ao longo desses 15 anos. Essas empresas tinham ativos de R$ 2,4 trilhões e faturamento de R$ 1,6 trilhão e eram responsáveis por 38% das exportações totais do país e 43% das importações em 2010.
É possível estimar que esse conjunto de empresas tenha sido responsável pela geração de cerca de um quarto do PIB brasileiro em 2010, ou seja, esse PIB “estrangeiro” dentro do Brasil seria próximo de US$ 523 bilhões, o que colocaria este “país” (chamemos de “Brazil”) como o vigésimo segundo PIB deste planeta, entre Suécia (US$ 560 bilhões) e Polônia (US$ 516 bilhões).
Entretanto, a despeito da contribuição do “Brazil” para as exportações brasileiras, é importante observar que as empresas estrangeiras no Brasil exportam muito pouco, especialmente quando comparado: (i) ao Brasil, pois o “Brazil” exporta algo como 17% de seu PIB (cerca de US$ 87 bilhões), não muito mais que o Brasil (10,5%); (ii) a países “comparáveis”, Polônia e Suécia, que exportam 39% e 32% de seus respectivos PIBs; e (iii) às filiais de multinacionais estabelecidas pelo mundo, cuja propensão a exportar, segundo dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), deve ser superior a 45%.
Essas contas servem para mostrar que as empresas estrangeiras estabelecidas no Brasil, que respondem por 40% do comércio exterior do país, poderiam estar exportando o dobro ou o triplo, o mesmo valendo para a importação, se estivessem se comportando de modo minimamente parecido com o que fazem, em média, em outros países. Se o “Brazil” estivesse exportando na faixa de 45% de seu PIB suas vendas no exterior teriam sido cerca de US$ 150 bilhões maiores do que foram em 2010.
A pergunta que não quer calar é muito simples: por que então as multinacionais estabelecidas no Brasil exportam tão pouco?
É claro que a resposta começa pelo fato de que todas as razões que levam o Brasil a exportar pouco, sobretudo em manufaturas, valem para o “Brazil”. O intrigante é que, no “Brazil”, há bastante mais competitividade, a julgar pelos níveis de produtividade, que são cerca de dez vezes maiores relativamente ao Brasil. E isso serve para afastar o câmbio da discussão, pois a “sobrevalorização”, essa doença crônica, estaria em 20%, segundo a “The Economist” e sua métrica de big macs, de modo que não seria tão relevante. As organizações globais das multinacionais se formam, entre outros motivos, para diluir o risco cambial.
Sendo assim, por que então as multinacionais localizadas no Brasil não plugam mais intensamente as suas operações no Brasil com suas cadeias internacionais de valor?
Pode-se dizer que há um problema de nascença, pois essas empresas vieram para o Brasil pensando no mercado interno, em contraste com o que se passou na Ásia, e o período de hiperinflação nos subtraiu ainda mais da globalização. Com a passagem do tempo, todavia, o “Brazil” deveria ficar mais exportador (e a Ásia menos), e, de fato, considerando uma amostra mais restrita de filiais americanas, a razão exportações/PIB, que estava em 14% em 1995 (para as filiais no Brasil, contra 63% para as filiais na Ásia e 42% para a média mundial) sobe para 32% em 2005 (contra 52% para a Ásia e 46% para a o mundo), mas despenca para 22% em 2012 mercê do aumento substancial do protecionismo e dos “requisitos de conteúdo local”.
Nada pode ser mais prejudicial à ideia de elevar as exportações do “Brazil”, e a enriquecer os laços do Brasil com o resto do mundo, que esse protecionismo velho, que confunde soberania com autarquia e que privilegia a balança comercial em vez da corrente de comércio. Sem importar, não se exporta.
E mais: preferimos investir em parcerias “Sul-Sul” em vez de entrar para a OCDE e em acordos comerciais que nos colocam no mapa da produção internacional.
Estamos perdendo tempo com políticas comerciais e industriais mercantilistas e obsoletas, que parecem combater e contestar a globalização (e os estrangeirismos), quando ela já está firmemente absorvida dentro de casa e nos oferece oportunidades que fingimos não enxergar.
Fonte: O Globo, 31/08/2014.

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SOBRE GUSTAVO H. B. FRANCO



Gustavo H. B. Franco

Gustavo H.B. Franco é bacharel e mestre em economia pela PUC do Rio de Janeiro e Ph.D (1986) pela Harvard University. É estrategista-chefe da Rio Bravo e presidente do Instituto Millenium. Foi presidente do Banco Central do Brasil, e também diretor da Área Internacional do Banco Central e Secretário Adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda, entre 1993 e 1999. Gustavo Franco participa de diversos conselhos consultivos e de administração e escreve regularmente para jornais e revistas. É professor do Departamento de Economia da PUC desde 1986. Tem 14 livros publicados e mais de uma centena de artigos em revistas acadêmicas.

domingo, 27 de julho de 2014

Banco dos Brics: brincando com o dinheiro dos contribuintes - Gustavo Franco

Nunca antes no país irresponsáveis totalitários foram tão irresponsáveis com o meu, com o seu, com o nosso dinheiro...
Paulo Roberto de Almeida 




Dida Sampaio/Estadão
Gustavo H.B. Franco - O Estado de S.Paulo
Seguindo-se à Copa do Mundo, em Fortaleza, o governo brasileiro resolveu comprometer até US$ 38 bilhões em uma iniciativa diplomática cujos supostos benefícios se parecem, na sua subjetividade, com os da própria Copa. Os custos, porém, são muito concretos: o equivalente a 114 estádios (ao custo unitário de US$ 0,33 bilhão), ou dois trens-bala, em dinheiro inexistente, o que indica algo entre a indiferença e o desprezo pelo contribuinte brasileiro. 
Presidentes se reúnem no Palácio do Itamaraty durante VI Cúpula dos BRICS
Presidentes se reúnem no Palácio do Itamaraty durante VI Cúpula dos BRICS
DIDA SAMPAIO/Estadão
Trata-se do banco do Brics, um banco de fomento, que receberia duas chamadas de capital, ambas de US$ 50 bilhões, a primeira já, e cabendo a cada sócio 20% da subscrição. O banco seria também o administrador de um fundo de liquidez de até US$ 100 bilhões dos quais caberia ao Brasil contribuir com o equivalente a 18% do total, tal como Rússia e Índia. Os porcentuais para a China e para a África do Sul seriam de 41% e 5%, respectivamente.

Tudo somado, US$ 38 bilhões, a maior parte a desembolsar depois de terminado o mandato de Dilma Rousseff.

Como é possível comprometer tanto dinheiro no final de uma administração em um projeto que reflete opções muito particulares e partidárias de política fiscal e de diplomacia econômica?

De onde saem os US$ 38 bilhões e em detrimento de que outras prioridades? Como será usado esse dinheiro?

Como não existem respostas para as primeiras duas perguntas (sobre as quais os órgãos de controle do setor público deveriam se debruçar), o texto que se segue trata apenas da última.

O Brasil participa de diversos bancos de desenvolvimento multilaterais, e em todos eles prevalece uma espécie de regra de ouro segundo a qual o capital colocado pelo Brasil precisa ser alocado em projetos de interesse do Brasil, sendo esta uma contabilidade que os funcionários brasileiros nessas instituições zelam para que seja cumprida à risca, ou com sobra. Já passamos da fase onde o País recebia mais do que aportava, como é típico dos países pobres, mas ainda não estamos na categoria dos ricos que conscientemente aceitam receber em empréstimos menos do que contribuem, e que se esmeram na definição das condições associadas ao uso dos recursos abrangendo impactos sociais e ambientais, e mesmo precauções contra a corrupção.

No caso em tela, onde o banco de desenvolvimento é formado por cinco países de renda média, a tendência será a formação de cinco balcões segregados, cada qual falando o próprio idioma e cuidando dos próprios negócios. O assunto fica mais politizado, mas não muito diferente, se o banco for operar em outros países, pois cada sócio vai criar a própria clientela, sabe-se lá com que critérios.

A prevalecer esta compartimentalização, o leitor estará correto em pensar que, para tratar do nosso pedaço, já temos o BNDES. Em vez de uma nova sede, bastava mais uma sala na Avenida Chile e um contrato de terceirização, com isso evitando boa parte dos custos administrativos e do aprendizado do novo veículo.

Entretanto, essa solução engenhosa e econômica resulta em criar um pequeno monstro: um canal de transferências regulares entre o Tesouro e o BNDES, que transitariam pelo novo banco só num relance contábil. Seria uma espécie de aprofundamento do modelo de "conta movimento" desenvolvida nos últimos anos, agora apensado a uma obrigação internacional. É mais um prego no caixão do equilíbrio fiscal, uma marca desse governo.

É verdade que os bancos de desenvolvimento podem ir além dos limites do próprio capital captando recursos em mercado a custos inferiores do que alguns de seus sócios seriam capazes de obter em captações individuais. Mas são poucos os que conseguem: o Banco Mundial, assim como a Corporação Andina de Fomento emitem instrumentos de dívida com muito sucesso há muitos anos, pois mantêm uma estrutura de capital conservadora e um histórico honrado de financiamentos a projetos com bons retornos e boas parcerias, inclusive com outros bancos de desenvolvimento.

Quanto tempo e quantos bilhões serão necessários até o banco do Brics chegar a esse amadurecimento? Com cinco sócios que pouco se conhecem, e com agendas tão diferentes, não seria mais plausível imaginar que a construção seja longa e dispendiosa, e talvez não chegue a lugar algum? E o risco de captura pelas agendas imperialistas de Rússia e China?

Outro assunto é o fundo para oferecer liquidez em bases temporárias a membros do grupo, ou a seus amigos. É fácil especular sobre esses assuntos quando todos estão com reservas sobrando, mas não vamos nos iludir que haja alguma ideia nova no arranjo. Desde a Conferência de Bretton Woods em 1944, quando o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) foram criados, algumas das melhores cabeças desse planeta estão matutando sobre a organização de mecanismos estabilizadores para a economia global, e já há muita experiência acumulada, em várias direções, a partir da atuação do FMI.

O conceito básico aqui é simples: os empréstimos do FMI têm a natureza de um "redesconto bancário", ao passo que o fomento cabe ao Banco Mundial. A missão do FMI é ofertar reservas internacionais emprestadas por prazos curtos para países com dificuldades temporárias de balanço de pagamentos, a custos que não precisam ser especialmente punitivos, mas cujo uso deve ser caro a ponto de estimular o mutuário a não praticar as condutas que levam à necessidade de utilizar esses recursos. A missão do FMI é ajudar a restaurar o equilíbrio externo dos participantes da economia global, mas sem incentivar o desequilíbrio. A rede de proteção permite que o trapezista faça manobras mais ousadas, ou seja, cria um problema conceitual nada simples e para o qual não existe ainda uma bala de prata.

A ideia de um novo fundo para complementar a atuação e os recursos do FMI é bem vinda, mas ociosa, pois nada impede que cada um dos países do Brics participe dos pacotes de financiamento que o FMI organiza. Não há muita clareza sobre esse tópico, mas volta e meia aparece a ideia que o novo fundo poderia "competir" com o FMI e montar programas alternativos de apoio em "outras bases", o que apenas pode ser tomado como um bom roteiro para um romance de ficção científica, onde o contribuinte morre no fim.

Afastados esses delírios, fica a impressão de que, independentemente do que vai acontecer com o novo banco, a cooperação Sul-Sul teve aqui uma epifania, e quem pensava que a política externa era apenas uma diversão barata há de ter se surpreendido.

Nada é definitivo, felizmente, e se a hesitação em assinar cheques mostrar-se, uma vez mais, proporcional aos desentendimentos esperados entre os países do Brics, o desfecho provável desse minueto será alguma solução barata e que preserve os "ganhos conceituais", esta é a linguagem diplomática para as ideias que não voam.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Gustavo Franco: Os amigos da inflação e seus disfarces (Estadao)

Os amigos da inflação e seus disfarces

Gustavo H.B. Franco

O Estado de S.Paulo, 25 de maio de 2014


As primeiras teorias sobre a inflação eram como a cartografia primitiva: roteiros para a imaginação muito mais que representações científicas e confiáveis da verdadeira geografia. A inflação surgiu mais ou menos na mesma época e lugar que o "papel-moeda", sendo muito natural e espontâneo que se associasse uma coisa à outra. Afinal, a inflação é a perda de poder aquisitivo da moeda, simples assim.

No Brasil, entretanto, logo emergiu um visão alternativa e imaginosa que tomava emprestada à engenharia uma palavra que mudaria para sempre nossa maneira de olhar as mazelas da economia: dizia-se que a inflação brasileira era "estrutural".
Esse palavreado nos colocava em pleno Quartier Latin e, com toda razão, conferia a devida complexidade ao fenômeno, que deixava de pertencer às más intenções de governantes fabricantes de papel pintado e passava ao domínio de criaturas temíveis, como os monstros que ilustravam os espaços vazios dos mapas de antigamente: latifúndios, gargalos, cartéis e pontos de estrangulamento. Tinha-se, assim, de forma nem tão sutil, uma transferência da culpa pelo problema, um truque de grande impacto sobre os debates públicos sobre o combate à inflação.
A "inflação estrutural", em suas múltiplas encarnações, sempre compreendia uma variação recorrente de um preço importante, geralmente os de alimentos, mercê da (supostamente) baixa produtividade no setor causada pela estrutura agrária dominada pelo latifúndio, e da repercussão viciosa do "choque de oferta" patrocinada pelos oligopólios e oligopsônios.
Não era uma boa teoria, tanto que caiu para a gaveta das curiosidades próprias dos primeiros anos do fenômeno. Mas a mensagem central resultou duradoura: essa inflação que tinha "raízes no setor real" deveria ser combatida através de reformas que atacassem "estruturas", agrária ou de classes sociais, de tal sorte que parecia tolo pensar que a política monetária pudesse afetar o poder de compra da moeda. A estabilização apenas ocorreria com a reforma agrária, ou com o socialismo.
O legado mais duradouro e popular da "teoria da inflação estrutural" era tão simples quanto devastador: a (suposta) inutilidade das políticas de estabilização convencionais, argumento que ainda soa como poesia para os amigos da inflação.
Poucos se dão conta da importância e da contundência desse drible dado pelos "estruturalistas": nunca se fazia uma defesa aberta da inflação, mas um ataque às políticas monetárias ortodoxas e à austeridade. Em retrospecto, deveria ser claro que "o inimigo do meu inimigo é meu amigo" e os "estruturalistas" estavam trabalhando a favor da inflação, às vezes admitindo "expropriar os rentistas" ou "tributar a riqueza ociosa", um argumento que frequentemente se associava a lord Keynes.
Porém, os "desenvolvimentistas" sempre conseguiam se afastar da (autoria da) inflação, que se tornava, assim, uma criatura órfã, um mal impessoal, um cadáver sem o assassino para se tornar um inimigo público. Quem eram os amigos da inflação? Não deveria ser difícil apontar os culpados, mas o fato é que o Brasil nunca teve rosto para tornar o patrono da inflação. Quem percorrer os cadernos de imagens dos livros sobre a inflação, como o da jornalista Miriam Leitão, vai encontrar fotos de prateleiras vazias, máquinas de remarcação e cédulas cheias de zeros ou carimbos, mas nenhum economista desses que criticam os "métodos convencionais" de combate à inflação.
Em tempos mais recentes, os amigos da inflação ampliaram o arsenal de pretextos para a complacência com a inflação com uma espécie de ressurreição torta da "inflação estrutural", eis que a inflação observada no segmento de serviços do IPCA - que está rodando na faixa de 10% anuais - estaria associada à ascensão da classe média, processo desejável, uma espécie de "inflação do bem", refletindo fenômenos fora do alcance da política monetária. O inflacionismo estaria em busca de uma aliança com o politicamente correto.
Há enorme heterogeneidade dentro de "serviços" no IPCA, com uma infinidade de histórias sobre mercados específicos. Há fenômenos associados ao ciclo imobiliário (aluguel, condomínio, estacionamento), outras ao turismo (passagens aéreas, hotéis, motéis, espetáculos), e os serviços que incluem componentes digitais (celulares, internet, fotocópia). Há a "inflação médica", decorrente de mais "tecnologia embarcada", mas o setor seguramente possui economias de escala, o mesmo valendo para os serviços educacionais. E há os itens afetados pelo salário mínimo (consertos e serviços pessoais), e também a deflação dos eletrônicos (duráveis, ou mais baratos ou melhores).
O que há de comum nesses enredos?
Existem centenas, talvez milhares, de histórias de mudanças de preços relativos, vale dizer, sobre "inflação (ou deflação) estrutural", pois o sistema de preços está sempre a vibrar, como um organismo vivo e irrequieto. Quem tem 50 teorias sobre inflação estrutural na verdade não tem nenhuma. Se existe algum traço comum em cada uma dessas narrativas de "choques de oferta" é que todos os preços são na mesma moeda, que pode valer mais ou menos, dependendo da política monetária.
A verdadeira discussão não é sobre se a inflação nos serviços é "benigna", mas sobre complacência com a inflação. A alusão a uma nova inflação estrutural serve apenas para trazer de volta uma tese conhecida e maléfica: se há uma boa explicação "não monetária" para a existência da inflação, segue-se que a política monetária não funciona, ou produz um desemprego desnecessário para corrigir o incorrigível.
A própria presidente disse recentemente que reduzir a meta de inflação de 4,5% (na verdade 6,5%) para 3% faria o desemprego pular para 8% ou mais.
De onde saiu essa matemática?
Se fosse verdade, a redução na taxa de inflação de 916% para 5%, observada entre 1994 e 1997 (taxas acumuladas para o ano calendário), teria criado um caos. Em vez disso, o desemprego oscilou de 5,1% para 5,7%. Para quem não é do ramo parece mágica, não é mesmo?
O fato é que as autoridades governamentais prosseguem com o velho truque de antagonizar o combate à inflação e não a inflação, assim se esquivando de fazer uma defesa aberta dessa sua criatura amiga, órfã apenas na aparência, que parece nascer de causas naturais sem que ninguém lhe dê o que comer.
Quem são os amigos da inflação?
Basta olhar para os inimigos do combate à inflação.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS

domingo, 4 de maio de 2014

Mais irracionalidades governamentais: debate com Gustavo Franco e Helio Beltrao - Instituto Mises Brasil

“Nossa cultura nacionalista e protecionista nos faz muito mal”, diz Gustavo Franco

O presidente do Conselho de Governança do Instituto Millenium, Gustavo Franco, participou de um bate-papo sobre economia com o presidente do Instituto Mises Brasil, Helio Beltrão, e o diretor do Instituto Liberal do Nordeste, Raduán Melo, no 27º Fórum da Liberdade, realizado em abril, em Porto Alegre.
No encontro, promovido pelo “Liberzone”, site que discute política e liberdade, os três debateram perspectivas para a economia brasileira em ano de eleição. Para Franco, o atual governo destruiu o tripé macroeconômico e apenas se esforça para que a situação fiscal brasileira não se revele desastrosa. “Nós não temos mais metas de inflação. O objetivo é apenas não ultrapassar os 6,5% do teto antes da eleição”. Franco também criticou o forte intervencionismo do Banco Central no mercado e a proximidade do governo com regimes bolivarianos. “Nossas conexões com a globalização estão precárias”, lamentou.
Assista ao vídeo na íntegra:

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sábado, 1 de março de 2014

Plano Real e suas licoes: site do Jose Roberto Afonso

Bons papers, estudos, artigos, no site do economista José Roberto Afonso.
Foi duro, chegar à estabilidade, e parece que ela está sendo erodida pelos companheiros...
Paulo Roberto de Almeida



Hyperinflations - The experience of the 1920s reconsidered a revised version of Ph.D Dissertation originally presented by Gustavo Franco (1986). "Its main purpose was to join my interest in economic history and the ambition to extend and develop some of the new ideas and insights produced in connection with the recent experience with high inflations ands stabilization policies in Latin America."

20 anos depois do Plano Real: um debate sobre o futuro do Brasil evento promovido pelo iFHC que irá discutir os rumos do Brasil depois de vinte anos da estabilização da moeda, com a participação do presidente Fernando Henrique Cardoso e de seus principais colaboradores no Plano Real. O evento ocorrerá no dia 12 de março na Livraria Cultura, São Paulo. 

Reformas fiscais e os fins de quatro hiperinflações por Gustavo Franco. "A maioria das explicações para o fim das hiperinflações europeias da década de 20 atribui papel central a 'reformas' fiscais implementadas de modo mais ou menos simultânea às respectivas estabilizações. Entretanto, poucos tem sido os esforços no sentido de detalhar a natureza e o conteúdo dessas reformas."

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Real, 20 anos: uma historia do Plano aos seus 18 anos - Leandro Roque

Uma breve história do Plano Real, aos seus 18 anos
por 
Instituto Mises Brasil, sábado, 30 de junho de 2012



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Gustavo Franco, um dos principais mentores do Plano Real
Quando Itamar Franco assumiu interinamente a Presidência da República no dia 29 de dezembro de 1992, imediatamente após a renúncia de Fernando Collor, a inflação acumulada em 12 meses estava em 1.119%.  Em 1991, ela havia sido de 472%.  Em 1990, de 1.621%.  Com o país mergulhado em uma crise política e com a economia em frangalhos, não havia a menor perspectiva entre a população de que houvesse qualquer arrefecimento na inflação de preços.

Também em decorrência da recessão, a arrecadação tributária não era suficiente para cobrir as despesas.  Como consequência, o governo apenas ordenava ao Banco Central — que, na época, podia comprar títulos diretamente do Tesouro — que imprimisse o dinheiro necessário para fazer frente às despesas.  O resultado era um moto-perpétuo inflacionário. 
Eis o gráfico do singelo crescimento da base monetária — variável totalmente sob o controle do Banco Central — durante o governo Collor.  (É preciso dividir o gráfico em dois, pois um aumento de 28.380% não cabe em apenas um só gráfico).
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Gráfico 1: evolução da base monetária, março de 1990 a julho de 1991
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Gráfico 2: evolução da base monetária, julho de 1991 a dezembro de 1992
Tal prática de imprimir dinheiro para fazer frente às despesas governamentais não cobertas por impostos já era tradicional na economia brasileira; porém, no início da década de 1990, ela havia chegado ao ápice.  Em abril de 1990, por exemplo, a inflação acumulada em 12 meses foi de 6.821%, recorde até hoje absoluto em nossa história.
Após mais de uma década com inflação de preços anual acima dos 100% — a média de inflação de preços anual entre 1980 e 1992 foi de incríveis 694% —, uma solução definitiva era urgente.

O problema da hiperinflação
Além de toda a distribuição de renda às avessas que a inflação monetária gera — a qual foi a responsável pela explosão da disparidade de renda no Brasil na década de 1980 —, ela também provoca dois problemas adicionais que inviabilizam qualquer chance de crescimento econômico sustentável:
1) A inflação gera uma falsificação contábil que faz com que as empresas sobrestimem seus lucros e, consequentemente, incorram em um involuntário consumo do capital próprio.  Isto ocorre porque, durante a hiperinflação, a depreciação dos bens de capital continua sendo computada em termos de seus custos históricos e não em termos de seus reais custos de reposição (necessariamente mais altos).  Esta subestimação da depreciação gera uma superestimação dos lucros, o que consequentemente fará com que a empresa consuma um capital que não possui.
2) Adicionalmente, a hiperinflação impossibilita que os empreendedores sejam capazes de antecipar — mesmo que aproximadamente — quais serão os preços dos bens dali a alguns meses.  Logo, qualquer investimento de longo prazo se torna inviável.  Os empreendedores passam a se concentrar em projetos de curto prazo, projetos visando ao futuro mais imediato — por exemplo, no setor de serviços, nos setores de atacado e varejo, e até mesmo em empreendimentos que lidam com a especulação de vários de tipos de commodities. 
Assim, quando o processo de estimativa empreendedorial se torna incapaz de calcular com alguma exatidão quais recursos podem ser empregados lucrativamente em projetos de longo prazo, a estrutura de produção da economia é radicalmente "encurtada" e deixa de estar de acordo com as preferências dos consumidores, tanto presentes quanto futuras.  O caos calculacional impera.
Esta situação gera um círculo vicioso.  A hiperinflação contrai a estrutura de produção da economia, o que a deixa menos produtiva.  Uma economia menos produtiva significa menos produtos no mercado em relação à demanda.  Menos produtos no mercado em conjunto com um acentuado aumento da oferta monetária significam preços maiores.  Esta contínua inflação monetária exacerba a hiperinflação de preços, a qual contrai ainda mais a estrutura de produção da economia, reiniciando o ciclo. 
Daí a baixa qualidade de vida da maioria da população brasileira durante a década de 1980 e na primeira metade da de 1990.
O início
Estava claro, portanto, que esta situação não poderia perdurar.  Os velhos paliativos de trocar o nome da moeda e cortar três zeros já haviam se comprovado um redundante fracasso.  E não era necessário ser nenhum gênio monetário — tampouco seguidor da Escola Austríaca — para entender que uma hiperinflação contínua e crescente levaria à total destruição do sistema monetário, destruindo por completo a divisão do trabalho (a qual é possibilitada justamente pela existência do dinheiro) e retornando a economia ao estado do escambo.
Vários planos heterodoxos já haviam sido tentados desde meados da década de 1980:  Plano Cruzado (I e II) em 1986; Plano Bresser em 1987; Plano Verão em 1988/1989; e Plano Collor (I e II) em 1990 e 1991, respectivamente.  Todos envolviam congelamento de preços (alguns deles, cortes de zeros das moedas).  O governo congelava os preços, mas continuava imprimindo dinheiro impavidamente, o que significa que os geniais burocratas restringiam a oferta mas estimulavam a demanda.  Ao final de cada plano, a inflação de preços ressurgia com vigor redobrado.  E ninguém entendia por quê.
Em maio de 1993, partindo para o tudo ou nada, Itamar Franco nomeou Fernando Henrique Cardoso — então Ministro das Relações Exteriores — para o Ministério da Fazenda.  Naquele mês, a inflação de preços acumulada em 12 meses já estava em 1.348%. 
Por gozar de grande prestígio e por ter reconhecida capacidade intelectual, a indicação de FHC foi recebida com entusiasmo.  Vislumbrava-se pela primeira vez alguém com genuína capacidade de apresentar um plano econômico que ao menos reduzisse sensivelmente a inflação.
Embora sempre houvesse admitido não entender nada de economia, Fernando Henrique ao menos possuía bons contatos no mundo acadêmico, principalmente junto a um grupo de economistas da PUC do Rio de Janeiro.  E foi a eles que FHC delegou a tarefa de debelar em definitivo a inflação.
A equipe de economistas encarregada desta espinhosa função era composta por Gustavo Franco, Pedro Malan, André Lara Resende, Persio Arida, Edmar Bacha e Winston Fritsch.
O Plano
Embora repleto de jargões técnicos à primeira vista indecifráveis, o Plano Real na verdade era como um livro de John Grisham: uma trama aparentemente complexa encobrindo um enredo totalmente simples.  O objetivo da reforma monetária era lançar uma moeda cujo valor fosse, senão atrelado, pelo menos muito próximo ao dólar.  Na prática, o objetivo era fazer uma dolarização da economia, mas sem que houvesse uma dolarização de fato, algo que ofenderia nossos brios nacionalistas.
Como iremos ver mais abaixo, fazer uma dolarização da economia — isto é, simplesmente passar a utilizar o dólar como a moeda oficial do país (exatamente como fez o Panamá) — teria sido algo mais eficaz, muito pouco custoso e, principalmente, mais propício à liberdade do fatigado e espoliado povo brasileiro.  Porém, tanto por questões nacionalistas quanto por motivos estatais, preferiu-se o caminho mais complexo, que foi a criação e emissão de (mais uma) nova moeda.  Afinal, utilizar uma moeda estrangeira significa que o governo não mais teria capacidade de imprimir dinheiro para financiar seus déficits, passando a depender exclusivamente de impostos e empréstimos para cobrir seus gastos.  E, como sabemos, um governo só aceita vestir uma camisa-de-força se ela tiver um zíper na frente.  Logo, a opção pela criação de (mais) uma moeda foi uma esperta manobra do governo para manter intacto seu poder de imprimir dinheiro, não obstante todos os estragos que já haviam sido causados em decorrência da hiperinflação por ele gerada.
O Plano Real dependia de cinco fatores essenciais:
1) Zerar o déficit público — justamente o fator que gerava a emissão de dinheiro.  Para isso, haveria um aumento de cinco pontos percentuais em todos os impostos federais e privatizações de estatais, principalmente dos bancos estaduais;
2) Desindexar a economia — isto é, acabar com as correções automáticas de preços e salários, que eram reajustados automaticamente de acordo com a inflação passada (prática essa determinada por lei).  Em termos técnicos, isso ficou conhecido como "acabar com a inércia inflacionária";
3) Reindexar a economia de acordo com a taxa de câmbio — isto é, fazer com que preços e salários variassem de acordo com o dólar.  Na prática, o dólar se tornava o novo indexador.
4) Abrir a economia por meio da redução das tarifas de importação — tudo era válido para combater qualquer escalada preços (bons tempos);
5) Aumentar acentuadamente as reservas internacionais — isto é, o governo deveria comprar dólares continuamente, acumulando-os até o momento da introdução da nova moeda.  Quanto mais dólares o governo tivesse em suas reservas, maior seria a confiança dos investidores internacionais na seriedade e na robustez do plano, e menores seriam as chances de um ataque especulativo e de uma fuga de capitais.
Uma vez cumpridas estas cinco medidas, a nova moeda nasceria com um valor praticamente igual ao dólar.
As etapas
No dia 1º de agosto de 1993, houve a primeira medida, embora de efeito apenas cosmético: mudou-se, mais uma vez, o nome da moeda, e cortou-se três zeros.  A moeda deixava de se chamar Cruzeiro e passava a se chamar Cruzeiro Real.  A inflação de preços continuava em forte ascensão: seria de 33% só no mês de agosto e de 1.730% no acumulado de 12 meses. 
Esta ascensão inflacionária decorria do fato de que, além de imprimir dinheiro para saldar o seu déficit, o governo também imprimia para comprar dólares, algo que ele continuaria fazendo até o dia da introdução do real. 
No dia 7 de dezembro de 1993, finalmente foi apresentado o plano de estabilização especificando os cinco itens elencados acima.  Veja aqui um curto vídeo de uma reportagem do Jornal Nacional.
A mudança seguinte — e a mais importante — ocorreria só em 28 de fevereiro de 1994: a introdução da URV, Unidade Real de Valor.  (A inflação de fevereiro foi de 40,3% e a acumulada em 12 meses já estava em 3.025%).
A URV foi apenas um nome técnico tupiniquim para se evitar a palavra 'dolarização'.  Na prática, a URV nada mais era do que a cotação do dólar do dia anterior.  A taxa de câmbio do final de cada dia era estabelecida como sendo o valor da URV do dia seguinte.  Este valor serviria de indexador para todos os valores da economia.  Assim, os bens e serviços precificados em Cruzeiro Real deveriam ser divididos pela URV (taxa de câmbio determinada no dia anterior) para se encontrar os preços em Real.   
Veja aqui um exemplo aleatório: no dia 28 de março de 1994, a URV foi determinada em CR$895,03.  Isto significa que, no dia 29 de março, os preços em Cruzeiro Real deveriam ser divididos por 895,03 para se obter o preço em Real.  Este processo era repetido diariamente.  Dizia-se, assim, que a economia estava "urvizada". 
O objetivo desta indexação em URV era, paradoxalmente, o de desindexar toda a economia, apagando aquilo que era chamado de "memória inflacionária".  Todos os contratos e negociações salariais deveriam ser urvizados.  A intenção era fazer com que, no dia da transição do Cruzeiro Real para o Real (a moeda só entraria em circulação no dia 1º de julho), os preços fossem exatamente aqueles do dia anterior, de modo a não gerar sobressaltos e nem confusão.  Veja aqui uma curta reportagem do Jornal Nacional, ainda em junho, ensinando as pessoas a como fazer esta conta básica, já as preparando para o dia da transição.
Finalmente, no dia 29 de junho de 1994, uma quarta-feira, a taxa de câmbio encerrou o dia com o dólar valendo CR$2.750,00.  Portanto, no dia 30 de junho, quinta-feira, todos os valores em Cruzeiro Real deveriam ser divididos por 2.750 para se obter os valores em Real.  Todas as contas bancárias, todas as aplicações e investimentos foram automaticamente convertidos em Real.  CR$2.750 foi, portanto, a paridade estabelecida entre o Cruzeiro Real e o Real.  Morria o Cruzeiro Real e, na sexta-feira, dia 1º de julho, nascia o Real, valendo exatamente 1 dólar (pelo menos naquela sexta-feira).  Toda a base monetária foi trocada de acordo com esta paridade de CR$2.750,00 para cada R$1,00.  Quem estivesse em posse de cédulas de Cruzeiro Real deveria trocá-las nos bancos por cédulas e moedas de Real.
Em junho de 1994, a inflação de preços foi de 47,43% e a inflação acumulada em 12 meses foi de 4.922%.
Alguns gráficos
A seguir, veja o gráfico da variação da base monetária desde 1º de agosto de 1993, quando surgiu o Cruzeiro Real, até 30 de junho de 1994, quando ele morreu.  Em menos de um ano de existência, ela aumentou 3.100%.
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Gráfico 3: evolução da base monetária do Cruzeiro Real, de agosto de 1993 a junho de 1994
Este aumento foi majoritariamente para a compra de dólares para se acumular reservas internacionais.  Veja abaixo a cotação diária do dólar para este mesmo período.  Como era de se imaginar, observe a incrível desvalorização ocorrida no período, decorrente desta enorme impressão de dinheiro.
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Gráfico 4: taxa de câmbio do Cruzeiro Real, de 1º agosto de 1993 a  29 de junho de 1994.
Agora, o gráfico da variação das reservas internacionais desde janeiro de 1980.  Observe que elas começaram a crescer em definitivo a partir do final de 1991, sob a gestão de Marcílio Marques Moreira no Ministério da Fazenda, indicando que já havia um plano esboçado desde aquela data.
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Gráfico 5: evolução das reservas internacionais, janeiro de 1980 a junho de 1994
E o gráfico da taxa de inflação acumulada em 12 meses desde 1987.  A queda acentuada se deveu ao Plano Collor, que envolveu sequestro de poupança e congelamento de preços e salários.  Porém, tão logo os ativos confiscados foram sendo desbloqueados, os preços voltaram a disparar.
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Gráfico 6: IPCA acumulado em 12 meses, de janeiro de 1987 a junho de 1994
Transição sem susto
A transição do Cruzeiro Real para o Real, na sexta-feira, 1º de julho de 1994, foi sem susto e sem tumultos.  Obviamente, em um país acostumado a confiscos, congelamentos e tabelamentos, houve quem remarcasse os preços de maneira mais "abusada", justamente tentando se precaver contra estas possíveis surpresas, algo que obviamente irritou o governo.  Porém, fora estes incidentes localizados, a transição se deu de maneira suave e tranquila.  A inflação de preços, que havia sido de 47,43% em junho, passou para 6,84% em julho, 1,86% em agosto, 1,53% em setembro, 2,62% em outubro, 2,81% em novembro e 1,71% em dezembro.
Câmbio fixo?
Um dos maiores mitos que persistem até hoje é aquele que afirma que o Plano Real baseou-se um uma "âncora cambial" ou em um "câmbio fixo".  Isso é falso.  O câmbio nunca foi fixo, sequer por um dia.  Já no primeiro dia útil após a transição — segunda-feira, 4 de julho de 1994 — a taxa de câmbio passou a flutuar.  A partir daí, seu valor foi sendo determinado ora pelo mercado ora pela pura intervenção do Banco Central.  O BACEN se limitava a, diariamente, estabelecer um piso e um teto para a taxa de câmbio — algo tecnicamente chamado de 'banda cambial' —, mas estes valores aumentavam diariamente (ver gráfico 7).  E assim permaneceu até o "fim" daquilo que se convencionou chamar de "primeira fase" do Plano Real, no dia 13 de janeiro de 1999. 
Obviamente, houve períodos de intervenção intensa, principalmente no segundo semestre de 1998 e no início de 1999, quando o BACEN se esforçou — leia-se 'vendeu reservas internacionais' — para tentar manter um determinado valor para o câmbio (detalhes mais abaixo).  Mas câmbio genuinamente fixo nunca houve.  A seguir, um gráfico com as cotações diárias do câmbio, de 1º de julho de 1994 a 12 de janeiro de 1999.
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Gráfico 7: taxa de câmbio diária, de 1º de julho de 1994 a 12 de janeiro de 1999
Por que o Real foi aceito
Adeptos da teoria austríaca sabem que uma moeda só é imediatamente aceita após o seu surgimento caso ela já possua um histórico como meio de troca.  Se você criar uma moeda de papel hoje, do nada, é muito provável que ninguém irá aceitá-la.  Da mesma forma, um país que troque o seu sistema monetário, introduzindo uma nova moeda, pode até ser capaz de fazer — por meio da força, da coerção e das leis de curso forçado — com que seus cidadãos a utilizem; porém, dificilmente conseguirá fazer com que investidores estrangeiros confiem nesta moeda.  Tampouco os governos de outros países.
Por isso, caso o Brasil simplesmente trocasse o nome da sua moeda, é bastante provável que ela não fosse levada a sério pela comunidade internacional — principalmente levando-se em conta nosso histórico nada favorável de libertinagem monetária.  Logo, apenas a criação de uma nova moeda não seria capaz de fazer com que, logo em seus primeiros meses, ela se apreciasse como o Real se apreciou, indo de uma taxa de câmbio de R$1/US$ para R$0,84/US$.  Portanto, qual foi o segredo?
O segredo é aquilo que pode ser chamado de "qualidade da moeda".  A qualidade da moeda é determinada ou pelos ativos que a lastreiam ou pelos ativos pelos quais ela pode ser trocada sob demanda e sem restrição.  No caso do Real, o segredo estava justamente no tamanho das reservas internacionais em dólares.
Ao final de julho de 1994, a quantidade de reais em poder do público e em contas-correntes (ou seja, o M1) era de R$10,687 bilhões.  Já a quantidade de reservas internacionais era de US$43,09 bilhões
Isso significa que mesmo se todos os reais em circulação na economia brasileira fossem convertidos em dólares, ainda sobrariam (muitos) dólares.  Em outras palavras, na eventualidade de uma crise econômica mundial que assustasse os investidores estrangeiros e os levasse a retirar todos os seus investimentos do Brasil, eles não teriam por que se preocupar em não conseguir converter reais em dólares.  Havia dólares sobrando.  Foi justamente esta "qualidade do Real" — o fato de estar lastreado abundantemente em dólares — que garantiu a confiança dos investidores, levando à sua imediata apreciação logo após o seu surgimento.
E foi exatamente neste lastro em dólares que o Real manteve boa parte da sua credibilidade desde seu lançamento.  Enquanto as reservas internacionais fossem maiores que o M1, os investidores estrangeiros estariam seguros de que não haveria perigo de não conseguirem converter reais em dólares.  Mais ainda, eles estariam seguros de que o governo não recorreria — como já fizera várias vezes no passado — às maxidesvalorizarções cambiais para evitar que uma repentina fuga de dólares gerasse um total esgotamento das reservas internacionais. 
As reservas em dólares foram toda a base do Plano Real.  Daí a importância das compras de dólares iniciadas ainda no final de 1991.
Porém, manter estas reservas internacionais não era fácil, principalmente levando-se em conta que a balança comercial e de serviços (tecnicamente chamada de 'Transações Correntes') tornou-se negativa a partir de outubro de 1994 (e assim permaneceu até o fim da "primeira fase" do Plano Real).  Dado que havia esta saída de dólares por meio deste déficit nas transações correntes, o país tinha de manter juros elevados para atrair capital externo (via investimentos em títulos do governo, no mercado financeiro e em investimentos diretos; em terminologia contábil, diz-se que esses dólares estão entrando na conta capital e financeira) para mais do que compensar esta saída de dólares.
E esta foi justamente a "mácula" da primeira fase do Plano Real: a necessidade de manter juros altos para atrair dólares e, com isso, manter a confiança da comunidade internacional no Plano.  Não bastasse isso, o governo ainda apresentava um déficit orçamentário de aproximadamente 7% do PIB (não havia sequer superávit primário).  Tamanha necessidade de financiamento contribuía ainda mais para a elevação dos juros.
Eis um gráfico das taxas de juros determinadas pelo Banco Central para garantir este influxo contínuo de dólares via conta capital.
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Gráfico 8: taxa de juros do determinada pelo Banco Central, de 1º julho de 1994 a 31 de dezembro de 1998
Observe a disparada dos juros em outubro de 1997, em decorrência da crise asiática, que gerou uma fuga de capitais ao redor do mundo, e em meados de 1998, quando a primeira fase do Plano Real começou a desabar, pelos motivos que serão vistos logo abaixo.
A boa fase
Como explicado acima, a genuína âncora do Plano Real e da sua estabilidade era o volume de suas reservas internacionais.  Enquanto o volume de dólares fosse maior do que o M1, toda e qualquer conversão de reais em dólares estava garantida, o que trazia tranquilidade aos investidores, que assim não precisavam se preocupar com desvalorizações cambiais repentinas para impedir o esgotamento das reservas internacionais.
Enquanto esta estabilidade fosse garantida, o real desfrutaria do status de moeda forte e segura.  Justamente para garantir que o volume de reservas internacionais fosse maior que o M1, a expansão monetária era contida.  Isso trouxe uma substancial redução na inflação de preços, que caiu de 916% em 1994 para 1,65% em 1998 (o menor valor em toda a história do real).  Eis o gráfico da inflação de preços acumulada em 12 meses (a partir de julho de 1995, exatamente um ano após a introdução do real):
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Gráfico 9: IPCA acumulado em 12 meses, de julho de 1995 a dezembro de 1998
Para ajudar neste controle da inflação de preços, a economia passou por um processo de modernização.  Além da privatização de empresas estatais ineficientes, houve também a extremamente importante privatização de bancos estaduais, genuínas usinas de expansão monetária, pois eram utilizados por seus respectivos governos como fonte fácil e farta de financiamento.  Estes bancos operavam praticamente sem lei e sob ordens de seus governos estaduais, criando meios de pagamento a rodo apenas para financiar seus descalabros.  Os desvalidos de todo o resto do país pagavam a conta
Os melhores exemplos eram o Banespa e o BANERJ.  A dupla Quércia-Brizola punha fogo nessas instituições, fazendo-as conceder empréstimos para apaniguados políticos, para estatais deficitárias e, principalmente, para seus vorazes governos estaduais, ao mesmo tempo em que esses próprios bancos incorriam em déficits vultosos.  E quem socorria esses bancos era o Banco Central, que injetava dinheiro neles sempre que necessário, aumentando tanto a base monetária quanto o M1.  Não à toa, a inflação só passou a ser menor após esses bancos terem sido tirados da órbita de seus governos estaduais.
Mas a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, o Banco Meridional, o Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste, o os bancos estaduais de Santa Catarina, Ceará, Goiás, Pará, Alagoas, Minas Gerais, Mato Grosso, Bahia, Acre e Maranhão não ficavam atrás.  Todos aprontavam e recebiam vultosas injeções do Banco Central.  Os bancos estaduais não tinham de prestar contas a ninguém.  Sua gerência política fazia a farra com os recursos, o Banco Central imprimia o dinheiro para cobrir a farra e o resto da população sofria as consequências da libertinagem.
Toda esta depravação, felizmente, foi interrompida durante a segunda metade da década de 1990.  Sem esta medida, dificilmente a inflação de preços cairia para menos de um dígito.
Por que o Plano Real acabou
As coisas vinham aparentemente bem até o segundo semestre de 1998, quando começaram a degringolar.  E no dia 13 de janeiro de 1999, o Plano Real, ao menos como havia sido originalmente concebido, acabou.
Por quê?
O gráfico a seguir mostra a variação das reservas internacionais e a variação do M1, de julho de 1994 a janeiro de 1999.
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Gráfico 10: reservas internacionais (linha azul, eixo da direita) vs. M1 (linha vermelha, eixo da esquerda)
Observe que, enquanto as reservas internacionais (linha azul) se mantiveram acima do M1 (linha vermelha), a situação se manteve relativamente tranquila. 
Já no segundo semestre de 1997, as reservas caíram US$10 bilhões (de US$62,5 para US$52,5 bilhões) em decorrência da crise asiática.  Consequentemente, o Banco Central deu uma pancada nos juros, elevando-os de 18,75% para 46%, como mostrado no gráfico 8.  Isso não apenas estancou a fuga de capitais, como ainda foi eficaz em atrair um volume ainda maior de capital estrangeiro.  Em abril de 1998, o país atingiria um volume até então recorde de reservas internacionais: US$74,656 bilhões, com um M1 na casa dos R$ 42 bilhões.  O câmbio, como mostra o gráfico 7, estava por volta de R$ 1,13.  Ou seja, mesmo se todo o M1 fosse convertido em dólares, ainda sobraria uma enormidade de reservas internacionais.  Logo, o cenário parecia tranquilo.
Até que no dia 17 de agosto de 1998, a coisa voltou a degringolar.  A Rússia entrou em crise financeira, e o governo russo anunciou uma forte desvalorização do rublo seguida de uma moratória.  Adicionalmente, a retomada dos confrontos na Chechênia e o início de uma nova guerra entre os separatistas e o governo russo pioraram ainda mais o humor dos investidores estrangeiros, que ainda estavam abalados pela crise asiática.  Houve uma maciça fuga para o dólar.
Em julho, as reservas internacionais do Brasil estavam em US$70,2 bilhões.  Em novembro, elas já haviam despencado para US$41,2 bilhões.  E no início de janeiro de 1999, continuaram caindo para US$36 bilhões.  Simultaneamente, o M1 havia crescido de R$42 bilhões para R$49 bilhões. 
Por que as reservas internacionais despencaram assim tão maciçamente?  Porque o Banco Central queria impedir de qualquer maneira a inevitável apreciação do dólar, ainda que ela fosse apenas momentânea.  A explicação é a seguinte:
A crise asiática no segundo semestre de 1997 havia gerado fortes desvalorizações no baht tailandês, no novo dólar taiwanês, na rúpia indonésia, no ringgit malaio, no won sul-coreano, no peso filipino e no dólar cingapuriano.  O dólar de Hong Kong, que opera sob um Currency Board, conseguiu manter sua taxa de câmbio intacta.
Com a crise russa, um ano depois, Hong Kong voltou a ser atacada por especuladores.  As autoridades monetárias do país venderam, em duas semanas, US$15 bilhões de suas reservas de US$96,5 bilhões.  A âncora cambial se manteve.  Com isso, o Brasil se tornou a bola da vez.  Especuladores e investidores desconfiavam que o Banco Central não fosse capaz de manter sua política de venda de dólares a fim de manter o câmbio relativamente inalterado (na Ásia, apenas Hong Kong havia obtido sucesso).  O crescente endividamento do governo prenunciava calotes.  Temerosos quanto a este calote e quanto a uma iminente desvalorização do real, investidores estrangeiros começaram a tirar seus dólares do Brasil.  Paralelamente, os especuladores também atacaram.
Durante todo este período de grande demanda por dólares, houve obviamente uma forte tendência de valorização da moeda americana, algo que, deixada à lei da oferta e da demanda, poderia mandar o câmbio para valores "indesejados" pelo governo.  Ato contínuo, para evitar esta desvalorização do real, o Banco Central vendeu maciçamente os dólares de suas reservas internacionais, justamente para impedir essa valorização da moeda americana.  US$34 bilhões foram queimados apenas para evitar que o câmbio se alterasse mais acentuadamente (algo nada bom às vésperas de uma eleição presidencial).  Daí a redução de US$70,2 bilhões para US$36 bilhões de dólares nas reservas internacionais em menos de seis meses.  E o gráfico 7 mostra que o Banco Central obteve êxito: até o final de 1998, a trajetória de valorização do dólar se manteve exatamente dentro da tendência histórica.
Porém, tal política obviamente era insustentável.  Chegaria um momento em que as reservas internacionais estariam em um ponto crítico.  Se a tendência se mantivesse, elas poderiam ser totalmente aniquiladas.  Por outro lado, caso o BACEN nada tivesse feito, o dólar realmente se valorizaria acentuadamente.  De novo, em época eleição presidencial, isto não seria tolerável.
Até que, no dia 13 de janeiro de 1999, com as reservas na metade de onde estavam em abril de 1998, o Banco Central simplesmente desistiu de vender dólares para segurar o câmbio.  Simplesmente deixou que ele flutuasse. 
Veja o completo histórico cambial do real.
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Gráfico 11: taxa de câmbio diária, de 1º de julho de 1994 a 29 de junho de 2012
A segunda fase do real
O Plano Real original, portanto, acabou no dia 13 de janeiro de 1999.  Dali em diante, foi adotado o famoso tripé macroeconômico que conhecemos: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário.  Nenhum destes conceitos existia no Plano Real.
Ao menos em termos de inflação de preços, é muito difícil dizer que o atual arranjo, no qual o Banco Central tem total liberdade para imprimir dinheiro, seja superior ao arranjo anterior, no qual, embora também houvesse liberdade para se imprimir dinheiro, o BACEN ao menos tinha de se preocupar com as reservas internacionais e com a taxa de câmbio.
Veja a evolução da inflação de preços acumulada em 12 meses.  Ao passo que havia uma nítida tendência de queda durante a primeira fase do real, a coisa desandou bastante na segunda fase.
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Gráfico 12: IPCA acumulado em 12 meses, de janeiro de 1996 a maio de 2012
Durante o Plano Real, a menor taxa de inflação de preços obtida foi de 1,65%.  Na segunda fase do real, foi de 3%.
Adicionalmente, o atual arranjo monetário é mais propício à formação de bolhas e ciclos econômicos, justamente pela maior liberdade do Banco Central em imprimir dinheiro e por ele poder manipular os juros sem, ao menos em teoria, ter de levar em conta qual será o efeito na taxa de câmbio.
O que poderia ter sido feito
O processo de transição para o real, com a implementação da URV, foi muito bem feito.  Somente o fato de não ter havido congelamentos, confiscos e tabelamentos já torna o Plano Real merecedor de grandes elogios.
No entanto, o inevitável desejo de se criar uma nova moeda própria subtrai muito do brilhantismo do plano.  Se, no dia 30 de junho de 1994, todas as cédulas de Cruzeiro Real, bem como todos os depósitos em conta-corrente, fossem simplesmente convertidos em dólar (e havia dólares de sobra para isso, como ilustrado no gráfico 10), de modo que a moeda americana se tornasse a moeda corrente do Brasil, a situação teria sido bastante diferente.
Para começar, não teria havido maiores confusões na precificação de bens, serviços e salários, pois os próprios valores destes nos EUA já nos serviriam de base.  Adicionalmente, não haveria motivos para reclamações sobre taxas de câmbio sobrevalorizadas.  Indústrias que quisessem exportar mais teriam apenas de reduzir seus preços.  Não haveria alternativas artificiais.  Não haveria como o governo selecionar vencedores e perdedores.  Não haveria como o setor exportador fazer lobby para manipulações na taxa de câmbio.
Do ponto de vista da inflação de preços, também certamente estaríamos, até hoje, em melhor situação.  A oferta monetária no Brasil — isto é, a oferta de dólares — iria variar de acordo com a demanda dos brasileiros por moeda.  Não haveria uma política monetária doméstica: a oferta de dólares iria variar automaticamente de acordo com as variações no balanço de pagamentos (transações correntes mais conta capital e financeira).  Se houvesse um aumento na demanda por dólares, isto faria com que empresas e famílias gastassem menos, o que reduziria a demanda por bens e serviços não monetários.  Seus preços inevitavelmente cairiam, o que tornariam suas exportações mais atraentes no mercado internacional.  Este aumento nas exportações geraria um superávit no balanço de pagamentos, trazendo mais dólares para o Brasil.  Este aumento na oferta monetária faria com que os preços voltassem a subir, restaurando o equilíbrio inicial no balanço de pagamentos.  E se houvesse uma redução na demanda por dólares, de modo que os brasileiros aumentassem seus gastos, os preços subiriam, as importações ficariam mais atraentes, dólares seriam enviados para fora, isto aumentaria a demanda por dólares e reduziria os gastos dos brasileiros, os preços voltariam a cair e o equilíbrio de antes seria restaurado.  É justamente assim que uma economia funciona também sob um padrão-ouro.
Adicionalmente, houvéssemos nós adotado o dólar, que é a moeda internacional de troca, certamente teríamos atraído muito mais investimentos estrangeiros, os quais não precisariam se preocupar com desvalorizações cambiais.  Consequentemente, os investidores não teriam de planejar fugas repentinas.  Ataques especulativos como os de 1997 e 1998 não teriam ocorrido. 
Outro fator importante é a taxa de juros: operando diretamente com dólares — e não com uma moeda dependente do dólar —, não haveria necessidade de se elevar artificialmente os juros apenas para se manter uma elevada reserva de dólares.  Sem estes juros artificialmente elevados — que restringem os investimentos —, a economia poderia ter se desenvolvido muito mais.
Os gastos do governo também seriam bem mais contidos.  Sem o poder de imprimir dinheiro para financiar seus gastos, o governo brasileiro só poderia se financiar via impostos e via empréstimos.  O primeiro método é impopular, e possui um limite natural de crescimento.  E caso recorresse majoritariamente ao segundo método, os juros se tornariam inviáveis, pois o governo simplesmente não teria como ficar pegando empréstimos ad eternum da população.  Tal esquema de endividamento contínuo só funciona bem quando o governo detém a impressora de dinheiro, pois assim ele pode imprimir dinheiro não apenas para pagar parte do serviço de sua dívida, como também para manipular os juros da sua própria dívida.  Sem essa impressora, o governo é forçado a se manter estritamente dentro de um orçamento.  Com gastos governamentais contidos, a expansão do estado é restringida.  A liberdade da população aumenta.
Sim, hoje sabemos que o dólar não mais é o que era na década de 1990.  Porém, naquela época, só havia esta opção.  Ademais, a adoção do dólar não implicaria a obrigatoriedade do seu uso; moedas paralelas deveriam também ser liberadas, sejam elas estatais (como euro, iene, franco suíço, iuane) ou privadas (que poderiam ser emitidas tendo como lastro metais preciosos, por exemplo).  A conversão para outra moeda qualquer (tanto de outros países quanto privada) ou para um padrão-ouro seria muito mais fácil neste ambiente.  O exemplo do Panamá, que utiliza o dólar como moeda corrente, que não possui Banco Central, e que por isso é o único país da América Latina que nunca passou por uma crise financeira, é uma boa mostra prática desta teoria.
Portanto, a criação do real, embora bem executada, foi uma pirotecnia desnecessária.  No final, foi apenas um estratagema que permitiu ao estado manter — agora sem o descontentamento popular gerado pela hiperinflação — sua principal fonte de financiamento, aquela instituição que garante a ininterrupta expansão do seu tamanho e do seu poder: o Banco Central.
Perdemos, em 1994, uma ótima chance de termos nos tornado muito mais livres.

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.