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sexta-feira, 20 de junho de 2014

Capitalismo regulado (nos outros paises), no Brasil: ultra-regulado, restrito, cerceado...

Os reais beneficiados por um capitalismo regulado
Instituto Ludwing Von Mises Brasil, quinta-feira, 5 de junho de 2014

 

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Proteja seu bolso: governo em conluio com grandes empresários
A palavra "capitalismo" é utilizada de duas maneiras contraditórias.  Em algumas ocasiões, ela é utilizada com o intuito de denotar um mercado livre e desimpedido, ou laissez-faire.  Em outras ocasiões, ela é utilizada para denotar exatamente o arranjo atual em que vive o mundo, uma economia mista em que o governo intervém para privilegiar grandes empresas, criando monopólios e oligopólios. 
Logicamente, "capitalismo" não pode ser ambas as coisas.  Ou os mercados são totalmente livres, ou o governo os controla.  Não é possível ter os dois arranjos ao mesmo tempo.
Mas a verdade é que não há um mercado genuinamente livre em nenhum país do mundo.  As regulamentações governamentais, as tarifas, os subsídios, os decretos e as intromissões são generalizados, variando apenas o grau de intensidade com que ocorrem em cada país.  Sendo assim, o termo "capitalismo" denotando mercados livres não pode ser aplicado nos dias de hoje.
O que existe é um capitalismo mercantilista, um capitalismo de compadrio, um capitalismo regulado em prol dos regulados e dos reguladores, e contra os consumidores.
O que seria esse capitalismo mercantilista?  Trata-se de um sistema econômico no qual o mercado é artificialmente moldado por uma relação de conluio entre o governo, as grandes empresas e os grandes sindicatos.  Neste arranjo, o governo concede a seus empresários favoritos uma ampla variedade de privilégios que seriam simplesmente inalcançáveis em um genuíno livre mercado, como restrições de importação, subsídios diretos, tarifas protecionistas, empréstimos subsidiados feitos por bancos estatais, e agências reguladoras criadas com o intuito de cartelizar o mercado e impedir a entrada de concorrentes estrangeiros.  Em troca, as empresas beneficiadas lotam os cofres de políticos e reguladores com amplas doações de campanha e propinas.
O capitalismo mercantilista é tão antigo, que Adam Smith já o criticava — e combatia — no século XVIII.  Atualmente, não é necessário procurar muito para se encontrar exemplos deste tipo de capitalismo.  Basta olhar para o seu próprio país.  Todos os cartéis, oligopólios e monopólios que você conhece estão em setores altamente regulados pelo governo, como o setor bancário, o setor aéreo, o setor de transportes terrestres, o setor de transportes aquaviários, o setor de telecomunicações, o setor elétrico, o setor energético (petróleo, postos de gasolina), o setor minerador, o setor farmacêutico etc.
Quem cria cartéis, oligopólios e monopólios é e sempre foi o estado, seja por meio de regulamentações que impõem barreiras à entrada da concorrência no mercado (agências reguladoras), seja por meio de altos tributos que impedem que novas empresas surjam e cresçam, seja por meio da burocracia que desestimula todo o processo de formalização de empresas, seja por meio da imposição de altas tarifas de importação que encarecem artificialmente a aquisição de produtos importados (pense nas fabricantes de automóveis).
Um capitalismo de livre mercado é um sistema em que os lucros e os prejuízos são privados.  Já um capitalismo mercantilista é um arranjo em que os lucros são privados, mas os prejuízos são socializados.  Quando são bem-sucedidas, as empresas mantêm seus lucros; quando sofrem prejuízos, recorrem ao governo em busca ou de pacotes de ajuda ou de novas medidas que restrinjam a concorrência.  No extremo, pedem ao governo para jogar a fatura do prejuízo sobre os pagadores de impostos.
O papel das regulamentações em um capitalismo mercantilista não é corretamente entendido pelos intervencionistas.  Eles genuinamente acreditam que as regulamentações são uma forma de o governo subjugar e domar as grandes corporações.  Só que, historicamente, as regulamentações sempre foram uma maneira tida como lícita de determinadas empresas (geralmente as grandes e bem-conectadas politicamente) ganharem vantagens à custa de outras, geralmente menos influentes. 
Por exemplo, em teoria, agências reguladoras existem para proteger o consumidor.  Na prática, elas protegem as empresas dos consumidores.  Por um lado, as agências reguladoras estipulam preços e especificam os serviços que as empresas reguladas devem ofertar.  Por outro, elas protegem as empresas reguladas ao restringir a entrada de novas empresas neste mercado.  No final, agências reguladoras nada mais são do que um aparato burocrático que tem a missão de cartelizar os setores regulados — formados pelas empresas favoritas do governo —, determinando quem pode e quem não pode entrar no mercado, e especificando quais serviços as empresas escolhidas podem ou não ofertar, impedindo desta maneira que haja qualquer "perigo" de livre concorrência.
Em seu cerne, a regulação é anti-livre iniciativa, anti-livre mercado e anti-concorrência.  A regulação não se baseia nas preferências dos consumidores e nem nos valores subjetivos dos consumidores em relação aos bens e serviços ofertados.  Ao contrário, ela faz com que as empresas ajam como se fossem ofertantes monopolistas, de modo que os preços passam a ser determinados pelos custos de produção das empresas e não pela preferência dos consumidores. 
Mas isso é apenas o primeiro passo: uma empresa regulada pode encontrar várias maneiras de fazer as regulações funcionarem em proveito próprio e contra os interesses dos consumidores. 
Por exemplo, não é incomum que grandes empresas façam lobby para criar regulamentações complicadas e onerosas sobre seu próprio setor.  Por que elas fazem isso?  Para dificultar uma potencial concorrência de empresas novas, pequenas e com pouco capital.  Empresas grandes e já estabelecidas têm mais capacidade e mais recursos para atender regulações minuciosas e onerosas.  Empresas pequenas, que querem entrar naquele mercado mas que ainda não possuem muitos recursos financeiros, não têm essa capacidade.  Empresas grandes podem contratar lobistas (ou podem simplesmente subornar políticos) para elaborar padrões de regulação que elas já atendem ou que podem facilmente atender, mas que são impossíveis de serem atendidos por empresas pequenas e recém-criadas. 
O livro "The Big Ripoff: How Big Business and Big Government Steal Your Money", de Timothy Carney, explica em detalhes como a própria Phillip Morris estimulou a "guerra contra o tabaco" para se beneficiar, como a própria General Motors agitou pela aprovação de rígidas legislações ambientalistas nos EUA (cujas restrições mais rígidas afetariam a concorrência), e como a poderosa megacorporação Archer Daniels Midland se beneficia dos subsídios para o etanol (algo adorado pelos ambientalistas).
O apoio das grandes empresas às regulamentações criadas pelos governos não apenas não é algo raro, como, na realidade, sempre foi a norma.
Caso ainda não esteja convencido, apenas faça a si mesmo a seguinte pergunta: Qual destas tem uma maior probabilidade de ser afetada por vigorosas regulamentações: grandes corporações com boas conexões políticas e com enormes departamentos jurídicos e contábeis, ou micro e pequenas empresas ainda incipientes e em processo de formalização? 
Regulamentações aniquilam a concorrência — e as empresas já estabelecidas adoram que seja assim.
Este arranjo de economia mista é também, como já explicado, ótimo para os governos.  Políticos e burocratas adquirem poderes sobre as empresas e, com tais poderes, garantem que seus cofres estejam sempre cheios.  Políticos ganham generosas doações de campanha e reguladores ganham fartas propinas.  Ambas essas contribuições são feitas pelas grandes empresas e pelos grandes sindicatos em troca da promessa de novas regulamentações que irão lhes favorecer e afetar a concorrência.
Trata-se de uma mistura de socialismo em um arranjo basicamente capitalista, uma mistura suficiente para manter fluidas as receitas do governo e garantir a continuidade dos assistencialismos sociais e corporativos.  A porção capitalista dessa economia mista possibilita um confortável estilo de vida para políticos e para milhões de funcionários públicos.
Defensores das regulações não percebem que elas são essencialmente uma forma de controle estatal.  É por isso que todos os partidos políticos atuais endossam agências reguladoras e todo o seu aparato burocrático.  Afinal, qual político não gostaria de comandar amplos setores da economia? 
Em vez de proteger os inocentes e incautos, regulações estimulam os escroques e incentivam as grandes empresas a manipular o sistema com o intuito de aumentar sua própria fatia de mercado e seus lucros.  Como sempre ocorre com todas as interferências governamentais nas questões econômicas e sociais, a regulação gera o efeito exatamente oposto do seu proclamado objetivo.  E o pior: em um esforço para se tentar corrigir as inevitáveis consequências desastrosas das regulações, mais e mais regulações vão sendo criadas, levando a um controle estatal da economia cada vez mais paralisante.
Já passou da hora de a população entender a diferença entre livre mercado, que se baseia na liberdade e na concorrência, e capitalismo mercantilista, que se baseia em privilégios concedidos pelo estado.
A conclusão é que os socialistas se reinventaram, trocaram seu rótulo para social-democratas, deixaram de lado sua ânsia de estatizar diretamente os meios de produção e optaram por um mais suave modelo fascista, no qual estado e grandes empresas atuam em conluio para se beneficiar mutuamente e prejudicar o cidadão, que tem de aceitar serviços ruins e caros, pois não há mais livre mercado.  Exatamente o intuito original dos socialistas.
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Participaram deste artigo:
Hans F. Sennholz  (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos.  Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou.  Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997.  Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.
Mark Borkowski é o presidente da corretora Mercantile Mergers & Acquisitions Corp., sediada em Toronto.
Leandro Roque é o editor e tradutor do site do  Instituto Ludwig von Mises Brasil.

domingo, 23 de junho de 2013

Alemanha, ano zero (1948): como Ludwig Erhard conduziu a recuperação - Hans F. Sennholz

Eu já tinha postado, muito antes neste mês, uma matéria do NYTimes sobre a estabilização da economia alemã com troca de moeda em 1948, conduzida pelo economista Ludwig Erhard.
Agora tenho o prazer de colocar uma análise mais elaborado por parte de um economista liberal sobre o mesmo assunto, que me foi gentilmente enviada por um fiel leitor deste blog e sobretudo do Instituto Mises Brasil.
Paulo Roberto de Almeida

Como se deu o milagre econômico alemão do pós-guerra
Instituto Mises Brasil, quarta-feira, 26 de setembro de 2012



ludwig-erhard-wohlst-1.jpgEm 1945, o último bastião da resistência nazista na Alemanha entrou em colapso, o III Reich deixou de existir e o país ficou sob o controle militar dos Aliados.  Mesmo antes desta rendição final, os Aliados já haviam se dado conta de que um de seus problemas mais graves seria o que fazer com a economia alemã. 
Durante a Segunda Conferência de Quebec, em setembro de 1944, tanto Franklin Roosevelt quanto Winston Churchill concordaram em criar um programa para "eliminar as indústrias bélicas do vale do Ruhr e do Sarre... visando a converter a Alemanha em um país primariamente agrícola e de caráter bucólico."  Isso passou a ser conhecido como o Plano Morgenthau, em homenagem ao Secretário do Tesouro americano Henry Morgenthau, o mais fervoroso defensor de tal ideia.
A própria ideia de transformar um país altamente industrializado e densamente habitado como a Alemanha em uma nação de camponeses rústicos já era em si absurda.  Mais tarde, o próprio Roosevelt viria a admitir que "ele não tinha ideia de como ele havia levado isso a sério; que ele evidentemente não havia pensado muito em tudo aquilo."[1]
Infelizmente, mesmo após a rejeição do Plano Morgenthau, em decorrência de uma forte reação crítica do público e da imprensa, a ideia de se desindustrializar a Alemanha permaneceu fazendo parte da plataforma dos Aliados.
Na Conferência de Potsdam, em julho de 1945, a questão da economia da Alemanha surgiu novamente.  Ficou decidido que a capacidade industrial alemã seria limitada a 50-55% do seu nível de 1938, ou a aproximadamente 65% daquele de 1936.  Algum tempo depois, esse nível foi elevado para 100% do nível de 1936 nas zonas sob ocupação americana e britânica (Bizona); porém, enquanto isso, a capacidade produtiva alemã era de apenas 60% daquela de 1936, e a produção vigente era de apenas 39% daquela de 1936.[2]
A inflação reprimida
A economia alemã continuou definhando ao longo de 1946 e 1947, incapaz de começar a apresentar qualquer sinal de recuperação.  Pudera: os Aliados haviam mantido intacto praticamente todo o sistema de controle econômico dos nazistas.  Isso porque eles não chegavam a nenhum acordo sobre o que fazer com a economia e, por conseguinte, optaram por manter o status quo até onde pudessem.  No final, provou-se impossível conciliar os objetivos do Ocidente com os da União Soviética, o que resultou na divisão da Alemanha na Alemanha Ocidental e na Alemanha Oriental. 
Após esta divisão, a principal razão para manter os controles sobre a economia era a inflação monetária: a quantidade de dinheiro na economia, no sentido amplo, havia aumentado seis vezes entre 1936 e 1947, de menos de 50 bilhões de reichsmark para algo em torno de 300 bilhões (70 bilhões em cédulas, 100 bilhões em conta-corrente e 125 bilhões em contas de poupança).[3]  Em decorrência desta contínua inflação monetária, o marco havia se tornado virtualmente sem valor.
As autoridades ocidentais esperavam que, se os controles fossem mantidos, com preços e salários rigidamente congelados, a economia continuaria funcionando.[4]
Este curioso fenômeno de controle direto sobre todos os preços e salários, em conjunto com uma rápida inflação monetária, passou a ser conhecido como inflação reprimida.  Infelizmente, ao se combinar os efeitos nocivos tanto da inflação monetária quanto do planejamento estatal, o resultado final é muito pior do que seria com apenas um deles.  Há uma distorção dupla sobre a oferta e a demanda: além das distorções normais provocadas pelo planejamento estatal e pela inflação monetária, a estrutura de preços deixa de refletir as mudanças no valor do dinheiro causadas pela inflação monetária.  Isso leva a uma queda acentuada na produção; a escassez torna-se inevitável.  O resultado final e inevitável é a regressão à economia de escambo.  E foi exatamente isso o que ocorreu na Alemanha.[5]
As empresas que desejassem continuar operando tinham de contratar especialistas chamados "compensadores".  A função deles era conseguir trocar o que a empresa havia fabricado por aquilo de que ela necessitava.  Consequentemente, tal processo era muito longo e confuso, dado que várias transações intermediárias tinham de ser feitas com grande frequência.  O resultado era um enorme desperdício em tempo e gastos indiretos para se obter coisas que, antes, poderiam ser conseguidas quase que imediatamente.
Desnecessário dizer que isso deixou a já deprimida economia alemã terrivelmente emperrada. 
Não demorou muito para que os trabalhadores e empregados em geral também insistissem em ser pagos em mercadorias.  Ato contínuo, eles trocavam as mercadorias que recebiam por aquelas coisas de que necessitavam.  Uma consequência adicional era que os trabalhadores não mais tinham qualquer incentivo para trabalhar mais e ganhar mais dinheiro: como havia racionamento, todos trabalhavam apenas o necessário para comprar os poucos e racionados bens que podiam obter a cada semana a preços estipulados artificialmente.  Por lei, era necessário ter um emprego para se obter as papeletas de racionamento; sendo assim, os trabalhadores adquiriram o hábito de ir trabalhar apenas três ou quatro dias por semana.  Seu tempo livre adicional passou a ser gasto em trabalhos de jardinagem, na confecção de artigos para escambo ou atuando diretamente no mercado negro, bem mais lucrativo.
A reforma monetária
Finalmente este pseudomercado entrou em colapso.  Como notou um observador, a economia alemã "estava organizada de tal forma que o interesse próprio dos indivíduos e das empresas era estritamente oposto ao interesse comum.  Trabalhar em um emprego regular era a menos lucrativa das ocupações, e a mera sobrevivência dependia de se saber aproveitar as brechas da lei.  Já em meados de 1948, a economia havia atingido um estado de total paralisia que resultou na quase inanição de uma grande fatia da população".[6]
Mas, felizmente para a Alemanha, um cavalheiro chamado Ludwig Erhard, que havia sido discípulo de Wilhelm Roepke — sendo que este havia sido discípulo de Ludwig von Mises —, foi nomeado Diretor da Administração Econômica Bizonal.  Erhard era um inflexível e vigoroso adepto do livre mercado, e estava disposto a dar a ele uma chance.  No auge da crise, em junho de 1948, ele propôs um ousado e extenso plano para restaurar a economia, um plano que combinava uma radical reforma monetária em conjunto com uma completa abolição dos controles econômicos.
A reforma monetária estava marcada para ocorrer nas zonas britânicas e americanas no dia 20 de junho de 1948.  O cerne deste programa seria uma redução da oferta monetária em incríveis 90% seguida da emissão de um novo marco alemão, o deutsche-mark, que manteria seu valor e que não mais seria inflacionado até perder totalmente seu valor.  Os detalhes da reforma monetária são um tanto intrincados e estão fora do escopo deste artigo.  Basta dizer que todos os reichsmark foram trocados por novos deutsche-marks a uma taxa de 10 para 1, sendo que a quantia máxima de deutsche-marks a ser impressa foi estipulada em 10 bilhões.
Adicionalmente, os depósitos bancários em nome de instituições públicas — do governo militar, dos estados e suas subdivisões, da empresa ferroviária estatizada, e dos Correios — foram invalidados sumariamente.  Da mesma forma, todas as obrigações assumidas anteriormente pelo Reich, bem como todos os seus depósitos interbancários, também foram invalidados.  Uma reserva em dinheiro e algum estoque de capital foram concedidos a todas as instituições financeiras, fornecendo desta forma os ativos necessários para lastrear os novos passivos destas instituições.
Além desta reforma monetária, o vasto emaranhado de controles estatais sobre a economia também tinha de ser abolido para que a reforma monetária pudesse funcionar.  Nos bastidores, isso não era algo fácil de ser feito, pois a Alemanha ainda estava sob ocupação militar, e virtualmente tudo o que os alemães quisessem fazer tinha de ter a prévia aprovação dos Aliados.  Uma dificuldade adicional estava no fato de que, na Grã-Bretanha, o primeiro governo socialista acabava de ser eleito e, como consequência, os britânicos já estavam tentando difundir suas políticas socialistas também para a zona de ocupação.[7]
Os Aliados observaram a reforma econômica com grande ansiedade, dúvida e apreensão.  Com efeito, o general Lucius D. Clay, nomeado pelos Aliados como diretor de política econômica, enviou um ríspido memorando para Ludwig Erhard alertando-o de que os controles econômicos do governo militar não poderiam ser alterados sem uma prévia permissão.  A corajosa resposta do professor Erhard merece ser repetida continuamente até o fim dos tempos: "Eu não alterei seus controles; eu os aboli".[8]
Como o próprio Erhard viria a dizer mais tarde: "Foi estritamente especificado pelas autoridades britânicas e americanas que seria necessário obter permissão para que qualquer mudança de preços pudesse ser feita.  Parece que os Aliados jamais haviam imaginado que alguém pudesse ter a ideia não de alterar os controles de preços, mas de simplesmente removê-los".[9]
E foi exatamente isso o que Erhard fez, e de uma só vez ele desatrelou toda a economia alemã. 
O livre mercado em ação
À medida que a data da implementação destas reformas se aproximava, o país ia se tornando mais apreensivo, e a crise econômica parecia piorar continuamente.  Ao mesmo tempo, os críticos socialistas se animavam e elevavam os gritos de condenação ao plano.
No dia 19 de junho, um sábado, a maioria das lojas estava vazia.  No dia 21 de junho, segunda-feira, como num passe de mágica, as lojas estavam novamente abastecidas. Dois franceses, Jacques Rueff e Andre Piettre, registraram de forma teatral este milagre ocorrido da noite para o dia:
O mercado negro de repente desapareceu. As vitrines das lojas amanheceram cheias de bens, as chaminés das fábricas voltaram a soltar fumaça intensamente, e as ruas fervilhavam de caminhões de carga.  Por todos os cantos, o barulho das construções substituiu o silêncio sombrio dos escombros. Se a recuperação foi uma surpresa grande, sua rapidez foi uma surpresa ainda maior.  Em todos os setores da economia, a vida foi retomada assim que os relógios badalaram as primeiras horas do dia da reforma.  Apenas uma testemunha ocular pode oferecer um relato acurado do súbito efeito que a reforma monetária teve sobre o tamanho dos estoques e sobre a variedade e riqueza dos bens à mostra.  As lojas se encheram de bens da noite para o dia; as fábricas voltaram a trabalhar a toda.  Na véspera da reforma monetária, os alemães perambulavam sem rumo pelas cidades à procura de alguns itens comestíveis adicionais.  Um dia depois, eles não pensavam em mais nada a não ser em produzi-los.  Num dia, a apatia era nítida em suas faces; no outro, toda a nação olhava esperançosa para o futuro.[10]
Como o próprio Erhard viria a observar este fenômeno: "Antes da reforma monetária, nossa economia era como um campo de prisioneiros de guerra; os reclusos eram mantidos vivos em parte pelos Aliados.... Imediatamente após a reforma, as cercas, barreiras e muralhas desabaram com estonteante velocidade tão logo o campo de prisioneiros ganhou uma nova e confiável moeda".[11]
Os resultados rapidamente comprovaram a sagacidade de ambas as reformas, a monetária e a de liberação geral dos preços e salários.  A tabela a seguir, por exemplo, mostra que, entre junho e dezembro de 1948, houve um aumento de 53% da produção naquelas áreas contempladas pelas reformas:
Índice de Produção (1936 = 100)[12]
Abril
53
Setembro
70
Maio
47
Outubro
74
Junho
51
Novembro
75
Julho
61
Dezembro
78
Agosto
65


Já em 1949, o índice de produção encerrou em 143% daquele de 1948.  Ao longo das duas décadas seguintes, a Alemanha continuou a ter uma das maiores taxas de crescimento do mundo.
Economia keynesiana
É óbvio que, perante estes resultados, vários economistas rapidamente se apressaram em querer atribuir os créditos do sucesso às suas ideologias favoritas.  Aqueles que não queriam dar nenhum crédito às políticas de livre mercado de Erhard prontamente começaram a oferecer suas próprias explicações para a fenomenal recuperação da Alemanha.  Uma explicação que se tornou bastante popular foi a de que a Alemanha utilizou princípios keynesianos em sua recuperação.[13]  Essa proposição já foi completamente demolida em outras obras,[14] mas continua sendo difundida porque economistas keynesianos são invejosos do fato de que nenhuma das notáveis recuperações ocorridas no pós-guerra realmente utilizou qualquer tipo de economia keynesiana.  Ao contrário: todas se basearam universalmente nos princípios do livre mercado.  Como observou o professor de Harvard, Gottfried von Haberler:
Em todos os países industriais desenvolvidos, as políticas de recuperação econômica, de estabilização e de crescimento foram muito mais bem-sucedidas após a Segunda Guerra Mundial do que após a primeira.  Porém, é difícil atribuir este fenômeno à difusão do pensamento keynesiano.  Nenhum dos economistas e nenhum dos estadistas que foram amplamente responsáveis pelos variados milagres econômicos do pós-guerra pode ser chamado de keynesiano: nem Camille Gutt na Bélgica, nem Luigi Einaudi na Itália, nem Ludwig Erhard na Alemanha, nem Reinhard Kamitz na Áustria, nem Jacques Rueff na França.  O maior milagre econômico de todos, o japonês, parece ter sido realizado sob governantes e estadistas japoneses bastantes conservadores, com o auxílio de conselheiros americanos ultraconservadores.  Aos numerosos keynesianos e marxo-keynesianos restou apenas observar o fenômeno, em impotente oposição.[15]
O que podemos concluir do episódio alemão? 
Primeiro, é necessário entender que qualquer interferência realizada por burocratas e planejadores estatais sobre o sistema de preços irá inevitavelmente distorcer o sistema de produção, gerando um arranjo menos satisfatório do que aquele que existiria caso não houvesse nenhum interferência. 
Segundo, não há na história econômica nenhum exemplo mais pungente de uma "política de pleno emprego" que tenha funcionado melhor que a alemã — não houve nenhum planejamento federal, não houve política industrial, não houve modelos computadorizados para a economia, não havia um exército de burocratas dando palpites e ditando ordens, não houve inflação monetária com intuito de 'estimular a economia', e não houve políticas keynesianas.  Foi justamente a ausência de todos estes componentes que infestam as economias intervencionistas atuais o que tornou possível o renascimento econômico alemão. 
Terceiro, o episódio alemão demonstra que uma deflação monetária, desde que ocorra em um ambiente com total liberdade de preços e salários, pode ser algo economicamente benéfico, sem necessariamente criar uma depressão — pelo menos no caso de uma economia que havia sido praticamente destruída pela imposição de controles de preços e salários.  A deflação restaurou a fé na nova moeda, uma vez que ela foi acompanhada da volta dos preços flexíveis e da abolição de todos os controles sobre a economia.  O processo de trocas indiretas intermediadas pelo uso do dinheiro pôde avançar firmemente, pondo um fim à economia baseada no escambo, à sua inerentemente baixa divisão do trabalho e aos seus mercados extremamente limitados e manietados.
As reformas de livre mercado de Ludwig Erhard restauraram a liberdade dos mercados na Alemanha e, com isso, libertaram as inexoráveis leis da ação humana.  Foi a livre concorrência baseada na propriedade privada o que deu novas esperanças e permitiu o surgimento de um fenômeno econômico que surpreendeu o mundo e se tornou conhecido como "o milagre da recuperação alemã".
Infelizmente, Erhard tinha uma vantagem política que o mundo atual não mais usufrui.  Ele teve a liberdade de abolir os controles que haviam sido impostos pelos Aliados; ao fazer isso, ele ganhou o apoio político da população alemã.  No entanto, os controles haviam sido criados originalmente pelos nazistas; os Aliados apenas os estenderam por mais três anos após a Alemanha ter se rendido.  É mais fácil abolir controles estatais criados por um exército de ocupação estrangeiro do que abolir todo um sistema de regulação que políticos nativos e eleitos democraticamente criaram em nome do "interesse público".  É politicamente muito mais difícil efetuar ações econômicas corretas e sensatas quando, nas imortais palavras de Pogo Possum, "Conhecemos o inimigo e ele somos nós".


[1] Henry L. Stimson and McGeorge Bundy, On Active Service in Peace and War (New York: Harper & Bros., 1948), 581.
[2] Ludwig Erhard, Prosperity Through Competition  (New York: Frederick A. Praeger, 1958), 10?11.
[3] Karl-Heinrich Hansmeyer und Rolf Caesar, "Kriegswirtschaft und Inflation (1936?1948)," in Währung und Wirtschaft, 418.
[4] Ver Nicholas Balabkins, Germany Under Direct Controls (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1964); Henry Hazlitt, "The German Paralysis," Newsweek (21 de abril, 1947), 82; John Davenport, "New Chance in Germany," Fortune  (Outubro de 1949), 73.
[5] Wilhelm Roepke, "Repressed Inflation," Kyklos, vol. 1 (1974), fasc. 3, 242?53.
[6] F. A. Lutz, "The German Currency Reform and the Revival of the German Economy," Economica (Maio, 1949): 122.
[7] Citado in Erhard, Prosperity, 12
[8] Volkmar Muthesius, Augenzeuge von drei Inflationen (Frankfurt am Main), 1973,
111.
[9] Erhard, Prosperity, 14
[10] Citado in Erhard, Prosperity, 13; ver também Jacques Rueff, The Age of Inflation (Chicago: Henry Regnery, Gateway Edition, 1964), 86?105
[11] Ludwig Erhard, Germany's Comeback in the World Market (New York: Macmillan, 1954), 21.
[12] Lutz, "German Currency Reform," 132.
[13] Walter Heller, "The Role of Fiscal-Monetary Policy in German Economic Recovery," American Economic Review (Maio, 1950): 533?47.
[14] Egon Sohmen, "Competition and Growth: The Lesson of West Germany," American Economic Review(Dezembro, 1959): 986?1003.
[15] Robert Lekachman, ed., Keynes' General Theory: Report of Three Decades (New York: St. Martin's Press, 1964), 295.

Hans F. Sennholz  (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos.  Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou.  Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997.  Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.

Tradução de Leandro Roque

terça-feira, 18 de junho de 2013

Ach so: a recuperacao alema de 1948; alguma licao para o Brasil? - Hans F. Sennholz

Como se deu o milagre econômico alemão do pós-guerra
Instituto Ludwig Von Mises Brasil, quarta-feira, 26 de setembro de 2012

 

ludwig-erhard-wohlst-1.jpg
Em 1945, o último bastião da resistência nazista na Alemanha entrou em colapso, o III Reich deixou de existir e o país ficou sob o controle militar dos Aliados.  Mesmo antes desta rendição final, os Aliados já haviam se dado conta de que um de seus problemas mais graves seria o que fazer com a economia alemã. 
Durante a Segunda Conferência de Quebec, em setembro de 1944, tanto Franklin Roosevelt quanto Winston Churchill concordaram em criar um programa para "eliminar as indústrias bélicas do vale do Ruhr e do Sarre... visando a converter a Alemanha em um país primariamente agrícola e de caráter bucólico."  Isso passou a ser conhecido como o Plano Morgenthau, em homenagem ao Secretário do Tesouro americano Henry Morgenthau, o mais fervoroso defensor de tal ideia.
A própria ideia de transformar um país altamente industrializado e densamente habitado como a Alemanha em uma nação de camponeses rústicos já era em si absurda.  Mais tarde, o próprio Roosevelt viria a admitir que "ele não tinha ideia de como ele havia levado isso a sério; que ele evidentemente não havia pensado muito em tudo aquilo."[1]
Infelizmente, mesmo após a rejeição do Plano Morgenthau, em decorrência de uma forte reação crítica do público e da imprensa, a ideia de se desindustrializar a Alemanha permaneceu fazendo parte da plataforma dos Aliados.
Na Conferência de Potsdam, em julho de 1945, a questão da economia da Alemanha surgiu novamente.  Ficou decidido que a capacidade industrial alemã seria limitada a 50-55% do seu nível de 1938, ou a aproximadamente 65% daquele de 1936.  Algum tempo depois, esse nível foi elevado para 100% do nível de 1936 nas zonas sob ocupação americana e britânica (Bizona); porém, enquanto isso, a capacidade produtiva alemã era de apenas 60% daquela de 1936, e a produção vigente era de apenas 39% daquela de 1936.[2]
A inflação reprimida
A economia alemã continuou definhando ao longo de 1946 e 1947, incapaz de começar a apresentar qualquer sinal de recuperação.  Pudera: os Aliados haviam mantido intacto praticamente todo o sistema de controle econômico dos nazistas.  Isso porque eles não chegavam a nenhum acordo sobre o que fazer com a economia e, por conseguinte, optaram por manter o status quo até onde pudessem.  No final, provou-se impossível conciliar os objetivos do Ocidente com os da União Soviética, o que resultou na divisão da Alemanha na Alemanha Ocidental e na Alemanha Oriental. 
Após esta divisão, a principal razão para manter os controles sobre a economia era a inflação monetária: a quantidade de dinheiro na economia, no sentido amplo, havia aumentado seis vezes entre 1936 e 1947, de menos de 50 bilhões de reichsmark para algo em torno de 300 bilhões (70 bilhões em cédulas, 100 bilhões em conta-corrente e 125 bilhões em contas de poupança).[3]  Em decorrência desta contínua inflação monetária, o marco havia se tornado virtualmente sem valor.
As autoridades ocidentais esperavam que, se os controles fossem mantidos, com preços e salários rigidamente congelados, a economia continuaria funcionando.[4]
Este curioso fenômeno de controle direto sobre todos os preços e salários, em conjunto com uma rápida inflação monetária, passou a ser conhecido como inflação reprimida.  Infelizmente, ao se combinar os efeitos nocivos tanto da inflação monetária quanto do planejamento estatal, o resultado final é muito pior do que seria com apenas um deles.  Há uma distorção dupla sobre a oferta e a demanda: além das distorções normais provocadas pelo planejamento estatal e pela inflação monetária, a estrutura de preços deixa de refletir as mudanças no valor do dinheiro causadas pela inflação monetária.  Isso leva a uma queda acentuada na produção; a escassez torna-se inevitável.  O resultado final e inevitável é a regressão à economia de escambo.  E foi exatamente isso o que ocorreu na Alemanha.[5]
As empresas que desejassem continuar operando tinham de contratar especialistas chamados "compensadores".  A função deles era conseguir trocar o que a empresa havia fabricado por aquilo de que ela necessitava.  Consequentemente, tal processo era muito longo e confuso, dado que várias transações intermediárias tinham de ser feitas com grande frequência.  O resultado era um enorme desperdício em tempo e gastos indiretos para se obter coisas que, antes, poderiam ser conseguidas quase que imediatamente.
Desnecessário dizer que isso deixou a já deprimida economia alemã terrivelmente emperrada. 
Não demorou muito para que os trabalhadores e empregados em geral também insistissem em ser pagos em mercadorias.  Ato contínuo, eles trocavam as mercadorias que recebiam por aquelas coisas de que necessitavam.  Uma consequência adicional era que os trabalhadores não mais tinham qualquer incentivo para trabalhar mais e ganhar mais dinheiro: como havia racionamento, todos trabalhavam apenas o necessário para comprar os poucos e racionados bens que podiam obter a cada semana a preços estipulados artificialmente.  Por lei, era necessário ter um emprego para se obter as papeletas de racionamento; sendo assim, os trabalhadores adquiriram o hábito de ir trabalhar apenas três ou quatro dias por semana.  Seu tempo livre adicional passou a ser gasto em trabalhos de jardinagem, na confecção de artigos para escambo ou atuando diretamente no mercado negro, bem mais lucrativo.
A reforma monetária
Finalmente este pseudomercado entrou em colapso.  Como notou um observador, a economia alemã "estava organizada de tal forma que o interesse próprio dos indivíduos e das empresas era estritamente oposto ao interesse comum.  Trabalhar em um emprego regular era a menos lucrativa das ocupações, e a mera sobrevivência dependia de se saber aproveitar as brechas da lei.  Já em meados de 1948, a economia havia atingido um estado de total paralisia que resultou na quase inanição de uma grande fatia da população".[6]
Mas, felizmente para a Alemanha, um cavalheiro chamado Ludwig Erhard, que havia sido discípulo de Wilhelm Roepke — sendo que este havia sido discípulo de Ludwig von Mises —, foi nomeado Diretor da Administração Econômica Bizonal.  Erhard era um inflexível e vigoroso adepto do livre mercado, e estava disposto a dar a ele uma chance.  No auge da crise, em junho de 1948, ele propôs um ousado e extenso plano para restaurar a economia, um plano que combinava uma radical reforma monetária em conjunto com uma completa abolição dos controles econômicos.
A reforma monetária estava marcada para ocorrer nas zonas britânicas e americanas no dia 20 de junho de 1948.  O cerne deste programa seria uma redução da oferta monetária em incríveis 90% seguida da emissão de um novo marco alemão, o deutsche-mark, que manteria seu valor e que não mais seria inflacionado até perder totalmente seu valor.  Os detalhes da reforma monetária são um tanto intrincados e estão fora do escopo deste artigo.  Basta dizer que todos os reichsmark foram trocados por novos deutsche-marks a uma taxa de 10 para 1, sendo que a quantia máxima de deutsche-marks a ser impressa foi estipulada em 10 bilhões.
Adicionalmente, os depósitos bancários em nome de instituições públicas — do governo militar, dos estados e suas subdivisões, da empresa ferroviária estatizada, e dos Correios — foram invalidados sumariamente.  Da mesma forma, todas as obrigações assumidas anteriormente pelo Reich, bem como todos os seus depósitos interbancários, também foram invalidados.  Uma reserva em dinheiro e algum estoque de capital foram concedidos a todas as instituições financeiras, fornecendo desta forma os ativos necessários para lastrear os novos passivos destas instituições.
Além desta reforma monetária, o vasto emaranhado de controles estatais sobre a economia também tinha de ser abolido para que a reforma monetária pudesse funcionar.  Nos bastidores, isso não era algo fácil de ser feito, pois a Alemanha ainda estava sob ocupação militar, e virtualmente tudo o que os alemães quisessem fazer tinha de ter a prévia aprovação dos Aliados.  Uma dificuldade adicional estava no fato de que, na Grã-Bretanha, o primeiro governo socialista acabava de ser eleito e, como consequência, os britânicos já estavam tentando difundir suas políticas socialistas também para a zona de ocupação.[7]
Os Aliados observaram a reforma econômica com grande ansiedade, dúvida e apreensão.  Com efeito, o general Lucius D. Clay, nomeado pelos Aliados como diretor de política econômica, enviou um ríspido memorando para Ludwig Erhard alertando-o de que os controles econômicos do governo militar não poderiam ser alterados sem uma prévia permissão.  A corajosa resposta do professor Erhard merece ser repetida continuamente até o fim dos tempos: "Eu não alterei seus controles; eu os aboli".[8]
Como o próprio Erhard viria a dizer mais tarde: "Foi estritamente especificado pelas autoridades britânicas e americanas que seria necessário obter permissão para que qualquer mudança de preços pudesse ser feita.  Parece que os Aliados jamais haviam imaginado que alguém pudesse ter a ideia não de alterar os controles de preços, mas de simplesmente removê-los".[9]
E foi exatamente isso o que Erhard fez, e de uma só vez ele desatrelou toda a economia alemã. 
O livre mercado em ação
À medida que a data da implementação destas reformas se aproximava, o país ia se tornando mais apreensivo, e a crise econômica parecia piorar continuamente.  Ao mesmo tempo, os críticos socialistas se animavam e elevavam os gritos de condenação ao plano.
No dia 19 de junho, um sábado, a maioria das lojas estava vazia.  No dia 21 de junho, segunda-feira, como num passe de mágica, as lojas estavam novamente abastecidas. Dois franceses, Jacques Rueff e Andre Piettre, registraram de forma teatral este milagre ocorrido da noite para o dia:
O mercado negro de repente desapareceu. As vitrines das lojas amanheceram cheias de bens, as chaminés das fábricas voltaram a soltar fumaça intensamente, e as ruas fervilhavam de caminhões de carga.  Por todos os cantos, o barulho das construções substituiu o silêncio sombrio dos escombros. Se a recuperação foi uma surpresa grande, sua rapidez foi uma surpresa ainda maior.  Em todos os setores da economia, a vida foi retomada assim que os relógios badalaram as primeiras horas do dia da reforma.  Apenas uma testemunha ocular pode oferecer um relato acurado do súbito efeito que a reforma monetária teve sobre o tamanho dos estoques e sobre a variedade e riqueza dos bens à mostra.  As lojas se encheram de bens da noite para o dia; as fábricas voltaram a trabalhar a toda.  Na véspera da reforma monetária, os alemães perambulavam sem rumo pelas cidades à procura de alguns itens comestíveis adicionais.  Um dia depois, eles não pensavam em mais nada a não ser em produzi-los.  Num dia, a apatia era nítida em suas faces; no outro, toda a nação olhava esperançosa para o futuro.[10]
Como o próprio Erhard viria a observar este fenômeno: "Antes da reforma monetária, nossa economia era como um campo de prisioneiros de guerra; os reclusos eram mantidos vivos em parte pelos Aliados.... Imediatamente após a reforma, as cercas, barreiras e muralhas desabaram com estonteante velocidade tão logo o campo de prisioneiros ganhou uma nova e confiável moeda".[11]
Os resultados rapidamente comprovaram a sagacidade de ambas as reformas, a monetária e a de liberação geral dos preços e salários.  A tabela a seguir, por exemplo, mostra que, entre junho e dezembro de 1948, houve um aumento de 53% da produção naquelas áreas contempladas pelas reformas:
Índice de Produção (1936 = 100)[12]
Abril
53
Setembro
70
Maio
47
Outubro
74
Junho
51
Novembro
75
Julho
61
Dezembro
78
Agosto
65


Já em 1949, o índice de produção encerrou em 143% daquele de 1948.  Ao longo das duas décadas seguintes, a Alemanha continuou a ter uma das maiores taxas de crescimento do mundo.
Economia keynesiana
É óbvio que, perante estes resultados, vários economistas rapidamente se apressaram em querer atribuir os créditos do sucesso às suas ideologias favoritas.  Aqueles que não queriam dar nenhum crédito às políticas de livre mercado de Erhard prontamente começaram a oferecer suas próprias explicações para a fenomenal recuperação da Alemanha.  Uma explicação que se tornou bastante popular foi a de que a Alemanha utilizou princípios keynesianos em sua recuperação.[13]  Essa proposição já foi completamente demolida em outras obras,[14] mas continua sendo difundida porque economistas keynesianos são invejosos do fato de que nenhuma das notáveis recuperações ocorridas no pós-guerra realmente utilizou qualquer tipo de economia keynesiana.  Ao contrário: todas se basearam universalmente nos princípios do livre mercado.  Como observou o professor de Harvard, Gottfried von Haberler:
Em todos os países industriais desenvolvidos, as políticas de recuperação econômica, de estabilização e de crescimento foram muito mais bem-sucedidas após a Segunda Guerra Mundial do que após a primeira.  Porém, é difícil atribuir este fenômeno à difusão do pensamento keynesiano.  Nenhum dos economistas e nenhum dos estadistas que foram amplamente responsáveis pelos variados milagres econômicos do pós-guerra pode ser chamado de keynesiano: nem Camille Gutt na Bélgica, nem Luigi Einaudi na Itália, nem Ludwig Erhard na Alemanha, nem Reinhard Kamitz na Áustria, nem Jacques Rueff na França.  O maior milagre econômico de todos, o japonês, parece ter sido realizado sob governantes e estadistas japoneses bastantes conservadores, com o auxílio de conselheiros americanos ultraconservadores.  Aos numerosos keynesianos e marxo-keynesianos restou apenas observar o fenômeno, em impotente oposição.[15]
O que podemos concluir do episódio alemão? 
Primeiro, é necessário entender que qualquer interferência realizada por burocratas e planejadores estatais sobre o sistema de preços irá inevitavelmente distorcer o sistema de produção, gerando um arranjo menos satisfatório do que aquele que existiria caso não houvesse nenhum interferência. 
Segundo, não há na história econômica nenhum exemplo mais pungente de uma "política de pleno emprego" que tenha funcionado melhor que a alemã — não houve nenhum planejamento federal, não houve política industrial, não houve modelos computadorizados para a economia, não havia um exército de burocratas dando palpites e ditando ordens, não houve inflação monetária com intuito de 'estimular a economia', e não houve políticas keynesianas.  Foi justamente a ausência de todos estes componentes que infestam as economias intervencionistas atuais o que tornou possível o renascimento econômico alemão. 
Terceiro, o episódio alemão demonstra que uma deflação monetária, desde que ocorra em um ambiente com total liberdade de preços e salários, pode ser algo economicamente benéfico, sem necessariamente criar uma depressão — pelo menos no caso de uma economia que havia sido praticamente destruída pela imposição de controles de preços e salários.  A deflação restaurou a fé na nova moeda, uma vez que ela foi acompanhada da volta dos preços flexíveis e da abolição de todos os controles sobre a economia.  O processo de trocas indiretas intermediadas pelo uso do dinheiro pôde avançar firmemente, pondo um fim à economia baseada no escambo, à sua inerentemente baixa divisão do trabalho e aos seus mercados extremamente limitados e manietados.
As reformas de livre mercado de Ludwig Erhard restauraram a liberdade dos mercados na Alemanha e, com isso, libertaram as inexoráveis leis da ação humana.  Foi a livre concorrência baseada na propriedade privada o que deu novas esperanças e permitiu o surgimento de um fenômeno econômico que surpreendeu o mundo e se tornou conhecido como "o milagre da recuperação alemã".
Infelizmente, Erhard tinha uma vantagem política que o mundo atual não mais usufrui.  Ele teve a liberdade de abolir os controles que haviam sido impostos pelos Aliados; ao fazer isso, ele ganhou o apoio político da população alemã.  No entanto, os controles haviam sido criados originalmente pelos nazistas; os Aliados apenas os estenderam por mais três anos após a Alemanha ter se rendido.  É mais fácil abolir controles estatais criados por um exército de ocupação estrangeiro do que abolir todo um sistema de regulação que políticos nativos e eleitos democraticamente criaram em nome do "interesse público".  É politicamente muito mais difícil efetuar ações econômicas corretas e sensatas quando, nas imortais palavras de Pogo Possum, "Conhecemos o inimigo e ele somos nós".

[1] Henry L. Stimson and McGeorge Bundy, On Active Service in Peace and War (New York: Harper & Bros., 1948), 581.
[2] Ludwig Erhard, Prosperity Through Competition  (New York: Frederick A. Praeger, 1958), 10?11.
[3] Karl-Heinrich Hansmeyer und Rolf Caesar, "Kriegswirtschaft und Inflation (1936?1948)," in Währung und Wirtschaft, 418.
[4] Ver Nicholas Balabkins, Germany Under Direct Controls (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1964); Henry Hazlitt, "The German Paralysis," Newsweek (21 de abril, 1947), 82; John Davenport, "New Chance in Germany," Fortune  (Outubro de 1949), 73.
[5] Wilhelm Roepke, "Repressed Inflation," Kyklos, vol. 1 (1974), fasc. 3, 242?53.
[6] F. A. Lutz, "The German Currency Reform and the Revival of the German Economy," Economica (Maio, 1949): 122.
[7] Citado in Erhard, Prosperity, 12
[8] Volkmar Muthesius, Augenzeuge von drei Inflationen (Frankfurt am Main), 1973, 111.
[9] Erhard, Prosperity, 14
[10] Citado in Erhard, Prosperity, 13; ver também Jacques Rueff, The Age of Inflation (Chicago: Henry Regnery, Gateway Edition, 1964), 86?105
[11] Ludwig Erhard, Germany's Comeback in the World Market (New York: Macmillan, 1954), 21.
[12] Lutz, "German Currency Reform," 132.
[13] Walter Heller, "The Role of Fiscal-Monetary Policy in German Economic Recovery," American Economic Review (Maio, 1950): 533?47.
[14] Egon Sohmen, "Competition and Growth: The Lesson of West Germany," American Economic Review(Dezembro, 1959): 986?1003.
[15] Robert Lekachman, ed., Keynes' General Theory: Report of Three Decades (New York: St. Martin's Press, 1964), 295.

Hans F. Sennholz  (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos.  Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou.  Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997.  Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.

Tradução de Leandro Roque