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domingo, 29 de dezembro de 2019

“O Livro Negro do Comunismo no Brasil”, de Gustavo Marques - Resenha de Euler de França Belém

Euler de França Belém
Euler de França Belém

Diplomata lança “O Livro Negro do Comunismo no Brasil”

A história do golpismo e do stalinismo das esquerdas brasileiras é pouca contada pelos historiadores. Prevalece uma visão heroica
Há quem acredite que comunistas são advogados renhidos da democracia. Certo, quando estão na oposição – quando não estão no poder –, os comunistas, para abrir espaço para seus projetos tático-estratégicos, se tornam apologistas da democracia.
Mas comunistas não veem a democracia como valor universal, e sim como “etapa” para alguma coisa, quer dizer, para o comunismo, que, ao se tornar poder, expurga a democracia. Carlos Nelson Coutinho, intelectual de esquerda respeitável, escreveu um livro, “A Democracia Como Valor Universal”, no qual sugere que a democracia é um fim, não é uma etapa. Não é o que pensam – ou pensavam – os comunistas.
Gustavo Henrique Marques Bezerra: autor de uma pesquisa exaustiva sobre o comunismo no Brasil | Foto: Facebook
Em 1935, o Brasil não vivia sob ditadura, mas é possível qualificar o governo do presidente Getúlio Vargas de semi-autoritário (entre 1937 e 1945, era uma ditadura totalitária, mas não tão cruenta quanto a nazista, sobretudo, e a fascista). Os comunistas ligados a Luiz Carlos Prestes e Olga Benario, bancados pela União Soviética de Óssip Stálin, decidiram dar um golpe de Estado e se deram mal. Acabaram presos. A alemã Olga Benario foi deportada para a Alemanha de Adolf Hitler e, infelizmente, morreu num campo de concentração nazista. (Prestes autorizou a execução de Elza Fernandes porque temia-se que fosse espiã da polícia. Não era. Mas quase ninguém fala disso. O jornalista Sérgio Rodrigues publicou um livro corajoso sobre o assunto-tabu, “Elza, a Garota: A História da Jovem Comunista que o Partido Matou”.)
Luiz Carlos Prestes: homem de Stálin no Brasil, entre as décadas de 1930 e 1940 | Foto: Reprodução
Os comunistas de 1935, os da Intentona Comunista, não queriam arrancar Getúlio Vargas do poder para instalar uma democracia plena. Na verdade, planejavam retirá-lo do poder para implantar uma ditadura comunista no país – sob inspiração de Stálin, um dos mais cruéis assassinos da história, tendo mandado matar de 25 milhões a 30 milhões de pessoas, única e exclusivamente por discordarem dele. Aliás, muitos foram mortos por pura paranoia, porque nem eram adversários de Stálin e do regime que assumiu o poder em outubro de 1917, com Lênin na linha de frente.
Depois de liderar a Coluna Prestes, um movimento militarista de cunho praticamente messiânico, Luiz Carlos Prestes se tornou comunista e voltou ao Brasil, na década de 1930, devidamente catequizado pelo Comintern, organização dirigida por asseclas de Stálin, como o búlgaro Georgi Dimitrov. Prestes seria o Stálin patropi. Mas, como não soube avaliar a correlação de forças – dado que era voluntarista, pecadilho que comunistas rejeitam –, acabou preso pela polícia de Getúlio Vargas. Mais tarde, ante a tática do “mal menor”, aliou-se a Getúlio Vargas (que entregou sua mulher aos nazistas) contra a UDN de Eduardo Gomes, Juarez Távora e Carlos Lacerda.
Carlos Marighella: o líder da ALN | Foto: Reprodução
Em 1962, a esquerda se dividiu. De um lado, ficou o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão, e, de outro, o Partido Comunista do Brasil (PC do B). O primeiro defendia um caminho pacífico para o socialismo, com “etapas necessárias”. O segundo, adepto da China e, depois, da Albânia – e defensor do legado de Stálin –, defendia a luta armada.
Depois do golpe civil-militar de 1964, as esquerdas tradicionais se atomizaram. O PCB continuou moderado, avaliando que a luta armada mais fortaleceria do que enfraqueceria a ditadura. O PC do B enviou jovens, quase meninos, para organizar um campo guerrilheiro no Sul do Pará e Norte de Goiás (hoje, Tocantins). Isto já em 1966. O grupo, liderado por João Amazonas, Osvaldão Orlando da Costa e Maurício Grabois, acabou descoberto em 1972 e, em 1974, estava inteiramente dizimado. Era uma guerra entre os comunistas e as Forças Armadas. Não era uma brincadeira. Mas é preciso admitir que, a partir de determinado momento, com pessoas presas e não mais capazes de reagir, os militares começaram uma matança, o que merece a qualificação de barbárie e genocídio. Morrer na batalha é uma coisa – tem sua lógica –, mas ser morto, depois de capturado e não ser capaz de reação, é assassinato.
Carlos Eugênio Paz, líder da ALN, admitiu que guerrilha recebeu dinheiro até da Coreia do Norte | Foto: Reprodução
O PC do B pretendia a retomada da democracia, com sua Guerrilha do Araguaia? A história contada pelos comunistas sugere que sim. Mas isto é fake news. Os comunistas pretendiam derrubar a ditadura para substitui-la por outra ditadura – só que de esquerda. A luta pelo retorno da democracia era, a rigor, uma batalha de políticos pacíficos – como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães –, quase sempre ridicularizados pelas esquerdas.
Outros ramos da esquerda – Ação Libertadora Nacional (ALN – liderada por Carlos Marighella), MR-8 (do capitão Carlos Lamarca) e VAR-Palmares, entre outros – se organizaram também em núcleos guerrilheiros. O objetivo de tais grupos era derrubar a ditadura civil-militar e, claro, instalar outra ditadura no país – só que de esquerda. As Forças Armadas, que não queriam “entregar” o poder, reagiram rapidamente e, em pouco tempo – inclusive com o apoio de esquerdistas, como o Cabo Anselmo (e outros menos citados, como Gilberto Prata) –, destruíram as guerrilhas urbana e rural.
Os guerrilheiros brasileiros receberam dinheiro de Cuba e até da Coreia do Norte (a história foi revelada por Carlos Eugênio Paz, o Clemente, último comandante da ALN).
A história cristalizada pelas esquerdas sugere que os guerrilheiros estavam, ao lutar contra a ditadura dos militares e de muitos civis, promovendo a volta da democracia ao Brasil. Nada disso é verdadeiro. Mas fica evidente que, perdendo o combate, tais esquerdas ganharam o debate histórico. Tanto que a luta pacífica pelo retorno à democracia é muito menos pesquisada do que a batalha dos guerrilheiros.
Nos combates ocorridos entre o fim da década de 1960 e início da década de 1970, militares e guerrilheiros mataram várias pessoas. Os mortos da esquerda são lembrados de maneira gloriosa. Entretanto, os que foram mortos pela esquerda nem são lembrados – e são muitos, vários deles inocentes, como guardas de bancos. Tais assassinados não têm a história para ampará-los (foram excluídos). Tanto que suas famílias não têm direito a indenizações.
Por que isto? Como a esquerda fala em nome do “bem da humanidade” parece que lhe é facultado cometer as maiores atrocidades. O presente “ruim” afinal levará a futuro “radioso”. O comunismo, a “pátria” dos iguais, é o nirvana das esquerdas. Como notou o filósofo italiano Norberto Bobbio, os meios corrompem os fins. Quem mata em nome de um futuro paradisíaco – ou percebe a democracia como etapa (e não deixa de ser curioso como, no momento, a esquerda está preocupada com a crise da democracia) –, sacrificando os indivíduos do presente, não constrói paraíso algum. Stálin e seu discípulo chinês, Mao Tsé-tung, cometeram as maiores atrocidades – mataram, juntos, 100 milhões de pessoas – e não edificaram a sociedade perfeita.
Recentemente, o historiador Hugo Studart escreveu um livro seminal sobre a Guerrilha do Araguaia, mas, finalmente, incluindo os militares – cujas vozes se fazem presentes. Trata-se de uma tese de doutorado rigorosa e nuançada – apresentada na Universidade de Brasília (UnB). Engana-se quem avalia que seja a “favor” dos militares. Pelo contrário, mostra, de maneira detalhada, o massacre que cometeram no Araguaia (e revela a cadeia de comando militar, como ninguém havia feito antes, o que possibilita uma melhor compreensão do outro lado da guerra, o das Forças Armadas). Mesmo assim, o livro tem sido “condenado” por desarvorados militantes do PC do B. O motivo é prosaico: o pesquisador ouviu os militares e, por assim dizer, fez uma reforma agrária no tema Guerrilha do Araguaia – democratizando as versões. A história da batalha era “propriedade privada” do PC do B – que a trata como uma coisa heroica, sem contradições (ignora-se inclusive as críticas pioneiras de Pedro Pomar, que pertencia ao partido, mas soube denunciar o equívoco da guerrilha).
João Amazonas, líder histórico do PC do B | Foto: Orlando Brito
Felizmente, para a compreensão da história – que só é história quando se torna inclusiva, quer dizer, quando inclui todos os lados da questão –, a Guerrilha do Araguaia não é mais latifúndio do PC do B e agregados.
Como Hugo Studart, o diplomata Gustavo Marques é um pesquisador corajoso ao lançar “O Livro Negro do Comunismo no Brasil” (Jaguatirica, 872 páginas). Ele já começa a receber “pedradas”, como o doutor pela UnB. Assim como foi estocado, em tempos idos, Osvaldo Peralva, o ex-comunista que publicou um livro devastador sobre os bastidores dos comunistas, “O Retrato” (Três Estrelas, 440 páginas).
Sinopse do livro: “Inspirada em ‘O Livro Negro do Comunismo’, publicado por Stéphane Courtois [e outros] na França em 1997, esta obra, de autoria do diplomata Gustavo Henrique Marques Bezerra, versa sobre a trajetória do movimento comunista e sua influência na vida política e cultural brasileira desde o advento do anarquismo e do marxismo, no final do século 19, até o começo dos anos 1990, com a falência dos regimes comunistas do Leste Europeu. O livro, que tem características monumentais – pois é fruto de mais de 10 anos de intensa pesquisa histórica ampla e minuciosa, em mais de 400 títulos entre fontes primárias (depoimentos, memórias, entrevistas, documentos) e secundárias, nacionais e estrangeiras, e que se divide em seis capítulos, com quase 900 páginas e milhares de notas –, coloca ênfase em fatos geralmente omitidos e/ou pouco explorados pela historiografia brasileira, majoritariamente de esquerda, que revelam o ‘lado obscuro’ dos comunistas e seus aliados no Brasil ao longo do século 20”.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O Livro Negro do Comunismo no Brasil, de Gustavo Marques, em debate no dia 11/12, no IHG-DF

Tenho o prazer de anunciar o lançamento em Brasília deste livro de meu colega e amigo Gustavo Henrique Marques Bezerra:

no quadro de uma palestra com dois outros autores, Hugo Studart, e eu mesmo, como anunciado no banner abaixo:

Reproduzo meu prefácio ao livro de Gustavo Marques: 



O passado de uma ilusão que ainda não passou: o comunismo no Brasil

Paulo Roberto de Almeida
Prefácio a livro de Gustavo Marques:
O livro negro do comunismo no Brasil: mitos e falácias da esquerda brasileira
(Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2019)


A primeira parte, de um total de sete, com incontáveis capítulos e seções, deste livro de Gustavo Marques começa, em seu título, por uma alusão ao famoso livro de François Furet, Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle (Paris: Laffont/Calmann-Lévy, 1995), que foi objeto, possivelmente, da mais longa resenha de um livro que eu elaborei, dentre dezenas, centenas de outras resenhas, grandes e pequenas, ao longo de uma vida quase toda ela feita nos livros, pelos livros, para os livros e assoberbada por livros (não sei quantos tenho). Foram exatamente 22 páginas, que, obviamente, trataram não apenas dessa obra de Furet, mas praticamente da história da ideia comunista ao longo do século XX, ao estilo dos longos review-articles que eu sempre li, e admiro, na New York Review of Books, uma das poucas publicações esquerdistas americanas que mantém um alto nível intelectual.
Por sorte, eu era, à época da redação, editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional, que então acolheu, em 20 páginas, essa extensa resenha em seu número de janeiro-junho de 1995; sim, no mesmo ano da publicação do livro, que eu devorei e imediatamente resenhei, na edição original em francês. O livro deve ter sido publicado no Brasil, mas ignoro seu sucesso editorial, se é que teve, entre nós, na medida em que, como revela desde a sua introdução Gustavo Marques, quase toda a literatura sobre a esquerda comunista no Brasil é de esquerda, portanto dotada de um inevitável viés ideológico. Por isso mesmo, esse extensíssimo livro de Marques vem preencher, segundo a expressão abusada, uma grande lacuna na literatura dessa área, pois raramente se vê, em nossas editoras e livrarias, um livro-verdade sobre a tragédia do comunismo no Brasil e no mundo; os de viés negativo, ou simplesmente verdadeiro, são, ainda, uma raríssima raridade, com perdão pela redundância.
O título desde logo evoca outra obra importante, que já teve edição entre nós, mas não me lembro de ter lido, salvo num artigo de Roberto Campos, resenhas sérias, focado que sou na publicação de todo tipo de literatura nas ciências humanas e sociais: O Livro Negro do Comunismo: crimes, terror, repressão, de Stéphane Courtois e colaboradores (1997), publicado no Brasil pela Bertrand (1999). Esse livro trata do comunismo no mundo, com capítulos regionais ou nacionais (exceto o Brasil), mas o grosso do tratamento está obviamente reservado às nações que, infelizmente, sofreram décadas sob esse regime, fonte de uma mortandade muitas vezes superior à dos regimes fascistas, ou direitistas, embora ambos fenômenos sejam praticamente similares em seus métodos e procedimentos voltados para a eliminação não apenas de dissidentes, mas de seus próprios acólitos e servidores. O Brasil é um capítulo menor na volumetria das vítimas, mas certamente figura entre os mais importantes países a abrigar a ideia comunista, no sentido da dominação ideológica a que se refere François Furet em seu brilhante ensaio de história de uma ideia, a mais poderosa em um século dominado por ideologias, mas que ainda insiste em se manter um princípio aceitável em nossos dias.
De fato, com exceção de alguns poucos autores e pesquisadores – como Stanley Hilton, por exemplo – a maior parte da literatura séria (quero dizer, aquela que não é simplesmente opinativa ou ideológica, pois os há, na direita) sobre o comunismo no Brasil mantém uma postura senão simpática, pelo menos neutra, em relação ao maior desafio enfrentado por nosso país em sua trajetória política, desde aos anos 1920 até a atualidade. Cabe reconhecer, efetivamente, que a ideia comunista constituiu, não só no Brasil, mas no mundo todo, o maior desafio ao desenvolvimento natural das economias de mercado e dos regimes políticos democráticos em progressiva ascensão em todas as regiões, continentes, países, sociedades. Quando digo “desenvolvimento natural” é porque acredito que, na ausência desse poderoso contendor, as democracias de mercado teriam predominado mais precocemente, e de forma mais abrangente, do que o fizeram desde o final do século XIX até nossos dias. Cabe desenvolver esse ponto.
Das três grandes ideias que nasceram de cérebros vindos do século XIX, Marx, Freud e Einstein, o marxismo prático (isto é, o comunismo), o freudismo aplicado (na psicanálise) e a teoria da relatividade (que constituiu o mais poderoso complemento da física newtoniana), junto com a teoria darwiniana da seleção natural, todas elas dotadas de imenso potencial revolucionário em relação às teorias e crenças predominantes até o final daquele século, foi o marxismo que ofereceu a maior, a mais extensa, a mais profunda contestação à evolução natural das sociedades humanas constituídas sob a forma de sistemas econômicos de mercado, em sistemas políticos representativos, em sistemas culturais dotados de abertura de espírito, na linha do que vinha sendo construído pelo Iluminismo, e que ainda persiste, embora enfraquecido como um poderoso contendor ideológico das sociedades abertas, em seu sentido popperiano.
Com efeito, a abolição dos mercados e da propriedade privada, através de uma organização social da produção baseada na apropriação coletiva (mais exatamente estatal) dos meios de produção, a supressão da democracia representativa (vulgarmente apodada de “burguesa”) em favor de uma “ditadura do proletariado” (de fato, a ditadura do partido único ou, comumente, de um tirano) e a substituição da liberdade de pensamento, de organização e de expressão pelas diretrizes vindas de cima, emanadas desse mesmo partido clarividente e protetor, constituíram – e de certa forma ainda constituem – a mais importante negação de uma tradição liberal que vinha sendo construída duramente nas lutas democráticas dos séculos XVIII e XIX, por meio de propostas políticas, sociais e econômicas emanadas de filósofos iluministas e por estadistas dotados de valores e princípios compatíveis com os atributos dos regimes abertos que estavam se firmando paralelamente à consolidação do capitalismo, uma das formas (mas não a única, como nos ensina Fernand Braudel) da economia de mercado em expansão desde a primeira globalização, na era dos descobrimentos. A segunda globalização, durante a belle époque europeia, ainda tinha reforçado os impulsos mais importantes do iluminismo filosófico (com a disseminação de princípios de direitos humanos verdadeiramente universais, presentes nos movimentos abolicionistas e contra a tortura nos processos judiciais), do liberalismo político (representado pelas reformas tendentes à ampliação das franquias eleitorais, até chegar, já no século XX, ao voto feminino) e do livre comércio no plano econômico, que deveria consolidar e estender os tentáculos das democracias de mercado até os mais distantes cantos do planeta.
Tudo isso veio a termo com a Grande Guerra e, na sua imediata sequência, com o surgimento dos irmãos siameses do fascismo e do bolchevismo. O primeiro produziu o “Estado total”, impondo, segundo Mussolini, “nada fora do Estado, nada contra o Estado”, o que aliás se encaixava perfeitamente na concepção totalitária de Lênin e de Stalin. O segundo fez algo que nem o fascismo ousou fazer: aboliu a sinalização de preços pelo mercado, colocando em seu lugar burocratas do planejamento centralizado, encarregados de substituir a lei maior da economia, a do equilíbrio entre a oferta e a procura, por preços administrados. Como sinalizou imediatamente após a decretação do socialismo na Rússia bolchevique o economista austríaco e ex-socialista Ludwig von Mises, em seu panfleto O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), foi o equivalente econômico de fazer um elefante voar, ao eliminar a possibilidade de uma avaliação realista da raridade relativa dos bens disponíveis para o processo produtivo.
Na verdade, o elefante voou, durante mais ou menos setenta anos, mas à custa de um novo escravismo que, na era contemporânea, não teve paralelos, em sua dimensão, ao que se conhecia nas sociedades antigas. A historiadora Anne Applebaum, autora de uma famosa história do Gulag – citada neste livro – diz que este chegou a representar parte significativa do PIB soviético, sobretudo nos setores da infraestrutura, indústrias florestais, mineração, trabalhos penosos em geral. Essa mesma escravidão continua a existir na Coreia do Norte e em Cuba, os dois únicos redutos que preservam os últimos resquícios do stalinismo econômico (e político) do planeta. Todo ano, por ocasião da safra de açúcar, os cubanos repetem a piada, ao serem convocados compulsoriamente (à falta de equipamentos mecânicos ou combustível) para a colheita manual: “La participación es voluntaria, pero la voluntad es obligatoria.”
Impossível cobrir com toda a riqueza de detalhes o imenso painel que Gustavo Marques traça do comunismo, tal como ele existiu na prática no Brasil a partir dos anos 1920 (depois do período inicial de dominação anarquista sobre o movimento operário). O autor leu praticamente tudo o que se escreveu e se publicou de relevante sobre o universo teórico e prático do comunismo no Brasil ao longo do século decorrido desde as primeiras agitações políticas, passando pela intervenção dos agentes brasileiros e estrangeiros do movimento, chegando aos dias que correm. Como em várias outras trajetórias nacionais, o comunismo brasileiro registra o itinerário de uma parábola: um início lento, um arranque em meados do século XX e um lento declínio até o seu quase desaparecimento nas contestações práticas que ele pretendeu oferecer ao “capitalismo realmente existente”, mas sem que se lograsse a eliminação de todos os “resíduos mentais” da ideia comunista entre nós.
O marxismo no Brasil não produziu grandes contribuições teóricas à doutrina, enquanto elaboração filosófica ou teoria social (como no caso da Escola de Frankfurt, por exemplo). Dois de seus representantes, Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, produziram contrafações da doutrina ainda na era do stalinismo triunfante ou declinante e que não deixaram sequer algum resquício de contribuição ao campo. A melhor análise do marxismo ocidental foi feita em um livro homônimo por um pensador liberal, o diplomata José Guilherme Merquior, que aliás dialogou de forma inteligente com os poucos marxistas não sectários da comunidade acadêmica.
O marxismo prático, isto é, o comunismo, ao contrário de suas pretensões, não contribuiu em praticamente nada para os avanços econômicos, sociais e políticos da classe que pensava representar, mais bem contemplada por concessões populistas de um ditador ou de presidentes abertos à “inclusão social” das massas trabalhadoras. Do lado inverso, liderado por um militar positivista convertido a uma versão especialmente vulgar do marxismo, o movimento comunista deu exemplos negativos de tentativa de tomada violenta do poder, empurrado pela miopia da III Internacional (1935), adotando depois uma reiterada postura de apoio às mais execráveis ditaduras do século XX, aliás até hoje, como revelado no caso da tragédia venezuelana, cuja ditadura de natureza fascista é apoiada pelos partidos brasileiros que se acreditam de esquerda.
Em vista de tantas frustrações, tantos equívocos, tantos crimes cometidos, tantas ilusões alimentadas em milhões de jovens (e menos jovens) ao longo do último século, parece até inacreditável que o comunismo tenha sobrevivido aos golpes de martelo da realidade. De certa forma, ele só não colapsou de vez porque os cursos de humanidades continuam a alimentar um fluxo contínuo de professores, jornalistas, sindicalistas (em grande medida de funcionários públicos), ativistas de movimentos sociais e outros seres deslocados do mundo real, vivendo nas fímbrias do mercado, ou diretamente a serviço do Estado, ao abrigo do qual eles repartem entre si recursos que extraem da parte ativa da sociedade (empresários e trabalhadores do setor privado), numa espécie de redoma infensa aos dados e informações do sistema produtivo de mercado. Gustavo Marques traz aqui a sua contribuição única na literatura especializada brasileira a uma história que ele estima ser, com razão, “ainda mal contada”.
O autor atribui essas deficiências da bibliografia à má qualidade da literatura anticomunista no Brasil; ou seja: se a esquerda deformou a verdade histórica, a direita tampouco soube compor estudos sólidos sobre essa grande ilusão que ainda persiste. De fato, mesmo se o anticomunismo é a doutrina oficial do Estado brasileiro desde 1935, os estudiosos não comunistas do fenômeno não conseguiram construir uma obra que lograsse escapar do anticomunismo primário, do reacionarismo antidemocrático e das mesmas simplificações que já conhecemos do lado da literatura de baixa qualidade produzida pela esquerda e pelos simpatizantes do marxismo.
Ao cabo de uma leitura talvez extenuante, mas sumamente enriquecedora, não é possível emergir deste livro com a antiga impressão geral de que a esquerda sempre foi, e continuaria sendo, “moralmente superior” à direita, por defender ideais supostamente nobres e elevados. Ao contrário, o comunismo, no Brasil como no resto do mundo, foi devastador não só para as consciências, mas também para qualquer objetivo prático de desenvolvimento material e de progresso espiritual da sociedade. Em uma palavra, seus projetos de engenharia social foram, aqui e em todos os lugares, apenas criminosos.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de março de 2019

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O Livro Negro do Comunismo no Brasil - Gustavo Marques


Grande parte dos leitores interessados na história do comunismo já leu este livro, conhece a história, já ouviu falar, ou pelo menos tem uma ideia do que representou o sistema comunista em termos de mortandade, morticínio, assassinatos, gulags, trabalho forçado, fome induzida politicamente (como na Ucrânia, por Stalin), fome provocada por erros catastróficos de gestão econômica (como no Grande Salto para a Frente do presidente Mao), eliminação física de quaisquer "intelectuais", como no Camboja do Kmer Vermelho, enfim repressão de todos os tipos, em todas as formas, com as piores consequências possíveis. 
Os autores cifram o número de mortos pelos diversos regimes comunistas ao redor do mundo se cifra em torno de 100 milhões de vítimas.
Mas, esse livro tem um problema, grave do nosso ponto de vista: ele sequer considera o caso brasileiro, ou porque os autores e coordenadores não encontraram alguém que pudesse escrever sobre o Brasil, ou porque eles desconheciam completamente o número de vítimas produzidas pelo comunismo brasileiro. De fato, esse número não foi muito elevado, mas ele existiu, e não apenas por ocasião da Intentona Comunista de 1935. 
Ou seja, O Livro Negro do Comunismo no mundo ignorava completamente o fenômeno comunista no Brasil. 
Não mais. A lacuna acaba de ser preenchida por este magnífico livro do historiador, colega diplomata, amigo de debates Gustavo Marques, para o qual tive o privilégio de oferecer um prefácio, que certamente não honra todo o conteúdo – ele é imenso, e não apenas por causa de suas 800 páginas – desta grande obra de pesquisa historiográfica, com uma bibliografia praticamente completa em torno do assunto, que em breve estará disponível aos interessados: 


Transcrevo a seguir o sumário do livro, o meu prefácio e, finalmente, uma nota introdutória recente feita pelo próprio autor, para esclarecer sua posição em face da atual conjuntura. 

O Livro Negro do Comunismo no Brasil
Mitos e Falácias sobre a História da Esquerda Brasileira

·       O “caso Canellas”
·       O primeiro “racha”
·       As mentiras de Miranda
·       "Começou a Revolução": epílogo da tragédia
·       Inquisição em Moscou
·       Sim, a Intentona foi comunista
·       Outras vítimas do "tribunal revolucionário"
·       A moral comunista
·       O Meio-Dia
·       Comunismo e corrupção: o acordo PCB-Adhemar
·       A farsa das "campanhas pela paz" 
·       Encarcerados no exterior
·       Prisioneiro do partido?
·       O caudilho autoritário
·       "Ad Finem Fideles": submisso à URSS até o fim
·       A censura comunista
·       Autocrítica pela metade. 384
·       O culto a Stálin
·       A máquina infernal
·       A miragem do poder
·       De Partidão a partidinho: a lenta agonia do PCB. 413
·       Tudo que é sólido desmancha no ar: um fim melancólico
·       Os profetas do Apocalipse 
·       A marcha da insensatez 
·       O caldeirão pernambucano 
·       A revolta dos sargentos
·       O motim dos marinheiros
·       O mito do foco guerrilheiro
·       De Julião a Mariguella
·       Os dólares de Cuba
·       Outros apoios
·       Carlos versus Carlos
·       Ações planejadas
·       Ações desastradas
·       Ações desconhecidas
·       Uma causa elitista
·       Os desertores.
·       Uma luta antipopular
·       O terror revolucionário
·       Os mortos esquecidos: as vítimas do terrorismo 

FOTOS

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Prefácio - Paulo Roberto de Almeida


O passado de uma ilusão que ainda não passou: 
o comunismo no Brasil


A primeira parte, de um total de sete, com incontáveis capítulos e seções, deste livro de Gustavo Marques começa, em seu título, por uma alusão ao famoso livro de François Furet, Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle (Paris: Laffont/Calmann-Lévy, 1995), que foi objeto, possivelmente, da mais longa resenha de um livro que eu elaborei, dentre dezenas, centenas de outras resenhas, grandes e pequenas, ao longo de uma vida quase toda ela feita nos livros, pelos livros, para os livros e assoberbada por livros (não sei quantos tenho). Foram exatamente 22 páginas, que, obviamente, trataram não apenas dessa obra de Furet, mas praticamente da história da ideia comunista ao longo do século XX, ao estilo dos longos review-articles que eu sempre li, e admiro, na New York Review of Books, uma das poucas publicações esquerdistas americanas que mantém um alto nível intelectual.
Por sorte, eu era, à época da redação, editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional, que então acolheu, em 20 páginas, essa extensa resenha em seu número de janeiro-junho de 1995; sim, no mesmo ano da publicação do livro, que eu devorei e imediatamente resenhei, na edição original em francês. O livro deve ter sido publicado no Brasil, mas ignoro seu sucesso editorial, se é que teve, entre nós, na medida em que, como revela desde a sua introdução Gustavo Marques, quase toda a literatura sobre a esquerda comunista no Brasil é de esquerda, portanto dotada de um inevitável viés ideológico. Por isso mesmo, esse extensíssimo livro de Marques vem preencher, segundo a expressão abusada, uma grande lacuna na literatura dessa área, pois raramente se vê, em nossas editoras e livrarias, um livro-verdade sobre a tragédia do comunismo no Brasil e no mundo; os de viés negativo, ou simplesmente verdadeiro, são, ainda, uma raríssima raridade, com perdão pela redundância.
O título desde logo evoca outra obra importante, que já teve edição entre nós, mas não me lembro de ter lido, salvo num artigo de Roberto Campos, resenhas sérias, focado que sou na publicação de todo tipo de literatura nas ciências humanas e sociais: O Livro Negro do Comunismo: crimes, terror, repressão, de Stéphane Courtois e colaboradores (1997), publicado no Brasil pela Bertrand (1999). Esse livro trata do comunismo no mundo, com capítulos regionais ou nacionais (exceto o Brasil), mas o grosso do tratamento está obviamente reservado às nações que, infelizmente, sofreram décadas sob esse regime, fonte de uma mortandade muitas vezes superior à dos regimes fascistas, ou direitistas, embora ambos fenômenos sejam praticamente similares em seus métodos e procedimentos voltados para a eliminação não apenas de dissidentes, mas de seus próprios acólitos e servidores. O Brasil é um capítulo menor na volumetria das vítimas, mas certamente figura entre os mais importantes países a abrigar a ideia comunista, no sentido da dominação ideológica a que se refere François Furet em seu brilhante ensaio de história de uma ideia, a mais poderosa em um século dominado por ideologias, mas que ainda insiste em se manter um princípio aceitável em nossos dias.
De fato, com exceção de alguns poucos autores e pesquisadores – como Stanley Hilton, por exemplo – a maior parte da literatura séria (quero dizer, aquela que não é simplesmente opinativa ou ideológica, pois os há, na direita) sobre o comunismo no Brasil mantém uma postura senão simpática, pelo menos neutra, em relação ao maior desafio enfrentado por nosso país em sua trajetória política, desde aos anos 1920 até a atualidade. Cabe reconhecer, efetivamente, que a ideia comunista constituiu, não só no Brasil, mas no mundo todo, o maior desafio ao desenvolvimento natural das economias de mercado e dos regimes políticos democráticos em progressiva ascensão em todas as regiões, continentes, países, sociedades. Quando digo “desenvolvimento natural” é porque acredito que, na ausência desse poderoso contendor, as democracias de mercado teriam predominado mais precocemente, e de forma mais abrangente, do que o fizeram desde o final do século XIX até nossos dias. Cabe desenvolver esse ponto.
Das três grandes ideias que nasceram de cérebros vindos do século XIX, Marx, Freud e Einstein, o marxismo prático (isto é, o comunismo), o freudismo aplicado (na psicanálise) e a teoria da relatividade (que constituiu o mais poderoso complemento da física newtoniana), junto com a teoria darwiniana da seleção natural, todas elas dotadas de imenso potencial revolucionário em relação às teorias e crenças predominantes até o final daquele século, foi o marxismo que ofereceu a maior, a mais extensa, a mais profunda contestação à evolução natural das sociedades humanas constituídas sob a forma de sistemas econômicos de mercado, em sistemas políticos representativos, em sistemas culturais dotados de abertura de espírito, na linha do que vinha sendo construído pelo Iluminismo, e que ainda persiste, embora enfraquecido como um poderoso contendor ideológico das sociedades abertas, em seu sentido popperiano.
Com efeito, a abolição dos mercados e da propriedade privada, através de uma organização social da produção baseada na apropriação coletiva (mais exatamente estatal) dos meios de produção, a supressão da democracia representativa (vulgarmente apodada de “burguesa”) em favor de uma “ditadura do proletariado” (de fato, a ditadura do partido único ou, comumente, de um tirano) e a substituição da liberdade de pensamento, de organização e de expressão pelas diretrizes vindas de cima, emanadas desse mesmo partido clarividente e protetor, constituíram – e de certa forma ainda constituem – a mais importante negação de uma tradição liberal que vinha sendo construída duramente nas lutas democráticas dos séculos XVIII e XIX, por meio de propostas políticas, sociais e econômicas emanadas de filósofos iluministas e por estadistas dotados de valores e princípios compatíveis com os atributos dos regimes abertos que estavam se firmando paralelamente à consolidação do capitalismo, uma das formas (mas não a única, como nos ensina Fernand Braudel) da economia de mercado em expansão desde a primeira globalização, na era dos descobrimentos. A segunda globalização, durante a belle époque europeia, ainda tinha reforçado os impulsos mais importantes do iluminismo filosófico (com a disseminação de princípios de direitos humanos verdadeiramente universais, presentes nos movimentos abolicionistas e contra a tortura nos processos judiciais), do liberalismo político (representado pelas reformas tendentes à ampliação das franquias eleitorais, até chegar, já no século XX, ao voto feminino) e do livre comércio no plano econômico, que deveria consolidar e estender os tentáculos das democracias de mercado até os mais distantes cantos do planeta.
Tudo isso veio a termo com a Grande Guerra e, na sua imediata sequência, com o surgimento dos irmãos siameses do fascismo e do bolchevismo. O primeiro produziu o “Estado total”, impondo, segundo Mussolini, “nada fora do Estado, nada contra o Estado”, o que aliás se encaixava perfeitamente na concepção totalitária de Lênin e de Stalin. O segundo fez algo que nem o fascismo ousou fazer: aboliu a sinalização de preços pelo mercado, colocando em seu lugar burocratas do planejamento centralizado, encarregados de substituir a lei maior da economia, a do equilíbrio entre a oferta e a procura, por preços administrados. Como sinalizou imediatamente após a decretação do socialismo na Rússia bolchevique o economista austríaco e ex-socialista Ludwig von Mises, em seu panfleto O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), foi o equivalente econômico de fazer um elefante voar, ao eliminar a possibilidade de uma avaliação realista da raridade relativa dos bens disponíveis para o processo produtivo.
Na verdade, o elefante voou, durante mais ou menos setenta anos, mas à custa de um novo escravismo que, na era contemporânea, não teve paralelos, em sua dimensão, ao que se conhecia nas sociedades antigas. A historiadora Anne Applebaum, autora de uma famosa história do Gulag – citada neste livro – diz que este chegou a representar parte significativa do PIB soviético, sobretudo nos setores da infraestrutura, indústrias florestais, mineração, trabalhos penosos em geral. Essa mesma escravidão continua a existir na Coreia do Norte e em Cuba, os dois únicos redutos que preservam os últimos resquícios do stalinismo econômico (e político) do planeta. Todo ano, por ocasião da safra de açúcar, os cubanos repetem a piada, ao serem convocados compulsoriamente (à falta de equipamentos mecânicos ou combustível) para a colheita manual: “La participación es voluntaria, pero la voluntad es obligatoria.”
Impossível cobrir com toda a riqueza de detalhes o imenso painel que Gustavo Marques traça do comunismo, tal como ele existiu na prática no Brasil a partir dos anos 1920 (depois do período inicial de dominação anarquista sobre o movimento operário). O autor leu praticamente tudo o que se escreveu e se publicou de relevante sobre o universo teórico e prático do comunismo no Brasil ao longo do século decorrido desde as primeiras agitações políticas, passando pela intervenção dos agentes brasileiros e estrangeiros do movimento, chegando aos dias que correm. Como em várias outras trajetórias nacionais, o comunismo brasileiro registra o itinerário de uma parábola: um início lento, um arranque em meados do século XX e um lento declínio até o seu quase desaparecimento nas contestações práticas que ele pretendeu oferecer ao “capitalismo realmente existente”, mas sem que se lograsse a eliminação de todos os “resíduos mentais” da ideia comunista entre nós. 
O marxismo no Brasil não produziu grandes contribuições teóricas à doutrina, enquanto elaboração filosófica ou teoria social (como no caso da Escola de Frankfurt, por exemplo). Dois de seus representantes, Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, produziram contrafações da doutrina ainda na era do stalinismo triunfante ou declinante e que não deixaram sequer algum resquício de contribuição ao campo. A melhor análise do marxismo ocidental foi feita em um livro homônimo por um pensador liberal, o diplomata José Guilherme Merquior, que aliás dialogou de forma inteligente com os poucos marxistas não sectários da comunidade acadêmica.
O marxismo prático, isto é, o comunismo, ao contrário de suas pretensões, não contribuiu em praticamente nada para os avanços econômicos, sociais e políticos da classe que pensava representar, mais bem contemplada por concessões populistas de um ditador ou de presidentes abertos à “inclusão social” das massas trabalhadoras. Do lado inverso, liderado por um militar positivista convertido a uma versão especialmente vulgar do marxismo, o movimento comunista deu exemplos negativos de tentativa de tomada violenta do poder, empurrado pela miopia da III Internacional (1935), adotando depois uma reiterada postura de apoio às mais execráveis ditaduras do século XX, aliás até hoje, como revelado no caso da tragédia venezuelana, cuja ditadura de natureza fascista é apoiada pelos partidos brasileiros que se acreditam de esquerda.
Em vista de tantas frustrações, tantos equívocos, tantos crimes cometidos, tantas ilusões alimentadas em milhões de jovens (e menos jovens) ao longo do último século, parece até inacreditável que o comunismo tenha sobrevivido aos golpes de martelo da realidade. De certa forma, ele só não colapsou de vez porque os cursos de humanidades continuam a alimentar um fluxo contínuo de professores, jornalistas, sindicalistas (em grande medida de funcionários públicos), ativistas de movimentos sociais e outros seres deslocados do mundo real, vivendo nas fímbrias do mercado, ou diretamente a serviço do Estado, ao abrigo do qual eles repartem entre si recursos que extraem da parte ativa da sociedade (empresários e trabalhadores do setor privado) numa espécie de redoma infensa aos dados e informações do sistema produtivo de mercado. Gustavo Marques traz aqui a sua contribuição única na literatura especializada brasileira a uma história que ele estima ser, com razão, “ainda mal contada”.
O autor atribui essas deficiências da bibliografia à má qualidade da literatura anticomunista no Brasil; ou seja: se a esquerda deformou a verdade histórica, a direita tampouco soube compor estudos sólidos sobre essa grande ilusão que ainda persiste. De fato, mesmo se o anticomunismo é a doutrina oficial do Estado brasileiro desde 1935, os estudiosos não comunistas do fenômeno não conseguiram construir uma obra que lograsse escapar do anticomunismo primário, do reacionarismo antidemocrático e das mesmas simplificações que já conhecemos do lado da literatura de baixa qualidade produzida pela esquerda e pelos simpatizantes do marxismo.
Ao cabo de uma leitura talvez extenuante, mas sumamente enriquecedora, não é possível emergir deste livro com a antiga impressão geral de que a esquerda sempre foi, e continuaria sendo, “moralmente superior” à direita, por defender ideais supostamente nobres e elevados. Ao contrário, o comunismo, no Brasil como no resto do mundo, foi devastador não só para as consciências, mas também para qualquer objetivo prático de desenvolvimento material e de progresso espiritual da sociedade. Em uma palavra, seus projetos de engenharia social foram, aqui e em todos os lugares, apenas criminosos.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 26 de março de 2019



NOTA DO AUTOR: (agosto de 2019)

Este livro já estava pronto e sua primeira versão já tinha sido enviada à editora – depois de mais de dez anos de pesquisa – quando, em outubro de 2018, numa eleição democrática porém atípica, a maioria dos votantes brasileiros, enfastiados com 13 anos de corrupção desenfreada e cada vez mais descrentes da democracia, escolheram como presidente da República um personagem vindo do submundo da política e identificado com posições autoritárias e extremistas de direita (em particular, com o regime civil-militar de 1964-85). Desde então, o anticomunismo, antes marginal na política e na cultura, tornou-se parte do discurso oficial, confundindo-se com posições populistas, reacionárias, obscurantistas e liberticidas, resvalando para o fascistoide.
Diante do fato de que tais atitudes em nada se assemelham aos princípios liberais e conservadores (pelo contrário, são seu oposto exato, só contribuindo para desmoralizá-los), e consciente de que o anticomunismo ou o antiesquerdismo, em tal conjuntura, podem ser instrumentalizados politicamente, o autor gostaria de reiterar, de antemão, seu total e veemente repúdio a qualquer tentativa de deturpar o significado e o escopo desta obra, com o intuito de falsificar e/ou de reescrever a História.
Tal como está na Introdução, a denúncia dos crimes do comunismo só faz sentido se estiver acompanhada da defesa intransigente das liberdades democráticas. Sem esta, o anticomunismo, sincero ou não, longe de ser a expressão de ideais liberais ou conservadores, não passa de uma caricatura destes, uma paródia grotesca que serve somente para reforçar a narrativa ideológica oposta, ao mesmo tempo em que copia as piores práticas dos que a sustentam. O autor, portanto, repele de forma peremptória a substituição de um viés ideológico por outro, tão antidemocrático e intolerante quanto o anterior, assim como não compactua, em absoluto, com qualquer sectarismo, de esquerda ou de direita (sobretudo uma histérica e caricatural). Os extremismos, no final, acabam retroalimentando-se, sendo um, na realidade, o espelho do outro.
Os crimes e mentiras do comunismo narrados neste livro de nenhum modo justificam, relativizam ou minimizam os delitos e falsidades cometidos em nome do anticomunismo, e vice-versa. Repudiar ambos os extremos é um dever de todo democrata.
G.M.
Brasília, agosto de 2019