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quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Famílias mudam estratégia em migração para os EUA e não querem voltar ao Brasil - Raquel Lopes, Ricardo Della Coletta e Pedro Ladeira (FSP)

 Países que "exportam" seus nacionais são países em declínio, ou decadentes. Tem algum outro nome para o caso do Brasil?

Paulo Roberto de Almeida

Famílias mudam estratégia em migração para os EUA e não querem voltar ao Brasil
Perfil dos que deixam o país agora inclui cidadãos qualificados que abandonam carreiras sem intenção de retorno
Raquel Lopes, Ricardo Della Coletta e Pedro Ladeira 

Folha de S. Paulo, 29.dez.2021 às 15h00

Gerente operacional de um hotel em Governador Valadares (MG), Eduardo José Fernandes Ramos, 59, foi para os Estados Unidos e lá ficou por 17 anos, de 1989 a 2006. Nesse período, chegou a morar um tempo no Canadá.

Sua intenção era ficar em território americano por alguns anos e depois voltar para o Brasil para seguir a vida com o dinheiro que guardou —quantia que lhe possibilitou comprar carro e casa no retorno.

"Quando você vai para lá e tem uma vida regrada, consegue fazer um bom dinheiro. Eu juntei algo e trouxe para cá", disse Ramos. Ele tem três irmãs que continuam morando nos EUA e conseguiram regularizar sua permanência no país.

Assim como ele, muitas pessoas de Governador Valadares e municípios da região, que historicamente têm o maior número de emigrantes, ficavam um tempo nos EUA e depois retornavam ao Brasil. Agora, famílias inteiras estão se mudando sem ter planos para voltar.

Isso tem causado, inclusive, o esvaziamento de cidades do leste de Minas Gerais. Em Tarumirim, que tem cerca de 14.500 habirantes, 1.800 famílias deixaram o município neste ano. Já em Alpercata, 5% da população foi embora, cerca de 350 pessoas.

"Esperar que as pessoas voltem só por ser a cidade natal deixou de ser importante. Elas não estão mais criando laços com o município", diz o prefeito de Alpercata, Rafael França.

O movimento de famílias que deixam o Brasil tem sido percebido por pesquisadores, autoridades políticas e policiais e por quem acolhe essas pessoas nos Estados Unidos. A Folha publicou reportagens nos últimos dias que permitem compreender esse cenário.

Sandra Nicoli, historiadora e mestra em gestão integrada do território, explicou que a emigração em Governador Valadares começou na década de 1960. Essa "cultura da migração" foi se espalhando para os municípios da região a partir do final da década de 1970.

Os anos 1980 registraram um grande crescimento no movimento de pessoas que escolhiam deixar o país devido à crise econômica brasileira —o período ficou conhecido como a "década perdida". À época, a maioria das pessoas que migravam era jovem, viajava sozinha e pensava em retornar ao Brasil.

Atualmente, o movimento de migração é caracterizado por um número maior de famílias se organizando para morar em definitivo nos EUA. O perfil predominante é de pessoas que buscam serviço braçal, mas há também cidadãos que deixam cargos públicos, empresas e microempresas para trás.

A decisão do retorno não está mais incluída no projeto migratório. Em muitos casos, as pessoas entram de forma irregular, mas há famílias com acesso legal aos Estados Unidos.

"São famílias que possuem uma condição financeira mínima, têm casa, carro, uma pequena empresa, propriedade rural, mas não enxergam uma perspectiva de futuro se continuarem vivendo no Brasil. A ideia do retorno não está permeada no projeto migratório, [as famílias] querem migrar e ficar", explicou a pesquisadora.

Nicoli apontou ainda que, depois do pico da emigração na década de 1980, o crescimento voltou a partir de 2015 devido a um cenário econômico, político e ambiental que acarretou essa decisão. No entanto, segundo a especialista, o auge desse movimento se deu a partir do ano de 2018.

Governador Valadares e municípios ao redor que fazem parte da bacia hidrográfica do Rio Doce foram afetados, em 2015, pela lama da Samarco, após o rompimento da barragem de rejeitos de minérios em Fundão, no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG).

Com o agravamento da atual crise econômica e política no Brasil, o crescimento do fluxo migratório continuou em 2019, mas foi reduzido em 2020 devido à crise sanitária e às medidas restritivas decorrentes da pandemia de Covid-19. No entanto, quem havia decidido emigrar e não o fez nesse período já estava se preparando para deixar o país em 2021, que registrou um salto no número de migrantes.

Nicoli acrescentou que, apesar de a maior parte dos migrantes brasileiros escolherem os EUA, desde os anos 2000 há outros destinos em alta, como Portugal, Itália e Inglaterra. Em território americano, Massachusetts ainda é o estado que abriga a maioria dos brasileiros no país.

Vivendo em Middlesex, no estado de Nova Jersey, Marcos Silva, 21, não pensa em voltar ao Brasil. Ele tem pai e dois irmãos morando legalmente nos EUA. Trabalhando no ramo de construção civil, chega a receber semanalmente US$ 1.120 (R$ 6.333) mesmo estando em situação irregular.

"Eu não vejo mais o Brasil como uma morada. Aqui [EUA] é totalmente diferente e a gente tem muito mais oportunidade, estou conseguindo viver tranquilamente", disse.

Silva chegou ao país no ano passado e contou com vantagens que nem todos os migrantes possuem quando tentam ir aos EUA: familiares em situação legal e uma estrutura mínima para recomeçar a vida.

Os que não podem contar com essa possibilidade frequentemente acabam contraindo dívidas enormes ao entrarem no país de forma irregular. Isso porque chegam a pagar até US$ 25 mil (R$ 141,3 mil) para pessoas que promovem a migração clandestina.

O cônsul-geral do Brasil em Boston, Benedicto Fonseca Filho, explicou à Folha que as famílias recém-chegadas aos EUA acabam se hospedando com parentes e amigos em condições precárias. "Muitas vezes em violação às regras de ocupação e de segurança locais, o que tem multiplicado os casos de ameaça de despejo", disse.

As pessoas que promovem a migração sempre arrumam um "jeitinho" para que o "cliente" consiga entrar em território americano. Fernandes Ramos conseguiu entrar "legalmente" em 1989 como turista, porém com um passaporte falsificado.

"Eles [agentes que promovem a migração irregular] tinham o passaporte com visto. Essa página foi colocada no passaporte que tem minha foto. Cheguei por vias legais e fiquei nessa situação até o tempo que o turista pode permanecer no país", contou Ramos.

Assim como ele, o produtor rural Aldair Martins, 70, entrou com o passaporte falsificado, embora tenha viajado para uma estadia temporária. No seu caso, os dois filhos já estavam nos EUA. "Hoje eu não penso em ir para lá. Um dia, quem sabe, posso tentar [conseguir legalmente] o visto. Na época, queria ver minhas netas e tinha vontade de ir para conseguir mais alguma coisa", explicou.

O delegado da Polícia Federal Cristiano Campidelli explicou que é praticamente impossível falsificar o passaporte desde que um novo modelo do documento passou a ser utilizado. Além de vários mecanismos de segurança, a versão atual possui um chip que impõe obstáculos aos falsificadores.

A atualização, no entanto, não impede estratégias para entrar nos EUA que independem da tecnologia. Campidelli explicou que ainda são muitas as pessoas que atravessam o deserto, pulam cercas e muros e cruzam rios de barco ou a nado de forma encoberta para não serem pegas pelas autoridades.

Depois que o ex-presidente Donald Trump determinou o fim da separação de famílias de imigrantes, porém, as pessoas que promovem a emigração passaram a usar crianças.

Dessa forma, cresceu o interesse pelo "cai cai", sistema em que a pessoa vai acompanhada de um parente em primeiro grau menor de idade, entrega-se às autoridades americanas e é liberada para responder ao processo em liberdade.

"Houve um 'boom' do 'cai cai' em 2019, na época do ex-presidente Donald Trump. Mas essa moda antiga, transpondo a fronteira seja pelo rio, deserto ou pulando cerca, nunca parou, também porque muitas pessoas não têm uma criança para levar", afirmou o delegado.

Há também quem se entrega sozinho aos agentes americanos para fazer uma solicitação formal de asilo. Nesses casos, é comum que os responsáveis por promover a emigração ilegal ensinem aos "clientes" táticas para convencer as autoridades. A estratégia mais comum é a alegação de que o solicitante está sendo ameaçado de morte no Brasil ou foi torturado por agentes públicos, como policiais e políticos.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/12/familias-mudam-estrategia-em-migracao-para-os-eua-e-nao-querem-voltar-ao-brasil.shtml

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Ernesto mina trabalho de novo chanceler e tenta manter influência ideológica no Itamaraty - Ricardo Della Coletta (FSP)

 Nas redes, Ernesto mina trabalho de novo chanceler e tenta manter influência ideológica no Itamaraty


Folha de S. Paulo, 9.mai.2021 às 17h32
Ricardo Della Coletta

Interlocutores apontam ambições políticas como justificativa para comentários de ex-chanceler

Com uma série de publicações nas redes sociais, o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo e membros da ala ideológica do governo têm criado constrangimentos e minado o trabalho do novo chanceler, Carlos França.

A avaliação foi feita à Folha por interlocutores no governo Jair Bolsonaro, que consideram as recentes publicações de Ernesto um empecilho para a guinada pragmática que França tenta empreender na chancelaria.

No feriado de 1º de maio, Ernesto afirmou que a partir do ano passado, com a pandemia, uma "reação do sistema" começou a "desmantelar" esperanças geradas com a eleição do presidente Bolsonaro em 2018.

"Hoje o povo brasileiro tem a oportunidade de recuperar sua esperança, ao pedir ao presidente Bolsonaro simplesmente que ele volte a ser o presidente eleito em 2018, aquele que prometeu derrotar o sistema, o líder de uma transformação histórica e constitucional, o portador de uma missão", escreveu.

Mas antes disso Ernesto já havia feito manifestações que deixam evidente sua discordância com França, criando no Itamaraty uma situação inusitada: a de um ex-chanceler que, mesmo permanecendo na ativa na carreira, alfineta a atual gestão.

Em uma sequência de publicações em que se defendeu das acusações de que era um empecilho para a obtenção de vacinas, Ernesto disse em 17 de abril que a situação do Brasil no tema “não mudou” desde que deixou o cargo. “Ou mesmo em alguns casos sofreu adiamentos depois disso. Dificuldades seguem no mundo todo. Minha atuação não foi empecilho para nada.”

Ele também destacou que até aquele dia, desde que deixara o cargo, não tinham chegado ao Brasil novas vacinas. E atribuiu sua queda à "armação de uma falsa narrativa" para tirar o ministério das Relações Exteriores de um projeto que, segundo ele, era transformador.

Dez dias depois, em uma sequência de tuítes sobre Mercosul, Ernesto afirmou que um de seus objetivos foi resgatar o “sentimento da liberdade” nas discussões internacionais, mas sugeriu que essa meta foi abandonada.

“O mundo deixou que a ideia e o sentimento da liberdade fossem excluídos do centro das discussões internacionais. O Brasil agora quer ajudar a corrigir isso, em nível global ou regional. E o Mercosul pode fazer parte deste novo mundo com a liberdade em seu centro”, escreveu.

Ernesto é um diplomata da ativa e em tese não poderia emitir opiniões pessoais sobre a condução da política externa brasileira sem autorização.

Mas interlocutores ouvidos pela Folha opinam que França, mesmo que incomodado, não tem condições políticas de repreender seu subordinado.

Isso porque Ernesto ainda conta com apoio de Bolsonaro e do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente.

Em discursos recentes, por exemplo, Bolsonaro fez questão de elogiar o ex-ministro.

A avaliação entre diplomatas é que Ernesto, alçado à posição de ídolo de movimentos conservadores e do núcleo duro do bolsonarismo, está se preparando para a disputa de um cargo eletivo no Legislativo.

Ainda de acordo com diplomatas, trata-se de uma das poucas opções do ex-ministro, uma vez que ele deixou o comando do Itamaraty sob um intenso desgaste com o Congresso. Nesse quadro, é improvável que ele consiga aval do Senado para assumir alguma embaixada no exterior, ao menos no curto prazo.

Ernesto não é o único que tenta, através das redes sociais, manter a chama do bolsonarismo viva no Itamaraty.

Recentemente, Eduardo Bolsonaro elogiou no Twitter o movimento encampado pelo presidente de El Salvador, Nayib Bukele, pelo qual o Congresso do país destituiu cinco juízes que compõem o Tribunal Constitucional, além do procurador-geral.

Bukele “tem maioria dos parlamentares em seu apoio”, escreveu Eduardo. “Agora, o Congresso destituiu todos os ministros da suprema corte por interferirem no Executivo, tudo constitucional. Juízes julgam casos, se quiserem ditar políticas que saiam às ruas para se elegerem.”

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/05/nas-redes-ernesto-mina-trabalho-de-novo-chanceler-e-tenta-manter-influencia-ideologica-no-itamaraty.shtml

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Os inacreditáveis tropeços da diplomacia bolsolavista com a China - Julio Wiziack e Ricardo Della Coletta (FSP)

 China ignora pedidos de Bolsonaro por troca de embaixador no Brasil

Folha de S.Paulo | Mundo
15 de Fevereiro de 2021

Fora da praxe diplomática, solicitação contribuiu para rompimento do Itamaraty com embaixada

Julio Wiziack e Ricardo Della Coletta

Convencido pelo chanceler Ernesto Araújo, o presidente Jair Bolsonaro pediu no ano passado ao regime chinês a troca de seu embaixador no Brasil, Yang Wanming.

A medida foi tomada em abril e reiterada em novembro, após bate-bocas via redes sociais entre o diplomata e o deputado Eduardo Bolsonaro. Pequim ignorou a solicitação brasileira nas duas ocasiões.

Ernesto tomou as dores do filho do presidente Bolsonaro e rompeu relações com Yang.

O estopim que motivou o pedido foi o embate no Twitter entre Eduardo e o diplomata chinês. Em março de 2020, o deputado publicou um texto comparando a pandemia da Covid-19 ao acidente nuclear de Tchernóbil (1986) e afirmando que o regime chinês tinha responsabilidade pela disseminação da doença.

"Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. Mais uma vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste,mas que salvaria inúmeras vidas", escreveu o deputado na época.

Yang classificou a fala de Eduardo de "insulto maléfico" e o perfil oficial da embaixada veiculou uma publicação que acusa o deputado de ter contraído um "vírus mental".

O embate fez o governo brasileiro tomar decisão drástica, que gerou apreensão entre diplomatas no Itamaraty.

No fim de março, Ernesto enviou para Paulo Estivallet de Mesquita, o embaixador do Brasil em Pequim, um telegrama diplomático solicitando que ele entregasse um documento formal ao governo chinês pedindo a substituição de Yang - o que ocorreu no início de abril, segundo pessoas que participaram das discussões ouvidas pela Folha sob condição de anonimato.

A solicitação foi ignorada.

Procurado, o Itamaraty não se manifestou sobre o tema.

Em novembro, no auge dos ataques à Huawei, gigante chinesa de telecomunicações, Eduardo acusou a China de promover a espionagem industrial via equipamentos 5G.

Yang reagiu, e o Itamaraty solicitou novamente a troca.

Os pedidos formais de substituição de Yang foram secretos, mas uma carta enviada por Ernesto à embaixada da China em Brasília deu o tom da insatisfação do governo Bolsonaro como diplomata chinês.

"Não é apropriado aos agentes diplomáticos da República Popular da China no Brasil tratarem dos assuntos da relação Brasil-China através das redes sociais. Os canais diplomáticos estão abertos e devem ser utilizados", afirmou o Itamaraty na carta, encaminhada em novembro.

Oficialmente, não houve respostas sobre os pedidos de troca de Yang. No entanto, Pequim fez chegara autoridades brasileiras a informação de que seu embaixador no Brasil é um quadro conceituado do serviço público chinês.

Um membro do governo Bolsonaro argumenta que as declarações de Yang foram avalizadas pelas autoridades em Pequim, que têm instruído seus diplomatas no exterior a responder à altura diante de manifestações consideradas ofensivas ao regime.

As relações de Ernesto com Yang estão cortadas. As portas da divisão do Itamaraty responsável por Ásia e Pacífico também estão fechadas para ele, de acordo com pessoas próximas ao embaixador.

Interlocutores ouvidos pela Folha destacaram que a solicitação de substituição do embaixador chinês feita pelo governo brasileiro foge totalmente da praxe diplomática.

Os governos têm a prerrogativa de expulsar do país diplomatas estrangeiros, mas esse gesto é considerado extremado e com o potencial de prejudicar as relações bilaterais.

Caso Bolsonaro tivesse optado por essa medida, a resposta inevitável seria a expulsão do embaixador brasileiro de Pequim, escalando a crise diplomática com o maior parceiro comercial do Brasil.

Ainda segundo esses interlocutores, Ernesto optou por uma medida mais "leve" e com efeito de "marketing", especialmente levando em conta interesses da família Bolsonaro.

Um diplomata com experiência na relação Brasil-China afirma que o governo Bolsonaro deveria saber que Pequim não atenderia ao pleito. Se cedesse ao Brasil, a China poderia ver requisições semelhantes chegarem de outros países onde embaixadores chineses protagonizaram polêmicas.

Na Suécia, por exemplo, o embaixador chinês fez declarações que provocaram mal-estar nas autoridades locais.

O constrangimento de Ernesto - ignorado por Pequim- ficou mais evidente quando o presidente Bolsonaro foi obrigado a procurar a China sobre a liberação de insumos para a fabricação da vacina contra o coronavírus.

O Palácio do Planalto tentou, até o último momento, garantir a importação de imunizantes prontos da Oxford/AstraZeneca fabricados em um laboratório na índia.

Entretanto, diante do fracasso das negociações com a índia , acabou sofrendo um revés político para o governador João Doria (PSDB-SP), que negociou diretamente com um laboratório da China a compra da Coronavac.

Coube a Doria a primeira foto da vacinação no país.

Para piorar a situação do governo federal, que já vinha sendo criticado pela demora no início da vacinação, tanto o Instituto Butantan quanto a Fio cruz (Fundação Oswaldo Cruz) estavam com remessas atrasadas de insumos para a fabricação dos imunizantes.

Os insumos - tanto da vacina da Oxford/AstraZeneca quanto a da Coronavac são produzidos pela China.

Bolsonaro passou a apelar para a China e chegou a pedir uma conversa telefônica com o líder do país, Xi Jinping.

Diante das dificuldades, Bolsonaro pediu em uma live que Ernesto recompusesse as relações com o gigante asiático. O chanceler respondeu que o embaixador do Brasil em Pequim estava dialogando com o governo chinês diretamente.

Mas nos bastidores, o chanceler manteve a política de "portas fechadas" para Yang.

Além do mais, Ernesto não abriu mão da retórica antiChina que marcou sua administração e, recentemente, ordenou a subordinados que reunissem declarações críticas feitas por autoridades estrangeiras contra o regime chinês.

Em uma das solicitações, à qual a Folha teve acesso, Ernesto pede que membros do corpo diplomático lhe enviem manifestações das autoridades da Austrália e do Japão contrárias a Pequim.

Para contornar a falta de diálogo do Itamaraty com a embaixada chinesa, o presidente acatou sugestões de ministros que formaram uma espécie de "tríplice aliança" para tentar salvar a relação do Brasil com seu principal parceiro comercial. Fazem parte dos esforços os ministros Eduardo Pazuello (Saúde), Tereza Cristina (Agricultura) e Fábio Faria (Comunicações).

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, que preside a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), não foi convidado. Ele vive o pior momento da sua relação com Bolsonaro, que parou de delegar ao vice tarefas no governo.

domingo, 1 de novembro de 2020

Vitória de Biden colocaria viés ideológico do atual Itamaraty em xeque - Ricardo Della Coletta, Daniel Carvalho (FSP)

 

Vitória de Biden colocaria viés ideológico do atual Itamaraty em xeque

RICARDO DELLA COLETTA E DANIEL CARVALHO


BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Ainda que uma vitória de Joe Biden nas eleições americanas coloque em xeque o forte componente ideológico da política externa do governo Jair Bolsonaro (sem partido), auxiliares do presidente afirmam acreditar que o democrata buscará uma relação pragmática com Brasília devido a interesses comerciais e geopolíticos.

Por outro lado, é provável que o relacionamento entre ambos seja marcado por animosidades e má vontade, o que traria dificuldades para a agenda do líder brasileiro. O cenário foi traçado por conselheiros e aliados do presidente, além de diplomatas, que falaram com a reportagem sob condição de anonimato.

Auxiliares preveem que, para não se indispor com Biden, Bolsonaro seria pressionado a mudar a orientação da política externa, reduzindo a carga ideológica e procurando manter uma agenda com Washington pautada em interesses comerciais.

Sem os EUA, seria mais difícil para o Brasil, por exemplo, embarcar em iniciativas que defendem, em fóruns internacionais, valores conservadores, como o recente apoio à Declaração de Consenso de Genebra, documento político contra o aborto e em defesa da família baseada em casais heterossexuais.

Nas palavras de um diplomata, Bolsonaro pode ter de adotar uma tática de "centrão" na política externa --numa referência à aproximação do presidente com partidos que flutuam ao sabor do momento no Congresso, deixando de lado o discurso contra a chamada velha política em nome da governabilidade.

Um conselheiro próximo a Bolsonaro lembrou da convivência dos ex-presidentes George W. Bush e Luiz Inácio Lula da Silva. À época, o petista liderou iniciativas que contrariavam os interesses dos EUA, mas manteve bom relacionamento pessoal com o republicano, que visitou o Brasil em duas ocasiões.

Assessores, porém, ressalvam que qualquer processo de moderação das diretrizes da diplomacia brasileira depende, antes de tudo, de uma decisão do próprio Bolsonaro --e até o momento ele não deu mostras de que pretende se distanciar do trumpismo.

Em discurso no fim de outubro, o chanceler Ernesto Araújo, por sua vez, intensificou a aposta numa agenda radicalizada nos costumes e pela defesa do conservadorismo. "O Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária", declarou.

Assessores também se preocupam com um flanco que Biden poderia explorar para colocar pressão e até mesmo "dar o troco" pela simbiose do brasileiro com Donald Trump: o meio ambiente.

O temor é que o ex-vice dos EUA seja cobrado pela ala mais progressista do Partido Democrata a mostrar compromisso com a agenda. E Bolsonaro --frequentemente retratado no exterior como um líder de tendências autoritárias que minimiza os incêndios na Amazônia-- pode ser o alvo mais óbvio para tal.

No primeiro debate presidencial nos EUA, Biden, ao se referir à Amazônia, disse que "a floresta tropical no Brasil está sendo destruída". Indicou que atuaria para oferecer recursos ao país para a preservação ambiental e, ao mesmo tempo, sugeriu retaliações econômicas ao Brasil se o desmatamento não diminuir. Bolsonaro classificou a fala como "lamentável".

As diferenças entre eles fazem com que analistas comparem o eventual panorama à eleição do democrata Jimmy Carter em 1976 e a pressão exercida à época sobre o regime militar no Brasil.

Eles destacam ainda que, nesse cenário, o brasileiro se encontraria na incômoda situação de manter relações estremecidas com os principais atores globais. Afinal, Bolsonaro já protagonizou choques com a China, maior parceiro comercial do país, e com líderes como o presidente francês, Emmanuel Macron, e a chanceler da Alemanha, Angela Merkel.

A perspectiva de um futuro relacionamento difícil é reforçada pela própria postura de Bolsonaro nas últimas semanas. Em vez de se distanciar da disputa, recebeu em 20 de outubro uma delegação chefiada pelo Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O'Brien.

Na ocasião, disse torcer pela vitória de Trump e que, "se for a vontade de Deus", comparecerá "à posse do presidente brevemente reeleito nos EUA". "Não preciso esconder isso, é do coração", afirmou Bolsonaro.

Assessores, no entanto, apostam que o país ficaria fora do foco democrata num primeiro momento. Embora estratégico na América Latina, o Brasil sempre esteve longe das prioridades americanas --Biden deve dar atenção especial à China, à Rússia, à reaproximação com a Europa Ocidental e ao Oriente Médio.


sábado, 13 de junho de 2020

Aliada de Ernesto, diplomata recebe em dólar e euro por mais de 6 meses de trabalho no Brasil - Ricardo Della Coletta (FSP)

Aliada de Ernesto, diplomata recebe em dólar e euro por mais de 6 meses de trabalho no Brasil

Lotada em Amsterdã, Gilsandra Clark passou 203 dias atuando em Brasília no ano passado


Ricardo Della Coletta
BRASÍLIA

Folha de S. Paulo, 12 de junho de 2020
Aliada do ministro Ernesto Araújo, a diplomata Gilsandra Clark recebeu salários e verbas indenizatórias em dólar e euro durante os mais de seis meses em que trabalhou no Brasil.
Lotada oficialmente no consulado-geral do Brasil em Amsterdã, Gilsandra esteve "chamada a serviço" em Brasília por 203 dias em 2019.
No período, ela recebeu mensalmente seu salário (US$ 11,2 mil ou R$ 56,5 mil, segundo a cotação desta sexta) e auxílio-moradia de 2.900 euros (R$ 16,5 mil). Gilsandra também fez jus a diárias por seu tempo de serviço no Brasil, que em alguns casos superaram R$ 10 mil por mês.
Os dados foram obtidos pela LAI (Lei de Acesso à Informação).
O ministro de Relações Exteriores brasileiro, Ernesto Araújo, durante entrevista coletiva em Guatemala
O ministro de Relações Exteriores brasileiro, Ernesto Araújo, durante entrevista coletiva em Guatemala - Luis Echeverria - 19.fev.20/Reuters
Gilsandra é conselheira, um posto intermediário na hierarquia do Itamaraty. Ela foi chamada para trabalhar com o assessor especial da Presidência Filipe Martins, no Palácio do Planalto.
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A diplomata escreveu textos na internet defendendo Ernesto e a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018.
Em novembro daquele ano, dois dias depois de o atual chanceler ter sido indicado para o cargo, ela publicou em um blog o texto "A importância de ser Ernesto", num trocadilho com o título da obra "The Importance of Being Earnest" ("A Importância de Ser Prudente", na edição em português), de Oscar Wilde.

Nele, Gilsandra escreveu: "E foi o senso comum que elegeu Bolsonaro, que apoia Sergio Moro, que quer escolas de qualidade, que quer poder sair de casa sem a expectativa de ser assaltado ou assassinado, que sabe que o Brasil é seu lar, e que não há maior tristeza do que a persistente miséria em país que teria todas as condições de ser próspero".

Ela também colaborou com o blog Metapolítica 17, mantido por Ernesto e onde o atual chanceler publicou seus primeiros textos de apoio ao então candidato Bolsonaro.

Entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018, a diplomata disse que existiu, durante o pleito, uma mobilização por transformações políticas, econômicas e sociais radicais, "com possibilidade de finalmente superar a visão do Brasil como mera colônia de exploração".

"Perdoem-me os marxistas, mas o movimento que Bolsonaro representa não é 'onda' nem 'maremoto'. É revolução", arrematou a servidora no texto.

A chamada a serviço ocorre quando um diplomata lotado no exterior é convocado para atuar, de forma provisória, no Brasil. Por exemplo, quando o Itamaraty precisa excepcionalmente no Brasil da expertise de algum funcionário que está no exterior ou para o auxílio em algum evento realizado no país.

Nesses casos, o servidor segue recebendo seu salário em moeda estrangeira e o auxílio-moradia, além de diárias em reais.

No entanto, segundo diplomatas ouvidos pela Folha sob condição de anonimato, normalmente essas convocações temporárias não ultrapassam um mês de duração.

No ano passado, Gilsandra cumpriu três missões temporárias no Brasil, ainda de acordo com dados obtidos pela LAI.

A primeira, em janeiro, durou cerca de 20 dias. As outras duas tiveram duração superior a 90 dias cada uma.

Em abril de 2019, embora tenha trabalhado o mês inteiro no Brasil, a conselheira recebeu um salário líquido de cerca de US$ 11,2 mil, além de R$ 10 mil em diárias e um auxílio-moradia de 2,9 mil euros. No total, considerando o câmbio daquele mês, Gilsandra obteve uma remuneração de cerca de R$ 65 mil.

Neste ano, ela foi novamente convocada ao Brasil e permaneceu na assessoria internacional do Planalto entre o início de fevereiro e 23 de março.

Procurada, Gilsandra não respondeu.

O Ministério das Relações Exteriores disse que o pagamento de salários em moeda estrangeira e de diárias durante os chamamentos a serviço no Brasil está amparado nas leis 8.112 de 1990 e 5.809 de 1972, além do decreto 71.733 de 1973.
"A diplomata foi convocada a fim de prestar serviços de natureza técnica na área de formulação de diretrizes de política externa, no âmbito da Assessoria Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais e sob a coordenação do Ministério das Relações Exteriores", afirmou a pasta.
O ministério também disse que não existe nessas normas um prazo máximo para o cumprimento das missões transitórias no país.
"As chamadas a serviço são realizadas por estrita necessidade de serviço e submetidas aos limites orçamentários do Ministério das Relações Exteriores. Como informado, as diárias decorrentes de missões eventuais são indenizações determinadas em lei e decreto, não sendo submetidas ao teto constitucional. Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o ministério diminuiu em 14% o total de gastos com diárias em relação a 2018", afirmou a pasta.

O Itamaraty também disse que, em 2019, um total de 49 diplomatas que estavam servindo no exterior foram chamados a serviço no Brasil. No entanto, a média de permanência desses servidores no país, naquele ano, foi de 30 dias.

Nenhum diplomata lotado no exterior, segundo o Itamaraty, foi chamado a serviço no Brasil por período igual ou superior ao de Gilsandra. A conselheira não é o primeiro caso de diplomata que, na gestão de Ernesto Araújo, recebeu valores em moeda estrangeira mesmo dando expediente por longos períodos no Brasil.

Em maio, o jornal O Globo revelou que Alberto Luiz Pinto Coelho Fonseca, também próximo do chanceler, passou grande parte do ano passado em Brasília. No entanto, ele recebeu como se estivesse morando em Paris, com direito a salário e auxílio-moradia em moeda estrangeira e diárias pelo tempo passado no Brasil.