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domingo, 30 de agosto de 2020

Cultura e barbárie no Terceiro Reich - José Cabrita Saraiva

Cultura e barbárie no Terceiro Reich

José Cabrita Saraiva
jose.c.saraiva@sol.pt

https://sol.sapo.pt/artigo/706956

Quando o Presidente Paul von Hindenburg apontou Hitler como chanceler, a 30 de janeiro de 1933, de imediato o aparelho nazi pôs em marcha um plano para imprimir os seus preceitos e valores em todas as dimensões da vida alemã. «As revoluções nunca se limitaram à esfera puramente política», defenderia Joseph Goebbels, o infame ministro da Propaganda, em novembro desse ano. «Estendem-se a todas as áreas da existência social humana. A economia e a cultura, a academia e as artes, não estão ao abrigo do seu impacto».
Não por acaso, algumas das primeiras medidas postas em prática visaram aquilo a que os nacional-socialistas chamavam ‘bolchevismo cultural’. Por um lado, porque o novo poder acreditava que estas criações transmitiam valores errados ao povo alemão, e assim inquinavam a pureza da alma germânica; por outro lado, porque era aí que se concentravam, além de judeus ou de bolchevistas propriamente ditos, muitos pacifistas, socialistas e figuras independentes, que jamais se identificariam com o novo regime.
Logo em 1933 foi levada a cabo uma «purga enorme dos artistas judeus, abstratos, semiabstratos e de esquerda, aliás, de quase todos os artistas alemães com fama internacional», escreve Richard J. Evans em O Terceiro Reich no Poder, recentemente editado em Portugal pelas Edições 70. Artistas como Oscar Kokoschka, Vassily Kandinsky ou Paul Klee, com as suas distorções e o seu compromisso com a liberdade, eram encarados como uma influência perniciosa para a sociedade.
Hitler e Goebbels tinham as suas próprias conceções acerca da vida cultural e não iam permitir que um grupo de «charlatães» e «incompetentes» – como o Führer chamava aos artistas que não lhe agradavam – comprometessem os seus objetivos. Com um misto de dura repressão e generosos incentivos, foi promovida uma estratégia concertada que atingiu os jornais, a rádio, o cinema, a música e a literatura, as artes plásticas, os museus e galerias. Na segunda parte – ‘A Mobilização do Espírito’ – deste segundo volume da sua trilogia, hoje considerada a grande obra de referência sobre o nazismo, Evans faz uma síntese magistral da vida cultural e espiritual na Alemanha no tempo de Hitler.
‘Uma guerra de limpeza implacável’
A dimensão estética do movimento nazi foi notória desde o início, com a sua aposta em símbolos impactantes, como a suástica, e os seus impressionantes desfiles noturnos à luz dos archotes. Com a chegada ao poder, esse aspeto acentuou-se e foi afinado. Heinrich Himmler, por exemplo, quando tinha sob a sua alçada toda a Polícia alemã, definiu ao pormenor como deviam ser as fardas dos guardas.
Hitler tinha especiais pretensões a esse nível. Afinal, ele próprio se dedicara à pintura durante a juventude – e há mesmo quem o veja como um artista frustrado, o que não andará longe da verdade. Depois de lhe ser recusado o ingresso na Academia de Belas Artes de Viena, sobreviveu, no limiar da miséria, como pintor de postais e de pequenos quadros de paisagens naturais ou edifícios antigos, que, embora não convençam os críticos, revelam alguém não completamente destituído de dotes.
Não será abusivo supor que o fracasso como artista lhe suscitou um inultrapassável ressentimento contra esta classe. Logo no famoso discurso do Grande Comício de Nuremberga, em setembro de 1933, «Hitler proclama que era chegada a altura de uma nova arte, de uma arte alemã», nota Richard J. Evans. Infelizmente, ao contrário da maioria dos políticos, Hitler cumpriu muitas das suas promessas, e tinha ao seu serviço uma máquina terrivelmente eficaz para as levar a cabo.
A célebre exposição de ‘arte degenerada’ (‘Entartete Kunst’), que abriu portas a 19 de julho de 1937 em Munique, foi o culminar de um processo de perseguição e difamação da arte moderna que conhecera muitos episódios anteriores. Diretores de museus e de galerias afetos ao partido nazi já haviam organizado mostras semelhantes, mas de menor dimensão e mediatismo, com títulos agressivos como ‘Câmara dos Horrores Artísticos’ ou ‘Espelhos da Decadência na Arte’.
Em Munique, as cerca de 650 obras confiscadas para o efeito foram selecionadas por diferentes motivos: umas por serem «borrões» mal executados; outras por terem sido criadas por artistas judeus; outras sob a acusação de serem pornográficas; outras ainda por atentarem contra Deus. Mas, no fundo, talvez o que mais incomodasse os responsáveis nazis fosse a forma como os artistas se estavam nas tintas para a tradição, desrespeitavam as convenções e desafiavam a autoridade. Por outras palavras, jogavam pelas suas próprias regras.
Hitler visitou a exposição antes de esta abrir ao público e emitiu uma opinião muito clara. Num discurso que teve lugar na véspera da inauguração declarou: «Travaremos uma guerra de limpeza implacável contra os últimos elementos de subversão da nossa cultura […]. No que nos diz respeito, estes pré-históricos e antediluvianos da Idade da Pedra e estes gagos da arte podem regressar às suas cavernas ancestrais para lá continuarem com os seus rabiscos».
A publicidade, ainda que negativa, teve efeitos espetaculares. «O aviso de que as crianças e adolescentes não podiam entrar porque as obras eram demasiado chocantes acrescentou um elemento de excitação que atraiu o público», nota Evans. A exposição de arte degenerada saldou-se por um sucesso estrondoso, com mais de dois milhões de visitantes em Munique e perto de três milhões quando a digressão que se seguiu chegou ao fim.
Uns queriam ver a ‘arte proibida’ porque a apreciavam e sabiam que tão cedo não teriam outra oportunidade para ver reunidas obras de mestres como Paul Klee, Henri Matisse ou Pablo Picasso; outros queriam apenas mostrar o seu desprezo pelos subversivos. Alguns chegaram a enviar telegramas para o Ministério da Propaganda a mostrar a sua indignação. Evans transcreve um desses comentários: «Os pintores deviam ter sido amarrados ao lado dos seus quadros para que todos os alemães lhes cuspissem na cara». Qualquer semelhança com a Revolução Cultural chinesa, que ocorreria três décadas depois, não será mera coincidência.
‘Vocês estão todos malucos’
Paralelamente à dos artistas proscritos, foi organizada uma outra exposição, para mostrar aqueles que mereciam ser apreciados. O título dizia tudo – Grande Exposição de Arte Alemã. Com pinturas e esculturas que veiculavam os valores ortodoxos defendidos pelo Estado, era o equivalente do que representava o Salon de Paris na França dos séculos XVII, XVIII e XIX.
Alguns artistas eram generosamente recompensados, como Arno Breker, o escultor favorito de Hitler, autor das duas enormes estátuas que ladeavam a entrada da chancelaria, e de monumentos espalhados por todo o território alemão. Outros viam as suas obras serem confiscadas, ridicularizadas ou mesmo queimadas em grandes piras que faziam lembrar as queimas de livros.
Mas a grande paixão de Hitler, que realmente o arrebatava, era a arquitetura. Talvez mais ainda do que um pintor frustrado, o Führer seria um arquiteto frustrado, como aliás confidenciou a Albert Speer, o arquiteto com quem passava horas e horas a discutir os seus planos megalómanos para Berlim – tão ambiciosos, de resto, que a transformariam numa nova cidade, Germania. «Todas as grandes eras encontram a expressão conclusiva dos seus valores nos seus edifícios», defendia.
«Em Munique, foram lançados os alicerces de uma gigantesca estação de comboios central destinada a ser a maior estrutura de aço do mundo, com uma cúpula mais alta do que os campanários gémeos do marco arquitetónico da cidade, a Frauenkirche», escreve Evans. «Outras cidades também seriam transformadas em enormes afirmações pétreas do poder e da permanência do Terceiro Reich. Hamburgo seria ornamentada com um arranha-céus – a nova sede regional do Partido Nazi – mais alto do que o Empire State Building em Nova York e encimado por uma enorme suástica de néon que serviria de farol para a navegação». A nova chancelaria tinha uma galeria que Hitler dizia com orgulho ter o dobro do comprimento da Sala dos Espelhos, em Versalhes. Por essas e por outras, quando Speer mostrou os novos projetos ao seu pai, este comentou: «Vocês estão todos malucos». Possivelmente não sabia como estava perto da verdade.
‘Algo positivamente inumano’
Para levar a cabo os planos do seu líder – que previa que as obras tivessem mudado a face de Berlim já na década de 50 – a Alemanha precisava de recursos que o seu território não poderia fornecer. Os sonhos megalómanos de Hitler acicataram a sede de conquistas do Terceiro Reich, mergulhando a Europa numa explosão de violência e destruição. A energia libertada pela eleição de Hitler acabaria por revelar-se fatídica a vários níveis.
No final do conflito, em 1945, a Alemanha ver-se-ia reduzida a escombros. Em cidades como Dresden ou Colónia pérolas da arquitetura do passado foram obliteradas pelos bombardeamentos dos Aliados. E os grandes edifícios públicos de Berlim não tiveram melhor sorte. As esculturas colossais de Arno Breker, que deviam transmitir virtudes viris de força, coragem e combatividade, acabaram derrubadas com facilidade. A arquitetura sólida da chancelaria nada poderia contra o poder do Exército Vermelho. Os projetos de Speer para a capital Germania, como a sua torre mais alta que o Empire State Building, não passariam nunca de um devaneio destinado a sobreviver apenas na escala miniatural de maquetes. E, ironia maior, acabariam por ser os soviéticos a ajudar a reconstruir muitos edifícios históricos transformados pelo excesso de ambição de Hitler em ruínas fumegantes.
No final, as políticas nacional-socialistas para a cultura não apenas tinham afunilado e mutilado a vida espiritual da Alemanha, como aquilo que pretendiam ser uma arte mais pura, edificante e elevada se desmoronou com estrondo.
Mas o Terceiro Reich, que tanta importância atribuía à dimensão estética, revelaria uma face ainda mais horrenda: a dos campos de concentração, onde milhões de seres humanos foram progressivamente explorados até se tornarem pouco mais do que almas penadas de pele e osso, e na maior parte dos casos literalmente reduzidos a cinzas nos crematórios.
Ainda hoje é estranho como estas imagens de puro horror não se tornaram insuportáveis para a sensibilidade de Hitler, o arquiteto frustrado que se dedicara à pintura na juventude; de Goering, que gostava de se rodear de belos objetos confiscados no seu pavilhão de caça; de Goebbels, que ficava chocado com a arte degenerada mas não com o sofrimento alheio; e de Heinrich Himmler, o arquiteto da Solução Final, que tivera uma educação esmerada da classe média culta.
William Shirer, um correspondente norte-americano (e autor do clássico The Rise and Fall of the Third Reich) que presenciou o Grande Comício de Nuremberga em 1934, a que assistiram 700 mil apoiantes, ficou «um pouco chocado com os rostos em especial das mulheres olhavam para ele como se fosse um messias, com as caras transformadas em algo positivamente inumano». No fundo, assim haveria de revelar-se o verdadeiro rosto do Terceiro Reich quando lhe caiu a máscara: distorcido, chocante e inumano.