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domingo, 15 de setembro de 2024

Perguntas dificeis para Lula: todas de politica externa - Paulo Roberto de Almeida

Perguntas difíceis para Lula: todas de política externa 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Questionamentos ao chefe de Estado sobre a sua política externa.

 

Estas questões envolvem considerações de cunho estratégico-geopolítico para o futuro do Brasil: 

1) Lula considera positiva, para o Brasil, a ampliação desmesurada do Brics, de um foro antes dedicado à promoção do desenvolvimento econômico e coordenação política entre um número restrito de países emergentes para, a partir de 2023, um amplo agrupamento de candidatos selecionados basicamente por Rússia e China para reforçar um bloco identificado com a criação de uma mal definida “nova ordem global multipolar” (sic), mas que na, verdade se conforma a um projeto antiocidental, ao qual, aliás, Lula já se declarou favorável? Lula avaliou as implicações geopolíticas e de política externa desse novo formato, muito além e acima do nosso poder decisório, para o Brasil e para a sua diplomacia?

2) Por que Lula não saiu imediatamente em apoio à soberania da Guiana, ameaçada de invasão e de anexação de parte considerável de seu território do Essequibo, sendo que pelo menos uma parte dele já pertenceu legitimamente ao Brasil, tendo sido equivocadamente atribuído ao Reino Unido pelo árbitro italiano (rei Vittorio Emanuelle) e que NUNCA PERTENCEU à República da Venezuela? Lula já foi informado pelo Itamaraty sobre essa peculiaridade?

3) No passado, Lula se envolveu pessoalmente e diretamente em diferentes pleitos no continente sul-americano, mas invariavelmente em favor de seus amigos esquerdistas. Agora que a fraude deliberada da ditadura chavista na Venezuela requer seu posicionamento mais firme em defesa da democracia no país vizinho, sua atitude timorata não o qualifica como líder político relevante na região. Lula não pretende ser mais incisivo no impasse?

4) Bolsonaro inaugurou uma política de “solidariedade” à Rússia de Putin, por razões basicamente eleitoreiras: compra de fertilizantes e de combustíveis mais baratos. Mas Lula recrudesceu nesse apoio objetivo ao país agressor, não só aumentando enormemente essas importações — quando poderia ter escolhido outros fornecedores, para demonstrar uma real neutralidade —, mas também se posicionando claramente a favor das teses russas na guerra de agressão contra a Ucrânia. O Itamaraty explicou a Lula as obrigações ao Brasil decorrentes dos artigos da Carta da ONU? Lula pretende continuar ignorando o Direito Internacional?

5) Lula considera que uma adesão do Brasil à OCDE seria prejudicial ao desenvolvimento brasileiro? Não lhe foi explicado que os membros efetivos da OCDE dispõem de indicadores de bem estar e uma qualidade de politicas setoriais muito superiores aos demais países não membro, em condições plenamente democráticas? Por que Lula é contrário? É a velha mania estatizante mais uma vez?

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4735, 15 setembro 2024, 2 p.

Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/09/perguntas-dificeis-para-lula-todas-de.html).

 

 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O ano de 2023 na politica externa e na diplomacia: discurso do chanceler na CREDN-CD

 Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social 

Nota nº 601

13 de dezembro de 2023 

Discurso do Ministro Mauro Vieira na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados (CREDN) 

Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, Deputado Paulo Alexandre Barbosa,

Excelentíssimas Senhoras Deputadas,

Excelentíssimos Senhores Deputados,

Senhoras e Senhores, 

É uma satisfação retornar a esta Comissão e a esta Casa.

Esta é a quarta vez neste ano que tenho o prazer de me dirigir diretamente aos membros do Legislativo nacional, contando minha última participação nesta Comissão, em maio passado, e as duas vezes em que estive na Comissão de Relações Exteriores do Senado, também em maio e depois em outubro.

Gostaria, inclusive, de ter estado nesta Comissão em outubro, o que não foi possível por dificuldades de agenda.

Por outro lado, essa minha vinda um pouco mais tardia me dá a oportunidade de apresentar um quadro mais amplo e consolidado do conflito israelo-palestino, das posições assumidas pelo Brasil, das ações empreendidas pelo Governo em diversos temas da nossa política externa, inclusive durante nossa presidência rotativa no Conselho de Segurança da ONU no último mês de outubro.

Estar aqui neste momento também me dá a oportunidade de fazer um balanço geral da política externa do Governo brasileiro encaminhada pelo Presidente Lula neste primeiro ano de governo.

 

Caros deputados,

É lamentável que o conflito entre Israel e Palestina, que se arrasta há mais de sete décadas, tenha voltado ao topo da agenda internacional da forma como ocorreu, com grau inédito de violência, destruição e mortes, colocando em risco a estabilidade regional e global.

Já na primeira hora, o Governo brasileiro, a começar pelo Presidente da República, manifestou o repúdio e a condenação aos atos terroristas realizados pelo Hamas em 7 de outubro contra a população civil em Israel, a partir da Faixa de Gaza, com grande número de mortos e feridos.

Na ocasião, transmitimos oficialmente, tanto por nota do Itamaraty, quanto por meio de telefonema do Presidente Lula ao Presidente de Israel, Isaac Herzog, bem como por telefonema meu ao chanceler de Israel, Eli Cohen, nossas condolências aos familiares das vítimas e nossa solidariedade ao povo de Israel.

Manifestamos, também, por nota do Itamaraty e por contatos pessoais diretos, nossas condolências e solidariedade aos familiares dos nacionais brasileiros Ranani Glazer, Bruna Valeanu e Karla Stelzer Mendes, que foram vítimas fatais desses atos terroristas quando participavam de festival de música eletrônica no território de Israel. Estendemos também condolências aos familiares de três filhos de brasileiros, igualmente vitimados: Gabriel Yishay Barel, Tchelet Zaarur e Noam Rotemberg. Quero aqui renovar nossas condolências e sublinhar que a Embaixada do Brasil em Tel Aviv segue à disposição para ajudar no que for necessário.

Nada, absolutamente nada justifica o recurso à violência, sobretudo contra civis. Foi por isso que, desde o primeiro momento, fizemos um chamamento a todas as partes para que exercessem a máxima contenção a fim de evitar uma escalada da situação. Defendemos que o Hamas libertasse os reféns, especialmente as crianças, que foram sequestradas de suas famílias. Pedimos a Israel cessar os bombardeios para que as crianças palestinas e suas mães tivessem condições de deixar a Faixa de Gaza através da fronteira com o Egito e de receber ajuda humanitária.

Destacamos, desde o princípio, a urgência de um cessar fogo humanitário e exortamos as partes a respeitarem o Direito Humanitário Internacional. É inadmissível que a população civil da Faixa de Gaza tenha sido submetida a tamanha destruição de sua infraestrutura mais básica, desde redes de eletricidade, saneamento e esgoto até o ataque ao Hospital Batista de Gaza, que resultou na morte de mais de 500 pessoas.

Podemos dizer que pelo menos uma parte das demandas que defendíamos pôde ser atendida durante a vigência da recente trégua humanitária, quando foi libertado número significativo de reféns de Gaza e de prisioneiros palestinos em Israel (quase todos mulheres e crianças).

Infelizmente, como as senhoras e os senhores sabem, o conflito entre Israel e Palestina não é algo novo, que começou agora, nem é fato isolado, existente em um vazio de contexto. É um conflito que remonta ao fim do Império Otomano, após a Primeira Guerra Mundial, e ao término do subsequente Mandato Britânico da Palestina, logo após a Segunda Guerra Mundial, sempre com muitas disputas sobre como aqueles territórios deveriam ser compartilhados.

A Resolução 181 da ONU, aprovada na Segunda Sessão Especial da Assembleia Geral, em 29 de novembro de 1947, que estabeleceu as regras para a Partilha da Palestina, jamais foi integralmente respeitada por nenhuma das partes. Isso resultou em graves consequências para a população civil local. Já em maio de 1948, após uma guerra civil entre israelenses e árabes, foi declarada a Independência de Israel, seguida da Primeira Guerra Árabe-Israelense. Os sentimentos mútuos de revanche vêm desde então, e desaguaram em guerras como a de 1956, em Suez, a dos Seis Dias, em 1967, e a do Yom Kippur, em 1973, além das seguidas invasões, retaliações e intifadas desde então. É sintomático que esta guerra de hoje tenha ocorrido no momento do 30º aniversário dos Acordos de Paz de Oslo, de 1993, quando surgiram expectativas de uma solução pacífica que jamais foi implementada pelas partes.

Mais recentemente, a violência envolvendo a Faixa de Gaza já havia eclodido em 2006, 2009, 2011, 2014, 2018 e 2021. O bloqueio a Gaza já dura 16 anos, com sérias consequências humanitárias para a vida de seus dois milhões e trezentos mil habitantes.

Nos anos mais recentes, a dinâmica entre Israel e Palestina se tornou cada vez mais insustentável, sem avanços concretos no front político-diplomático. A ONU aponta que assentamentos ilegais israelenses aumentaram na Cisjordânia. Persistem violações ao “status quo” dos sítios sagrados de Jerusalém, com destaque para a Esplanada das Mesquitas, também conhecida como Monte do Templo, terceiro lugar mais sagrado do Islamismo, que é custodiado pelo Reino Hachemita da Jordânia.

As duras condições econômicas a que os palestinos são submetidos, especialmente em Gaza, leva à absoluta falta de perspectivas para a população, composta majoritariamente de crianças e jovens, contribuindo para o desespero e para a espiral de violência.

Por ocasião da primeira pausa humanitária, no fim de novembro último, após os 1.186 israelenses mortos no ataque de 7 de outubro e os 48 dias consecutivos de bombardeios incessantes que o seguiram, o número de vidas civis perdidas em Gaza ultrapassava naquele momento os 14 mil, sendo 70% mulheres e crianças. Agora, o número de mortos já passa de 18 mil.

Os números de deslocados internos são impressionantes, atingindo quase 1 milhão e oitocentas mil pessoas, equivalentes a 80% da população de Gaza, ou seja, 4 em cada 5 habitantes estão deslocados de suas cidades de origam. Estima-se que cerca de 41.000 casas foram destruídas totalmente ou gravemente danificadas. Dezoito hospitais foram fechados. O número de caminhões com assistência humanitária que puderam acessar a Faixa mostrou-se insuficiente para atender às necessidades básicas da população, como alimentos, água, medicamentos e combustível. A população de Gaza passou a sofrer com a fome crônica, a falta de água e com o aumento em 45 vezes da incidência de doenças sanitárias. O cenário é desolador.

 

Senhoras e senhores deputados,

Como país amigo de Israel e do Estado da Palestina, a posição e compromisso do Brasil é, como historicamente tem sido, em favor do diálogo e de negociações que conduzam a uma solução de dois Estados, com Palestina e Israel convivendo em paz e segurança, dentro de fronteiras mutuamente acordadas e internacionalmente reconhecidas.

O Brasil tem um compromisso histórico com o Estado de Israel. E temos também um compromisso histórico com a legítima aspiração nacional do povo palestino de estabelecer o seu próprio Estado.

Tivemos papel decisivo, como todos sabem, no processo que levou à criação do Estado de Israel quando, em 29 de novembro de 1947, como já mencionei, a Assembleia Geral das Nações Unidas, sob a presidência do brasileiro Oswaldo Aranha, aprovou o plano de partilha da Palestina, que previu a criação de um Estado judeu, mas também um Estado palestino, além de um regime especial para a cidade de Jerusalém.

No auge da Crise de Suez, em 1957, enviamos os primeiros capacetes azuis brasileiros em uma das primeiras missões de Força de Emergência da ONU. Eles ajudaram a garantir e supervisionar a cessação das hostilidades, incluindo a retirada de forças armadas de França, Israel e Reino Unido do território egípcio.

E quis o destino que coubesse ao Brasil a presidência rotativa do Conselho de Segurança das Nações Unidas justamente no mês de outubro último, quando eclodiu o atual conflito.

Temos orgulho de nossa posição equilibrada sobre o conflito israelo-palestino, que respeita o direito internacional, as resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas. Graças ao diálogo que retomamos desde o início do Governo com todas as partes, bem como às posições tradicionalmente equilibradas do Brasil, pudemos dar nossa contribuição como interlocutor confiável e qualificado a essa complexa questão.

E foi assim que buscamos proceder durante nossa presidência no Conselho de Segurança, visando ao exercício da contenção entre as partes e buscando ajudar a construir posições comuns no Conselho, que segue paralisado pelas disputas entre os membros permanentes há um bom tempo. O dossiê israelo-palestino é, por sinal, o tema com o maior número de vetos na história do Conselho de Segurança: mais de 40, desde 1945.

O Brasil foi instado, na qualidade de presidente do Conselho, a facilitar um texto de consenso com foco em assegurar uma pausa humanitária, que permitisse a entrada de insumos de primeira necessidade aos civis de Gaza, e a saída de estrangeiros e outros cidadãos para o Egito.

É preciso ficar claro, portanto, que o Brasil, na qualidade de presidente do Conselho de Segurança, foi instado a facilitar e articular um projeto de resolução, com base em uma série de contatos e consultas de alto nível em Nova York e nas principais capitais do mundo, em busca de um mínimo denominador comum entre interesses tão díspares.

Desde a eclosão da crise em Gaza, fui a Nova Iorque  quatro vezes, presidi sete sessões do Conselho de Segurança, e participei do Debate aberto sobre Oriente Médio no dia 29 de novembro último, sempre nesse espírito construtivo e de facilitação para a formação de consensos.

O projeto de resolução, que ajudamos a construir a partir dessa articulação com todos os demais membros do Conselho, foi posto em votação no dia 18 de outubro. Como os senhores sabem, recebeu 12 votos positivos dentre 15 possíveis – portanto foi formalmente aprovado –, apenas duas abstenções e um voto negativo de um dos membros permanentes do Conselho de Segurança, que nessa circunstância se transforma em veto.

Foi uma oportunidade perdida que postergou a ação do Conselho de Segurança em quase um mês, até que foi finalmente aprovada proposta de Malta, em 15 de novembro, já na presidência chinesa do Conselho de Segurança. A resolução, que se assemelhava àquela articulada anteriormente pelo Brasil, instou a libertação de todos os reféns e o estabelecimento de pausas humanitárias para apoio à população civil, o que finalmente vimos acontecer em 24 de novembro. A pausa era prevista para durar inicialmente por quatro dias, mas seu prazo foi estendido por duas vezes. Infelizmente, os combates recomeçaram na manhã do dia 1º de dezembro.

 

Senhoras e senhores deputados,

O Brasil construiu, ao longo de décadas, uma capacidade de diálogo e interlocução com israelenses e com palestinos. Isso é um patrimônio diplomático que transcende governos. Essa nossa postura de equilíbrio é um patrimônio do povo brasileiro, que muitas vezes serve como uma espécie de escudo protetor dos cidadãos brasileiros no exterior que se vejam repentinamente afetados por uma situação de conflito.

Desde a eclosão do conflito, o Governo trabalhou incessantemente para garantir o retorno ao Brasil, em segurança, dos nossos cidadãos que assim desejassem e que estivessem em Israel e na Palestina. Segundo os números que tínhamos naquele momento, eram cerca de 14 mil brasileiros ou binacionais residentes em Israel e cerca de 6 mil na Palestina, a grande maioria na Cisjordânia, mas alguns na Faixa de Gaza, que enfrentavam uma situação maior de risco e vulnerabilidade.

Em 7 de outubro, eu estava ainda no início de uma viagem que fazia à Ásia, em Jacarta, na Indonésia, quando determinei a convocação urgente de uma reunião, já no domingo, dia 8, com a participação da Ministra, interina, das Relações Exteriores, Embaixadora Maria Laura da Rocha, convidando o Ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, o Comandante da Aeronáutica, Tenente-Brigadeiro-do-Ar Marcelo Damasceno, e o Assessor Especial da Presidência da República, Embaixador Celso Amorim.

Essa primeira reunião permitiu a tomada de importantes decisões e resultou na criação de um gabinete de crise no Itamaraty, reunindo o Ministério da Defesa, com o objetivo de acompanhar, em tempo real, os desdobramentos do conflito tanto na seara política quanto na assistência aos brasileiros.

Esse gabinete de crise ainda está em funcionamento, produzindo informações diárias sobre o andamento do conflito, que são transmitidas ao Senhor Presidente da República, e teve papel fundamental no apoio aos nossos cidadãos naquela região, trabalhando inicialmente em regime de plantão de 24 horas, 7 dias por semana, atendendo às famílias e coordenando o processo de repatriação.

Como os senhores sabem, o Brasil foi o primeiro país a anunciar e organizar uma missão de repatriação de nacionais, sem custos para as pessoas atendidas, após a eclosão do conflito. A Operação Voltando em Paz foi executada com altíssima eficiência, graças ao trabalho conjunto do Ministério das Relações Exteriores, em especial de seus funcionários nas Embaixadas em Tel Aviv, Ramalá e Cairo, e graças ao apoio do Ministério da Defesa e ao profissionalismo da Força Aérea Brasileira, que atenderam imediatamente ao chamado do Presidente Lula de não deixar nenhum cidadão para trás. Quero agradecer, igualmente, o apoio de muitos parlamentares que entraram em contato conosco e nos ajudaram a identificar pessoas que precisavam de ajuda tanto em Israel quanto na Palestina.

Foram, ao todo, 11 voos da Força Aérea que ocorreram em ritmo quase diário, a partir de 10 de outubro, tendo oito deles partido de Israel, um da Jordânia, para retirar cidadãos que estavam na Cisjordânia e, também, um voo em novembro, partindo do Egito, para repatriar os 32 brasileiros registrados que estavam na Faixa de Gaza. Foi com grande alegria que recebemos em Brasília, na madrugada desta última segunda-feira, 11 de dezembro, o 11º voo de repatriação com mais 47 brasileiros e familiares que estavam em Gaza. No total, a Operação Voltando em Paz concluiu com êxito a repatriação de 1,524 brasileiros e familiares que estavam na região do conflito.

Como os senhores sabem, atenção especial precisou ser dedicada ao atendimento dos cidadãos brasileiros que estavam na Faixa de Gaza, em decorrência do bloqueio físico à passagem de pessoas para Israel ou para o Egito. O Escritório de Representação do Brasil em Ramalá manteve contato constante com as famílias e conseguiu, inicialmente, alojar o grupo em uma escola católica na Cidade de Gaza, até que fosse possível sua passagem para o Egito. Um ônibus foi fretado para essa missão, e ficou à disposição junto das famílias, na escola. Vale lembrar que Ramalá fica na Cisjordânia, afastada fisicamente da Faixa de Gaza, o que tornava a comunicação sempre mais difícil.

Com a determinação, por parte de Israel, de evacuação da população do norte de Gaza – onde fica a Cidade de Gaza – para o sul, esses cidadãos foram, inicialmente, transportados para a cidade de Khan Younis, e depois para Rafah, na fronteira com o Egito, até que foi possível, finalmente, inclui-los na lista de cidadãos estrangeiros autorizados a cruzar a fronteira, em 11 de novembro.

Ao longo do processo, foram encaminhadas às autoridades militares israelenses, por meio de nossa embaixada em Tel Aviv, endereços, telefones e “pins” de identificação geográfica dos locais em que se encontravam as famílias aguardando repatriação, na tentativa de evitar que fossem bombardeadas pela aviação de guerra.

Durante todo esse tempo, o Presidente Lula e eu próprio mantivemos uma série de contatos de alto nível para facilitar a repatriação dos nacionais brasileiros, criar um corredor para levar ajuda humanitária, libertar os reféns e criar espaços para a retomada do processo de solução política para o conflito.

O Presidente Lula conversou por telefone com o Presidente de Israel, com o Presidente do Egito, com o Presidente da Autoridade Palestina, com o Presidente da Turquia, com o Presidente do Irã, com o Emir do Catar e com o Primeiro Ministro da Jordânia, entre outros. Eu conversei com o Chanceler do Egito duas vezes por telefone e pessoalmente, no Cairo. Também falei com os chanceleres de Israel, Arábia Saudita, Rússia, França, Irã e Catar.

A partir desse trabalho intenso, criaram-se as condições necessárias para avançar o esforço de repatriação. Creio que, com isso, concluo aqui esse panorama sobre nossa atuação a respeito do conflito israelo-palestino. Gostaria agora de fazer um breve balanço do primeiro ano de governo no que tange à política externa.

 

Senhoras e Senhores deputados,

Como tem dito o Presidente Lula, o Brasil voltou. Isso não é mera figura de linguagem. Ao longo deste ano, tivemos mais de 200 interações mantidas pelo Presidente da República e por mim mesmo, na forma de participação em cúpulas, reuniões bilaterais, visitas realizadas e recebidas, telefonemas e videoconferências. O Brasil também se reencontrou consigo mesmo, em um movimento de resgate dos princípios fundamentais que sempre nortearam a política externa brasileira. Princípios, por sinal, consolidados na Constituição Federal.

Fundamentos como a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, o respeito à autodeterminação dos povos, a não intervenção, o reconhecimento da igualdade entre os Estados e a defesa da paz e da solução pacífica das controvérsias estão na base da política externa brasileira em seus melhores momentos. A cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e a busca pela integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina são também princípios constitucionais que o Brasil buscou em seus momentos de maior projeção internacional. São esses fundamentos, aliados à vocação universalista brasileira de diálogo com todos os parceiros, sem noções pré-concebidas, e à busca incessante pelos melhores resultados possíveis para o interesse nacional, que buscamos aplicar ao longo deste primeiro ano de governo e que seguirão informando a política externa do governo Lula nos próximos anos.

O ponto de partida, como não poderia deixar de ser, foi a integração regional. Uma das primeiras medidas formais tomadas pelo governo, logo no início de janeiro, foi a reincorporação plena e imediata do Brasil à Comunidade de Países Latino-Americanos e Caribenhos, a CELAC, que é o único mecanismo de diálogo e cooperação que inclui todos os 33 países da América Latina e do Caribe. A CELAC é um espaço privilegiado para a construção de iniciativas concretas de cooperação em áreas nas quais temos desafios comuns, como saúde, segurança, cooperação científico-tecnológica, entre tantas outras.

Em julho, o Presidente Lula participou da Cúpula CELAC-União Europeia, em Bruxelas, que além de reforçar a cooperação entre os dois grupos e servir de ocasião para diversas reuniões bilaterais, resultou em um comunicado conjunto muito positivo, reafirmando princípios como a promoção do trabalho decente e da igualdade de gênero, bem como a condenação a medidas unilaterais com efeitos extraterritoriais, ao embargo a Cuba e ao tráfico negreiro transatlântico histórico, reconhecido como um crime contra a humanidade.

Com relação à América do Sul propriamente, o Brasil anunciou o seu regresso ao Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas, a UNASUL, como forma de sinalizar nossa determinação de trabalhar com nossos vizinhos pela revalorização da América do Sul como um espaço de diálogo, paz e cooperação. Sempre fomos conscientes de que há diferentes expectativas e visões na região com relação à integração, mas mantemos também a convicção de que há denominadores comuns entre nós, a começar pelo reconhecimento da necessidade de trabalhar conjuntamente com nossos vizinhos imediatos para fazer frente aos múltiplos desafios comuns que compartilhamos.

Foi com esse espírito que o Presidente Lula convocou a Reunião de Presidentes dos Países da América do Sul, a Cúpula de Brasília, que ocorreu aqui na Capital Federal em 30 de maio. A cúpula foi muito bem-sucedida: conseguiu reunir todos os presidentes sul-americanos e o Primeiro-Ministro do Peru. A reunião serviu de plataforma para a discussão de assuntos e interesses muito concretos da região e resultou em um comunicado conjunto muito importante, denominado “Consenso de Brasília”, consolidando esse objetivo geral de revitalizar o processo de integração regional. Foi criado um grupo de contato, em nível ministerial, que eu mesmo já presidi por duas vezes, a primeira em julho, durante a Cúpula CELAC-União Europeia, realizada em Bruxelas, e a segunda vez em setembro, em Nova York, à margem da Assembleia Geral da ONU. Foi também definido um calendário de encontros regionais, como, por exemplo, a Reunião de Chanceleres e Ministros da Defesa – a chamada “reunião 12+12” –, que ocorreu aqui em Brasília, no dia 22 de novembro.

O esforço de retomada da integração regional se dá também na Amazônia. Em 8 e 9 de agosto, realizamos a Cúpula da Amazônia, em Belém do Pará, reunindo os presidentes de todos os oito países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica. Tivemos por objetivo fortalecer institucionalmente a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, a OTCA, que tem sede aqui em Brasília, e estabelecer uma nova agenda comum de cooperação regional em favor do desenvolvimento sustentável e compartilhado da Amazônia, conciliando a proteção da floresta e da bacia hidrográfica, inclusão social, o fomento à ciência, à tecnologia e à inovação, o estímulo à economia local e a valorização dos povos indígenas e dos conhecimentos ancestrais das comunidades locais. A Declaração de Belém, resultante da Cúpula, consolida essas ideias em 113 objetivos e princípios transversais.

Ao longo do ano, o Presidente Lula manteve contatos com todos os mandatários da América do Sul. Visitou a Argentina, por duas vezes, em janeiro (para a Cúpula da CELAC) e em julho (para a Cúpula do Mercosul). Ainda em janeiro, o Presidente também visitou o Uruguai. Em julho, esteve na Colômbia para uma reunião preparatória da Cúpula da Amazônia. No caso do Paraguai, o Presidente Lula reuniu-se em março, em Foz do Iguaçu, com o então presidente Mario Abdo Benítez e, em agosto, em Assunção, com o atual Presidente Santiago Peña.

Com relação à Venezuela, reabrimos nossa embaixada em Caracas e designamos uma diplomata experiente, a embaixadora Glivânia Oliveira, para assumir a chefia da nossa representação. Isso contribui não apenas para que avancemos nossos interesses junto a um vizinho importante, como também para que possamos prestar a devida assistência consular aos cerca de 20 mil brasileiros que residem naquele país. Procederemos, por sinal, em futuro próximo, à reabertura das quatro representações consulares do Brasil que foram fechadas em 2020.

Relançamos, também, nossa relação com Cuba, país onde também temos interesses importantes, e que o Presidente Lula visitou em setembro, por ocasião da Cúpula dos Países do Grupo dos 77 e China, logo antes da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Para além dos parceiros regionais, esse ano também foi de retomada do trabalho junto a parceiros tradicionais do Norte desenvolvido, como Estados Unidos, Alemanha, França, Portugal, Espanha, União Europeia e Japão, com os quais mantemos agenda ampla de comércio, investimentos e cooperação, inclusive em setores estratégicos para o Brasil.

Ainda em janeiro, o Presidente Lula visitou os Estados Unidos. O encontro com o Presidente Joe Biden sinalizou o compromisso das duas maiores democracias do continente de voltar a trabalhar conjuntamente em uma gama de questões, como o combate ao extremismo político, o enfrentamento à mudança do clima, a luta contra a discriminação racial e a reforma da governança internacional. Em setembro, em um evento à margem da Assembleia Geral das Nações Unidas, Brasil e Estados Unidos, com a presença dos Presidentes Lula e Biden, lançaram a Parceria Global pelos Direitos dos Trabalhadores e Trabalhadoras e a Promoção do Trabalho Digno, que foi saudada pela OIT e deverá contar com a adesão de vários outros países.

O Presidente Lula visitou, ainda, Portugal e Espanha, em abril, acompanhado de importante delegação empresarial. Em maio, esteve no Reino Unido para a coroação do Rei Carlos III, quando manteve reunião com o Primeiro-Ministro Rishi Sunak. Ainda em maio, o Presidente Lula viajou ao Japão como convidado da Cúpula do G7, em Hiroshima, mantendo reuniões bilaterais com o Primeiro-Ministro do Japão e com os líderes dos demais países membros desse grupo. Recordo que, com o Japão, foi assinado um inédito acordo para isenção recíproca de vistos.

Em junho, o Presidente fez visita à Itália e à França, sendo um dos convidados de honra da Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Global, em Paris. Além disso, em julho, esteve em Bruxelas, na sede da União Europeia, para a já mencionada Cúpula CELAC-União Europeia. Na semana passada, o Presidente Lula liderou numerosa comitiva em visita à Alemanha para participar da Reunião de Consultas Intergovernamentais de Alto Nível com aquele país.

Ao longo do ano, buscamos ainda valorizar a tradição universalista e ecumênica da nossa política externa, por meio do aprofundamento e da ampliação das nossas relações com parceiros do Sul Global, na Ásia, na África e no Oriente Médio.

Como as senhoras e os senhores sabem, o Presidente Lula realizou, em abril, a bem-sucedida Visita de Estado à China, nosso principal parceiro comercial, principal destino de nossas exportações agrícolas e uma das principais fontes de investimentos estrangeiros diretos no Brasil. A visita, que contou com a participação de ampla delegação empresarial (e também parlamentar) foi marcada pela obtenção de resultados concretos, tanto políticos – como o aprofundamento da cooperação bilateral em setores estratégicos – quanto econômico-comerciais: foram assinados acordos que, juntos, somam mais de R$ 50 bilhões em investimentos.

Na mesma ocasião, o Presidente visitou também os Emirados Árabes Unidos, gerando acordos que somam mais R$ 15 bilhões em investimentos potenciais no Brasil.

Em julho, o Presidente esteve no Cabo Verde. Em agosto, visitou a África do Sul, para participar da Cúpula do BRICS. Em seguida fez visita bilateral a Angola e esteve em São Tomé e Príncipe por ocasião da Cúpula da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Agora em dezembro, o Presidente visitou a Arábia Saudita e o Catar, dirigindo-se em seguida, aos Emirados Árabes Unidos, para participar da COP28 de Mudança do Clima.      

Em todos esses compromissos, eu normalmente acompanhei o Presidente, além de participar de outras reuniões, preparatórias ou de coordenação multilateral, em nível ministerial. O ano foi, portanto, bastante intenso para a Presidência da República e para o Ministério das Relações Exteriores.

 

Senhoras e senhores deputados,

Se, por um lado, como pude comentar, o Brasil voltou para si mesmo e para o mundo, por outro também o mundo voltou para o Brasil. E isso se dá não apenas pela retomada do volume de visitas bilaterais recebidas, como também pelo número de incumbências globais e multilaterais que o Brasil voltou a assumir, em papel de grande liderança. Nosso país será, nos próximos anos, a sede de foros internacionais de alta relevância, como o G20, a COP 30 do Clima e o BRICS.

A Cúpula da Amazônia, em agosto, contou com a presença, na qualidade de convidados especiais, de parceiros extrarregionais, como Noruega e Alemanha. Também foram convidados Indonésia, República do Congo, República Democrática do Congo e São Vicente e Granadinas, países com os quais firmamos, na ocasião, o comunicado “Unidos por Nossas Florestas”. Essa é uma iniciativa, liderada pelo Brasil, que visa à preservação das florestas tropicais no mundo, à qual foram convidados a aderir outros 80 países com importantes reservas florestais.

O Brasil também teve participação destacada na COP 28, em Dubai, encerrada ontem, 12 de dezembro, e na qual se discutiu a avaliação global (“global stocktake”) de execução dos objetivos nacionais que os países definiram na COP 21, em Paris. O Brasil, além de ter cumprido a maior parte de seus compromissos, foi confirmado como sede da COP 30, em 2025, cuja Cúpula pretendemos realizar também na cidade de Belém, no Pará.

A COP de Belém será uma grande oportunidade para revitalizarmos o regime multilateral do clima; para buscarmos limitar o aumento da temperatura global em 1,5 graus celsius; e para acelerarmos nossa própria transição ecológica e energética. Será na COP 30 que os países estabelecerão os seus próximos objetivos nacionais de redução de emissões, o que atesta a relevância dessa ocasião, no Brasil.

O Brasil já iniciou sua preparação para assumir, em 2025, a presidência do BRICS, que passará a contar, a partir do ano que vem, com novos membros. Essa é uma presidência que vai demandar significativo esforço diplomático, na medida em que envolve a realização de grande número de reuniões de comissões temáticas em diferentes níveis de representação. Acreditamos que esse esforço vai produzir resultados concretos para os países membros em termos de coordenação para a reforma da governança global e em outros temas. A ampliação do grupo deverá reforçar a relevância dos BRICS no mundo, e a presidência brasileira em 2025 valorizará a nossa relevância nesse contexto.

Neste ano de 2023, além de ter exercido a presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em outubro, como já comentei, o Brasil também assumiu a liderança de diversos outros processos diplomáticos e agrupamentos de países. Acabamos de concluir, por exemplo, nossa presidência pro-tempore do Mercosul, com a Cúpula realizada no Rio de Janeiro na semana passada. Exercemos a presidência do BASIC, grupo que coordena posições em temas ambientais entre Brasil, África do Sul, Índia e China. Além disso, o Brasil assumiu, em meados do ano, a presidência do Grupo de Países Supridores Nucleares (NSG). Antes disso, já vínhamos exercendo a presidência do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, o MTCR.

Além disso, neste ano, o Brasil assumiu, até o final de 2024, a presidência do IBAS, grupo integrado por Índia, Brasil e África do Sul que promove ações de cooperação, sobretudo com países em desenvolvimento. Finalmente, mas não menos importante, assumimos, desde 1º de dezembro, a presidência do G20, que se estenderá até o final de 2024.

A presidência brasileira do G20 é um momento emblemático na retomada do protagonismo do país no cenário internacional. Pretendemos conduzir nossa presidência com foco em três temas prioritários, estabelecidos pelo Presidente Lula: o combate à fome, à pobreza e à desigualdade; a promoção do desenvolvimento sustentável em suas três dimensões: econômica, social e ambiental; e a reforma da governança global, em favor de maior representatividade dos países do Sul Global.

Ao longo do mandato brasileiro, estão previstas mais de 100 reuniões dos grupos de trabalho e forças-tarefa que compõem o G20, tanto presenciais quanto por teleconferência, em nível técnico e ministerial, em diferentes cidades nas cinco regiões do Brasil. Essas reuniões culminarão na 19ª Cúpula do G20, no Rio de Janeiro, dias 18 e 19 de novembro de 2024, reunindo os chefes de Estado e de Governo das maiores economias do planeta para discutir temas centrais para o mundo. A realização exitosa da presidência do G20 será, necessariamente, uma das prioridades da política externa brasileira ao longo dos próximos doze meses.

A preparação para essa presidência começou ainda em junho deste ano, a partir da publicação do decreto presidencial de governança do G20, atribuindo ao Ministério das Relações Exteriores a competência de coordenar a chamada “Trilha de Sherpas”. Essa é a instância do G20 responsável por organizar e facilitar as atividades de Quinze Grupos de Trabalho, envolvendo vários temas de relevância internacional, tais como meio ambiente, agricultura, tecnologia e inovação, energia, educação, saúde, empoderamento das mulheres, comércio e investimentos, entre outros.

A palavra “sherpa” inclusive, deriva da designação de uma etnia originária da região da Cordilheira dos Himalaias, notória por sua capacidade de guiar e conduzir nas trilhas locais todos aqueles que almejam alcançar o cume da mais alta das montanhas.

O decreto presidencial de governança do G20 também atribuiu ao Itamaraty a função de coordenador nacional do planejamento e da execução das medidas de organização e de logística das atividades a serem realizadas durante a presidência do G20.

Assim, desde março, o Itamaraty passou a conduzir um amplo processo de consultas interministeriais visando à preparação da presidência brasileira, que mobilizou mais de duas dezenas de ministérios e envolveu a definição das prioridades substantivas e dos resultados propostos de cada grupo de trabalho, bem como a definição dos recursos humanos e orçamentários que serão necessários à execução da missão que caberá ao país.

A presidência brasileira, que se iniciou agora em dezembro e se realizará ao longo do ano de 2024, já vem funcionando plenamente, na realidade, ao longo da maior parte deste ano de 2023. Queremos um G20 que se dedique menos a debates e discussões sobre temas variados e mais à obtenção de resultados que tenham impacto real na vida dos nossos cidadãos e de pessoas em todo o mundo.

 

Senhores deputados,

Como podem ver, a agenda da política externa para 2024, exigirá bastante do nosso contingente diplomático, em Brasília e nos postos no exterior. Ademais do intenso trabalho habitual em suas áreas, os servidores farão o seguimento das iniciativas lançadas ao longo deste ano, que incluem as atividades ligadas à presidência do G20, à preparação das cúpulas que serão sediadas no Brasil em 2025, e os mais de cem processos negociadores da COP 30, do BRICS e do Mercosul.

Quero deixar aqui registro do meu agradecimento ao corpo de funcionários do Ministério das Relações Exteriores.

Nesse quadro, as questões relativas à gestão de pessoas no Itamaraty – incluindo o ingresso, a lotação e a progressão de carreira dos servidores – revestem-se de fundamental importância para o êxito para política externa brasileira.

Além de medidas internas para buscar mitigar o déficit crônico de funcionários, aprimorar a alocação da força de trabalho do Ministério de forma mais eficiente, e promover a ampliação da diversidade no quadro de servidores, será eventualmente necessária a aprovação de uma nova Lei do Serviço Exterior, de modo a garantir o reenquadramento salarial e funcional dos diplomatas e demais servidores do Ministério, bem como o adequado fluxo de progressão da carreira.

Além disso, esse amplo conjunto de iniciativas internacionais em que o Brasil está engajado exigirá, naturalmente, recursos orçamentários adequados para financiar as presidências de turno lideradas pelo Brasil em 2024, as contribuições regulares do país aos órgãos internacionais de que participa, bem como o adequado funcionamento de nossa rede de postos no exterior.

Conto com o olhar dedicado e com o apoio desta Comissão às necessidades do Itamaraty, e agradeço pela atenção já dedicada ao longo deste ano, que nos permitiu saldar grande parte da dívida que o país mantinha junto a organismos internacionais.

 

Senhoras e senhores deputados,

Agradeço novamente pela oportunidade de apresentar a Vossas Excelências uma visão de conjunto das iniciativas brasileiras em política externa neste primeiro ano de Governo do Presidente Lula e, ao mesmo tempo, ressaltar algumas das nossas prioridades para 2024.

Fico, evidentemente, à disposição de todos para esclarecer dúvidas e, sobretudo, trocar ideias.

Muito obrigado.

 

[Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/discurso-do-ministro-mauro-vieira-na-comissao-de-relacoes-exteriores-e-de-defesa-nacional-da-camara-dos-deputados-credn

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Politica Externa: vai mudar de fato? - Creomar de Souza

 

Muda-se tudo, mas se altera algo?

Como bem cita Lampedusa em sua magistral obra ‘Il Gattopardo’, algumas vezes as coisas precisam mudar para permanecerem iguais 
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As últimas semanas foram intensas em Brasília. A troca repentina de uma série de ministros deixou muita gente perplexa. Passado o susto das águas de março que alteraram a foto do ministério Bolsonaro, é legítimo perguntar se as mudanças são reais ou apenas mais um exemplo da famosa citação do Gattopardo de Lampedusa segundo a qual para que tudo fique na mesma, é preciso que alguma coisa mude.

O caso do Itamaraty, em particular, suscita dúvidas. Afinal, a Chancelaria havia se transformado, nos últimos dois anos, em espaço privilegiado de atuação do discurso ideológico que elegeu o presidente da República. Por afinidade política ou interesse em tornar-se político, o ex-Chanceler Araújo incorporou o papel de militante a serviço de uma causa. Neste processo, nitidamente, a política externa foi colocada a serviço da mobilização de setores mais extremos do bolsonarismo. 

Esse movimento, que teve sua serventia político-eleitoral, nunca redundou em um avanço real de temas importantes para o desenvolvimento nacional. Ao contrário, acarretou prejuízos evidentes no momento em que o país mais precisava de canais diplomáticos azeitados com parceiros e organismos internacionais. Não por acaso, o capítulo final do Embaixador Araújo foi marcado por um confronto desnecessário com o Senado Federal e uma carta de demissão construída às pressas diante de um cenário de descarte concreto. 

Posse do novo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Carlos Alberto Franco França. Foto: Gustavo Magalhães/MRE/Fotos Públicas
Posse do novo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Carlos Alberto Franco França. Foto: Gustavo Magalhães/MRE/Fotos Públicas

O novo ministro, Carlos França, assume com essa carga negativa, sucedendo um Chanceler que procurou implementar uma ruptura com as tradições do Itamaraty. O discurso de posse do novo Chanceler, por contraste com seu antecessor, foi como uma lufada de ar fresco, uma sinalização à normalidade, à ponderação e ao pragmatismo. Teria sido um discurso apenas correto em tempos normais, mas diante da comparação com o que se via no Itamaraty, assumiu ares de grande peça retórica. Foi possível ouvir de longe uma grande suspiro coletivo de alívio dos diplomatas de carreira.

De fato, em seu discurso de posse, França enfileirou conceitos que evocam a melhor tradição do Ministério.  Ao falar da importância do multilateralismo, da necessidade de construir pontes com o mundo e do uso da diplomacia como elemento de solução de controvérsias, gerou uma sensação de normalidade que permite relação direta com a substituição de Pazuello por Queiroga na Saúde. 

O discurso, por mais que tenha sido bem recebido, não foi suficiente para superar certa desconfiança em quem conhece como funciona Brasília e, em particular, como a política externa esteve sob uma tutela de núcleo bolsonarista desde o início do governo. E neste ponto há um elemento importante a ser lembrado: “na relação entre um ministro e o presidente, só um dos dois é demissível, e não é o presidente”. Este axioma serve para lembrar que muito da lealdade do antecessor de França deveu-se à percepção de que era uma peça de fácil substituição na engrenagem política do Palácio do Planalto. 

Esta percepção, obviamente, levou a um processo de sinergia e alguma submissão intelectual aos desígnios da família presidencial em termos de concepção de mundo. Ciente deste processo e do destino do seu antecessor, tal como um faquir, França tem o desafio cotidiano de não ser espetado pela cama em que decidiu deitar-se. E neste verdadeiro malabarismo que é ser ministro no Brasil de 2021, o ministro deverá pesar constantemente eventuais ajustes em nome dos interesses do país e os limites do que seria aceitável pelo próprio presidente e seus conselheiros em política externa, o próprio filho e deputado Eduardo e o assessor palaciano Filipe Martins, que segue no cargo. 

Se prevalecer a tutela palaciana, as ideias vertidas por França em seu discurso de posse não passarão de palavras ao vento e nossa diplomacia adentrará o terreno descrito por Lampedusa. A mudança não passará de uma pantomima, um teatrinho para ganhar tempo com uma aparência momentânea de normalidade. É preciso que o bom discurso do Ministro se traduza em posições concretas e ações palpáveis, de modo que  nossa diplomacia, despida da ideologia excêntrica que lhe corroeu a alma, possa contribuir efetivamente para o enfrentamento das urgências em matéria de saúde, segurança e prosperidade.


domingo, 11 de novembro de 2018

Como será a política externa do governo Bolsonaro - Fernando Martins (Gazeta do Povo)

Como será a política externa do governo Bolsonaro 

Fernando Martins

Gazeta do Povo, 11/11/2018

Esvaziamento do Mercosul e de outros blocos “ideológicos” de nações do qual os brasileiros fazem parte dos planos de Jair Bolsonaro para a política externa. | Mauro Pimentel/AFP
Pressão intensa e até mesmo guerra, se for necessário, para derrubar a ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela. Rompimento de relações diplomáticas com Cuba. Forte alinhamento com os Estados Unidos e outros países comandados por conservadores, como Israel e Itália. Extradição de Cesare Battisti. Briga com a China para que ela não “compre o Brasil, mas compre no Brasil”. Esvaziamento do Mercosul e de outros blocos “ideológicos” de nações do qual os brasileiros fazem parte. Mudança da Argentina pelo Chile como parceiro preferencial na América do Sul. Abertura comercial ampla.
Durante a campanha eleitoral e até mesmos nos primeiros dias pós-eleições, o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) e seus aliados deram a entender que o Brasil dará uma profunda guinada em sua política externa a partir de 2019. Especialistas em relações internacionais dizem que ainda é cedo para saber exatamente como será a diplomacia brasileira sob o comando de Bolsonaro. Mas eles acreditam que uma mudança muito profunda dificilmente vai acontecer. A possibilidade de o país dar um cavalo de pau na cena mundial tende a ser freada pelo risco de haver prejuízo para os interesses nacionais. 
Ou seja, a realidade da geopolítica vai se impor sobre o discurso do presidente eleito. “O Brasil não são os Estados Unidos e o Bolsonaro não é o Trump”, explica Giorgio Romano, professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). A nação norte-americana é uma superpotência militar e econômica com instrumentos para impor suas vontades – algo que não está disponível ao Brasil.
Bolsonaro, aliás, parece já ter tomado um choque de realidade ao anunciar que escolherá um profissional do ramo para o Itamaraty. O futuro ministro das Relações Exteriores será um diplomata de carreira .
Giorgio Romano lembra ainda que Bolsonaro, na campanha, buscou se contrapor à política externa do PT. Mas o governo de Michel Temer (MDB) já havia promovido mudanças em relação à diplomacia das gestões petistas, adotando uma visão mais pragmática. Com Temer na Presidência, o Brasil se distanciou da Venezuela, aproximou-se dos Estados Unidos e promoveu uma abertura ao capital externo – caso da permissão para que empresas estrangeiras explorem o pré-sal sem estarem subordinadas à Petrobras. A aproximação com países do Pacífico, como o Chile, tampouco é exatamente uma novidade na agenda brasileira.
O professor da UFABC aposta que Bolsonaro tende a manter as linhas gerais das relações exteriores do governo atual. Mas, para ele, haverá mudança no estilo da diplomacia presidencial: “A diferença entre o Temer e o Bolsonaro é que o Bolsonaro vai cacarejar antes de colocar o ovo”. Ou seja, o presidente eleito tende a ser mais “falastrão” que o antecessor.
Além de falar mais, o país também tende a ser mais falado no mundo. Para o professor de relações internacionais Argemiro Procópio, da Universidade de Brasília (UnB), o alinhamento do governo Bolsonaro com os Estados Unidos, se efetivamente ocorrer, vai dar mais visibilidade internacional ao Brasil, o que não necessariamente será bom. “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim”, resume Procópio.

Especialista diz que país precisa recuperar imagem desgastada

Contudo, Alberto Pfeifer, coordenador do grupo de análise da conjuntura internacional da Universidade de São Paulo (USP), acredita que o Brasil teria de caminhar justamente na direção de ser “bem falado” no mundo. Segundo ele, a imagem internacional do país está muito desgastada devido aos escândalos de corrupção, ao impeachment de Dilma Rousseff (visto por parte da opinião pública internacional como um “golpe”), à prisão de Lula (interpretada como injusta pela mesma parte da opinião pública externa) e pela própria imagem de Bolsonaro, mostrado no exterior como autoritário, machista, homofóbico, fascista.
Pfeifer aposta ainda que a política externa do governo Bolsonaro vai estar sujeita à agenda econômica: será mais um instrumento para promover o crescimento. E isso tende a ser feito por meio da abertura comercial.
Mas a política de livre comércio internacional também pode esbarrar nas circunstâncias internas. “Bolsonaro vai ter de superar a resistência da Fiesp [a Federação da Indústria do Estado de São Paulo]”, diz Giorgio Romano, professor de relações internacionais da UFABC. Ele alerta que uma abertura comercial unilateral traz o risco de quebrar o que sobrou da indústria brasileira – daí a possível resistência da Fiesp, a principal organização industrial do país.

Venezuela: guerra de palavras não deve virar guerra de fato

O caso da Venezuela é emblemático para mostrar como o discurso de campanha de Bolsonaro pode ser bem diferente do que vai acontecer na prática. 
A ditadura bolivariana de Nicolás Maduro foi usada na propaganda eleitoral de Bolsonaro como exemplo do que o Brasil se transformaria se o PT vencesse a disputa. A retórica pesada, associada a outros fatores, leva muita gente a acreditar que o presidente eleito pode até mesmo declarar guerra se for necessário para tirar Maduro do poder.
Filho do presidente eleito, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), pouco antes do primeiro turno, em uma manifestação a favor de seu pai, em 30 de setembro, sugeriu que o Brasil invadisse a Venezuela para depor a ditadura bolivariana. “O general [Hamilton] Mourão [vice de Bolsonaro] já falou: a próxima operação de paz do Brasil será na Venezuela. O melhor para a crise imigratória que nós vivemos é a saída de Maduro do poder”, disse. 
Não era bem o que Mourão havia dito. Ele apenas havia afirmado que, se a ONU decidisse realizar uma operação de paz na Venezuela, o Brasil poderia participar – descartando a invasão militar pura e simples. O próprio Bolsonaro, pouco antes do segundo turno, disse não querer guerrear com a Venezuela. Ainda assim, o discurso do filho do então candidato serviu para inflamar os eleitores antipetistas. 
A declaração juntou-se a outros fatores que alimentaram a ideia de que, com Bolsonaro no Planalto, haverá a possibilidade de o Brasil compor uma coalização internacional para depor Maduro. Trump – a quem Bolsonaro admira e tenta se aproximar – afirmou publicamente em agosto de 2017 que cogitava a “opção militar” para lidar com o caso venezuelano. O presidente americano também teria conversado com os atuais presidentes do Brasil e da Colômbia sobre o assunto – o que foi negado pelo Planalto.
No dia 29 de outubro, logo após o segundo turno, a Folha de S.Paulo publicou reportagem em que afirma que fontes do governo colombiano diziam que o país estaria disposto a apoiar uma intervenção militar na Venezuela encabeçada pelo Brasil. A Colômbia negou a informação. E um dos principais braços-direitos de Bolsonaro, o general Augusto Heleno, também. “Isso contraria os princípios das nossas relações exteriores. Nós temos como preceito fundamental a não ingerência (...) em assuntos internos de outros países”, disse Heleno.

“O Brasil não vai cometer o suicídio de se meter numa brincadeira armada na Venezuela”

Rumor ou não, o fato é que uma guerra com os venezuelanos seria muito custosa ao país, o que tende a esfriar qualquer ânimo nesse sentido. “O Brasil não vai cometer o suicídio de se meter numa brincadeira armada na Venezuela”, diz Argemiro Procópio. “Eles podem não ter comida nos supermercados; mas têm muita bala”, complementa o professor, lembrando que a Venezuela dispõe de Forças Armadas bem aparelhadas, com equipamentos modernos comprados da Rússia, China e Europa.
Procópio afirma que há outras condições limitantes para uma ação brasileira mais radical em relação à Venezuela. O estado de Roraima não está interligado ao sistema elétrico brasileiro e depende de energia venezuelana. E há grandes empresas brasileiras com negócios no país vizinho, que seriam prejudicados num rompimento radical de relações. “O pragmatismo tende a falar mais alto”, diz.
Isso não significa, contudo, que o governo Bolsonaro não terá uma atitude diplomática dura em relação à Venezuela. Até mesmo porque o Brasil vem sendo afetado diretamente pela crise humanitária na nação vizinha, recebendo grandes levas de refugiados. Isso traz uma série de problemas como segurança, custos de acomodação, deslocamento, saúde.
“O presidente eleito provavelmente apoiará sanções e medidas mais rigorosas para conter o fluxo de refugiados venezuelanos para o Brasil”, escreveu o analista norte-americano Kevin Allison no relatório Signal do último dia 31, publicação de relações internacionais do Eurasia Group.
Para Giorgio Romano, a relação Brasil-Venezuela vai para a geladeira no governo Bolsonaro. Coordenador do grupo de análise da conjuntura internacional da Universidade de São Paulo (USP), Alberto Pfeifer acredita que é possível que haja um alinhamento diplomático do Brasil sob Bolsonaro com a Colômbia para pressionar a Venezuela. Os colombianos também estão recebendo milhares de imigrantes venezuelanos – aliás, muito mais refugiados do que o Brasil.

Estados Unidos: Trump pode ser ‘amigo’ de Bolsonaro, mas negócios à parte

Bolsonaro tem proximidade ideológica com Donald Trump. Ambos são conservadores e de direita. Argemiro Procópio lembra que o americano foi um dos primeiros chefes de Estado a telefonar para cumprimentar Bolsonaro após ele vencer o segundo turno. “Isso é significativo.”
Alberto Pfeifer destaca que a inclinação pró-norte-americana de Bolsonaro ocorre também do ponto de vista pragmático. Os Estados Unidos, afinal, são um parceiro fundamental no comércio, investimentos, transferência de tecnologia. E os brasileiros têm interesse em ampliar essa relação. 
Contudo, Giorgio Romano pondera que a proximidade ideológica entre Bolsonaro e Trump não terá influência nas negociações comerciais quando os interesses dos dois países se chocarem. “Todo amor que o Bolsonaro quer dar aos Estados Unidos não vai ter reciprocidade”, aposta Romano.
Trump vem adotando uma política econômica nacionalista, de proteção da indústria local, que contraria os interesses brasileiros. No fim de setembro, o norte-americano indicou que vai endurecer o jogo comercial com o Brasil. Disse que o país trata as empresas dos Estados Unidos “injustamente” e que esse comércio é “o mais difícil do mundo”. Trump também já havia fixado cotas para a importação de aço brasileiro.

Mercosul e América Latina: além do comércio, Brasil tem outros interesses que vão impedir mudanças profundas 

Logo após Bolsonaro ter sido eleito presidente, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que a Argentina e o Mercosul “não são prioridade”. Segundo ele, o bloco tornou o Brasil “prisioneiro de alianças ideológicas”. O anúncio de que o Chile será o primeiro país que o presidente eleito vai visitar após a posse também reforçou a percepção de que haverá um esvaziamento do Mercosul (bloco formado por Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e a hoje suspensa Venezuela). O objetivo seria priorizar o comércio com outros países vizinhos.
Alberto Pfeifer admite que o Mercosul tem problemas e precisa se modernizar. Mas ele acredita que o futuro ministro da Economia desconhece todas as atribuições do bloco. “O que o Paulo Guedes fala de política externa não vale um vintém”, diz. Pfeifer lembra que o Mercosul não é apenas uma união comercial. Os países têm fronteiras e outras questões em comum que são de interesse do Brasil: circulação de cidadãos, tráfico de armas e drogas, vigilância sanitária. 
Argemiro Procópio, contudo, diz que Guedes pecou pela sinceridade. “Às vezes o Mercosul é mais ficção do que realidade.” Procópio diz que o bloco é um grande exportador de commodities agrícolas, essencial para garantir a segurança alimentar mundial. Portanto, teria de ter mais peso. “O Mercosul é uma bela onça que mia como um gato.”
Por isso, Procópio vê o bloco como uma oportunidade para o Brasil. Até mesmo porque há um alinhamento de direita com os governos da Argentina e do Paraguai para promover mudanças mais liberais no Mercosul.
Pfeifer avalia ainda que a Argentina não deixará de ser importante para o país. “A Argentina é grande compradora de manufaturados do Brasil; não é interessante mudar isso.” Ele também acredita que o Brasil pode ampliar a aproximação, que já está ocorrendo, do Mercosul com nações como o Chile, Colômbia e Peru (países que fazem parte da Aliança do Pacífico junto com o México).
Giorgio Romano diz que não é estratégico para o Brasil abrir mão de blocos com os quais pode vir a ter mais peso em negociações internacionais. A partir do ano que vem, aliás, o Brasil vai presidir o Mercosul, a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e os Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Cuba é uma incógnita: Bolsonaro diz que pode cortar relações

Na América Latina, há ainda outra incógnita: a relação com Cuba. A ilha comunista, assim como a Venezuela, foi outro país usado na campanha de Bolsonaro para dizer o que aconteceria com o Brasil se o PT vencesse. Após ser eleito, ele disse que poderia cortar relações diplomáticas com o país por desrespeitos aos direitos humanos dos cubanos. Mas o presidente eleito deixou aberta a possibilidade de não fazer isso.

China: Brasil vai perder muito se desafiar seu maior parceiro comercial

Bolsonaro passou a campanha dando a entender que entraria numa briga com a China se fosse eleito. Afirmou que não quer que os chineses “comprem o Brasil, mas comprem no Brasil” – referindo-se a sua rejeição a que os estrangeiros adquiram terras e estatais brasileiras, que pretende privatizar. Além disso, em março ele visitou Taiwan – o que teria irritado a China, considera que esse não é um país independente, mas uma província rebelde.
Pequim esperou a eleição passar para dar uma resposta. E ela foi incisiva. Editorial do China Daily, o principal jornal do governo chinês em língua inglesa, advertiu Bolsonaro. Disse que suas críticas ao país asiático podem “servir para algum objetivo político específico (...), mas o custo econômico pode ser duro para a economia brasileira, que acaba de sair de sua pior recessão da história”. “Ainda que Bolsonaro tenha imitado o presidente dos Estados Unidos ao ser verbalmente ultrajante para captar a imaginação dos eleitores, não existe razão para que ele copie as políticas de Trump [que adotou medidas protecionistas contra a China]”, prossegue o editorial.
A pressão diplomática também foi feita pessoalmente. Na última segunda-feira (5), Bolsonaro recebeu uma comitiva de empresários chineses encabeçada pelo embaixador da China no Brasil, Li Jinzhang. O embaixador saiu sem dar declarações.
A posição do presidente eleito sobre a China foi alvo de manifestação inclusive do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Se formos por esse caminho, vamos levar o Brasil para uma posição como se fosse os Estados Unidos, mas sem ser os Estados Unidos. Nós não temos esta possibilidade. A China é nosso maior parceiro comercial e, se o Brasil tomar certas medidas, eles vão reagir”, disse FHC. 
Os analistas de política internacional concordam. “O pragmatismo vai falar mais alto; Bolsonaro vai perceber que precisa tratar bem seu principal parceiro comercial”, diz Alberto Pfeifer. Giorgio Romano lembra que Bolsonaro tem apoio dos produtores rurais, que dependem do mercado chinês: “O agronegócio vai pedir para ele baixar a bola”.

Israel: a grande mudança de fato, mas que também esbarra em interesses comerciais

A aproximação do Brasil com Israel talvez seja a principal mudança de fato na diplomacia brasileira no governo Bolsonaro. Especialmente porque Bolsonaro dá sinais de que essa aliança se dará na mesma medida em que haveria um esfriamento das relações com a Palestina.
A intenção do presidente eleito de mudar a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, seguindo o exemplo dos Estados Unidos, é emblemática nesse sentido. Trata-se do reconhecimento de que a cidade sagrada é a capital dos israelenses. Isso não é aceito pelos palestinos e pelo mundo árabe em geral, que também reivindicam Jerusalém como sua capital. 
Na prática, o gesto de Bolsonaro dá respaldo internacional à política do atual primeiro-ministro de Israel, o conservador Benyamin Netanyahu, que congelou as negociações para a formação de dois Estados no atual território israelense: a Palestina e Israel. Netanyahu inclusive planeja comparecer à posse de Bolsonaro, numa visita que seria inédita de um premiê israelense ao Brasil.
Giorgio Romano afirma, se isso ocorrer, o Brasil rompe com a tradição histórica da diplomacia brasileira, que sempre apoiou a existência dos dois Estados. “É bastante drástico.” A mudança da embaixada, segundo ele, pode ter efeitos ruins e bons para o Brasil.
Do lado positivo, Romano diz que o Brasil pode firmar uma aliança estratégica com Israel, um país com alta tecnologia militar, de irrigação, de informação. Argemiro Procópio concorda. Segundo ele, Israel é um país boicotado no cenário internacional e essa proximidade poderia render bons frutos ao Brasil .
Contudo, há riscos. O principal é a ameaça de que países árabes promovam uma retaliação deixando de comprar produtos brasileiros – sobretudo frango e carne. O mundo árabe, aliás, é um dos principais mercados da indústria de carne brasileira – o que pode fazer com que haja pressão externa e interna sobre Bolsonaro para que ele desista da ideia de mudar a embaixada. 
Autoridades palestinas já criticaram a intenção de Bolsonaro. E o governo egípcio foi o primeiro aliado da Palestina a dar um sinal diplomático de seu descontentamento com a questão da embaixada. Desmarcou em cima da hora a visita que o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, faria ao Egito entre os dias 8 e 11 deste mês. Oficialmente, foi um problema de agenda. Mas, nos meios diplomáticos, o gesto foi visto como um recado.
Bolsonaro parece ter percebido os riscos de mudar a embaixada. Recentemente, vem dizendo que ainda não bateu o martelo sobre o assunto.

Itália: Battisti pode ser um símbolo de aproximação, mas jogo comercial será duro

A Itália tende a ser a “ponte” de Bolsonaro com a Europa. É um país com o qual ele pretende se aproximar em função de um alinhamento ideológico de direita entre o presidente eleito com o do atual governo italiano. 
A extradição do terrorista italiano Cesare Battisti, mantido no Brasil por decisão do ex-presidente Lula, seria um gesto simbólico nessa direção. Bolsonaro já anunciou que, se o Supremo Tribunal Federal autorizar, vai enviá-lo à Itália, onde Battisti foi condenado pelo assassinato de quatro pessoas. 
Mas a possível aliança Brasil-Itália, do mesmo modo que ocorre com a aproximação com os Estados Unidos, pode esbarrar nos interesses econômicos divergentes dos dois países. O professor Giorgio Romano afirma que a direita italiana é nacionalista e o governo italiano vem buscando privilegiar as empresas do país – o que seria uma dificuldade para um comércio mais amplo entre as duas nações.

Meio ambiente será fator de pressão externa sobre o Brasil

A questão ambiental será um fator de pressão internacional sobre o futuro governo brasileiro. “Bolsonaro é um cético da mudança climática. E, embora tenha recuado de promessas anteriores de tirar o Brasil do Acordo Climático de Paris (...), ele prometeu facilitar as exigências de licenciamento ambiental para projetos de infraestrutura. (...) Não está claro o quanto isso afetaria o já acelerado desmatamento da Amazônia, mas ativistas ambientais estão preocupados”, escreveu o analista norte-americano Kevin Allison, num relatório do Eurasia Group.
Isso pode virar motivo de pressão internacional sobre o Brasil, inclusive com retaliações comerciais. Por exemplo: a fusão dos ministérios da Agricultura e Meio Ambiente, que ainda não foi decidida nem completamente descartada, já foi alvo de críticas de fora do país, além das internas.
O professor Argemiro Procópio, da UnB, avalia que Bolsonaro pode até mesmo resgatar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCE) para responder às críticas ambientais que possivelmente sofrerá. Procópio diz que a OTCE, que reúne os países amazônicos, foi usada por muito tempo como fórum de defesa dessas nações contra a pressão internacional sobre a Amazônia.