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domingo, 24 de abril de 2022

Pontes de Miranda: mirandianas, por Marcos Vasncelos Filho

 Pontes de Miranda: uma recordação e três teses nos seus 130 anos [*] 

por Marcos Vasconcelos Filho 

22/04/2022

 

(I) Janeiro, 2008. Rio. Estada. Pesquisa. Ipanema. Prudente de Moraes, 1.356. No chalé suíço, de perto dum século, moldado em pedra, sob inspiração eclética, espólio de desacordos entre as filhas dos dois consórcios do mestre Pontes de Miranda (1892-1979), conheço sua viúva, a embaixatriz Amneris Cardilli. 

 

Sentada, a consciência já se lhe ausentara. Acompanha-a, naquele aposento, seu filho Sílvio de Piro. É ele, auxiliado por uma bengala, por conta de uma neoplasia, quem nos ciceroneia por corredores sombrios e empoeirados. Nos fundos da residência, mostra-me o fichário de seu notável padrasto, ademais de pastas coloridas; leio haicais inéditos; noutras pilhas se depositam projetos — um deles, nunca mais se me desgrudou da memória: os rascunhos dos planos com fito à ampliação do »Tratado de direito privado« e um extenso sumário, quase uma régua, a um »Tratado de direito penal«. (Pontes acreditava viver 200 anos?). 

 

Ao depois, à principal biblioteca do anfitrião morto, o enteado me pasma: »amanhã, venha e escolha o que quiser«. »O quê?«, espanto-me no automático: »Eu vou levar é agora!« Porém, logo me restabeleço: pondero não ser leal privar outros curiosos daquelas fontes; seria preferível se destinassem menos ao doméstico, sim ao institucional. Só por fraqueza, confesso, traria comigo na bagagem umas duas peças. Uma: encadernação anotada de »Introducção á sociologia geral« (1926) — dentro dela, sem ciência prévia, descobriria folhas soltas manuscritas e datiloscritas, com anotações pessoais de Pontes, nas quais ele cita, entre outros gênios, Spinoza e Einstein. 

 

(II) Do jurisconsulto alagoano, é possível alguém tenha ouvido falar no título »Methodo de analyse socio-psychologica«. Há pequenas transcrições e referências suas em outras obras, dizendo-se-lhe rodada pelo famoso editor carioca Pimenta de Mello, no ano de 1925. Ou, no máximo, um resumo de conferência pronunciada em maio de 28, estampada por jornais brasileiros. 

 

Desconheço quem lhe consultara cópia sequer. Verdadeiro enigma, chegou-se a afirmar, até, do Kremlin um exemplar seu desaparecera. 

 

Ora, todo autor costuma criar em derredor de si uma aura de ficção. Suave mitomania. Ouso, por aí, suspeitar: o livro jamais fora impresso. Prove-se: numa entrevista a San Tiago Dantas (1911-64), inserida na revista »Novidades literárias« (1930), o nosso conterrâneo participa: »Pretendo publicar durante o ano próximo trabalhos em conclusão. [...] o ›Método de Análise Sócio-psicológico‹ [sic], ›Sociologia Estética‹ e ›Espaciologia Social‹, já prontos há três anos, só em 1932 aparecerão«.         

 

»Methodo« se irmana a »Systema de sciencia positiva do direito« (1922), »Introducção á politica scientifica« (1924) e »Introducção á sociologia geral« (1926). Esta tetralogia apresenta um dos conceitos-chave do »corpus pontemirandianum«: os processos sociais de adaptação, mecanismos de controle de nossas condutas a fim de que consigamos coexistir junto a nossos semelhantes e administrar os bens do viver. São eles: religião, ciência, economia, direito, política, arte e moral. Todavia (consoante veremos), apenas o direito é uma convenção impositiva. 

 

Curiosidade congruente: dos maiores sociólogos da história das ideias, diplomado em direito, Niklas Luhmann (1927-98) principiou também a elaborar (a contar do final dos anos 60) um escrito a cada sistema social e concebeu o jurídico um subsistema de engrenagens autônomas, a se comunicar com os demais subsistemas. Por isso denominei Pontes de Miranda »o nosso Luhmann«, pelas ambição e sincronicidade das teorias, malgrado de períodos e línguas distintos. 

  

Tanto um quanto outro dialogam com as vertentes dos positivismos —pensadores tal qual Auguste Comte (1798-1857). Este influi em Pontes, inclusive, na intitulação de seus produtos capitais do intelecto: »Système de politique positive« (1851-4). 

 

Outra sugestão. Pontes de Miranda beberia no estilo do sociólogo francês por quem nutria, de sorte confessa, bastante admiração: Émile Durkheim (1858-1917), o discípulo-mor comtiano. Da apreciação de »Les Règles de la méthode sociologique« (1895) sente-se a dívida literária. 

 

(III) Dês os tempos de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Recife (1907-11) Pontes de Miranda alimentava o vago afã de um teorema. Embora desde muito moço aspirasse a estudar ciências exatas em Oxford, o legado pontemirandiano não se prende ao universo da matemática em sentido estrito, contudo derivado, a partir duma metodologia de saber lógico como instrumento dedutivo-analítico para as suas categorias — dentre elas, o »quantum« despótico, os círculos sociais, os espaços socialmente entendidos. 

 

Longe de haver uma ruptura epistemológica entre o jovem intelectual dos anos 1910 aos 1950 e o maduro investigador das ciências sociais aplicadas daí em diante, além dos citados trabalhos, de »O problema fundamental do conhecimento« (1937) ao seu predileto »Tratado das ações« (1970-8) assevera-se a colaboração do logicista através das noções nodais de »jecto« em filosofia científica e da classificação quinária em processualismo. 

 

Emendo uma subtese exemplificadora: quem se der ao labor da leitura dos tomos 7 ao 9 do »Tratadão« nas suas seis dezenas de blocos, de maneira a cotejá-las com publicações anteriores, concluirá por uma autocoletânea da trilogia »Tratado de direito de família« (1947; por sua vez, surgida unitária em 17). Particularidade idêntica haveremos de flagrar em outros microssistemas dos direitos civil, comercial e do trabalho — afluentes de elaborações publicizadas entre as décadas de dez a trinta do século passado. 

 

Pois bem: a coluna vertebral do »Tratado de direito privado« é o fato jurídico, o qual se fundamenta ao longo da Parte Geral e se materializa através da categoria da incidência (da norma jurídica). 

 

Conforme o próprio nome carrega consigo, a norma recai sobre um conjunto de fatos (suporte fático) relevantes à concepção do fato em específico juridicizado. A inferência, plena de logicidade, é, por conseguinte, a varinha mágica transformadora do que há na realidade dos fatos gerais da existência em especialmente jurídicos. Mais: é a razão de ser da obrigatoriedade do direito. Ela se acha não no senso da aplicação concreta do comando da letra, mas na obediência sem a necessária consequência sancionadora da proposta kelseniana. (Teria sido esta a justificação por que o Mestre dedicará suas melhores energias criadoras ao campo cível?). 

 

Penso, destarte, haver nascido o conceito aos poucos, notadamente após o contato com a bibliografia de Edmund Husserl (1859-1938). Não é à toa que »O problema fundamental do conhecimento« antes se designara »Investigações epistemológicas« — uma leve imitação da fenomenologia das »Investigações lógicas« (1900-1901). 

 

Pontes de Miranda propõe uma ideia chamada »jecto« — uma construção mental que abstrai o sujeito e o objeto dos fenômenos e os equaciona em uma constante. Ao mesmo tempo, entretanto, esta fusão (sub)jecto + (ob)jecto se concretiza no mundo real quando um indivíduo segue as regras morais e jurídicas da comunidade não por receios de punição do pecado, ônus pecuniário, pena punidora ou temor ao ridículo — o oposto: seu cumprimento se guia por uma motivação psicológica e coletiva. 

 

(IV) 1933. Pontes de Miranda começa a proferir uma série de palestras a trabalhadores, sobretudo do Rio de Janeiro. Interessantíssimo o noticiário da época. É então que saem do forno três dos cinco livrinhos anunciados da coleção »Os 5 direitos do homem«: subsistência, trabalho e educação. Esses »novos direitos« são hoje os sociais, econômicos e culturais da segunda dimensão dos direitos fundamentais. Constitui evidente pioneirismo doutrinário dotado de contemporaneidade, a atestar um precursor do social-liberalismo e do neoconstitucionalismo, respectivamente pelo equilíbrio mercado x Estado, regras frias x princípios compassivos, norteados pela autorrealização da pessoa humana e a universalização da efetividade de garantias.    

 

E será justo o livrão »Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos« (1945) — portanto, antecedente à Declaração Universal de 48 e debaixo ainda da ditadura estado-novista de um contraditório Vargas —, quem selará a sua progressista visão sociopolítica (diria: de alcance da quarta geração de direitos humanos). 

 

É de se imaginar, ao término, qual haveria de ser o lugar científico a ocupar Pontes de Miranda com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em outubro de 88 — oito anos e dez meses em seguida ao seu misterioso falecimento. Comentador das cartas magnas de 34, 37, 46 e 67, presumo alinhar-se-ia aos hermeneutas moderados (ou aos teóricos impuros do direito à Voegelin), sem a perda dos parâmetros formais acautelatórios ao julgador-intérprete, embasado na racionalidade fundamentadora das decisões judiciais. 

 

[*] VASCONCELOS FILHO, Marcos. Pontes de Miranda: uma recordação e três teses nos seus 130 anos. »Tribuna do Sertão«, Palmeira dos Índios, ano XXV, n. 1.221, segunda-feira, 25 abr. 2022, Opinião, Cantoneira: página de crítica e de história, p. 09.  




quinta-feira, 29 de outubro de 2020

José Guilherme Merquior, um dos maiores pensadores brasileiros: livro de Marcos Vasconcelos Filho

 Acabo de receber, e vou ler, o livro resultante da tese de doutorado do Marcos Vasconcelos Filho sobre aquele que pode ser considerado, sem desdouro para os demais, o maior pensador brasileiro, com duas peculiaridades: sua condição profissional de diplomata, meu colega, portanto, e também como sociólogo, meu duplo colega, portanto.

Eis a capa, a dedicatória, uma foto de Merquior e o sumário do livro, que ainda possui uma bibliografia exemplar, fontes e literatura secundária apetitosas, junto com a maior parte da obra do próprio Merquior.

Marcos Vasconcelos é um embaixador cultural das Alagoas, professor, ensaísta e pesquisador, já tendo sido diretor do Arquivo estadual de Alagoas. 

Os interessados no livro podem pedir diretamente ao autor.






sábado, 11 de julho de 2020

Merquior e o Legado Liberal - Marcos Vasconcelos Filho (OESP)

Obra reeditada de José Guilherme Merquior evidencia seu legado como intelectual brasileiro


»O Argumento Liberal« não é só uma prova da erudição do ensaísta, morto em 1991, mas uma defesa da liberdade

Marcos Vasconcelos Filho*, 
Especial para o Estado, 12/07/2020

Concorde-se ou não com seu ideário, José Guilherme Merquior (1941-1991) encarnou uma espécie rara para os trópicos: o neoiluminista. É o nosso Steven Pinker em sociopolítica. Tragado da existência aos 49 anos por um câncer, foi dono de uma formação das mais completas: em direito, filosofia, letras e sociologia. Diplomata de carreira, cultivou o ensaísmo como sua grande paixão e teve tempo também de editar 22 livros, inclusive »Poesia do Brasil« (1963), uma antologia publicada com o poeta Manuel Bandeira (1886-1968), da qual Merquior se orgulhava e a releu emocionadamente até o último suspiro de vida.

A editora É Realizações, detentora de seu acervo pessoal, acaba de reeditar, enriquecido de posfácios e documentos inéditos, o nono título de uma coleção: »O Argumento Liberal«. É um livro que podemos qualificar de transitório, sem ocasionar uma ruptura com a análise estética tão do gosto do crítico literário. Constitui uma tetralogia, junto de »As Idéias e as Formas« (1981), »A Natureza do Processo« (1982) e »O Elixir do Apocalipse« (1983). A fim de lançar os princípios do programa liberal-social, cujas linhas de contorno se amarrariam com »Liberalism: Old and New« (1991) – testamento intelectual merquioriano –, o volume destoa um pouco dos anteriores. Cumpre a recusa de jargões e chavões e traz novo tom a sua dicção: uma vontade engajada de dialogar com um público mais amplo.

»O Argumento Liberal«, sob a promessa de se preservar de dogmatismos partidários e esquematismos doutrinários, compõe-se de quatro seções. Essas vão de perspectivas gerais, de teor filosófico-político, a quadros nacionais e latino-americanos. Os seus 28 textos (mais da metade deles, aliás, estampados no »Estadão«) mantêm o prazer pelo recurso muitas vezes efêmero da crônica como ferramenta analítica. Ocasião, rememoração ou recensão, as matérias, curtas em sua maioria, se revelam heterogêneas, contudo não desencontradas, em que pese, logo à primeira parte do livro, a cansativa tarefa de encarar a sofisticação do longo capítulo em torno da dialética, num alerta para o seu uso ideológico em sacrifício de seu potencial heurístico.

Vico (1668-1744), Kant (1724-1804), Hegel (1770-1831), Don Pepe (1856-1929), Polanyi (1886-1964), Sraffa (1898-1983), Miguel Reale (1910-2006), Macpherson (1911-1987), Louis Dumont (1911-1998), North (1920-2015), Rawls (1921-2002), Castoriadis (1922-1997), Semprún (1922-2011), Colletti (1924-2001), Lefort (1924-2010), Ernest Gellner (1925-1995) – supervisor de Merquior na London School of Economics –, Kołakowski (1927-2009), Habermas (1929-), Robert Thomas (1938-), R. Debray (1940-), os nossos Rondon (1865-1958), Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Bornheim (1929-2002), Schwartzman (1939-) e Roberto Romano (1946-) — eis alguns dos muitos nomes, uns desconhecidos, com que, quase zonzo, o leitor topará.

Na aguda visão de Merquior, uma das bandeiras do social-liberalismo deveria ser a defesa do progresso civilizatório enquanto processo histórico em construção, aberto a possibilidades; portanto, oposto a leis, determinismos, utopias, predições futurológicas, evoluções cíclicas, pessimismos e escapismos nostálgicos.

Outra divisa é a insistente crença na objetividade (não na neutralidade) do conhecimento para se explicar os fenômenos sociais a partir de testificação rigorosa; todavia, sem exclusão dos seus efeitos factuais imprevistos e contingentes (aí está a Covid-19).

De igual maneira, o constitucionalismo nortearia a luta por justiça, com a permanente vigilância das licenciosas leituras de certas e abusivas hermenêuticas em jurisprudência – um dos sintomas do poroso pós-modernismo contracultural, época em que, dos indivíduos às instituições, desmonta-se o raciocínio lógico-formal em favor do voluntarismo irracionalista, com traumática violentação da realidade.

Além de outras reflexões em redor dos conceitos de poder, revolução, sociedade civil, social-democracia, propriedade, e da famosa insinuação de plágio cometido pela professora Marilena Chaui (1940-), quem consultar »O Argumento Liberal« não poderá desperceber o seu miolo, em que o autor teoriza as concepções de legitimidade. Essa categoria consiste na noção-base de aferência e de contemporaneidade de suas premissas. Só assim serão evitados desvirtuamentos de compreensão, pois se há uma constante na obra de Merquior é a inegociável batalha democrática em prol da liberdade; não somente fechada à sacralização neoliberal da economia de mercado e à demonização do Estado, mas voltada a todas as dimensões (psicológica, ética, histórica, política e cultural) para a autorrealização humana, neste país tão iníquo e subjugado pelo patrimonialismo, impossível de se dar ao luxo de abrir mão de qualquer dos nossos direitos sociais.

*Marcos Vasconcelos Filho é ensaísta, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), doutor em sociologia pela UFS e autor de »José Guilherme Merquior: da Estética à Política« (2020), entre outros livros